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Júlio Villani leva seu ‘quintal bordado’ à Capela do Morumbi

Júlio Villani durante a criação de "Paraíso", que ele apresenta na Capela do Morumbi. Foto: Divulgação
Júlio Villani durante a criação de "Paraíso", que ele apresenta na Capela do Morumbi. Foto: Divulgação

Pouco mais de um mês depois de abrir a exposição Museu de Tudo, na Casa de Vidro, Júlio Villani presenteia o público com mais uma de suas criações. A partir deste sábado (14/10), Villani leva à histórica Capela do Morumbi a obra Paraíso (aqui se borda aqui se paga), um bordado de grandes proporções – 1520 x 520 cm – com uma alusão aos versos do poeta Manoel de Barros.

Foram necessários dois meses para completar o trabalho, executado no ateliê de Lina Bo Bardi, na Casa de Vidro, por costureiras de Paraisópolis apresentadas a Villani pelo Costurando Sonhos, um negócio social criado para acolher e empoderar mulheres da comunidade por meio da capacitação em corte e costura.

A curadoria do projeto é assinada por Roberta Saraiva, e a pré-produção da obra Paraíso (aqui se borda, aqui se paga) foi feita no Centro Universitário Belas Artes, em colaboração com os estudantes Beatriz Cereser, Laura Del’Acqua, Pedro Avila, Vinicius Amaral e Thais Borducchi.

Durante três semanas – deste sábado (14) até o dia 4 de novembro – um programa educativo vai permitir que público faça uma visita dupla, atravessando os 200 metros que separam a Capela e a Casa de Vidro.

A arte!brasileiros conversou com Júlio Villani. Leia a seguir:

ARTE!✱ – No livro It’s a game, o crítico Michael Asbury teceu observações sobre a diversidade singular de seu trabalho: essa diversidade seria menos ligada a materiais e suportes do que a um pensamento que “procura estabelecer um diálogo com a história da arte brasileira e internacional”. Em que medida a obra apresentada na Capela do Morumbi é uma continuidade desse processo criativo? Ou temos um ponto de inflexão, uma ruptura?

Júlio – Não sei se procuro estabelecer um diálogo com as histórias da arte brasileira e a internacional, ou seja, não sei até que ponto o faço intencionalmente. Se isso transparece no meu trabalho, é com certeza como resultado da existência, em mim, de influências múltiplas e cruzadas. E não só provindas do mundo da arte. Afinal, a gente é o que a gente vive, e a gente faz o que a gente é.

Aprendi a usar um pincel cursando escolas de belas artes em três países, mas, com meu pai, aprendi a cercar um pasto. Sei fazer escultura de bronze, mas também sei fazer gambiarra, e minhas esculturas com objetos garimpados com certeza são a extensão dos brinquedos que eu fazia, criança. Minha primeira ida à Europa se deu por vontade de ver de perto os grandes mestres da pintura ocidental, mas carrego nos olhos, com peso igual, a obra de Mestre Valentim. Em algum momento, estas diversas partes de mim acharam um jeito de se amalgamar e conviver.

Michael Asbury, que vive também com um pé lá e outro, cá, talvez tenha tido facilidade em enxergar, como num espelho, o fato de que em mim “dialogam a arte brasileira e a internacional”. Aliás, neste mesmo livro, ele diz que os meus Pássaros viram almost ready-mades no momento em que eu viro um almost French artist, um artista quase francês. É uma imagem da qual gosto, sobretudo porque traz a ideia de um continuum, de uma passação gradual, de um entre-dois permanente que permite recuar ou avançar num sentido ou no outro, modificando o balanço – paulista, parisiense, menino de fazenda, homem de cidade, artista, amador de gambiarra – segundo o momento da vida.

Paraíso elaborado para a Capela do Morumbi não me parece ser ponto de inflexão, mas inscreve-se justamente nesta continuidade. A técnica foi desenvolvida quando fiz uma obra site specific para a Abadia do Thoronet, em 2019. Fui convidado pelo curador, Jean de Loisy, para fazer uma instalação de lençóis bordados. Mas, ao visitar o lugar – um dormitório enorme, que abrigava todos os monges de uma comunidade cisterciana – me pareceu evidente que todos compartilhavam um mesmo sonho. E, portanto, mereciam ser recobertos por um mesmo e único lençol gigante (a obra media aproximadamente 23 x 8 metros).

Como vivo justamente neste vaivém, enquanto elaborava lá esta obra, me perguntei qual seria o paralelo no Brasil. Lembrando que estávamos em 2019, o país sendo levado num rabo de foguete por um discurso pondo deus acima de todos, enquanto, cá embaixo, “a vida, mera metade de nada, pedia soluções e explicações” (parafraseando Caetano e Gil em Cinema Novo).

Ou seja, se na França eu usei uma via láctea prenhe de textos em torno da eternidade do sentido das palavras, no Brasil me pareceu essencial falar da concretude da vida: desta, aqui e agora, e não da hipotética paradisíaca prometida aos e pelos “homens de bem” que tanto nos faziam mal. É, então, mais neste sentido, o de tecer as diversas realidades, do que no de tecer um diálogo entre a história da arte brasileira e internacional, que acho que meu trabalho se encaixa.

 

ARTE!✱ – Paraíso também traz uma apropriação de imagens, textos e objetos, um processo tido como costumeiro em sua produção mais recente? Em caso afirmativo, que objetos e o que eles ecoam, reverberam, de sua poética ou de sua visão de mundo?

Villani – Paraíso é um quintal bordado, feito de folhas e minhocas, de pedrinhas e ciscos. Reverbera, sim, grandemente, minha visão, que consiste em achar e afirmar que no inventário do mundo não há impurezas, que tudo pode conter poesia. Apesar de folhas e minhocas não poderem ser consideradas apropriações, de maneira múltipla e difusa – talvez pelo suporte, talvez pelo medium, talvez pelo fato de ser um tecido que nos recubra – acho que, finalmente, a obra tem, sim, algo de apropriação. Não diretamente, mas talvez como resultado de um processo de antropofagia contínua, que reivindico alegremente: ingeri e continuo digerindo mil influências.

Me surpreendo, assim, constatando que Paraíso talvez ecoe, pelo menos em mim, outros mantos que fazem parte do meu acervo visual e afetivo: os do Bispo do Rosário, inventário do mundo através de objetos e palavras. Os Parangolés de Hélio Oiticica, que são um chamamento à ação; ou ainda o de Divisor, de Lygia Pape, mas aqui como que exigindo que nos alcemos para romper o tecido com nossas cabeças.

Quanto a apropriação de textos, gosto de imaginar que palavras são armadilhas poéticas; combinados com desenhos, os versos de Manoel de Barros aqui são ingredientes narrativos destinados a criar um território afetivo. Enquanto elaborava o projeto, percebi que selecionara diversos versos falando de cisco e de poeira. E cheguei à conclusão de que eu estava tentando desmembrar – ou desdobrar – a poética manoelina em pó e ética, para traçar uma mediação entre narração e ação.

ARTE!✱ – Como foi o trabalho com as costureiras de Paraisópolis? A decisão de ter um trabalho com viés social foi sua?
Villani – Quer melhor lugar no mundo para procurar colaboração para fazer um Paraíso sobre a Terra do que um lugar que se chama Paraisópolis? Mais seriamente: eu poderia ter realizado esta obra com as bordadeiras com quem colaboro há 20 anos na realização de lençóis bordados. Mas Paraíso [aqui se borda aqui se paga] é obra duplamente site specific, porque foi criada para a Capela do Morumbi, e porque foi realizada voluntariamente no território do Morumbi.

 

Farol Santander de Porto Alegre destaca obras de Siron Franco da coleção Justo Werlang

Obra sem título (1977) de Siron Franco. Foto: DelRe/Stein/VivaFoto
Obra sem título (1977) de Siron Franco. Foto: DelRe/Stein/VivaFoto

Não convide o empresário gaúcho Justo Werlang para ceder as obras de sua coleção para uma coletiva – não importando o eventual recorte curatorial – que acabe por mesclar os trabalhos dos diferentes artistas que compõem seu acervo. Convide, sim, para uma exposição dedicada somente a um dos artistas que ele coleciona. Uma mostra assim revela o modo criterioso com que Werlang elabora sua coleção, um exercício que envolve certa proximidade com o artista, a observação atenta ao que há de contínuo e coeso na trajetória da pessoa, assim como a atenção aos eventuais pontos de inflexão, às possíveis rupturas ao longo do tempo.

“Não convide”, claro, é força de expressão e blague. Se solicitado o empréstimo de uma obra da coleção, Werlang prontamente atende, desde que o artista concorde em participar da exposição. O mesmo vale para uma eventual mostra de trabalhos presentes na sua coleção: atende-se, se os artistas aceitarem. Porém, caso se peça uma “mostra da coleção”, aí “é necessário que o conceito, que organiza a coleção, possa ser percebido na exposição montada”, diz Werlang à arte!brasileiros. “Ou seja, que se apresente um conjunto bastante significativo de obras de cada um dos artistas, a fim de se perceber o percurso artístico, os elementos constituintes da linguagem personalíssima de cada artista, as questões trazidas à luz, sua intenção e seu pensamento”.

Werlang pondera que, no entanto, para esse fim, é necessária uma quantidade significativa de obras, algo bastante difícil que se realize, pelo espaço físico e orçamento. A solução para que se mostre a coleção, afirma ele, é que exposição se concentre na obra de um dos artistas.

Dito isso, uma mostra exemplar do modus operandi de Werlang é a exposição Armadilha para capturar sonhos, que fica em cartaz até o dia 22/10 no Farol Santander de Porto Alegre (RS) e apresenta 63 pinturas do goiano Siron Franco (75), um dos (poucos) nomes que entram para o elenco de artistas do acervo do empresário gaúcho. Com curadoria de Gabriel Pérez-Barreiro, que foi curador da 33ª Bienal de São Paulo, a exposição é a segunda mirada do Farol Santander sobre a lógica do colecionismo de Werlang. A primeira aconteceu em 2017, com os trabalhos de Karin Lambrecht pertencentes ao empresário. Em seu dream team estão ainda Iberê Camargo, Xico Stockinger, Nelson Felix, Daniel Senise, Mauro Fuke e Felix Bressan, com criações adquiridas ao longo de cerca de três décadas.

O primeiro convite para realizar uma exposição de seu acervo no Farol Santander (então Santander Cultural) ocorrera em 2016. “Entendo que seria possível realizar uma mostra de trabalhos da coleção, mas não uma exposição da coleção”, diz Werlang. De tal forma, avalia o empresário, a mostra não refletiria seus propósitos como colecionador, seu objetivo de, “através de um conjunto significativo de obras, possibilitar a percepção do percurso artístico de cada um dos artistas, evidenciando o conjunto de vocábulos visuais gerados e utilizados, a linguagem personalíssima de cada um, as questões de que tratam, o pensamento ali presente e expresso”, afirma. “E, mesmo no caso dos cadernos, estudos, esboços, desenhos, realizar o propósito [de revelar] a gênese da obra”.

Em Armadilha para capturar sonhos acompanha-se 50 anos da carreira de Franco, numa expografia com sete núcleos: Cosmos, Segredos, Mitos, Homem, Biomas, Violência e Césio, que reúne um dos trabalhos mais notórios de Franco: sua série sobre a catástrofe ambiental e humana provocada em 1987, em Goiânia, pelo manuseio incorreto, por parte de catadores de recicláveis, de um aparelho de radioterapia, que levou à contaminação radioativa de várias pessoas com o isótopo Césio-137.

Os núcleos abrigam as obras figurativas de Franco, assim como as abstratas e também as fronteiriças entre um estilo e outro, por meio das quais Siron Franco se debruça sobre vida, arte e sociedade. Pérez-Barreiro nominou os núcleos e esboçou uma primeira seleção de obras. “Em razão de sua generosidade, permitiu-me sugerir a inclusão de alguns dos trabalhos. Certamente por colecionar assim, [acompanhar] tão de perto, a história, o motivo, a construção de cada um dos trabalhos da coleção, que eram muito próximos de mim”, pondera o empresário. Um das obras mais antigas de Franco, Argonauta (1973), está em exibição no Farol Santander, assim como uma das mais recentes, A grande rede, deste ano.

WERLANG

Formado em Administração de Empresas pela PUC-RS (1977) e em Direito pela UFRGS (1978), Justo Werlang tem 67 anos. Empresário, é sócio-gerente da G.A.Werlang – Gestão e Ambiente Ltda, empresa com foco em desenvolvimento sustentável. Sua relevância no panorama das artes no Brasil extrapola o notório colecionismo disciplinado e judicioso. Salta aos olhos a capilaridade de sua atuação institucional. Werlang participou da criação da Fundação Iberê Camargo (1995) – onde foi diretor e vice-presidente (1995 a 2008), diretor-presidente (2016 a 2020), conselheiro (1995 a 2016), e atualmente é diretor.

O empresário também esteve à frente da criação da Fundação Bienal do Mercosul (1995), em que foi diretor-presidente (1995 a 1997 e 2006 a 2008) e diretor vice-presidente (2003 a 2005). Desde 1997 faz parte do Conselho de Administração da Fundação Bienal do Mercosul, que atualmente preside (2023 a 2024). Fora do Rio Grande do Sul, atuou como diretor vice-presidente na Fundação Bienal de São Paulo (2009 a 2016) e seu diretor (2017 a 2018). Leia a seguir demais trechos da entrevista concedida por Justo Werlang à arte!brasileiros:

ARTE!✱ – Como se deu o início de seu colecionismo?

Justo Werlang – O que havia no começo, há cerca de 30 anos, não era uma coleção, mas um conjunto de obras. Quando entraram os trabalhos de Iberê Camargo é que houve um rompimento, que me exigiu tirar, sei lá, 80%, das obras que tinha em casa. O fio condutor da coleção surge, digamos, uns três anos depois que nós adquirimos o primeiro Iberê. Para então, com o tempo, formar um volume significativo em que se perceba o percurso do artista. Daí quando me pediam para mostrar a coleção, eu dizia que não, porque era uma coleção muito jovem, uma coleção muito jovem para o seu objetivo.

ARTE!✱ – Um desses convites partiu justamente do Farol Santander, ainda em 2016. Como sua resistência foi contornada? 

Werlang – A questão é que o conceito da coleção se desfaz à medida que alguém vai escolher uma ou outra obra lá de dentro e misturar os artistas. Não vai apresentar a coleção, mas obras dela. Porque a coleção se constituí pela linha condutora, pelo objetivo. Então, o Santander me convidou para fazer a exposição da coleção, eu disse não, mas depois respondi que, se eles quisessem, poderiam expor um artista, porque aí estariam expondo a coleção.

ARTE!✱ – Seu colecionismo pressupõe também um diálogo com os artistas, em que você busca entender suas narrativas. Como essa conversa se dá e quais os eventuais desdobramentos para você e para o artista?

Werlang – A coleção hoje é ativa nos artistas vivos, especialmente no Siron, Nelson Félix, Daniel Senise, na Karin Lambrecht e no Mauro Fuke, que continuam produzindo. Meu sistema de coleção me exige uma convivência continuada com cada um desses artistas, e isso acaba por entrelaçar outras relações, como relações afetivas, relações de amizade, uma participação em projetos. Então, essa participação em projetos começa mesmo antes de termos a coleção, quando eu comecei a financiar a produção de alguns escultores, no início dos anos 1990. Como o Xico Stockinger e o Gustavo Nakle. Mas Mantenho obras de outros artistas em casa, como Vasco Prado e Nakle, que não constituem a coleção. Fazem parte do acervo de obras.

ARTE!✱ – Por que você opta por não ter artistas estrangeiros em sua coleção?

Werlang – É uma questão de acesso à obra, ao artista. Cheguei a pensar em ter trabalhos de um artista radicado em Madri, mas é inviável fazer a coleção nos moldes como realizo, de um artista estrangeiro no país.

ARTE!✱ – Como teve início sua trajetória institucional?

Werlang – Gustavo Nakle, Maria Tomazelli e outros artistas se reuniam em um lugar chamado Poleto, para beber cerveja. Lá discutiam o fato de estarem fora do centro, de São Paulo, Rio de Janeiro. E discutiam a possibilidade de participarem mais do mercado de arte nacional. Uma das ideias era fazer uma bienal. Um dia eles se encontraram com uma senhora chamada Maria Benites, argentina radicada em Porto Alegre. E a Maria Benites é um trator de trabalho, uma realizadora. Ela se envolveu com esse grupo e disse: “Vocês precisam do apoio do estado e do apoio do empresariado”. Ela tinha um contato com a Maria Helena Gerdau Johannpeter, esposa do Jorge, e a partir dali o Jorge se envolveu, fez um jantar para o qual foram convidados empresários, galeristas, artistas e representantes do poder público. Nesse processo, apareceram as pessoas que queriam ser presidente do que viria a ser a Bienal do Mercosul. E os caras que pretendiam ser, os artistas não queriam nem saber deles. A Maria Benites começou a falar que eu tinha de assumir o posto. Falei que se o Jorge aceitasse a gente fazer um conselho, um grupo sem presidente, então eu participaria. Eu me vi obrigado a assumir, depois tive de vencer diversas inércias. Não havia capital humano para fazer uma montagem, não tinha iluminação, arquitetura, não tinha nada. Então começar a fazer isso foi bem complicado, tomou muito meu tempo.

ARTE!✱ – Em 1995, mesmo ano em que se iniciou o processo para criar a Bienal, estava também começando o projeto para a Fundação Iberê Camargo. Como foi sua atuação à época?

Werlang – O Jorge me convidou para ser tesoureiro lá. Eu aceitei porque, enfim, a gente era parceiro e eu tinha que fazer. Não gosto de ser tesoureiro, não era minha habilidade. Na Iberê eu fiquei durante 13 anos, muito ativo, até nós inaugurarmos o prédio [em 2008].

ARTE!✱ – E como se deu sua ligação com a Bienal de São Paulo?

Werlang – Quando inauguramos a sede da Fundação Iberê Camargo, solicitei meu afastamento e, coincidentemente, deixei a presidência da 6ª Bienal do Mercosul. Depois de 12 meses sem participar de qualquer evento ligado às artes visuais, resolvi ir à abertura da feira SP-Arte. Nos corredores, encontrei o Júlio [Landmann, que havia presidido a 24ª Bienal], e Heitor Martins [que presidiu a 29ª e 30ª edições, de 2009 a 2012]. Na conversa que se seguiu com Heitor, ele disse que recebeu o convite para montar uma diretoria para Bienal, e perguntou-me o que diria sobre o convite, naquele momento em que muitos haviam desistido da instituição. Minha resposta foi no sentido de que deveria sim, aceitar, pois o patrimônio de contribuições da Bienal era muito maior do que o buraco em que se encontrava. Heitor emendou então: “E você estaria junto conosco?”. De fato, o envolvimento naquele desafio não estava dentro de meu projeto. Pensei, então, no que havia significado a Bienal na carreira de Iberê, no percurso de Daniel, Siron, Karin, Nelson Felix. Assim, aceitei. Éramos um time maravilhoso, discutíamos, não concordávamos com tudo, até brigávamos, mas havia uma enorme comunhão no objetivo de reposicionar a instituição que tudo harmonizava.

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O têxtil como auto-expressão, luta e cuidado

Heloísa Marques, Dor aqui, 2022. Foto: ©Cortesia da artista
Heloísa Marques, Dor aqui, 2022. Foto: ©Cortesia da artista

Por Adélia Borges

Bordados, crochês, tricôs e toda sorte de trabalhos têxteis ficaram por muito tempo segregados, nos cânones sociais e artísticos, a uma feminilidade dócil e bem-comportada, restrita ao único espaço que caberia às mulheres – o lar. A exposição Andar pelas bordas: bordado e gênero como práticas de cuidado”, em cartaz até 21 de outubro na Arte132 Galeria, em São Paulo, é uma excelente oportunidade de apreciar um panorama da produção têxtil contemporânea no Brasil que revoluciona essa compreensão. Na seleção de obras de 47 mulheres ou coletivos de mulheres, a curadora Lilia Moritz Schwarcz mostra como o bordado tanto “serve ao afeto, à estética”, como “se presta ao campo das reivindicações políticas e sociais por direitos”.

A iniciativa não é a primeira dedicada a esse novo olhar sobre o têxtil. A própria curadora começa o alentado texto do catálogo elencando uma dezena de mostras coletivas realizadas no Brasil na última década, tais como “Transbordar: Transgressões do Bordado”, curada por Ana Paula Simioni no Sesc Pinheiros, em São Paulo – cuja visitação e reverberação certamente sofreram devido ao fato de ser apresentada em plena pandemia, em 2020. Podemos destacar também exposições individuais recentes de artistas que têm ou tiveram no têxtil um suporte importante, e que só nos últimos anos têm sido retiradas da invisibilidade, tais como Madalena dos Santos Reinbolt, Rosana Paulino e Sonia Gomes. 

As três estão em “Andar pelas bordas”, ao lado de outros nomes consagrados, como Adriana Varejão, Anna Maria Maiolino e Nazareth Pacheco, e de jovens como Rebeca Carapiá, Vivian Caccuri, Sol Casal e Tadáskia. A seleção ganha em densidade e amplitude com a inclusão de seis coletivos de bordadeiras. BordaLuta, Linhas de Sampa, Linhas do Horizonte e Pontos de Luta têm assumido mais diretamente o bordado como um instrumento de luta política por democracia e direitos humanos, inclusive com intervenções em espaços públicos. Artesãs da Linha Nove, que nasceu junto ao Instituto Acaia, em São Paulo, representa as dezenas de associações e cooperativas de mulheres que têm no bordado não só a fonte primordial de renda, mas também uma prática coletiva de fortalecimento mútuo. E Matizes Dumont, de Pirapora do Bom Jesus, em Minas Gerais, é um dos grupos que mais têm difundido o bordado em oficinas e exposições país afora. 

Embora o bordado predomine, há espaço para outras técnicas, como a escultura têxtil de Eva Soban, obras de crochê de Ana Maria Tavares e tapeçaria de Madeleine Colaço. Os ricos grafismos kene, que estão a caminho de serem reconhecidos como patrimônio imaterial pelo Iphan, estão nas tecelagens de algodão das indígenas Maria Ayani Huni Kuin e Tamani Huni Kuin. Essa mistura de autoras de diferentes procedências, gerações e contextos, sem distinções ou hierarquizações, é um dos pontos altos do recorte curatorial, que “amarra” as escolhas vinculando as práticas têxteis às funções tradicionalmente vistas como femininas de “tomar cuidado” e de curar.

Se “a arte da curadoria tem a ver com a raiz da palavra cuidar”, como diz Lilia Moritz Schwarcz no texto do catálogo, cabe lembrar aqui a coerência com que ela vem atuando em sua trajetória relativamente recente no campo da curadoria de exposições, em que contesta as divisões entre arte erudita, arte popular e artesanato e traz à luz produções até então predominantemente invisibilizadas. Antropóloga, professora da USP e da Universidade de Princeton e prolífica autora, Lilia também se tornou uma figura de destaque na cena política e cultural brasileira, com 533 mil seguidores no Instagram.

A exposição é dedicada a Telmo Porto, que abriu a Arte132 Galeria em 2021 e faleceu pouco antes da abertura da mostra.

“O debate tenta fazer barulho, provocar dissonância e distinção”

A historiadora francesa Anne Lafont
A historiadora francesa Anne Lafont

Autora dos livros Uma africana no Louvre e A arte dos mundos negros: História, teoria, crítica, recém-lançados no Brasil pela Bazar do Tempo, a historiadora francesa Anne Lafont esteve em São Paulo em agosto, a convite do MAC USP, para ministrar uma disciplina de pós-gradução, patrocinada pela Terra Foundation. Na ocasião, Lafont nos deu a seguinte entrevista:

ARTE!✱ – ​ Conte-me um pouco sobre o impacto do seu livro Uma africana no Louvre sobre o público, em torno da questão da representação do negro na arte. Houve algum desdedobramento de seus estudos por parte de outros pesquisadores? Reflexos em instituições, principalmente na França, ou talvez noutros países europeus? Elas repensaram a forma como formulam suas práticas curatoriais para suas coleções?

ANNE LAFONT – Partimos de uma ideia um tanto simples da representação do negro nas artes plásticas, principalmente na Europa e na França, e acabamos fazendo uma reflexão sobre os meios visuais do conceito de raça, como a raça se materializa visualmente. Eu diria que a mostra Le modèle noir de Géricault à Matisse, que ocorreu no Louvre [e foi ponto de partida para Uma africana no Louvre], foi um momento muito importante na história das exposições na França, uma grande exposição sobre um assunto que não tinha sido tratado nessa escala lá na França.

Foram muitos visitantes, acredito que mais de 400 mil, e isso também transformou a maneira como os museus na França passaram a trabalhar essas questões relacionadas às comunidades que formam a sociedade francesa. Houve realmente um efeito cascata no final.

No mundo acadêmico, devo dizer que há duas fases de recepção do meu trabalho. São os historiadores que inicialmente se interessaram pelo meu trabalho, mas os historiadores na França foram mais relutantes a este tipo de abordagem pós-colonial. Porém, estão começando a surgir gerações mais jovens muito mais interessadas nesses assuntos. Já no universo dos curadores de museus, demorou um pouco mais. Foram antes de tudo historiadores e antropólogos que realmente se interessaram pelo meu trabalho, e por isso que fui contratada pela École des Hautes Études en Sciences Sociales em Paris, um instituto de estudos avançados com pesquisadores que são antropólogos, filósofos, sociólogos, historiadores, historiadores da arte. As coisas estão começando a mudar, mas é um processo um tanto mais longo.

Foi com, eu diria, a transformação da representação do negro de sujeito de pintura, em modelo, que no século XIX mais algumas modelos femininas foram representadas. Mas ao longo dos séculos XVII e XVIII, o que havia eram essencialmente jovem homens em posição de serviço. No século XIX, temos a chegada de uma série de modelos femininas negras que realmente vão aparecer mais na arte francesa. Acho que as mulheres negras estavam mais presentes nas colônias francesas, onde não havia um meio artístico tão bem constituído como na França continental. Os pintores trabalharam mais em Paris do que nas colônias e, portanto, somente no século XIX, quando as comunidades negras se instalaram mais na França metropolitana, houve mais mulheres presentes e representadas.

ARTE!✱ –  Até que ponto existem semelhanças e diferenças entre a representação dos negros na arte francesa em relação às suas colônias e a representação europeia em geral dos escravizados no Brasil, por exemplo?

ANNE LAFONT – Para mim são imagens que circulam no espaço atlântico e, no século XIX, em torno de Debret e da Missão Francesa no Brasil, temos imagens que são reinvestidas da cultura visual francesa. São artistas que moram no Brasil e que, portanto, descrevem o que veem, quando voltam para a França. O que talvez seja fundamental nas experiências europeias do Brasil é o acesso a uma forma de crueldade do ambiente colonial brasileiro, ou de qualquer outro lugar que não é imaginável na Europa quando estamos longe da própria experiência colonial. Um acesso a algo muito mais cru e direto sobre a experiência da escravidão, do que quando a gente fica apenas em algo que é metropolitano, que é distante em relação à escravidão. Acho que Rugendas, Debret ou outros dão mais uma vez, por meio da litografia, da gravura etc., um acesso totalmente direto às experiências dos negros escravizados no Brasil.

ARTE!✱ – Uma questão que oferece outro tipo de perspectiva histórica: é possível comparar o debate decolonial de hoje com os movimentos negros pelos direitos civis das décadas de 1960 a 1980? Por que ou por que não?

ANNE LAFONT – Isso exigiria um estudo comparativo muito, muito aprofundado, mas o certo é que precisamente o espaço crítico gerado por pesquisas como a que estou realizando, assim como aquele do interesse pós-colonial, não é estranho ao que a própria sociedade exige. Explica uma história que tem sido demasiado monolítica, ou seja, o próprio fato de a sociedade civil, por assim dizer, exigir maior justiça social não está alheio ao desenvolvimento do pensamento crítico que fornece os meios para compreender precisamente as raízes desta forma de desigualdade, e que existia, por isso não creio que os pesquisadores sejam alheios aos movimentos sociais e políticos do seu tempo.

Nesse sentido, como nos anos 1960 nos Estados Unidos, como na França hoje, o fato de a sociedade estar mais uma vez exigindo justiça social e uma melhor distribuição das coisas, isso não está em descompasso com o tipo de projeto que venho levando adiante, em que tentamos compreender a história no longo prazo, mais precisamente da história francesa em conexão particularmente com a comunidade negra. Nesse sentido, é comparável ao período da luta pelos direitos civis, ou seja, os pesquisadores são cidadãos e não estão em descompasso com o movimento que os cidadãos manifestam na sociedade. Ganhou força nas universidades e até mesmo por um tempo nas redações de jornais, bem como em setores da sociedade, através da cultura, entre outros agentes.

ARTE!✱ – Nos últimos anos, a teoria racial crítica ganhou força nas universidades e chegou até às redações de jornais como o The New York Times, bem como a setores da sociedade, por meio da chamada cultura. Entre outros autores, James Baldwyn e Frantz Fanon ressurgiram. Achille M’bembe levantou a questão da necropolítica. O racismo estrutural entrou na agenda dos governos progressistas e até das empresas, que por vezes parecem fazer um black washing – numa referência ao greenwashing, de uma falsa sustentabilidade para fins de marketing. Esta miríade de reflexões, perspectivas, proposições etc. contribui para o debate sobre a decolonialidade, ou pode por vezes criar ruídos, dissonâncias, desvios ou distrações?

ANNE LAFONT – O debate tenta fazer barulho, provocar dissonância e distinção. O próprio debate tem ese efeito, ou seja, não podemos ter uma discussão aprofundada sem que se tomem posições muito diferentes. É inevitável e, neste sentido, não significa que cada indivíduo que participa do debate cause ruídos. Mas faz parte do debate, ou seja, não podemos levantar uma questão nova, colocar ideias novas em pauta sem que isso faça barulho, atrapalhe a ordem estabelecida, perturbe necessariamente a forma de pensar. Há todos os tipos de posições que vêm alimentar este debate e, pessoalmente, individualmente, podemos escolher uma linha muito pessoal e precisa, mas que faz parte de um debate muito mais acalorado, e eu não vejo como uma sociedade se transforma sem fazer barulho, isso não é possível.

ARTE!✱ – Sabemos que o identitarismo mais pernicioso e dissimulado do mundo é o identitarismo branco, que nos Estados Unidos vem atualmente manifestando sua face terrorista com os supremacistas brancos. Ao mesmo tempo, sabemos que também existe certa cacofonia na luta identitarista negra, envolvendo, por exemplo, visões distorcidas do colorismo, assim como a criação do que, para a sociedade branca, são ressalvas, personagens midiáticos que, por sua recorrência em fóruns presenciais ou virtuais, consolidam-se como figuras de exceção entre os negros. Isso ocorre entre atrizes, atores, cantores, escritores e até mesmo já tivemos no Brasil um ministro da Suprema Corte. Eles alcançam notoriedade, não raro em detrimento da coletividade, de seus pares, e em benefício próprio. Esta segmentação ou dispersão de pensamento e ação afeta negativamente o debate decolonial?

ANNE LAFONT – Não, na verdade existe um pensamento negro plural, e isso é muito bom. Existem posições muito diferentes de um indivíduo para outro na mesma sociedade, mas ainda mais em escala mundial, das experiências das mulheres negras em Paris, àquelas das dde Benin. O pensamento negro é muito complexo e muito diversificado. É preciso ouvir as pessoas que têm algo a contribuir, mas é uma mais-valia. Não é falta de profundidade nem de eficiência, é uma riqueza que é em última análise uma pluralidade de pontos de vista, e há pontos de vista com os quais não concordo. Tem gente que não concorda comigo, e isso é muito bom para eles. Por fim, não existe um pensamento negro monolítico, existem diversas experiências, existem diversos pontos de vista, existe um pensamento crítico múltiplo, e isso é uma coisa muito boa.

ARTE!✱ –  Em todo o mundo, tem havido grande visibilidade para artistas negros que tematizam problemas históricos e contemporâneos da negritude, eles próprios resultantes diretamente de processos coloniais. Assistimos também a um boom no mercado, com um maior número de galeristas, incluindo negros, cujos portfólios são dedicados a artistas africanos ou da diáspora. As instituições e os seus curadores estão seguindo a tendência que atualmente parece estar a pasteurizar o ecossistema artístico em todo o mundo. Grandes conglomerados de luxo contratam esses artistas para colaborações de moda. Como nos disse o curador e artista Kader Attia, em entrevista: “O capitalismo tenta se recuperar, através da cultura e da arte, apropriando-se de mensagens políticas, como a da decolonização, e com isso corremos o risco de que elas se institucionalizem. Ou seja, é preciso saber cuidar da retórica, inventar uma linguagem, vocabulários sempre novos, quase novos, quem sabe abandonar a palavra “decolonial” e criar outra, por exemplo “desmodernizar”, porque decolonial não inclui o feminismo, por exemplo.” Você vê esse risco na produção artística negra atual, de um simulacro crescente de crítica a serviço do capitalismo, de um pastiche de arte decolonial?

ANNE LAFONT – A arte colonial não está mais imune que todas as formas de arte e de valorização pelo mercado, ou seja, seria muito ingênuo pensar que o capitalismo é menos forte face aos seus pensamentos. O capitalismo é sempre mais forte. O esforço artístico pós-colonial e decolonial está sujeito ao mesmo risco que todas as formas de arte. Não há razão para pensar que desta vez o mercado não iria captar uma tendência que é generalizada. O risco está sempre lá, nem mais nem menos do que todas as formas de arte que se expressam, que encontram um alcance internacional etc. Sim, penso que é um risco, mas cabe aos artistas ao mesmo tempo encontrar os meios de expressão para escapar, se quiserem fazê-lo, deste tipo de padronização por parte do mercado de arte ou por parte do capitalismo.

 

Colaboradores da edição #64

CLAUDINEI ROBERTO DA SILVAé professor, curador e artista visual. Coordenou, entre outros, o educativo do Museu Afro Brasil. Faz parte da Comissão de Arte do Museu de Arte Moderna de São Paulo, onde foi co-curador, em 2022, do 37º Panorama da Arte Brasileira. Nesta edição, assina crítica da 35ª Bienal de São Paulo.

JOTABÊ MEDEIROS é repórter e biógrafo, entre outros, do cantor Belchior. Foi repórter de O Estado de S.Paulo e Folha de S.Paulo, editor-assistente da Veja SP, editor na TV Gazeta e Carta Capital. Jotabê assina uma reportagem sobre a exposição ReFundação, em cartaz na galeria ReOcupa, em São Paulo.

LEONOR AMARANTE é jornalista, curadora e editora. Trabalhou no Jornal O Estado de S.Paulo, na revista Veja, na TV Cultura e no Memorial da América Latina. Aqui, entre outros, escreve sobre a exposição de Marta Minujín; sobre os 20 anos de A Gentil Carioca; e conversa com o crítico francês Jacques Leenhardt sobre a participação de Wifredo Lam na 35ª Bienal de São Paulo.

MARIA HIRSZMAN é jornalista e crítica de arte. Trabalhou no Jornal da Tarde e em O Estado de São Paulo. É pesquisadora em história da arte, com mestrado pela USP. Para este número, Maria escreve sobre a 35ª Bienal de São Paulo e três de seus destaques: Ana Pi, Castiel Vitorino Brasileiro e Luana Vitra.

FABIO CYPRIANO, crítico de arte e jornalista, é diretor da Faculdade de Filosofia, Comunicação, Letras e Artes da PUC-SP e faz parte do conselho editorial da arte!brasileiros. Neste número, assina uma crítica à 35ª Bienal e escreve sobre o museu-casa-escola Acervo da Laje, de Salvador, presente em cinco exposições importantes nos últimos anos.

Fotos: arquivo pessoal

Equilíbrio delicado

Vista da exposição "Ajuntamentos", de Afonso Tostes, na Fundação Iberê Camargo. Foto: Nilton Santolin
Vista da exposição "Ajuntamentos", de Afonso Tostes, na Fundação Iberê Camargo. Foto: Nilton Santolin

Até o dia 22 de outubro, a Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre (RS), recebe Ajuntamentos, do artista plástico mineiro Afonso Tostes. A exposição traz desdobramentos da mostra de mesmo nome que no início do ano marcou a estreia de Tostes na Galeria Luciana Brito, em São Paulo – até então, ele era representado na capital paulista pela Milan.

Na Fundação gaúcha, ao centro da expografia, o público encontra grandes esculturas de madeira que remetem a formas totêmicas, como bem definiu Luisa Duarte em seu texto curatorial para exposição realizada anteriormente em São Paulo. As obras foram criadas a partir de troncos, em sua maior parte recolhidos no Parque Ibirapuera, na capital paulista, mas também no Rio de Janeiro, onde Tostes mora.

Marcam essas esculturas uma “estabilidade tênue”, também como descrito por Duarte. Um equilíbrio delicado mantido, sugere Tostes, com o apoio de cunhas e estruturas delgadas e retorcidas, que imitam galhos, também feitas pelo artista com pedaços de madeira, e a que ele chama de bengalas.

“Eu comecei a desenvolver esses trabalhos há pelo menos uns cinco anos, antes mesmo da exposição na Luciana Brito, mas eles não haviam sido mostrados até então”, conta Tostes à arte!brasileiros.

“Eles, no entanto, não representam uma grande ruptura em relação à minha linha de trabalho, tampouco seguem uma sequência lógica. Meu processo criativo sempre está ligado aos materiais que vou recolhendo e com que eu vou convivendo dentro de meu estúdio”.

As ideias que afloram dessa convivência, afirma Tostes – dentro de seu campo de pesquisa sobre natureza, meio ambiente e relação com o ambiente, urbano ou natural – ficam “fervilhando” em sua cabeça até desaguarem nas obras que apresenta ao público. “Quando eu faço uma exposição como Ajuntamentos, estou não somente juntando aquelas ideias, como também trabalhando minhas referências, vivências, a observação daquilo que, eu entendo, me forma como artista”.

Tostes também afirma que essas obras refletem ainda suas ideias acerca do meio cultural e artístico numa estrutura mercadológica. “Uma estrutura também mais ampla, que define o que é arte contemporânea, em contraponto a informações que vêm de um lugar que não se relaciona com a arte como um produto, a ser exibido dentro de contextos mercadológicos, por sua vez, e por isso historicamente aceitos”.

Além das esculturas de madeira, em Ajuntamentos, Afonso Tostes reapresenta a série Reforma, com telas feitas a partir do pó da madeira, resultante do lixamento das esculturas, e que faz as vezes de “tinta”. Na Fundação Iberê Camargo, Tostes acrescentou novos trabalhos à mostra original, feitos in loco, durante duas temporadas em Porto Alegre, a exemplo de duas xilogravuras e uma série de gravuras.

O artista ressalta que a busca por uma ideia de essência e de simplicidade percorre toda a sua obra. Em texto feito para a exposição na Fundação Iberê Camargo, ele afirma que tenta “encontrar beleza na poética mais simples possível”. Isso, diz ele, é evidenciado em sua relação com estruturas – em criações anteriores, um exemplo disso é o “jardim de ossos” que em 2010 ele “plantou” no Museu da Casa Brasileira, em uma exposição com curadoria de Agnaldo Farias.

Em Ajuntamentos, seus troncos sustentados por bengalas são, novamente, estruturas, mas já “não tão confiáveis”, desequilibradas pelas próprias intervenções do artista, diz Tostes, seja pelo corte quanto pela tentativa de reconstrução “daquilo que não mais está lá”, ou seja, as árvores de onde vieram.

Tostes faz questão de ressaltar que Luciana Brito foi uma importante interlocutora no processo de criação de Ajuntamentos, tanto em São Paulo quanto em Porto Alegre. Já a galerista afirma que costuma trabalhar sempre de modo próximo aos artistas: “Eu lido muito deste jeito com aqueles que represento. É como uma parceria, em que conversamos sobre o projeto, ajudo com minha experiência com montagens etc.”, explica Luciana. “Ao mesmo tempo, eu dou muita liberdade aos artistas. Eles fazem suas exposições exatamente como planejaram”.

Parte desta parceria com Luciana Brito, que frequentava de modo recorrente o estúdio do artista, garantiu a Tostes a possibilidade de produzir suas peças, em especial os grandes troncos de madeira, em São Paulo, numa oficina que a galerista conseguiu prover. Também na Fundação Iberê Camargo, conta Luciana, a galeria foi bastante participante na instalação das obras de Tostes. “É preciso ressaltar que o Emilio Kalil também dá muita abertura para essas colaborações. Ao fim, foi um trabalho feito a seis mãos”, assevera.

Luciana salienta ainda que Ajuntamentos ampliou o leque artístico Afonso Tostes. “Ele abriu várias frentes em ambas exposições. Os trabalhos com jornais, que não haviam sido mostrados em São Paulo, são um exemplo. Já as esculturas são todas inéditas, e as pinturas estão fazendo muito sucesso porque ele sempre foi mais conhecido como escultor. Inclusive do ponto comercial podemos afirmar que a gente vendeu superbem”.

Ainda que haja novidades em Ajuntamentos, Luciana faz questão de ressaltar que há sempre muita coerência no trabalho de Tostes. “Ele tem uma investigação muito própria, em que se utiliza de materiais que vai encontrando e recolhendo, algo que também vale para as ferramentas que usa. Dentro desse universo, que pode parecer limitado, ele consegue uma variação superimportante de narrativas sobre a natureza”, argumenta. No panorama da arte contemporânea brasileira, afirma Luciana, Tostes tem uma presença de destaque, com um trabalho muito singular, em que é fiel à sua pesquisa como artista, desde os anos 1980 ou mesmo um pouco antes.

Vilma Eid, uma das grandes mecenas da arte popular brasileira

A marchand Vilma Eid em sua Galeria Estação, em São Paulo. Foto: Divulgação
A marchand Vilma Eid em sua Galeria Estação, em São Paulo. Foto: Divulgação

Sempre que se aproximava o aniversário de Vilma Eid, sua mãe costumava presentear a filha com uma obra de arte, fosse um quadro ou uma escultura. Aos 21 anos, já casada, sua mãe a levou para a Cosme Velho Galeria de Arte, do marchand Cesar Luiz Pires de Mello. Vilma recorda-se que havia paredes inteiras cheias de quadros, com uma iluminação escura. Isso não impediu que ela fixasse seu olhar em uma das pinturas que, ela reconhece, marcou um ponto de ruptura na sua relação com artes.

“Eu vi uma relva com dois boizinhos. Meu olho ficou grudado naquilo. Eu não sabia que era de José Antônio da Silva [1909-1996]”, conta Vilma. “Mas eu quis aquele trabalho, e tanto a minha mãe quanto o galerista me desaconselharam, falando que o artista era um primitivista, que a gente não sabe se vai dar em alguma coisa. ‘Escolha uma coisa mais moderna’, disseram. E eu acabei escolhendo outra obra”.

A pintura com relva e os bois, no entanto, não saíram da lembrança de Vilma. Nos anos 1980, ela soube que José Antônio da Silva morava em São Paulo, na Vila Mariana, e quis conhecê-lo. “Ele foi muito prestigiado em vida, participou de 17 bienais pelo mundo, seis delas a Bienal de São Paulo”, conta a galerista. “Sempre digo que foi ele quem me colocou nesta vida. Quando as pessoas me falam que escolhi esse nicho, eu digo que não escolhi nicho nenhum. Foi um despertar”.

À época, Vilma Eid era sócia de uma galeria aberta em 1986, mas ela já atuava no mercado de arte como uma marchand independente, uma trajetória que em 2023 comemora 40 anos. Ao passo que sua Galeria Estação – que até o dia 28/10 exibe a coletiva Reversos e Transversos – foi aberta em 2004, depois que ela reuniu uma coleção consistente, comprando muitas obras em viagens Brasil afora. Em 2024, a galeria completa duas décadas de atividades.

“Naquele momento, no entanto, eu não pensava em abrir outra galeria, porque o confisco das poupanças no Governo Collor, que havia afetado os negócios da galeria anterior, de que eu fora sócia, me deixou traumatizada”, diz. “Minha ideia inicial era deixar meu acervo exposto ao público, apenas. Com o passar dos tempos, vi que não iria dar certo, porque as pessoas queriam comprar, mas eu dizia que não vendia. E havia muitos artistas vivos ainda, que dependiam de mim. Então resolvi abrir a galeria”.

À época da inauguração, Vilma conta que a recepção de sua galeria, no mercado de arte brasileiro, não foi boa. As pessoas que vinham aqui me perguntavam ser um espaço expositivo do estado ou da prefeitura, achavam que era algo institucional, museológico”, conta a galerista. “Foi preciso fazer muita pressão, inclusive de amigos como o Marcelo Araújo e o Ivo Mesquita, para que houvesse uma aceitação por parte do mercado”.

Ao longos dessas décadas, Vilma reconhece que fez um “trabalho de formiga” pelo reconhecimento da arte dita popular. “Foi água em pedra dura tanto bate até que fura. Houve muita rejeição, porque havia uma confusão do que era arte e o que era artesanato”, conta. Seu trabalho, no entanto, surtiu efeito ao longo dos anos, não somente junto a colecionadores, mas também instituições, a exemplo do Masp.

“Foi uma epifania, que também se vê hoje na programação da Pinacoteca. E fora do Brasil houve ponto de virada, em 2012, quando a Fundação Cartier, de Paris, faz uma exposição com artistas chamados populares. O Hervé Chander, diretor da instituição, não somente leva dez artistas da Estação para a mostra, como adquire obras para o acervo da Fundação”.

Motivos para celebrar a trajetória de Vilma Eid e as efemérides deste e do ano que vem, como se vê, não faltam. A arte popular brasileira e seus artífices agradecem.

Acervo da Laje conquista visibilidade para produção periférica

Obras de César Bahia, reunidas no Acervo da Laje, e presentes na exposição "Uma poética do Recomeço", no Museu de Arte do Rio (MAR). Foto: Fabio Cypriano
Obras de César Bahia, reunidas no Acervo da Laje, e presentes na exposição "Uma poética do Recomeço", no Museu de Arte do Rio (MAR). Foto: Fabio Cypriano

Presente em ao menos cinco exposições recentes, três delas ainda em cartaz, o baiano Acervo da Lage é uma das mais originais iniciativas no circuito da arte e cultura do país. Ele está na mostra Ensaios para o Museu das Origens, no Instituto Tomie Ohtake e no Itaú Cultural, em Dos Brasis, no Sesc Belenzinho, e César Bahia, no Museu de Arte do Rio (MAR), além de ter participado de A Memória é uma Invenção, no Museu de Arte Moderna do Rio (MAM Rio), e A Parábola do Progresso no Sesc Pompeia, ambas no ano passado.

Criado em 2010 pelos educadores Vilma Santos e José Eduardo Ferreira dos Santos, o Acervo da Laje reúne, em duas casas compradas pelo casal, uma coleção de centenas de obras que foram doadas pelos artistas ou seus amigos, muitas delas também encontradas para descarte. Como a primeira casa era em uma laje, o nome vem dessa situação.

Tudo começou com uma pesquisa a partir do doutorado em Saúde Pública de José Eduardo. Seu orientador, Gey Espinheira (1946-2009), o estimulou a estudar a beleza do Subúrbio Ferroviário. “Junto com Vilma e o fotógrafo Marco Illuminati começamos a fotografar o território, em 2010. Vilma e eu, diante da morte de cinco diferentes artistas do território, começamos a procurar pela cidade em brechós e mercados as obras desses artistas para que as pessoas do Subúrbio as conhecessem”, conta ele.

Das cinco mostras citadas, quatro são coletivas, que apresentam o Acervo da Laje em meio a outras coleções e territórios, apontando para seu caráter como um lugar fora do eixo que se coloca como um espaço que dá visibilidade a uma série de artistas/artesãos – a categoria aqui não é o que mais importa –

que não são conhecidos. Já a mostra do MAR é uma espécie de passo a diante, pois, ao se dedicar a um dos artistas no Acervo, César Bahia, com mais de 200 obras produzidas entre 2010 e 2023, passa a dar visibilidade e inserir seu nome de maneira institucional.

Pelos seis locais onde o Acervo da Laje é exposto, já que uma das mostras se divide em dois espaços, pode-se perceber como o circuito percebe a relevância e a originalidade desta iniciativa. Ele é apresentado em seu site como “um espaço de memória artística, cultural e de pesquisa sobre o Subúrbio Ferroviário de Salvador”. Nesta região vive cerca de 10% da população da capital baiana.

Entre os curadores que passaram pelo Acervo, estão ao menos duas que cuidaram da Documenta de Kassel, como Ruth Noak e Marina Fokidis, e três envolvidos em edições passadas da Bienal de São Paulo, como Lisette Lagnado, Pablo Lafuente e Paulo Miyada.

Atualmente, 611 obras de 30 artistas estão acessíveis no site, além de outras categorias gerais como Azulejaria, Coleção Inicial, Brinquedos ou A Beleza do Subúrbios, entre outras. Esta última sessão, por exemplo, reúne fotografias digitais que participaram da exposição A Beleza do Subúrbio realizada com alunos de São João do Cabrito e Itacaranha que participaram de uma mostra em dezembro de 2013, no bairro do São João do Cabrito.

José Eduardo, que estava na abertura de Dos Brasis, em agosto passado, mandou um depoimento por e-mail sobre o projeto, a partir de uma pergunta bem ampla, que dizia respeito a como o Acervo foi criado e se obras que pertencem a ele são vendidas. Para ajudar na leitura, fizemos algumas divisões temáticas na reposta:

O INÍCIO DO ACERVO

José  Eduardo – Nós começamos o Acervo em 2010 a partir de uma pesquisa sobre a arte invisível dos trabalhadores da beleza nas periferias de Salvador, pois, quando terminei o doutorado em Saúde Pública, estudando as repercussões do homicídio entre jovens da periferia, o professor Gey Espinheira me pediu para que eu estudasse a  beleza do  Subúrbio Ferroviário de Salvador e aí junto com Vilma e  o fotógrafo Marco Illuminati começamos a  fotografar o território, em 2010. Vilma e eu, diante da morte de cinco diferentes artistas do território, começamos a procurar pela cidade em brechós e mercados as obras desses artistas para que as pessoas do território as conhecessem. Como morávamos numa casa na laje surgiu o Acervo da Laje em 2010, e tivemos que nos mudar depois para uma casa alugada até construir a nossa casa, em 2015, que também faz parte do Acervo da Laje.

COMPRA E VENDA

José  Eduardo – As obras foram e são compradas, encontradas em descartes ou recebidas em doação por artistas, moradores e amigos/as. Na época inicial eu fazia um pós-doutorado pelo PNPD, e isso nos ajudou muito na pesquisa, identificação de artistas e depois começamos a fazer dois projetos para tornar visíveis esses artistas e as obras. São 13 anos de trabalho, e não sabíamos o que tínhamos nas duas casas. Durante a pandemia conseguimos um edital para catalogar as obras iniciais no site, assim como a criação da hemeroteca, tudo isso com a participação de muitas pessoas do território, particularmente jovens e moradores que participavam das ações com profissionais das áreas de museologia, arquivo, design e outros.

Mensalmente tirávamos uma parte dos nossos parcos ganhos para comprar as obras para gerar e difundir a criação artística do território. Vilma dava “banca” [aulas de reforço escolar] aqui no Acervo, e eu era professor universitário, mas durante a pandemia adoeci e pedi demissão da universidade, pois cheguei a receber R$ 250 como salário. Aí paramos de comprar as obras com mais regularidade. Mas, antes disso, as coleções já estavam formadas nas duas casas e se constituem como parte do Acervo da Laje.

Nós não vendemos as obras, pois elas fazem parte do Acervo da Laje, que é o único museu-casa-escola do Subúrbio Ferroviário de Salvador, e também há muitos materiais e obras que encontramos descartadas como placas, tijolos de antigas olarias, esculturas e tudo isso também faz parte do Acervo. Quando conseguimos aprovar um projeto também reservamos um pequeno recurso para comprar as obras, pois consideramos que isso é importante para o território e seus/suas artistas.

MOSTRAR O INVISÍVEL

José  Eduardo – Somos cuidados por uma grande quantidade de pessoas que nos ajudam a desenvolver as ações como oficinas, bate-papos na laje, visitas guiadas e depois do site surgiram os convites para exposições no MAM Rio, MAM-BA, Sesc Pompeia, e agora no Solar Ferrão com Brasil futuro: as formas da democracia, no MAR Rio e no SESC Belenzinho. Talvez a ideia do Acervo seja a de mostrar o invisível e quebrar os cânones hegemônicos das artes brasileiras, e por isso sempre dialogamos com muitos curadores como Keyna Eleison, Pablo de La Fuente, Marcelo Campos, Clarissa Diniz, Igor Simões, Lisette Lagnado, André Pitol, Yudi Rafael, João Angelino, Ayrson Heráclito, Marina Fokidis, Ruth Noack, Luiza Proença, os curadores da 31ª Bienal de São Paulo, na qual fomos convidados para falar.

Participamos da terceira Bienal da Bahia e antes disso fizemos muitas exposições aqui nas lajes das periferias de Salvador com o projeto #Ocupa Lajes em duas edições (2016 e 2018), movimentando a cidade inteira. Ou seja, desde o surgimento o Acervo da Laje sempre buscou um não nivelamento por baixo do que é ser um espaço de arte e memória na periferia, sempre dialogamos com todas as pessoas que nos visitam, desde crianças, jovens e adultos e pessoas do mundo inteiro, pois as artes brasileiras precisam conhecer as produções de artistas das periferias, e eles e elas devem ter seus nomes na história, e não mais ser considerados fazedores de uma arte menor.

SEMPRE COM LUTA

José  Eduardo – Do mesmo jeito que a memória das periferias precisa ser contada por nós, assim precisa ocorrer com a democratização das curadorias, sempre em diálogo. E quando uma pessoa se interessa por um artista nós indicamos os próprios para não sermos nós os novos colonizadores, rs. É isso. O Acervo da Laje nasce de um casal, se multiplica na coletividade do Subúrbio Ferroviário de Salvador, está ligado às novas gerações que começam a trabalhar com cultura e arte, e nas exposições que fazemos fora daqui tentamos levar o máximo possível de pessoas para irem conosco e ter um outro horizonte, não mais aquele que era relegado à nos, a invisibilidade e a exclusão. Enfim, trabalhamos sem dinheiro, mas com muita curadoria e diálogo, e quando a coisa aperta fazemos campanha, pedimos apoio, mas nenhum apoio formal até hoje nos foi concedido. Tudo é sempre – e sempre será – com muita luta, pois viver de arte e memória no Brasil é um desafio. Mas nós gostamos de desafio. E, como sempre, temos sido muto bem cuidados fora da Bahia, rs.

Projeto de Lina Bo Bardi para o MAM São Paulo ganha exposição

Lina Bo Bardi no parque

Nova exposição do MAM São Paulo apresenta o projeto de reforma realizada no início dos anos 1980 pela arquiteta ítalo-brasileira Lina Bo Bardi.

Com curadoria de Gabriela Gotoda e Pedro Nery, a exposição fica em cartaz até 28 de janeiro de 2024 com documentos e desenhos do projeto de Lina.

No vídeo, você confere a conversa com os curadores:

Crítica e erotismo temperam a exposição ‘Moqueca de maridos’

Denilson Baniwa, "The Call of the Wild - Yawareté tapuya", 2023. Foto: Pedro Agilson
Denilson Baniwa, "The Call of the Wild - Yawareté tapuya", 2023. Foto: Pedro Agilson

A galeria A Gentil Carioca desembarcou em São Paulo há um ano e meio e instalou seu espaço expandido numa charmosa travessa sem saída, em Higienópolis. Denilson Baniwa expõe atualmente um conjunto de obras com o humorado título Moqueca de maridos, reunindo trabalhos que abordam conceitos defendidos por ele, como o impacto do sistema colonial de catequese sobre os indígenas e a preservação da cultura de todas as etnias. Denilson é ativista e atua também na publicidade, cultura digital e no hackeamento, construindo uma imagética indígena que circula em revistas, filmes e séries de TV.

Visito a mostra com ele. Todas as obras expostas têm a ver com sua pesquisa sobre o contato do mundo ocidental com os indígenas. Denilson fala dos estragos provocados pelas construções de internatos indígenas que funcionavam em internatos católicos, edificados em territórios indígenas. “Na minha região, interior do Amazonas, havia algumas dessas instituições que obrigavam as crianças a irem para lá e esquecer seu idioma e sua identidade. Meus pais e avós foram internados também e ficaram com traumas. A presença de estrangeiros na catequese contribuiu para o desaparecimento do idioma de indígenas de várias etnias por todo o Brasil”.

Arbitrariedades e ameaças ainda hoje se alastram por várias localidades e causam terror, por isso muitos indígenas se tornam católicos, e os que resistem são demonizados. O nome da exposição é o retirado do livro Moqueca de Marido: Mitos eróticos indígenas, de Beth Mindlin. “A publicação reúne vários contos sensuais, eróticos escatológicos, que eu trouxe para dentro da pesquisa. A catequização criou o tabu do pecado, com toda forma de punição, inclusive reprimindo a liberdade sexual, por exemplo, e isso traz traumas. O abuso é histórico, mas agora temos a possibilidade de reestruturar a sociedade indígena. É claro que sabendo o que ocorreu no passado e ainda acontece, é preciso que se faça a reconstrução, e que seja a partir de hoje”.

Denilson aponta o excesso de outros mitos vindos de fora, seja por conta da religião ou da cultura de massa. “Nesta exposição há trabalhos que falam de mitologias ainda ancestrais, um deles reconstrói a fala sobre a possibilidade de se encontrar o céu, um céu que a gente sabe que existe, mas não conhece, e que todo mundo fala que é bom”. Denilson comenta duas mitologias contidas nessa lenda. A primeira fala de uma festa no céu, onde só quem voasse poderia entrar. Um jabuti ouviu que o céu é divertido e quis ir, então se meteu na bolsa de um pássaro. Quando ele chegou lá não gostou do que viu, quis voltar, mas como não voa ficou por lá, escorregou e caiu na terra, por isso carcaça deles é achatada. “Quando a igreja católica chega e promete a nós a redenção no céu, ninguém entende que céu é esse, então a gente perde a força do nosso corpo e do pensamento que ficam à disposição desse tal céu. Esse trabalho fala desses possíveis céus que te escravizam”.

O antropólogo e cineasta Carlos Fausto, que assina a curadoria dessa mostra escreve em seu texto: “Denilson põe em cena as formas do comer, sexual e canibal, em que gente e bicho se misturam, a freira iluminada recebe um vibrador, a anta com seu enorme pênis dança colada à moça, um casal suga um espaguete de tripas e uma mulher devora delicada e sensualmente o braço do marido, deitada em sua rede-canoa estendida no infinito. Eu quero é moqueca!” Quando acabei de ler pensei, ufa! ainda bem que não me confundi com esse texto que tem a alma da exposição Forrobodó, cuja festa/vernissage aconteceu na matriz da A Gentil Carioca, em pleno centrão do Rio, com performances endiabradas com cara de carnaval antecipado.