Maria Auxiliadora, ‘A preparação das meninas’, 1972
Maria Auxiliadora: vida cotidiana, pintura e resistência, individual no MASP, a partir de 10/3
Organizada em sete núcleos, referentes aos temas recorrentes na obra de Maria Auxiliadora, a exposição no MASP acontece após 37 anos passados desde a última individual da artista. Resgatando a obra de Maria, o MASP traz os núcleos Candomblé, Manifestações, Autorretratos, Casais, Rural, Urbano e Interiores. Segundo o museu, “esta mostra tem o objetivo de renovar o interesse por esta artista brasileira fundamental, para além das preconceituosas, paternalistas e redutoras categorias de ‘arte naïf’ ou ‘primitiva’.” Também no MASP e no mesmo dia, estará aberta para visitação a exposição Imagens do Aleijadinho, que reúne dezenas de obras do artista mineiro Antônio Francisco Lisboa.
Beth Lesser, ‘Michael Palmer’, 1984.
Jamaica, Jamaica, coletiva no Sesc 24 de Maio, a partir de 15/3.
Com a intenção de abrir o leque de imagens quando se pensa em Jamaica, a exposição no Sesc 24 de maio traz uma variedade de imagens que vão muito além de Bob Marley. A complexa história do país se estende para além da música, e suas raízes penetram profundamente nos dias da escravização do povo negro, remetendo as formas tradicionais de canção e dança herdadas da colonização. A curadoria é de Sébastien Carayol.
Alfredo Volpi, ‘Bandeiras e Mastros’, década de 70
Volpi, individual no Museu de Arte Moderna da Bahia, a partir de 16/3.
Sob curadoria de Sylvio Nery, a capital baiana receberá 33 obras de Alfredo Volpi, que compreendem um período de atividade do pintor que vai de 1940 a década de 1970. A exposição no Museu de Arte Moderna da Bahia é fruto de um esforço do museu para fomentar a arte e colocar Salvador no circuito artístico do Brasil com mais afinco. A exposição é uma grande parceria entre instituições, com realização do MAM-BA e produção e apoio do Instituto Alfredo Volpi de Arte Moderna, da Galeria Almeida & Dale, ambos de São Paulo, e da Paulo Darzé Galeria de Arte, de Salvador.
Cícero Alves dos Santos, ‘O bocudo’, 2014.
Véio: A imaginação da madeira, individual no Itaú Cultural, abertura em 14/3
O Itaú Cultural apresenta uma exposição que reúne parte da vasta obra do escultor Véio, nascido em 1947 no interior do Sergipe – onde vive até hoje. Com curadoria de Agnaldo Farias e Carlos Augusto Calil, Véio – a Imaginação da Madeira traz para o público, pela primeira vez fora do sertão sergipano, peças da coleção que o artista mantém em sua casa e que dialogam com o cotidiano do povo sertanejo.
Erwin Olaf, The Dancing School, 2004.
Erwin Olaf: Tensão, individual no Museu da Imagem e do Som em São Paulo, abertura em 10/3
Tensão apresenta 22 fotos e sete videoinstalações produzidas por Erwin Olaf nos últimos quinze anos. A obra do artista busca reconhecer, traços essenciais da vida contemporânea, como o isolamento e a solidão, as barreiras de comunicação que separam os indivíduos, a busca frustrada por prazer, o embate de desejos, a velocidade da passagem do tempo e os padrões impostos pela publicidade e pela indústria da moda.
Guto Lacaz, ‘mondrimobile’, 2001
O Lugar do Centro, coletiva na Central Galeria, abertura em 10/3
A exposição O Lugar do Centro inaugura o novo espaço da Central Galeria – no histórico prédio do IAB (Instituto dos Arquitetos do Brasil), localizado no centro da cidade – discorre pontualmente sobre as acepções da palavra “centro” e seus diversos domínios, derivados da geometria, da composição, do urbanismo, da mecânica, da geopolítica, etc. A seleção de obras, consequentemente, perpassa diversas mídias, como vídeo, pintura, objetos e instalações, todas elas tratando, à sua maneira, de uma ideia de centro”. A coletiva tem curadoria do artista Artur Lescher e participam doze artistas: Eduardo Basualdo, Laura Belém, Nelson Felix, Marcius Galan, Cao Guimarães, Carmela Gross, Guto Lacaz, Laura Lima, Milton Machado, Odires Mihlaslo, Rodrigo Sassi, Otavio Schipper e o Coletivo Situações de Rua.
O diretor e ator Nelson Baskerville em seu apartamento na Aclimação, em São Paulo. Foto: Diego Rousseaux
*Por Gustavo Fioratti
Quando tinha 11 anos, Nelson Baskerville tomou uma surra de seu pai por ter quebrado uma cadeira, e a aparente gratuidade da violência contida na situação rondou, como uma incógnita, a memória do ator e diretor, inclusive durante a vida adulta. Com o passar do tempo, ele foi ressignificando esse dado biográfico até chegar à beira de uma conclusão.
Para entender a razão da surra é preciso saber que a mãe de Baskerville morreu durante seu parto e que o pai teria represado o ódio até aquele momento. “Aos poucos, entendi que ele não engoliu o fato de que sua mulher tivesse sido substituída por aquela coisa torta e sem jeito que era eu”, diz o diretor, um homem grande, de cabelos grisalhos e bagunçados. Eram 17 horas, e ele estava almoçando em um café no bairro paulistano do Bom Retiro, vizinho à Casa do Povo, centro cultural onde ensaia A Vida, espetáculo no qual falará sobre este episódio doloroso.
Não se trata de um exercício solitário de autobiografia. Em cena, outros seis atores expõem traumas novos ou antigos que determinaram rumos em suas trajetórias. Felipe Schermann fala sobre uma doença que acometeu seu pai; Camila Rafantti, sobre o parto da filha; Nuno Carvalho performa sobre a perda de 40 quilos após uma separação; Hercules Morais descreve a situação em que foi proibido de usar a piscina de um condomínio em São Paulo, onde seu pai trabalhava como zelador; e Tamirys Ohanna nos coloca diante de uma mulher negra que se muda da cidade paulista de Cubatão para São Paulo, com todas as situações políticas que a mudança implica.
Tampouco é um tipo de experiência isolado de um contexto artístico mais amplo. A ação de performar a exposição das próprias feridas consolidou-se no cenário teatral mais recente praticamente como um gênero. De 2010 para cá, grupos como a Cia Brasileira, a Kunyn e a mineira Luna Lunera abriram espaço a espetáculos criados com depoimentos. Em São Paulo, a atriz Janaina Leite também apostou em criações decalcadas na exposição da memória. Acompanhado com interesse pela crítica e dentro do próprio cenário teatral, os espetáculos autobiográficos, diz Baskerville, desatam dramaturgicamente um nó de natureza temporal. Para ele, esse tipo de criação evidencia a capacidade do presente de ressignificar o que já passou. “A cada instante, nosso passado se torna diferente”, ele sintetiza. A ideia é que, quando pensamos em algo, a lembrança resgatada se torna automaticamente diferente.
Não será a primeira vez que Baskerville traz para a cena a memória do episódio da cadeira, que já havia sido representado em Luis Antonio – Gabriela (2011), seu espetáculo mais longevo e, como ele reconhece, o de maior sucesso – a peça foi premiada com um Shell por sua direção. Voltar à questão, diz o diretor, reforça o sentido performático do teatro, de reelaborar continuamente o que está guardado e que, apenas aparentemente, se aquietou.
Haverá, na peça, outro dado biográfico importante e de impacto: a memória da figura do irmão (bem como sua impermanência diante da passagem do tempo). Com estrutura que busca a relação do teatro épico, distanciado do drama convencional, Luis Antonio – Gabriela colocou o público em contato com a personalidade complexa de Luis Antonio, primogênito de seis irmãos, que abusou de Nelson quando ele era criança. Depois, na passagem para a vida adulta, Luis Antonio torna-se travesti e, abandonado pela própria família, parte para a Espanha, onde se distancia por definitivo de todos. Houve, em 2002, a falsa notícia de que Gabriela (agora com o nome escolhido para a vida artística) havia morrido, o que levou uma de suas irmãs a buscar informações. Ela estava viva. Não houve uma reaproximação entre Baskerville e Gabriela, porém, e ela morreu em 2006. “A última vez que eu o vi foi quando nós precisamos que ele assinasse um formal de partilha do meu pai, logo depois que ele morreu, em 1984. Foi quando percebi que ele não sabia que meu pai tinha morrido”, diz Baskerville, usando o gênero masculino (outra impressão relacionada ao tempo). “Depois nunca mais o vi. Quando ele saiu de casa, nós ficamos com essa coisa de que ele nos fazia mal, porque abusou de mim ou porque em Santos éramos conhecidos como a família da bicha. A princípio, foi um alívio quando ele se foi, e é aí que reside toda a coisa triste dessa história”, resume o diretor.
Integrantes da companhia Mungunzá em cena de Luis Antonio – Gabriela. Foto: Divulgação
Há uma diferença estrutural entre Luis Antonio – Gabriela e A Vida. O novo espetáculo é todo composto de módulos. As cenas funcionam com certa autonomia, mas se conjugam de formas diversas, conforme os resultados de um sorteio realizado a cada sessão. “Parti da ideia de Schopenhauer sobre uma aparente aleatoriedade da vida; não estamos falando exatamente de destino aqui, porque não é como se as coisas já estivessem traçadas, mas sim como se tudo fosse traçado a cada momento conforme as coisas acontecessem”, diz o diretor. “Queria criar um espetáculo que pudesse ser aleatório e ao mesmo tempo ensaiado, partindo de experiências biográficas minhas e dos atores (de sua companhia Antikatártika). A questão da biografia é que sempre consigo ver a vida e entendê-la por meio dessas experiências”, diz.
Reestruturar suas memórias em cena levou Baskerville a procurar por um analista também. Com a decisão, o diretor destitui a arte de um papel totalmente terapêutico. “Achava que a arte me salvaria dos meus problemas existenciais e da minha depressão. Percebi, porém, que eu estava empurrando com a barriga um monte de coisa”, conclui o diretor.
Psicanálise em cena
Há uma questão de relevância para o público que vê em cena um ator ou um autor tendo de lidar com os próprios traumas. Se há traços de psicanálise em trabalhos do gênero, de que forma os desenlaces ou mesmo essa percepção de que o presente ressignifica o passado podem ser compartilhados com espectadores que, frequentemente, assistem a apenas uma das sessões e não seus desdobramentos, seus efeitos e curas? Um espetáculo em transformação não dependeria de um acompanhamento mais contínuo por parte da plateia?
Baskerville acha que o espectador capta “alguma coisa sem saber exatamente o que é”. “Nunca fui textocêntrico, nunca transferi a responsabilidade total do espetáculo às palavras. A tentativa é de se atingir alguma coisa além do racional”, justifica. “A gente não tem controle sobre a absorção da plateia. O que acho que podemos estabelecer é a comunicação ‘celular’, nem que seja através de um arrepio, de imagens, sensações e situações que vêm à tona depois que o público vai para casa. Acho que a sensação primária da plateia é a de que estamos nos expondo e expondo as nossas vidas. De que não se trata de ficção ou algo meramente baseado em fatos reais. Acredito que a ficção, na maioria dos eventos artísticos, se afastou do humano.”
Do encontro entre todas as histórias do novo espetáculo também surgiram contextos políticos como pano de fundo, dos quais sobressai o debate sobre a cultura da opressão à mulher. Segundo Baskerville, nos ensaios em que os atores expuseram suas memórias, detectou-se a reincidência de histórias de abuso moral ou sexual sofrido pelas atrizes que participam da composição da peça. Entre essas histórias também está a de Taís Medeiros. “Ela descreve como as mães das amigas proibiram suas filhas de brincar com ela porque a sua mãe era separada do marido. Hoje, ela tem 36 anos. A gente está falando dos anos 1980”, conta.
Além de A Vida, Baskerville prepara uma adaptação do romance Uísque e Vergonha, de Juliana Frank, a seis mãos – com as atrizes Alessandra Negrini e Erika Puga. Novamente, ele se depara com as questões da feminilidade e das lutas políticas da mulher, dessa vez por meio da ótica de uma adolescente que sai de casa para ir morar na rua.
Noemi Marinho e Pascoal da Conceição na peça 1 Gaivota – É Impossível Viver sem Teatro. Foto: Lígia Jardim/Divulgação
O mau gosto em cena
Após a entrevista no café, o diretor partiu para a Casa do Povo, onde o elenco da peça e a equipe técnica esperavam por ele. No meio do ensaio, ele ria a cada música dos anos 1980 que tocava na trilha da peça, justamente porque havia sido questionado, minutos antes, sobre a evidente influência que seus trabalhos carregam da década marcada pelo uso de ombreiras e de polainas. “Fui forjado nos anos 1980”, respondeu. “Tenho como antecedentes a formação no rock progressivo, as drogas lisérgicas, Pink Floyd, The Who. Vim de uma época em que os jovens se reuniam em volta de um disco. Deitávamos e ficávamos ouvindo Pink Floyd.”
Os anos 1980, para ele, também ficaram registrados como os anos que transformaram sua vida em “outra coisa”. “Prestei EAD (Escola de Arte Dramática, em São Paulo) e, milagrosamente, passei com 18 anos. Meu pai praticamente me deserdou. Eu era um menino de classe média alta que, de repente, estava trabalhando na lanchonete do cursinho do politécnico”, diz. Na EAD, brincava-se que Baskerville cumpria uma cota, porque ele tinha jeito e beleza de galã de novela.
Depois de formado, o ator teve um período de trânsito intenso entre o teatro e a televisão. Trabalhou em Filme Triste (1983), direção de Vladimir Capella, República dos Mendigos (1982), direção de Celso Frateschi, e Notícias Silenciosas (1991), de Hamilton Vaz Pereira. Na TV, participou das novelas Pedra sobre Pedra, Éramos Seis, O Rei do Gado, Canoa do Bagre e Chiquititas, entre outras. Durante a entrevista, porém, colocou em destaque a relação profissional com o diretor e dramaturgo Fauzi Arapi (1938-2013), que o dirigiu em Às Margens do Ipiranga, Risco de Paixão, Rua Dez e Uma Lição Longe Demais. “Fauzi me fez pirar, ele me enlouqueceu a ponto de, em 1988, eu fugir para Londres. Acho que foi a primeira pessoa que apontou para mim e disse ‘tem alguma coisa errada aí’ ”, diz Baskerville.
Nesse período, o diretor também ganhou a vida fazendo comerciais de TV, dos quais destaca uma produção luxuosa para a Vodka Orloff, que tinha um aeroporto como cenário. “Graças a Deus não consigo encontrar esses comerciais em nenhum lugar”, diz, envergonhado. Ele pensa que suas decisões profissionais causaram conflito ideológico com Arap. “Eu precisava sobreviver, ele sabia disso, mas dizia que a matéria com que o ator trabalha era o corpo e que não podíamos tratá-lo como mera mercadoria. Nunca ninguém exigiu tanto de mim como ele.
Pintura de Baskerville, cuja obra visual se dedica a tipos urbanos e faz lembrar a arte bizantina. Foto: Arquivo Pessoal
Em Londres, Baskerville deu uma pausa na profissão. Trabalhou como peão de obra, pintor de parede e babá, entre outras atividades. Classifica essa experiência como “maravilhosa e muito dura”, e ela o fez perceber que deveria retornar ao Brasil (e para o teatro). Em 1991, começa a dar aula no Teatro Escola Célia Helena, em São Paulo, onde permaneceu por cerca de 20 anos. No período, escreveu uma peça que considera uma experiência ruim, chamada Jogo da Velha (1998), coautoria de Michel Fernandes e dirigida por Atílio Ricó. “Foi um fracasso. É uma peça que leio hoje e questiono o que me levou a escrevê-la”, conta. Foi também uma tentativa de ganhar dinheiro que naufragou. Baskerville foi “expelido” do circuito comercial nesse episódio.
Foi no Teatro Escola Célia Helena que ele aprendeu a dirigir, depois de assinar espetáculos realizados por mais de 80 turmas de formandos. Também foi com ex-alunos da instituição que ele criou sua companhia Antikatártika, com a qual produziu 17 x Nelson Parte 1 – O Inferno de Todos Nós, uma experiência de colocar 17 peças de Nelson Rodrigues no liquidificador, com dezenas de personagens passando pelo palco, e depois Camino Real, de Tennessee Williams. “As duas produções procuraram inserções épicas em textos tradicionalmente dramáticos”, explica. O teatro épico, em resumo, é uma forma que recusa repetir a imersão emotiva do modelo realista e que permite ao espectador distanciar-se do enredo durante sua própria evolução. Teve expressão na Rússia no momento pós-revolução e aparece ainda com mais força no teatro do alemão Bertolt Brecht (1898-1956). O ruído com a obra de Rodrigues acontece porque o autor cria a partir de uma aproximação com o melodrama. Tennessee Williams, da mesma maneira, dedica-se ao realismo. Não são teatros tradicionalmente relacionados ao épico, mas à atmosfera dos enredos psicológicos.
A pesquisa sobre o teatro épico desenvolvida por Baskerville nessas duas e em outras experiências culmina em Luis Antonio – Gabriela, que, como ele mesmo lembra, “tem só dois diálogos na forma dramática tradicional” –aquela em que um personagem se dirige a outro. Isso significa que, em boa parte do espetáculo, o diálogo se dá diretamente com a plateia.
Esse contato imediato é reforçado pelas conversas com o público depois do espetáculo. “(A atriz cubana e transexual, morta no ano passado) Phedra de Córdoba me procurou depois, por exemplo”, ele conta. “Eu a conhecia como artista do grupo Os Satyros. Ela viu o espetáculo, ficou louca, queria falar comigo de qualquer jeito. Quando mexemos na história do Luis Antonio, começamos a receber inúmeros depoimentos de outras travestis. Uma coisa que me chamou atenção é que muitos deles também relatam que foram abusados sexualmente”, diz.
Baskerville defende que sua metodologia de pesquisa permite um posicionamento político incisivo, embora indireto em seu discurso. “A tentativa é de abrir uma fissura sem querer colocar nenhum tipo de ideia preestabelecida. Quero que o espectador saia do espetáculo se sentindo exposto; acho que há uma cura na questão da exposição. Eu vejo um pastor chutanto a cabeça de um mendigo, moleques que batem em gays com lâmpadas e muitas outras coisas horríveis. Minha forma de protesto é por via específica. No teatro, tento fazer um resgate do humano, se é que já fomos humanos alguma vez”, provoca.
Cena de ‘A Vida’, na qual os atores usam de suas próprias experiências biográficas para compor a peça. Foto: Lígia Jardim/Divulgação
Esteticamente, as peças de Baskerville são sujas, carregadas de referências, uma característica que mais uma vez o leva a falar sobre a influência dos anos 1980. A cafonice, o mau gosto e o kitsch povoam as cenografias de seus espetáculos, em estudos que primam mais pelo excesso do que pela simplicidade. “O mau gosto eu peguei do Nelson Rodrigues. Ele dizia ter um mau gosto agressivo, e eu comungo isso com ele”, confidencia, sobre o autor que lhe rendeu ainda 17 x Nelson – Parte II, Se Não É Eterno, Não É Amor e Os 7 Gatinhos, ambas de 2012.
A vida, “ela própria”, se cerca de mau gosto, ele defende. “Por isso critico o teatro que quer ser arrumadinho. E essa postura vem dos anos 1980, uma década em que tudo ainda era bagunçado, a gente não sabia para onde ia”, analisa. Para o diretor, os anos 1980 esboçam uma reconstrução de questões importantes que haviam sido interrompidas pelo regime militar e que só mais recentemente voltam a ganhar expressão. Nos anos 1970, o esfacelamento dos circuitos de pesquisa pela situação política e pela censura trouxe, na década seguinte, formas antigas ao cenário, com narrativas lineares, populares, embora muitas vezes densas. É o caso de Suburbano Coração, peça de Naum Alves de Souza, que Baskerville reencenou em 2015, centrada na figura de Lovemar, mulher em busca de um amor, que se frustra com o próprio romantismo ao se relacionar com um professor, um pastor, um cantor e um caminhoneiro.
O reconhecimento, pela crítica, da meticulosidade com que Baskerville cria seus espetáculos nem sempre encontra correspondente, porém, quando o assunto é o texto. Em uma crítica para As Estrelas Cadentes do Meu Céu São Feitas de Bombas do Inimigo (2013), cujo texto amarra depoimentos de jovens sobre conflitos armados, o crítico Luis Fernando Ramos, para o jornal Folha de S.Paulo, aponta que “fragilidades na dramaturgia não são supridas pela inventividade das cenas geradas e pelo desempenho dos atores”, por exemplo.
Diários de motocicleta
Na vida pessoal, Baskerville é um entusiasta do pop, o que se reflete inclusive em suas pinturas (sim, ele mantém uma produção de fôlego paralela ao teatro). Seus quadros são povoados por figuras que vivem à margem da sociedade burguesa e aristocrática, espécies de demônios perdidos em ambientes urbanos, todos eles forjados por traços que as HQs herdaram do expressionismo, cheias de imperfeições, manchas e distorções indiscretas.
A psicodelia e o rock parecem, o tempo todo, correr por trás das criações do diretor, como uma irrigação do inconsciente. Não é só Pink Floyd, The Who e The Cure que ele carrega na bagagem de suas referências e de sua formação. Recentemente, o filme Easy Rider passou a fazer ainda mais sentido. Baskerville comprou uma moto e passou a fazer longas viagens pela América Latina, na companhia de um velho amigo de palco, o ator Jairo Mattos, que ele conheceu durante a temporada de Notícias Silenciosas, no Rio dos anos 1990.
Baskerville é um sujeito diplomático, diz Mattos, “prima pelo diálogo mais do que pelo conflito”, e o aparente desinteresse com a elegância esconde um universo organizado e metódico. Até 2015, ele usava óculos remendados com fita isolante. A atriz Aldine Müller, que atuou em Suburbano Coração, protestou contra o desleixo e presenteou-o com dois modelos. Um deles é o mesmo que Baskerville usa ainda hoje. Tem lentes de diâmetro curto, o que lhe confere a aparência de um Sigmund Freud destemperado. O outro par de óculos ele perdeu.
Mattos conta que Bakerville teimou em comprar uma Harley Davidson para que eles pudessem pegar estrada, mas que aos poucos foi convencido de que uma BMW era a melhor opção. Feita a troca, começaram as viagens. Uma delas foi para a Patagônia, com trechos de até dez horas sem parada. “Ele é corajoso, topou fazer a viagem sem ter experiência e passou bem no teste; essa é uma viagem muito dura e com grandes diferenças de temperatura”, narra o amigo, que tem o projeto de transformar as viagens em um programa de TV.
Entre as inúmeras histórias que ele conta e que renderiam um reality sobre dois tiozões motoqueiros loucos por farra e paisagens, surge na memória de Mattos o episódio de uma ventania de 80 km/hora. A estrada que pegaram na Argentina tinha, em diversos pontos, altares com imagens de Gauchito Gil, mistura de figura mitológica e religiosa popular no país. Mattos conta que parou em um desses altares para pedir que o vento diminuísse e garante que seu pedido foi atendido meia hora depois. Talvez seja o maior confronto de visão entre os dois amigos: para Mattos, Baskerville é demasiado cético e, por isso, nunca confirmou a ninguém a versão do companheiro de estrada. “Ao contrário, ele nega que tenha acontecido.”
Segundo Fernando Fecchio, que Baskerville dirigiu em A Geladeira, peça do teatro grotesco escrita pelo argentino Copi (1939-1987) e que tem como protagonista um homem em confronto com uma vida solitária, o diretor “tem muito amor pelo trabalho, se envolve muito com as pessoas e abre um diálogo muito franco com os atores e toda a equipe, que em geral é sempre a mesma”, diz. “Isso enriquece demais o trabalho. O rigor acaba aparecendo como uma consequência, porque todos se contagiam”, elogia.
Para Aldine Müller, a paciência é uma qualidade inegável do diretor. “O Nelson é ator. Por isso, diferentemente de outros diretores, que apenas passam para o ator o que eles imaginam do trabalho mas não o levam propriamente até o resultado que esperam, o Nelson vai te conduzindo, vai te propondo exercícios e especificando pacientemente o que ele pretende”, diz.
No depoimento de Fecchio está contida uma qualidade que talvez atravesse todos os trabalhos de Baskerville. Em sua trajetória, não só de artista, mas de professor, ele agregou pessoas, gêneros, estéticas, situações. Do caos e da inquietação, puxa um fio condutor.
Instituição precisa de soluções para continuar em pleno funcionamento. Na foto, a escultura "Inmensa", de Cildo Meireles. (foto: Tibério França)
Em um ano para lá de difícil na cena das artes visuais, marcado por censuras e protestos idiotizantes, 2017 terminou com uma péssima notícia: a queda do mecenas Bernardo Paz, gerando incerteza no futuro de Inhotim.
A notícia não merece ser considerada de fato uma surpresa na história da arte brasileira, já que todas as iniciativas importantes que tiveram origem na iniciativa privada não se sustentaram de forma pacífica após a morte, queda ou falência de seu criador.
Foi assim com o Museu de Arte de São Paulo, Masp, criado por Assis Chateaubriand, e o Museu de Arte Moderna de São Paula e a Bienal de São Paulo, ambos surgidos por desejo de Ciccillo Matarazzo, para citar dois casos paulistanos. Todas essas instituições atravessaram e atravessam períodos de turbulência financeira ou ética, sem uma estrutura que lhes assegure vida permanente.
Na raiz dessas crises encontra-se a mesma dificuldade agora enfrentada por Inhotim: retrato de seu criador, Bernardo Paz, como será possível garantir continuidade a um projeto tão pessoal?
O comprometimento do empresário com o local parecia inequívoco. Inhotim foi inaugurado em 2004, de forma estrondosa, com aviões fretados para levar os 700 convidados ao espaço onde guias, vestidos como se estivem no Jurassic Park, serviam espumante fartamente. Nesse primeiro momento, o parque foi alvo de críticas por expor artistas vistos em qualquer coleção internacional e sem relação com o local. Aos poucos, Paz foi alterando o sentido do local, focando a produção brasileira, reforçando os laços entre arte e natureza, convidando artistas para criarem obras em diálogo com a exuberância do contexto.
A inauguração do pavilhão de Claudia Andujar, há dois anos, pode ser vista como o ápice desse processo. Não há artista que melhor exprima a relação entre meio ambiente e arte que ela e seu pavilhão, não só merecido como necessário, frente ao massacre que os índios seguem sofrendo no Brasil.
Contudo, assim como os mecenas que saíram de cena e deixaram as instituições a deriva, a ausência de Paz será sentido a curto prazo. Afinal, residente do parque, figura permanente no almoço do restaurante Tambaqui, ele garantia um padrão de qualidade que dificilmente será mantido.
Inhotim já é uma Oscip, organização civil de interesse público, mas sem um patrono a altura de Paz, dificilmente o desenvolvimento do parque será garantido. A fragilidade dos Museus de Arte Moderna, tanto carioca quanto paulista, a trajetória irregular do Masp e as crises constantes da Bienal apontam que deixar o melhor espaço de arte contemporânea do Brasil nas mãos da iniciativa privada é temerário.
Na cidade de São Paulo, é inegável, a instituição com trajetória mais sólida e consistência é a Pinacoteca do Estado, apesar de sua recente semi-privatização, sendo transformada em OS (organização social). A Pinacoteca, em seus mais de cem anos, teve diretores importantes como Aracy Amaral, Fabio Magalhães, Emanoel Araújo, Marcelo Araújo e Ivo Mesquita, tendo uma política de aquisição de acervos e exposições sem paradigmas. A Pinacoteca sediu um debate importante sobre arte construtiva quando Amaral era diretora, se abriu às performances na gestão de Magalhães, conquistou público massivo com Emanoel por ocasião da mostra de Rodin e assim sucessivamente. Agora, com o alemão Jochen Volz a frente, ela inaugura uma nova fase mais internacional, o que era necessário.
A Galeria Lygia Pape, instalada em Inhotim. (foto: Inhotim.org.br)
No entanto, é inegável que o que Inhotim se tornou a grande referência da arte brasileira no país, com artistas que não são vistos de maneira adequada no resto do circuito, como Cildo Meireles, Hélio Oiticica, Lygia Pape, Miguel Rio Branco, Tunga, Adriana Varejão e Andujar, para citar aqueles com pavilhões permanentes.
E essa permanência não merece estar fincada na visão patrimonialista da elite brasileira, que sempre mistura privado e público com fins escusos.
Até agora, a direção de Inhotim vem buscando manter os patrocínios já logrados anteriormente, mas instituições de arte como Inhotim, para sobreviver dignamente precisam do apoio de políticas governamentais consistentes.
Nesse sentido, parece estarrecedor que o Instituto Brasileiro de Museus (Ibram) não tenha tido algum tipo de atuação visível para viabilizar a manutenção de Inhotim. Tanto ele como o governo de Minas Gerais precisam entrar nesse debate de forma decisiva, ou a abertura do local, com os guias vestidos como em um parque pré-histórica, terá sido apenas o prenúncio de um fim desastroso.
Cohen tenta finalizar uma letra em sua casa em Los Angeles. A foto, de 1982, é de Dominique Isserman.
Havana, 17 de março de 1961. Da janela de seu hotel, o jovem autor de dois elogiados livros de poesia vê tropas correndo pelas ruas e ouve a artilharia antiaérea. Deixara a barba crescer ao estilo de Che Guevara e vestia-se como um legítimo guerrilheiro. Como diz a biógrafa Sylvie Simmons, no livro I’m Your Man (editora BestSeller), ele se sentia atraído pelas ideias comunistas da mesma forma que se sentia atraído “pelas ideias messiânicas da Bíblia”. A experiência algo bizarra na invasão da Baía dos Porcos, e nas noites em que vagou pelas vielas e becos da capital cubana “com um caderno numa das mãos e uma faca de caça na outra”, rendeu alguns poemas, ao menos uma canção, Field Commander Cohen ( Nosso espião mais importante/Ferido na linha de batalha/Jogando ácido de paraquedas em festas diplomáticas”) e a tentativa de um romance, The Famous Havana Diary. Mas principalmente mostra como Leonard Cohen, talvez o mais original sedutor da canção, sempre esteve em busca de algo que aplacasse sua inquietação e angústia.
“Pode ser qualquer coisa que funcione, vinho, catolicismo, budismo, LSD”, disse certa vez, sem mencionar o amor das mulheres, quase sempre correspondido (que o digam Joni Mitchell, Nico, Janis Joplin e, entre tantas outras, a atriz Rebecca De Mornay). Aos 13 anos aprendeu hipnotismo num livro e experimentou seus novos conhecimentos com a bela governanta que trabalhava em sua casa. O truque funcionou e ela docilmente tirou as roupas. A revelação mágica daquele corpo teve efeito tão grande sobre o aspirante a escritor quanto os ensinamentos do avô, rabino importante em Montréal, onde Cohen nasceu. Diria-se que a hipnose voltou-se contra o hipnotizador. A cena depois foi descrita em seu primeiro romance, A Brincadeira Favorita , de 1963, publicado no Brasil pela Cosac Naify. Como se fechasse um ciclo, na música Because of, uma das melhores de Dear Heather, disco lançado quando já tinha 70 anos, ele entoa os versos (em tradução livre): “Por causa de algumas canções/ Em que falei de seus mistérios/As mulheres têm sido/Excepcionalmente gentis/com minha velhice./Elas arrumam um lugar secreto/Em suas vidas ocupadas/E me levam até lá./Então ficam nuas/Cada qual à sua maneira/e dizem,/Olhe para mim, Leonard/Olhe para mim pela última vez./E inclinando-se sobre a cama/Me cobrem/Como se eu fosse um bebê com frio”.
A hipnose também funcionava muito nos espetáculos ao vivo, em que a plateia entrava num estado de comunhão e adoração, cantando cada verso de So Long Marianne ou Hallelujah, duas de suas mais famosas canções, com os olhos fechados ou fixos naquela figura elegante que se movia lentamente no palco e parecia se dirigir a cada um com atenção especial. Depois que a manager Kelly Lynch sumiu com todo seu dinheiro (cerca de US$ 5 milhões), aproveitando-se dos seis anos em que ele ficou meditando num mosteiro budista, iniciou uma série de turnês mundiais, que duraram de 2008 a 2013. Mesmo nesse último ano, já visivelmente cansado e talvez doente, emagrecido em seu terno de listras e sob o indefectível chapéu Fedora, o Captain Mandrax de outros tempos, quando entornava três garrafas de Chatêau Latour no camarim, se entregava de corpo e alma ao público, em shows que duravam três horas e meia. Chegava a ajoelhar-se no chão, com o punho fechado, num gesto de intensidade que poderia parecer teatral não fosse a verdade em sua voz. Vinte anos antes, em Paris, voltou seis vezes para o bis. O público francês espelhava sua rara disposição e não se cansava de aplaudir, de pé, como se o tempo tivesse deixado de existir. Não à toa, dizia-se, meio brincando, “que se uma francesa tivesse apenas um disco, seria um do Leonard Cohen”.
Cohen se apresenta no festival da Ilha de Wight para 600 mil pessoas. Era 1970, ele tinha lançado dois discos apenas, mas já era adorado na Inglaterra. Sua banda,The Army, foi assim batizada porque a turnê às vezes parecia uma batalha: na Alemanha alguém da plateia apontou uma arma para o cantor. O fato de ele ter recebido a multidão com a saudação nazista não deve ter ajudado. Foto: Reprodução do encarte de Leonard Cohen: Live at the Isle of Wight 1970.
A primeira vez
Curiosamente, sua primeira aparição em um show como artista solo quase durou alguns segundos apenas. Convidado pela cantora folk Judy Collins, que havia gravado Suzanne com sucesso, ele tremia tanto, “como uma vara”, que pediu desculpas e abandonou o palco, só voltando depois de encorajado pela linda amiga. Para a biógrafa Simmons ele revelou, com o humor fino e autoderrisório que lhe era peculiar: “De alguma forma consegui terminar e achei que ia cometer suicídio. Ninguém sabia o que fazer ou dizer. Acho que alguém pegou a minha mão e me tirou do palco. Todos nos bastidores sentiram muita pena de mim e não conseguiram acreditar em como eu estava feliz, no quanto estava aliviado por ter dado errado. Eu nunca tinha sido tão livre”.
A música surgiu bem cedo em sua vida. Seu pai era o bem-sucedido dono de uma confecção de roupas finas (“já nasci num terno”, diria mais tarde) e sua mãe “uma judia russa, de generoso espírito tchekcoviano ”. Teve aulas de piano quando criança e, já adolescente, tocou clarinete na escola e em casas noturnas, onde “vivia cantando e bebendo”. Na mesma época se encantou com a poesia de Yeats e Garcia Lorca – este, seu grande ídolo, ao lado de Ray Charles e Hank Williams -, e começou a escrever seus primeiros versos. Comprou também um violão, com o qual aprendeu a tocar canções socialistas (“os socialistas eram os únicos que tocavam violão naquela época”), baladas escocesas, flamenco, o folk de Woody Guthrie e o folk-blues de Leadbelly. No segundo ano da faculdade, fundou com dois amigos a banda de covers Buckskin Boys. Tocavam basicamente um country bem-comportado, em igrejas e escolas. Até que descobriram o calipso no pequeno bairro negro de Montréal e Cohen começou a improvisar naquele ritmo, cantando sobre as pessoas que passavam na rua.
Porém, a música só se tornou sua atividade principal quando tinha 32 anos e gravou, entre 1967 e 1968, o primeiro disco, Songs of Leonard Cohen. Quatro meses mais velho que Elvis, era um ancião no meio. Antes, publicou seis livros, quatro de poesia e dois romances, pelos quais recebeu críticas em geral bem favoráveis. No Canadá era já bem conhecido, pois fazia leituras em turnês com outros poetas, dentre eles o amigo e grande mentor Irving Layton. Também se apresentava com uma banda de jazz de até 12 instrumentistas, que era o que mais gostava. Seu jeito meio tímido, com que falava seriamente coisas às vezes surreais ou irônicas, desconcertava e seduzia quem o via. Como em suas canções, os poemas e histórias têm muitas nuances e ambiguidades, são a um só tempo tristes e engraçados, metafísicos e eróticos, engajados e hedonistas. Basta ver os títulos de alguns de seus livros para se ter uma ideia: Flowers for Hitler, The Energy of Slaves, Beautiful Losers. Cohen gostava de brincar com os contrastes e de inverter expectativas. Beautiful Losers, seu segundo romance (em fase de tradução para o português), de 1966, foi o que fez mais barulho. Em linhas gerais, conta a história de um triângulo amoroso entre um antropólogo, um separatista por Québec e uma descendente dos índios iroqueses. Um dos três se mata, outro, com sífilis, enlouquece. O estilo é caleidoscópico, vai do surrealismo à pornografia, sem, no entanto, perder o fio da meada. Um crítico disse que era “uma mistura de James Joyce com Henry Miller”. Mas é uma obra única, como quase tudo que Cohen fazia.
Entre os fãs do livro, estava um certo Lou Reed, que Leonard conheceu quando decidiu se mudar para Nova York, justamente para tentar se tornar músico, já que a literatura lhe rendia muitos elogios mas pouco dinheiro. Instalado no mítico Chelsea Hotel, que intitula outra de suas canções mais conhecidas, Chelsea Hotel nº2 – estão nela as famosas linhas contando o caso com Janis (cantadas com candura e afeto, apesar da crueza da descrição): “Você me chupava na cama desfeita/enquanto a limousine te esperava na esquina” –, passou a frequentar a Factory de Andy Warhol e trocar ideias com Patti Smith, a quem considerava, com entusiasmo (e razão), “um gênio, absolutamente brilhante, vai se tornar uma grande potência!”. Numa das noitadas, fez uma jam com Jimi Hendrix. Tocaram Suzanne, uma das favoritas do guitarrista: “Ele era uma figura gloriosa, e foi muito gentil comigo, tocando sem distorções para que minha voz aparecesse”. O encontro mais importante, no entanto, foi com o produtor John Hammond, que havia descoberto Bob Dylan e Billie Holiday para a Columbia Records. Alertado pelos rumores, foi ao pequeno aposento de Leonard no quarto andar do Chelsea e, olhando a estranha combinação de livros no criado-mudo, em que conviviam, lado a lado, Myra Breckinridge, de Gore Vidal, romance satírico sobre uma transsexual, e um tomo do filósofo Martin Buber sobre a iluminação judaica, sentou-se na beira da cama e pediu para ouvir algumas composições. Depois de três músicas – entre elas, claro, Suzanne –, Hammond foi categórico: “Vamos assinar um contrato agora. Bob Dylan que se cuide!”
De 2008 a 2013, Cohen fez incontáveis shows no mundo inteiro para cobrir o roubo de sua manager. Acabou sendo um prazer para todos.
O falso rival
Dylan, obviamente, nunca teve que “se cuidar”. Mas ambos sempre foram muito comparados. O perfil básico é o mesmo: judeus, literatos, obcecados por metáforas bíblicas, tendo partido os dois do folk mais engajado para depois seguir caminhos próprios. As diferenças, porém, também são grandes, e há até quem defenda que Cohen é quem merecia o Nobel de literatura. A verdade é que Dylan sempre esteve mais próximo da poesia beat de Allen Ginsberg e proto-beat de Walt Whitman, com versos enormes, muitas imagens espalhadas, numa tendência para a entropia vertiginosa, utilizando-se de formas mais improvisadas ou aparentemente desalinhadas, ao passo que seu amigo canadense, a quem admirava muito, buscava a carpintaria exata, a concisão, formas mais tradicionais da canção, inspirado não apenas pelo blues, country e folk, mas também pelas baladas europeias de contadores de histórias como Jacques Brel e Edith Piaf, sem mencionar o decisivo flamenco, que aprendeu brevemente de um espanhol suicida, e moldou seu dedilhar pouco ortodoxo. Mais próximo do rock, Dylan sempre fez mais sucesso, principalmente nos EUA, onde Cohen nunca foi muito bem compreendido (o que diz muito sobre os americanos). Houve até um produtor que, ao ouvir Various Positions, o disco de 1984, em que se encontra não apenas Hallelujah como Dance me to the End of Love, disse: “Olha, Leonard, eu sei que você é genial, só não sei se é bom o suficiente”, e não lançou o disco na terra de Trump, deixando para os europeus, que sempre foram muito mais fiéis a Cohen, o prazer de comprá-lo e ouvi-lo em suas casas. Um tempo depois, ao receber um dos muitos prêmios em sua vida (que inclui também um literário, o Príncipe de Astúrias), Cohen falou em seu discurso: “Fico sempre muito comovido com a modéstia do interesse da gravadora pelos meus discos”.
Certa vez, quando se encontraram num café em Paris, nos anos 1980, tiveram uma conversa reveladora do jeito como cada um encarava o ofício. Dylan adorava Hallelujah, a qual considerava “linda como uma oração”, e perguntou a Cohen quanto tempo ele tinha demorado para compô-la. Envergonhado de admitir que tinha sido mais de cinco anos, baixou para dois. E perguntou por sua vez, em quanto tempo Dylan tinha feito I and I. “Quinze minutos”, foi a resposta já tradicionalmente imodesta do gênio de Duluth. Numa outra conversa entre os dois, recontada deliciosamente por David Remnick na última entrevista que Cohen deu pouco antes de morrer, para a New Yorker, Dylan teria dito, enquanto dirigia o carro para mostrar uma fazenda que comprara: “Para mim, você é o número 1. Eu sou o número zero”. Com sua gentileza lendária e cavalheirismo, Cohen concordou prontamente.
Na mesma matéria, Dylan mostra grande conhecimento da obra do falso rival, e faz uma avaliação generosa: “Quando as pessoas falam de Leonard esquecem de mencionar suas melodias, que, para mim, são tão geniais quanto suas letras. Mesmo as linhas de contraponto dão um aspecto celestial para as canções. Acho que ninguém chega perto disso na música moderna”. E faz uma análise detalhada de Sisters of Mercy, do primeiro álbum, além de elogiar músicas bem mais recentes, como Going Home e Show me the Place. “Suas canções são profundas e verdadeiras, sempre multidimensionais, que fazem você sentir mas também pensar”, diz. Compara Cohen a Irving Berlin: “Ambos ouvem melodias que a maioria de nós mal consegue ouvir. Ele é um músico extremamente sofisticado”. Remnick também conversou com Suzanne Vega, que se saiu com uma boa definição a respeito do segredo nas músicas de Leonard, não muito distante do que disse o cantor roufenho de Like a Rolling Stone: “São uma combinação de detalhes bem realistas e um senso de mistério”. O próprio Cohen, que sempre declarou a dificuldade de escrever as letras, dizendo que chegava a levar anos, e que já se pegou batendo a cabeça no chão para fechar um verso, mencionou a importância dos detalhes nos seus escritos. (Há mil outros “segredos”, claro, como a combinação de vozes femininas e angelicais no coro, e sua voz cavernosa, resultado de milhões de cigarros fumados. Ou o uso surpreendente de um sintetizador barato, em contraste com a sutileza e lirismo das letras.)
Paraísos artificiais e reais
Esse mistério vem muito de sua “conexão com as esferas”, uma espiritualidade que, mesclada à curiosidade sensual, desembocou num híbrido perfeito de romantismo e ironia, humor e desespero, a carnalidade mais terrena e a busca religiosa. Muito desse mistério se forjou na ilha de Hydra, para onde foi no final dos anos 1960, fugindo da chuva depressiva de Londres, carregando basicamente sua Olivetti e o famoso casaco de chuva azul. O sol dispensou o casaco, mas a Olivetti permaneceu firme na mesinha de madeira colocada na varanda da casa caiada de branco que comprou com a herança de uma tia-avó. Sua vida era frugal como a de um monge hedonista. Tinha ainda duas cadeiras, “como as pintadas por Van Gogh”, uma cama, alguns livros, velas, garrafas de vinho, um violão e uma vitrola, em que discos de Bessie Smith, Robert Johnson e Nina Simone giravam até derreter. Ele também derretia sob o efeito de ácidos, haxixe ou anfetamina, e literalmente conversava com as margaridas enquanto tentava escrever, debruçado sobre a máquina. “Era uma viagem atrás da outra tentando enxergar Deus. Geralmente tudo acabava numa ressaca horrível.” A modelo norueguesa Marianne Ihlen, sua primeira e mais conhecida musa, é quem cuidava da casa. Com algo de mítico e primitivo, como notou Remnick, a ilha, em que os carros eram proibidos e a eletricidade uma dúvida constante, lembrada por Henry Miller em sua “beleza nua e selvagem”, reunia boêmios e artistas, “amantes em todos os graus de paixão e angústia, e platônicos frustrados”, bem ao gosto do jovem bardo, que se sentia verdadeiramente à vontade no berço de nossa confusão mitológica
Impossível não pensar nos fulgores ensolarados de Hydra quando se depara com o disco que ele gravou bem próximo da morte, na sala de sua casa, com produção do filho Adam (ele deixou também a filha Lorca, ambos frutos do casamento com Suzanne Elrod. Há ainda uma neta, filha do cantor Rufus Wainwright). O contraste é muito forte. Intitulado You Want it Darker, algo como “você quer mais escuro”, é uma prestação de contas com a vida e uma aceitação serena do fim – certamente conquistada na severa disciplina do mosteiro em Monte Baldy, Los Angeles, sob a batuta de Roshi, o minúsculo mestre zen que foi seu amigo e guia espiritual por 40 anos -, não sem alguma dose de humor e até sarcasmo. Deus, ou Jesus, aparece tanto como um jogador quanto como um traficante ou um curandeiro. A esperança, que já existiu, mesmo numa canção tão ácida como The Future (“Há uma rachadura em tudo/É assim que entra a luz”), é nula: “Um milhão de velas queimam pelo amor que nunca vem”. O coro brada “Hineni”, palavra em hebreu usada por Abraão quando aceitou o sacrifício de seu filho (tão bem descrito pelo próprio Cohen na canção The Story of Isaac), para na sequência, de modo determinado, ele afirmar: “Estou pronto, Senhor”. Só quem tem coração de gelo não se arrepia. Faz lembrar também uma música anterior, do excelente Old Ideas, de 2012, The Darkness, em que diz: “‘Peguei’ a escuridão/Bebendo da sua taça/Não tenho futuro/Me restam poucos dias/O presente já não é prazeroso/Tenho coisas demais para fazer”.
A morte já vinha mostrando seu capuz e sua foice. Pressentindo-a, o cantor e compositor falou para Remnick que não tem medo dela: “só espero que não seja muito desconfortável”. No final de julho deste ano, Cohen recebeu um e-mail em que um amigo próximo de Marianne contava que ela estava muito mal (ela viria a morrer pouco depois). Sua comovente resposta viralizou na internet: “Bem, Marianne, chegou o momento em que estamos tão velhos que nossos corpos já estão se desfazendo. Acho que em breve seguirei seu caminho. Saiba que estou tão perto de você que se estender a mão talvez consiga tocar a minha. E eu sempre te amei pela sua beleza e sabedoria, mas não preciso repetir isso, pois é algo que você sabe muito bem. Só quero te desejar uma muito boa viagem. Adeus, minha querida amiga. Com amor infinito, te vejo na estrada”.
Desse jeito, a tão temida estrada parece realmente bonita.
MAIS
Assista a três vídeos sobre Leonard Cohen selecionados por Daniel de Mesquita Benevides:
"São todos iguais. Falam sempre de morte, vazio e solidão. Mas são muito engraçados", comenta Elvira sobre seus livros. Foto: Diego Rousseaux
Escritora, jornalista e ilustradora brasileira, Elvira Vigna foi diagnosticada com um câncer agressivo em 2012 e acabou falecendo em julho de 2017. Deixou, porém, inéditos a serem publicados, entre texto e artes. Agora, a editora todavia lança o livro de contos Kafkianas, com apresentação de Carolina Vigna Prado e posfácio de André Conti.
Leia uma das últimas entrevistas dadas por Elvira, concedida a Daniel de Mesquita Benevides e publicada na edição 9 da CULTURA!Brasileiros, em março de 2017:
Há muitos e muitos anos, Bob Dylan concedeu uma entrevista a um repórter brasileiro. Com uma condição: que fossem feitas cinco perguntas apenas. O pobre jornalista, que conhecia a fundo a obra do bardo, caprichou. Ao se ver diante do hoje Prêmio Nobel de Literatura, o que ouviu como respostas foram apenas dois no, dois yes e um perhaps. Elvira Vigna não é Bob Dylan, evidentemente. Mas o humor talvez se assemelhe. Sua exigência para dar entrevista é que ela fosse feita por e-mail. Explicou que não gosta muito de falar. Justo. Mandadas as perguntas, suas respostas foram gentilmente imediatas. Mas capciosamente curtas. Este jornalista viu-se, então, de calças não menos curtas. Sorte estarmos no verão.
É fato que a fama de mal-humorada a persegue. Mas quem a conhece melhor diz que Elvira no fundo é doce. E realmente arredia, por timidez ou por não lidar bem com protocolos, diplomacias e que tais. “Acho que ela é única em vários sentidos. Como pessoa, ela não transige, não faz concessões, é muito coerente com o que acredita, é muito feminista, muito de esquerda, é firme na ideia de uma literatura literária, não feita para venda, mas para transformar. E ela age assim. Não aceita convites para eventos em que não acredita. As pessoas têm de se adaptar a ela, ela não se adapta às pessoas. Como escritora é a mesma coisa. O texto dela tem uma potência, diz exatamente aquilo que pensa”, afirma a escritora e crítica Noemi Jaffe.
Um prólogo faz-se necessário. Vigna é uma das vozes mais interessantes da nossa literatura. Seus livros, como ela mesma diz, “são todos iguais. Falam sempre de morte, vazio e solidão. Mas são muito engraçados.” É discutível, porém, se são mesmo todos iguais. Há sempre uma nova experiência com o narrador ou narradores. A questão de como contar uma história é central em sua obra e surge das maneiras mais diversas. Mudam cenários, cenas e motivações. Já a graça a que ela se refere existe, de fato, mas é muito peculiar, não para todos os gostos. O leitor precisa entrar na dela, sintonizar em seu canal, seguir o fluxo no mesmo diapasão. Vale o esforço.
Sua trajetória é também peculiar. Foi tarifeira da Air France em Paris, tem diploma da Universidade de Nancy em Literatura, curso feito num convênio com a UFRJ, e trabalhou em todos os principais jornais brasileiros, Correio da Manhã, Jornal do Brasil, O Globo, Folha de S.Paulo, O Estado de S.Paulo. Ilustrou e escreveu vários livros infantis, pelos quais ganhou alguns prêmios, incluindo um Jabuti e um APCA (Associação Paulista dos Críticos de Arte). Fez duas exposições com suas gravuras. Teve algumas editoras, todas falidas. Por uma delas publicou, entre 1970 e 1972, uma pérola do desbunde jornalístico, A Pomba, algo como uma versão mais erotizada de OPasquim. Tem também uma novela em quadrinhos, algumas peças não encenadas, roteiros não filmados e crônicas (na falta de uma palavra melhor). De 1988 para cá, escreveu dez romances adultos, todos bastante elogiados pela crítica. Nada a Dizer, de 2010, ganhou o prêmio da Academia Brasileira de Letras; Por Escrito, de 2014, foi segundo lugar no Oceanos (antigo Portugal Telecom); e o mais recente, Como se Estivéssemos em Palimpsesto de Putas, venceu o prêmio da APCA.
As capas do primeiro ano da revista A Pomba, editada por Elvira entre 1970 e 1972. Foto: Divulgação
Putas, apelido já aceito, é, talvez, o livro mais acessível que já escreveu. Não que sua escrita seja exatamente difícil. É… idiossincrática. Num dos textos da série Morrendo de Rir, publicados pela revista Pessoa, que podem ser lidos em seu site, vigna.com.br, Elvira conta o seguinte episódio, que explica, em parte, e de forma muito direta, o que foi dito até agora: “Minha agente, a Anja, um amor de alemoa, é categórica: Não faço mais sucesso porque: 1) sou mulher, feminista e velha; 2) escrevo esquisito; 3) não sorrio pras pessoas pra quem devia sorrir. Sendo que, acrescenta, desiludida, se eu sorrisse, os dois primeiros itens não teriam tanta importância”.
Uma das chaves para a compreensão do livro está no título: o formato lembra, realmente, um palimpsesto. Personagens e histórias se acumulam em camadas que parecem se repetir, mas a cada órbita narrativa ganham novos significados e, antes de serem cobertos por outros fatos e palavras, deixam vestígios de sua passagem. O enredo é simples (suas implicações é que são complexas): João, sujeito razoavelmente rico, egoísta, casado com Lola, gosta de sair com putas. Talvez seja um vício, que se retroalimenta porque sempre insatisfatório. Ficamos sabendo de suas desventuras sexuais através da narradora. É para ela que ele conta, com seu jeito meio autista, de sua prospecção pela rua Augusta, o que inclui o velho castelinho kitsch da boate Kilt, e das explorações por inferninhos em Brasília ou Rio. As conversas de mão única se dão numa editora prestes a falir. Ambos tomam uísque caubói em copinhos de plástico, ela no sofá, ele em sua mesa. Xerazade invertida, João parece querer evitar algum destino ruim ao relatar suas dezenas e uma noites. Ouvinte calada, ela talvez tente seduzi-lo com seu silêncio. É, reiterando o vaticínio da autora, um encontro de solidões, numa situação de vacuidade, com a morte rondando. Dito assim, parece leitura para cortar os pulsos, mas Elvira tem razão: é muito engraçado também. A ideia de palimpsesto ainda está em sua gênese: ela jogou fora toda uma versão anterior do livro, insatisfeita com o tom.
“João e a moça no sofá (eu) eram reais, e são mais reais agora.” Tudo o que escreve é baseado em coisas “vividas, vistas ou ouvidas.” No site Estudos Lusófonos, do professor Leonardo Tonus, há um ótimo depoimento seu: “Tenho muita clareza sobre o motivo de eu fazer literatura. Pretendo, com ela, tornar minhas as histórias que fui obrigada a viver. Só tem um jeito de elas se tornarem minhas: é passarem pelos outros. Essa tentativa se dá no ‘mundo comum’, um termo da Hanna Arendt que designa o espaço das diferenças que me separam e me aproximam desse outro. É, portanto, um espaço da intersubjetividade, esse, onde minha literatura existe. Ou seja, para que ela se dê, é preciso que haja um outro, uma outra maneira, que não a minha, de viver a vida. Aí reconheço a minha como sendo minha. (…) A má notícia é que essa literatura – minha e de outros colegas do contemporâneo – é árdua. Não só para nós, os escritores que a propomos, mas também para esse outro, o leitor, que é convidado a participar daquilo que ainda não está pronto, que nunca fica pronto, daquilo que não só não tem um significado a oferecer como, pelo contrário, se declara falho, necessitado de sócios para sua ressignificação contínua. Esse compartilhar, esse admitir insuficiências e necessidades, a admissão de que precisamos da alteridade para viver, isso exige esforço. Alteridade vem de alterar. E alterar, principalmente alterar a si mesmo, dá um enorme trabalho”.
A dívida com o jornalismo e as madeleines da vida é evidente. O famoso gatilho de Proust também dispara suas narrativas no aspecto mais fugidio, subjetivo. Mas não se pense em autoficção. À minha pergunta, “Narradora e autora… qual a distância?”, sua resposta é caracteristicamente ambígua e concreta: “Bem medida ou, pelo menos, bem procurada. O narrador nunca é eu, nem foi. É alguém que tem uma distância precisa de mim hoje, de mim em qualquer outra época. Uma proximidade afetiva: sabe de mim, gosta de mim. Mas consegue me ver. O narrador é um lugar de onde aquilo que quero compartilhar pode existir. É muito difícil de achar, pelo menos por esta que vos fala”. Continuo: “Achei especialmente interessante o que escreveu sobre as imagens serem mais incompletas, porém mais polissêmicas. As palavras e mesmo a memória parecem insuficientes também. A literatura seria uma tentativa de dar algum sentido a tudo isso?”. A resposta surge na tela como névoa passageira. E estranhamente precisa: “É, exatamente. Mundos incompletos, polissêmicos. A insuficiência como medida de convivência”. Em outra situação, pontuou, como se temesse ser mal compreendida e sentisse a necessidade de deixar mais clara essa “insuficiência” de que fala: “A literatura serve para te desestabilizar, para te botar mal, com dúvida”.
Autorretrato. Ilustradora premiada, Elvira estudou gravura na Escola de Belas Artes, no Rio
Para Cristhiano Aguiar, jornalista, editor, crítico literário e professor do Centro de Comunicação e Letras do Mackenzie, “ela tenta escrever contra a literatura”. E acrescenta, concordando com Noemi: “Acho que ela também questiona uma posição social ‘careta’ – tradicional e formal – do escritor. Ela retira a formalidade, retira a idealização. Acho que ela também quer retirar, na escrita e na postura dela, uma aura de intensa legitimidade. Ela quer ‘desgourmetizar’ a literatura, eu acho”. Já o crítico Manuel da Costa Pinto tem opinião semelhante, mas num sentido menos positivo: “Ela tem o pessimismo de um Graciliano Ramos, de um Dalton Trevisan, embora seja mais urbana. Sua obsessão feminista com a questão das diferenças de gênero, com a brutalidade das relações sociais, beira às vezes o caricatural. É mais uma postura do que algo com autenticidade. Ela quer épater le bourgeois, só que o burguês não se choca mais”. Às aproximações de Manuel, que, não obstante, vê grandes méritos nos livros de Vigna, se poderia acrescentar o nome de Raduan Nassar, em especial aquele de Um Copo de Cólera, cuja virulência, ora seca, ora lírica, combina com os descaminhos amorosos e sexuais nas tramas vignianas.
A publicação A Pomba pode ter feito, em menor escala, esse papel de épater os burgueses. Momento único da chamada imprensa nanica, era bastante subversiva para a época, ainda que os censores, pouco espertos, não percebessem. Numa entrevista para o blog português Som À Letra, ela conta: “A censura liberava as edições para a gráfica sem notar que quando falávamos do nazifascismo alemão estávamos falando deles”. A redação ficava em seu apartamento, no Rio. Elvira, à época com 20 e poucos anos, cuidava mais da produção, e seu então companheiro, Eduardo Prado, da edição. O ambiente era de descontração total, com muita risada e jogatinas de pôquer rolando soltas: “Ninguém fechava a porta. O edifício estava em construção e, na verdade, ainda não tínhamos licença da prefeitura para habitar o apartamento em obras. Então era um movimento constante o dia inteiro, e não só de jornalistas, mas também de pedreiros e operários. Não tinha nada que pudesse ser chamado de rotina”. O cartunista Quino uma vez passou por lá. Joel Silveira, Domingos Oliveira e Ziraldo eram alguns dos colaboradores. As capas sempre traziam nus, que também ocupavam as páginas internas. Era uma provocação aos tempos conservadores da ditadura e também à revista masculina Fairplay, que tinha demitido o casal. Nada convencional, claro. Havia também nus masculinos, “o que era um escândalo”, e os modelos eram muitas vezes negros ou pessoas comuns, bem distantes do padrão das revistas comerciais. Os textos falavam de psicanálise a literatura, entre mil temas, sempre com humor e inteligência.
Começou a escrever por causa de uma de suas editoras, a Bonde, que cometia a “imprudência” de só publicar autores novos. Escolheu de início a literatura infantil, porque queria se comunicar com os dois filhos, a quem “não entendia”. No fim das contas, eles a entenderam tanto que hoje também encararam o sonho das pequenas editoras: David Nicolau fundou a Estado da Arte e Carolina acaba de abrir a Uva e Limão. Quando cresceram, abandonou seu monstrinho Adrúbal (personagem criado por ela) e, em 1988, lançou um primeiro livro de temática adulta. Sete Anos e um Dia, disponível na íntegra em seu site, trata de quatro amigos no período pós-abertura. Um entrevero com a editora, José Olympio, fez com que abandonasse a literatura pelo jornalismo por quase uma década. A volta se deu pela Companhia das Letras, onde está até hoje. Ela mandou vários originais pelo correio e Maria Emília Bender, que viria a editar todos os seus livros a partir dali, se interessou: “Seus livros não são exatamente fáceis. Ela sempre encobre as coisas, tem sempre um mistério, um segredo, e um segredo que às vezes é tão secreto que fica quase criptografado. É uma voz muito particular, diferente de tudo o que eu já tinha lido. Tem zero pieguice. Muitas vezes ela é cruel, o que eu acho bem interessante. É uma literatura áspera, que morde. E ela não é nada óbvia. Sua opção preferencial é pelas mulheres e pelos losers urbanos, ex-strippers, transexuais de subúrbio, jornalistas do terceiro escalão. Há uma indefinição nas coisas, pode ter acontecido algo criminoso ou não. É cerebral e visceral ao mesmo tempo, e esse é o ouro dela”, diz Bender.
Grande parte da crítica considera o Putas seu melhor livro. Noemi Jaffe, que ainda não o leu, fica por ora com Por Escrito: “Gosto muito da polifonia no Por Escrito. Cada personagem tem uma voz muito própria. É difícil ser polifônico e manter a individualidade dos personagens. Ela é fera. É impressionante como ela vai passando de uma situação para outra sem que a gente perceba as passagens”. Já a própria escritora – e também Costa Pinto – prefere uma cria menos beneficiada pelos pequenos holofotes da mídia. Como declarou em conversa pública com Manuel: “A um Passoé um livro único, e é o melhor que eu fiz. É um comentário sobre a peça A Tempestade, de Shakespeare, em que a ficção se desmancha em pleno palco. Um personagem conta a história do outro, mentindo. Quero reeditar no ano que vem, não sei se vou conseguir, é um livro de não venda, acadêmico, para estudioso de literatura.” Ao contrário, parece promissor.
Rosane Borges tem 43 anos e nasceu em São Luís, Maranhão. Desde a adolescência esteve envolvida em atividades de movimentos negros e discussões políticas, lutou e ainda luta para mitigar e obstruir os efeitos do machismo e do racismo estrutural e institucional nos âmbitos privado e individual.
Na academia, entre o jornalismo e a comunicação enquanto ciência, a hoje doutora e mestre em Ciências da Comunicação pela USP, passou a refletir sobre o que é ser uma comunicadora negra.
Ao PáginaB!, explicou que a sua formação política data da participação em diretório e centro acadêmico universitário.
Atualmente, Borges integra o grupo de pesquisa Midiato, da ECA (Escola de Comunicação e Artes) da USP. Em seu currículo, ainda, consta a coordenação do Centro Nacional de Informação e Referência da Cultura Negra da Fundação Palmares, um dos órgãos do Ministério da Cultura.
Em Diálogos, Rosane Borges discute gênero, raça, visibilidade e poder sob a luz dos movimentos de minorias e da disputa de narrativas dentro e fora da Academia e nas redes sociais.
Neste 8 de março, com o avanço conservador que propaga o ódio a minorias, respondendo pelo acirramento da perseguição às religiões de matriz africana e pela extinção de direitos conquistados pelas mulheres ao longo dos anos, teríamos muito a aprender com as sacerdotisas destas religiões a respeito de mulheridade e resistência, se nos abríssemos às suas vivências e à riqueza simbólica de sua ancestralidade.
Algumas referências muito interessantes para repensarmos a autonomia das mulheres no mundo estão presentes no conjunto de saberes arquivados sob o imaginário de Pombajira (“Pombagira”, em grafia popular). Muitas vezes, bem antes que qualquer discurso feminista pudesse alcançar essas mulheres, os saberes transmitidos oralmente no âmbito de seu cotidiano religioso e comunitário foram as únicas ferramentas de sobrevivência.
Conforme definição de Luiz Antonio Simas, historiador e pesquisador de manifestações populares: “Do ponto de vista da etimologia, a palavra Pombajira certamente deriva dos cultos angolo-congoleses aos inquices. Uma das manifestações do poder das ruas nas culturas centro-africanas é o inquice Bombojiro, ou Bombojira, que para muitos estudiosos dos cultos bantos é o lado feminino de Aluvaiá, Mavambo, o dono das encruzilhadas, similar ao Exu iorubá e ao vodum Elegbara dos fons. Em quimbundo, pambu-a-njila é a expressão que designa o cruzamento dos caminhos, as encruzilhadas. Mbombo, no quicongo, é portão. Os portões são controlados por Exu”.
Então temos uma forma de mulheridade disponível no inconsciente coletivo de diversos povos que é dona dos caminhos. Isso é suficiente para manter viva a memória e o desejo de um modo de ser mulher que rompa com o confinamento patriarcal na dimensão privada e no estereótipo de feminilidade, percebendo-se livre física, emocional, social e espiritualmente para ir a toda parte. Por essa perspectiva, quando entendemos que Pombagiras regem as estradas, talvez estejamos falando simbolicamente sobre mulheres ocupando todos os espaços; se elas podem também bloquear passagens, o seu “não” é definitivo, de modo que qualquer perturbação a ele obstruirá o fluxo da vida e dos interesses coletivos; quando falamos sobre encruzilhadas (cruzamentos, opções) evocamos um sistema de escolhas que contemple as mulheres; quando nós relacionamos tais entidades ao cemitério (mundo dos mortos), que têm suas próprias ruas e esquinas, estamos destacando o trânsito nas próprias sombras, ou seja, sabendo caminhar em nós mesmas, em nossos labirintos psíquicos, atentas às marcas das diversas formas de violência para que não condicionem o nosso caminhar.
Por outro lado, a força vital simbolizada nas Pombagiras é a da plena consciência do corpo e da sexualidade não referenciada no pecado ou na cultura de objetificação/abuso, mas na qualidade de potência. O que vai na contramão de toda a socialização feminina, já que misoginia é uma forma de opressão estrutural construída especificamente sobre o corpo do ser humano nascido mulher, que é castrado de muitas maneiras ao longo da vida para corresponder ao projeto de submissão para ele previsto em muitos níveis. Isso implica dizer que Pombagira nos restitui a noção – inegociável – de que o corpo da mulher somente a ela deveria pertencer e que essa é a condição fundamental para que os caminhos existam. Os caminhos para a evolução de todos nós, uma vez que a libertação das mulheres alavanca toda a coletividade e garante o pleno desenvolvimento das próximas gerações.
*Maria Gabriela Saldanha é escritora e ativista feminista.
A yoga transformou a vida dessa paulistana quando ela menos esperava. Executiva, professora de inglês, Laura da Silva Prado Ferrari vivia o cotidiano a mil por hora da cidade de São Paulo: estresse, correria e muitas dores no corpo. Laura lembrou de como as aulas de yoga faziam bem e resolveu voltar à prática. O que era um escape e um exercício para segurar a barra do dia-a-dia virou profissão. Fez faculdade, especializou-se no assunto e começou a dar aulas para idosos. Depois, gestantes. Hoje, seu universo lida com preparar uma vida para chegar ao mundo. Bem diferente do ambiente de livros e dicionários de antigamente. Laura mergulhou no mundo da cultura oriental e percebeu que existe vida em equilíbrio. Acredita que a yoga deveria ser disciplina escolar, como matemática e português, e também critica a forma dos hospitais lidarem com a maternidade no mundo moderno. Por isso, ajuda mães a darem à luz da forma mais natural possível. Sem cortes, sem invasões.
Conversar com a cantora e compositora gaúcha Laura Finocchiaro é dar um mergulho nos anos 1980 e começo dos 1990. É lembrar-se, mais especificamente, de uma época em que a noite de São Paulo pululava com dezenas de casas noturnas alternativas. É também se aproximar do mundo pop e conhecer uma figura que está nos bastidores de vários programas de TV. Laura impressionou Cazuza, que chegou a gravar uma música sua; chamou a atenção da cena underground e tocou no Rock in Rio, no mesmo palco em que mitos, do calibre de Prince, passaram. Um começo de carreira meteórico desaguou na produção de trilhas sonoras para televisão e, mais recentemente, em experiências com a música eletrônica. De volta aos palcos, Laura apresentou seu show Avoar, no mítico Madame Satã, onde ela deu seus primeiros passos no mundo da música. A Brasileiros acompanhou tudo.
Dona Fusae é um exemplo de que a idade não é empecilho para nada. Vinda do Japão aos 3 anos de idade, Fusae só fala sua língua natal em casa e não é totalmente fluente no português, mas aprendeu a aproveitar a vida como uma legítima brasileira: curtindo a praia. A nipo-brasileira, que mora em Santos desde os anos 1970, resolveu, há pouco mais de sete anos, frequentar as aulas de surfe na escolinha de Cisco Araña, uma lenda viva do esporte na Baixada Santista. E não para por aí. Quando completou 77 anos, Fusae resolveu comemorar em grande estilo e saltou de paraglide. Além dos esportes radicais, também já praticou inúmeras artes marciais japonesas. Quando não está se aventurando, Dona Fusae cuida de sua casa e já planeja uma nova empreitada, dessa vez, um pouco mais tranquila: aprender a tocar gaita.