João de Jesus Paes Loureiro
Foto do professor João Pães Loureiro com o rio Guamá ao fundo

João Pães Loureiro nasceu em 1939, em Abaetetuba, cidade paraense situada à margem do Rio Tocantins, onde passou sua infância. Estudou Direito, Letras, Artes e Comunicação na Universidade Federal do Pará. Foi preso entre 1964 e 1970 em decorrência da sua militância política contra a ditadura militar. Muito depois tornou-se mestre em Teoria Literária e Semiologia pela PUC Campinas e doutor em Sociologia da Cultura pela Sorbonne, Paris, em 1990. Exerceu vários cargos públicos, tendo sido Secretário de Cultura do Pará, assim como criador e presidente do Instituto de Artes do Pará.
“A natureza havia no princípio. O homem veio depois. Confrontaram-se alternaram-se, modificaram-se, transfiguraram-se. Uma lenta perda da inocência e ingresso na história.” Assim começa seu livro tese, Cultura Amazônica – Uma poética do imaginário, publicado em 2015 pela Editora Valer, de Manaus.

Poeta, escritor e professor, Paes Loureiro é autor de vários ensaios sobre a cultura da região, dentre eles A conversão Semiótica na Arte e na Cultura. Loureiro pesquisa o significado dos espaços e dos objetos além das suas necessidades de uso, preocupado pela ressignificação simbólica que estes adquirem ao serem recebidos segundo diferentes hierarquias das funções neles contidas. A verdadeira construção cultural estaria dada, portanto, pela relação entre o homem e esse ajustamento.

Na História da Arte vimos vários movimentos – a pop-art, os happenings, o ready-made etc. – mudaram a hierarquia de objetos demostrando essa conversão semiótica, e Paes Loureiro mergulha nas origens da estética amazônica, tentando entender a construção dessas relações num espaço cuja historia é precedida de mitos, lendas, despojos, isolamento, habitada e invadida.

No capítulo Do olhar do índio ao do Caboclo – Um mesmo Percurso, (pág. 83), diz Loureiro:
“Na cosmologia indígena, quando os mitos se reportam à criação do mundo amazônico, na verdade, estão se referindo à criação do mundo”, à criação do planeta Terra. A primeira noite de tudo saiu do coração de um tucumã (pequeno coco de palmeira). (…) Pode se também recorrer a Nunes Pereira, no antológico Moronguetá – um decameron indígena: O sol, antigamente, era um moço forte e bonito (…) O sol bebeu todo o urucu e foi ficando com a cara vermelha como o urucu e a muirapiranga. Depois subiu para o céu e se meteu entre as nuvens. (1) (…) Há no mundo amazônico, a produção de uma verdadeira teogonía cotidiana. Revelando uma afetividade cósmica, o homem promove a conversão estetizante da realidade em signos, por meio dos labores do dia a dia, do diálogo comas marés, do companheirismo com as estrelas, sasolidariedade dos ventos que impulsionam as velas, da paciente amizade dos rios. (…) Um mundo único real e imaginário.”
A seguir, as palavras de Loureiro durante nosso encontro, no seu apartamento em Belém, no mês de novembro.

arte!✱ – Queria que você começasse nos contando quando e como foi que você iniciou sua pesquisa sobre as diferentes formas do encontro do homem e a natureza.

João de Jesus Paes Loureiro – Nasci numa cidade do interior do Pará, a cidade de Abaetetuba, que fica debruçada no rio Tocantins, num trecho chamado Baixo Tocantins, próximo de Belém. Lá nós temos em frente a cidade, mas fazendo parte do município uma reunião de 72 ilhas. Eu sempre lembro isso, porque essas ilhas são uma espécie de região mítica do nosso município. Ela é uma espécie de labirinto e, nesse lugar, íamos passar todos nós, eu e minhas irmãs, as férias. O meu pai veio de um dos rios dessas ilhas, do Rio Távora, e um tio nosso morava no Engenho Tucumã, em Tubarão, onde a garotada toda passava as férias de junho.

Curiosamente, foi lá que me refugiei da ditadura. Era jovem, tinha 20, 21 anos, e foi para lá que fugi, para me esconder em algum lugar que não pudesse ser visto, indo de casa em casa. Fiquei uma temporada escondido numa numa pensão da zona de meretrício aqui de Belém porque, digamos assim, não seria procurado lá. E depois eu fui para essas ilhas. Fiquei um tempo lá, até que eu não suportei aquele isolamento, aquela angústia, ouvindo as notícias de rádio que vinham de Belém, do Brasil. Decidi voltar porque eu estava no quinto ano de Direito e iria colar grau e eu não queria perder o curso.
Então eu voltei. Enfim, para simplificar, voltei para Belém. Fui preso. E depois fui para o Rio. Lá foi barra pesada, porque participava da União Nacional dos Estudantes e eu tinha uma presença muito, muito próxima no CPC, no Centro Popular de Cultura, onde íamos criar um programa nacional de valorização da escuta, da cultura, das artes, das diferentes regiões do Brasil.

Éramos uma comissão de cinco coordenadores. Entre outros, Ferreira Gullar, que era poeta de uma geração bem anterior à minha, a Teresa Aragão, que era mulher dele, ligada à questão de teatro, uma produtora muito ativa. Todos nós continuamos sendo e perseguidos em função disso. Para poder participar dessa coordenação eu precisava estar estudando na Faculdade Nacional de Direito.

Quando eu voltei para Belém para continuar no quinto ano de Direito, para poder me formar, estou falando de 1964, eu já trouxe a minha transferência assinada pelo ministro de Educação da época.

Estou colocando essas duas situações para que você perceba, primeiro, minha vinculação com a cultura ribeirinha, e, depois, a minha vinculação, através da vida acadêmica como estudante, com os movimentos de renovação do Brasil nessa época, que me deixaram sempre esse desejo, essa inquietação por uma sociedade igualitária, uma sociedade democrática, uma sociedade que tivesse uma universidade que fosse aberta cada vez mais para as pessoas. Tanto que quando estourou aqui a ditadura em Belém nós estávamos realizando o primeiro Congresso Latino-americano de Reforma Universitária. Tinha gente de Cuba, do Chile, gente da Argentina.

Percebi que todos os grandes textos, as teses que eu conheço e tudo sobre a Amazônia e a aplicação da Amazônia como motivo de teoria, acho que são de autores, sociólogos e antropólogos europeus. Que aplicam as matrizes deles para estudar o lugar, em vez de estudarem o lugar para criar uma matriz dele”

arte!✱ – Vamos voltar a essa forte presença da infância…

Sim, toda essa origem ribeirinha serviu para mim como uma forma de incorporar aquele tipo de comportamento do homem face à realidade. Primeiro, o respeito e o diálogo com a natureza. Depois, a vivência de uma forma de sabedoria, de experiências dos canoeiros, dos plantadores e das pessoas que enfim, conviviam com o rio de uma forma quase existencial. Hoje menos, mas na Amazônia profunda, na Amazônia mais distante de Belém e Santarém, ainda preside muito uma relação com o imaginário através da mitologia, através das lendas e através de uma forma de compreensão do mundo mesmo. Na Amazônia o imaginário é um fato social, algo compartilhado nas ruas e na convivência das pessoas.

arte!✱ – Isso tende a ser divulgado apenas como uma questão indígena…

Sim, mas é ribeirinha, indígena e rural, mas de maior intensidade a ribeirinha. Até porque costuma se fazer referência aqui a essa cultura, digamos assim, nascida na Amazônia, como sendo folclore, inclusive no mau sentido. Folclore no sentido de diminuição de importância cultural, científica. E isso é uma falácia. Nós não temos folclore no Brasil. O que foi catalogado como folclore brasileiro é o folclore trazido pelo colonizador, que foi incorporado e, digamos, se superpôs à cultura que já havia aqui. À cultura indígena, sobretudo. Foi mais uma forma de dominação cultural e religiosa. Mas o folclore, na verdade, no sentido meio científico e linguístico da palavra, nós não temos, o que nós temos é cultura popular. Pena que, quando se consagrou a chamada corrente folclorista no Brasil, depois da Semana de Arte Moderna e de 1930 para cá, quando começaram a se interessar cientificamente por buscar as diferenças originais pelas regiões, por descobrir o folclore brasileiro, caso do próprio Câmara Cascudo, que é um grande pesquisador disso, uma figura admirável, cometeu muitos erros com relação à Amazônia, porque ele nunca veio aqui. Ele, por exemplo, cataloga o Pássaro Junino, que é um teatro popular, musicado, criado pelo povo aqui, como folclore, confundido talvez com a ideia do Boi bumbá nordestino e tudo que é folclore europeu implantado no Nordeste.

arte!✱ – Por quê?

Porque ele não foi criado pelo povo nordestino!

arte!✱ – O Boi bumbá?

O Boi bumbá, não, veio com os portugueses, veio com os espanhóis que já tinham manifestações similares lá. Então, o boi, o nosso, ele tem as suas variantes, por exemplo, nós temos aqui um boi que é da cidade de São Caetano de Odielas, que é coreográfico apenas, que não tem enredo, que é como se fossem pierrôs e colombinas. No vestuário, o colorido é o boi, tem música, tem uma coreografia própria, mas não tem enredo, não tem fala. Esse (o bumbá) não é um boi, é coreográfico, porque sabemos quem inventou, sabemos as pessoas que continuaram cultivando e criando outros bois que eram semelhantes, chamando o boi de máscara. Porque as pessoas vão mascaradas. Aquele boi, por exemplo, lá de Parintins, o que é um boi tecnológico?

Um boi que ganhou o mundo também não é folclore. Ele tem raiz, claro, mas ele é uma variante com um autor definido, com pessoas que criaram e tem outra estrutura e tudo mais. Então há uma necessidade, por exemplo, de se distinguir nas regiões do Sul. É mais o folclore trazido pelo colonizador migrante. Sim, é. Eu não posso dizer que, por exemplo, a cultura indígena era folclore, a cultura indígena, a cultura legítima popular, do indígena.

Percebi que todos os grandes textos, as teses que eu conheço e tudo sobre a Amazônia e a aplicação da Amazônia como motivo de teoria, acho que são de autores, sociólogos e antropólogos europeus. Que aplicam as matrizes deles para estudar o lugar, em vez de estudarem o lugar para criar uma matriz dele. Reconhecer que no lugar existe também um pensamento. Existe também uma reflexão própria. Existe também uma experiência de vida refletida pela arte e mitologia.

arte!✱ – Sim. Você leciona na universidade. Como, através da educação, seria possível ampliar e respeitar estas vivências?

Não se tem estudos das questões amazônicas no sistema de ensino. As escolas particulares, em grande maioria, passaram a pertencer a grandes grupos nacionais, que vêm com as apostilas já criadas com modelos pre-estabelecidos.

Não é apenas nós criarmos “interpretações”, achando que, bebendo nessa fonte, vão se desentranhar coisas muito originais. Não. Eu, por exemplo, acho que nesses campi da universidade que estão se espalhando pelo Estado, todos, sejam da Federal, seja da estadual, começam a gerar dissertações e teses de pessoas que vivem no lugar certo, que têm pertencimento, que falam puro, coisas que gostam, que amam, que acreditam, que revelam uma vivência das quais se poderiam desenvolver inúmeros conteúdos.

E se aprofundar na cultura amazônica, numa poética do imaginário em diálogo com “a cultura mundo”. Entendo a cultura amazônica como uma coisa que vive na atualidade, não como uma história dela, do passado. Uma coisa que aconteceu, não. Eu acho que ela vive em diálogo com o mundo atual, e é através desse diálogo que mostra ainda sua presença viva.

Achei que bubuiar, ir de bubuia, dibubuiar, dibubuismo, revelavam a intercorrência de ação exterior com a interior, navegação e devaneio, sintoma de atitude reveladora de inteligente convivência do nativo com o ambiente e resolvi denominar esse ato de dibubuismo”

arte!✱ – E a ideia de “dibubuismo”, como surgiu?

Nessas minhas contemplações eu via passar, e não era jovem, já depois de adulto, no Baixo Amazonas, pedaços de terra deslocados da margem pela força do rio na enchente, que viravam uma ilha pequena. Uma ilha flutuante com árvores, com touceiras, troncos de um açaizeiro [palmeira do açaí], com cobras e também com garças que vão pousar nelas.
Via que muitas vezes o canoeiro que vinha remando na direção do seu trabalho ou para chegar na cidade, por exemplo, para comprar as coisas e voltar, ou para ir para o lugar onde ele podia pescar, enfim, coincidia de encontrar, indo na mesma direção, um desses marapatá ou periantã, que é o nome indígena.

Pois bem, então eu vi. Amarrava aquela canoa numa touceira daquelas, e, nessa aliança com a natureza, se deitava de chita, descansando. A reboque do periantã, seguia viagem tranquilo, boiando, ou bubuiando nas águas, como se diz na linguagem ribeirinha. Sem precisar fazer esforço de remar, uma vez que rebocado pela ilhota flutuante chegará aonde pretende sem gastar inutilmente suas energias. Fica pensando, se lembrando das suas histórias, do que ele quer fazer.

Esta seria uma espécie de atitude de você não desperdiçar sua energia quando em aliança com a natureza. E não é nem no momento de ócio. Ao se liberar do trabalho, você gera uma oportunidade para o outro tipo de trabalho.

Assim, achei que bubuiar, ir de bubuia, dibubuiar, dibubuismo, revelavam a intercorrência de ação exterior com a interior, navegação e devaneio, sintoma de atitude reveladora de inteligente convivência do nativo com o ambiente e resolvi denominar esse ato de dibubuismo. O dibubuismo difere do “ócio criativo” [conceito criado pelo italiano Domenico De Masi] porque não é uma reação ao trabalho prático. É uma alternância compatibilizadora com ele e parceria de harmonização com a natureza.
Jamais alguém poderia fazer isso com motosserra. Jamais alguém poderia fazer isso com um navio. Jamais. Então, essa foi, digamos assim, a gênese, a origem, digamos, experiencial, da construção desse conceito. ✱

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