Obra presente na exposição

A partir de diálogos iniciados entre o Instituto Inhotim e o Ipeafro em novembro de 2020, foi inaugurado em dezembro do ano seguinte o programa de exposições intitulado Abdias Nascimento e o Museu de Arte Negra. Abdias Nascimento (Franca, SP, 1914 – Sao Paulo, SP, 2011) é uma das principais referências de atuação crítica quando o assunto é luta antirracista. Foi poeta, escritor, dramaturgo, curador, artista plástico, professor universitário, pan-africanista, parlamentar e fundador do Teatro Experimental do Negro, projeto que idealizou o Museu de Arte Negra. Em oposição ao eurocentrismo nas artes, o MAN foi projetado por Abdias e companheiro dedicados à valorização da produção artística e do pensamento de pessoas negras e grupos minorizados. É composto por obras reunidas por Abdias de 1950 a 1968, depois no exílio, entre 1968 e 1981, e após o retorno ao Brasil. A diversidade e quantidade de obras e artistas reforça o caráter de articulador e comunicador próprios a Abdias.

Organizada por atos, a agenda se realiza tanto através de exposições semestrais do acervo do MAN, que ocupam a galeria Mata, do Instituto Inhotim, quanto exposições temporárias e o comissionamento de obras. Cada ato é presidido por um orixá: o Primeiro ato – Abdias Nascimento, Tunga e o Museu de Arte Negra, tomou como referência epistemológica a orixá Oxum, entidade da fertilidade e prosperidade, presente nas cores amarelas das paredes; o Segundo Ato: Dramas para negros e prólogo para brancos, foi presidido por Oxóssi, orixá do conhecimento; o Terceiro Ato: Sortilégio, trouxe Exu, orixá da comunicação; e, por fim, Quarto Ato – O Quilombismo: Documentos de uma Militância Pan-Africanista, está sendo apresentado em novembro de 2023, junto a Xangô, orixá da Justiça, como um anseio por reparação.

Fundamentado no conceito de “quilombismo”, proposta de mobilização sociopolítica a partir de perspectivas afro-diaspóricas elaborada por Abdias, o Quarto Ato apresenta momentos da trajetória de vida do autor mesclados com suas práticas de organização e articulação coletiva que resultaram na criação do Teatro Experimental do Negro (TEN) e no Museu de Arte Negra. Outros eixos da mostra do Instituto Inhotim falam sobre a Santa Hermandad Orquídea (1939), grupo de poetas que marcou a trajetória de Abdias, e as viagens ao continente africano (1974-77), onde buscava seus referenciais epistemológicos e estéticos. A última parte da exposição mostra obras do MAN que revelam o pensamento pan-africanista de Nascimento. Toda a mostra é habitada por trabalhos de diversos artistas pertencentes à coleção.

Giro, Luana Vitra

Como parte do programa, no último sábado (11/11) foi aberta ao público, também no Instituto Inhotim, a instalação Giro (2023), da artista Luana Vitra (Contagem, MG, 1995), comissionada pelo Inhotim como primeira ocupação da Galeria Marcenaria. Dois meses antes, ocorreu a abertura da impressionante instalação Pulmão da mina, comissionada para a 35ª Bienal de São Paulo, na qual Vitra utiliza o recurso de repetição para realizar uma oração pelas vidas humanas e não humanas perdidas em desastres durante atividades de mineração no período escravista. Com o seu olhar formado pelas cadeias de montanhas das paisagens distantes de Minas Gerais, a artista mineira segue permeada pelas histórias e poéticas locais na instalação Giro. A obra recebe este nome devido ao interesse de Vitra com o movimento do torno, que ao rodar uma matéria base como a madeira ou o barro, permite que a mesma seja moldada.

Ao entrar na galeria, que parece uma casa estreita e comprida com um único cômodo, nota-se a parede branca marcada de ponta a ponta por um caminho de pregos de ferro aplicados um ao lado do outro a formar a silhueta de montanhas mineiras. Sobre eles, pequenos vasos de cerâmica foram cuidadosamente posicionados. Próximas ao chão, pequenas flechas feitas de cobre apontam para o alto. Acima deste conjunto, um fino tecido azul transparente sobe a parede e cobre todo o teto da sala, como um véu a imantar o ambiente. Na borda do tecido, pequenas encruzilhadas feitas de cobre se repetem linearmente por toda a sala. Cobre, barro, pedra de minério de ferro, tecido e anil são os elementos que compõem a instalação de Luana para o Inhotim e vêm se repetindo em seus últimos trabalhos.

À direita do visitante, grandes urnas de cerâmica estão posicionadas sobre pedras de minério de ferro coletadas pela artista no Inhotim. De dentro de cada uma delas, sai uma grande flecha de cobre que aponta para o teto. No ano em que se completam quatro anos do rompimento da barragem em Brumadinho, Luana recupera desenhos que fez na ocasião do crime ambiental. Na época, desenhar as serras e cadeias montanhosas de Minas era, para a artista, como recuperar a paisagem local que vem desaparecendo. Compreendendo que o limite do olhar humano só permite observar um objeto distante até o ponto deste ser tomado pela cor branca, a artista escolhe a raspagem da cerâmica como procedimento poético para revelar montanhas com a cor do barro ao fundo. Neste sentido, retirar a cor branca da cerâmica e trazer à vista o marrom traz para a obra não apenas dimensões cromáticas, mas também sociais.

Seguindo o procedimento de escuta dos materiais, Vitra encontra maneiras de perceber o ferro, matéria local mais abundante e explorada. Sendo o cobre o segundo metal mais condutivo, as flechas apontadas para o alto sinalizam o sentido da energia, o que dá ao trabalho a potência de cura para os metais e para a terra local, em conexão com outros lugares do mundo onde a terra é explorada. A obra se conecta ainda a diversos outros trabalhos espalhados pelo museu e que possuem o ferro como principal elemento, como em Beam Drop Inhotim (2008), de Chris Burden, e Sonic Pavilion (2009), de Doug Aitken. Tendo Minas Gerais como lugar de afeto e ancestralidade, Luana Vitra cria na galeria Marcenaria uma instalação de fé, com o cuidado ético e estético de trabalhar com artistas mineiros e realizar uma prece coletiva para cura local.

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Maria Luiza Meneses é curadora independente e educadora. Graduanda em história da arte
pela UNIFESP, integra os coletivos RedLEHA, Nacional TROVOA e Rede Graffiteiras
Negras. Realiza o projeto Pinacoteca Digital Mauá (2019 – ), foi curadora das exposições
Travessias do moderno em Mauá (2022) e Resíduos Mundanos (2023). Foi assistente pessoal da curadora Diane Lima, atuando com ênfase em pesquisa, produção e curadoria durante a 35ª Bienal de São Paulo, Coreografias do Impossível (2022-2023). Possui textos publicados sobre arte contemporânea, artistas afro-brasileiros, cultura hip-hop, educação freireana e guerras culturais.

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