Antônio Bispo dos Santos. Foto: Divulgação
Antônio Bispo dos Santos. Foto: Divulgação

Humanismo é uma palavra companheira da palavra desenvolvimento, cuja ideia é tratar os seres humanos como seres que querem ser criadores, e não criaturas da natureza, que querem superar a natureza”. Com uma frase tão simples quanto contundente, Antônio Bispo dos Santos, desmontou um dos conceitos da modernidade, o humanismo, quase unanimidade no campo progressista.

Às vezes é preciso que uma voz bastante fora do sistema, como é o caso do quilombola Nego Bispo, como ele costumava ser chamado, para que algumas certezas até então consolidadas passem por uma necessária revisão.

Nomes como os indígenas Ailton Krenak e Davi Kopenawa há décadas vêm apontando que o respeito e a convivência com a natureza são condições para se adiar o fim do mundo e evitar a queda do céu, mas a eles se juntou esse quilombola, com um desses livros básicos que se propõem a repensar a condição do própria planeta: A terra dá, a terra quer, publicado agora em 2023 pela editora Ubu junto com Piseagrama, e ilustrações de Santídio Pereira.

 "A terra dá, a terra quer"

Na publicação de 109 páginas, longe portanto de um tratado, Nego Bispo, que nasceu em 1959, traz uma série de conceitos a partir de sua experiência nos quilombo Saco Curtume, no município de São João do Piauí, sendo o primeiro de sua família a ser alfabetizado. Exercendo papel de liderança, atuou na Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Piauí, tendo vivido algum tempo em áreas urbanas.

“Fiquei na cidade grande por cerca de cinco anos, até chegar o momento em que compreendi que ali não era meu lugar. (…) A cidade não me cabe. Enquanto a sociedade é feita por posseiros, as nossas comunidades são feitas por pessoas. Na cidade, as pessoas tinham medo da gente. Nas comunidades (…) vivíamos tranquilos”, escreve ele em sua linguagem direta.

É central em seu pensamento, e certeiro em sua análise, toda a alienação e submissão ao medo, que é o que se tornou viver nas metrópoles, assim como a centralidade do sistema mercantilista em todas as áreas. “Os adultos da cidade brincavam de fazer as coisas e outros adultos pagavam para vê-los: era o que chamavam de teatro. Quando a arte vira mercadoria, passa a ser uma brincadeira de não fazer nada”, escreveu ele. E a conclusão é muito semelhante a tudo que se defendeu em arte desde os anos 1960, ou seja, que arte é vida, portanto não há razão para representação, é preciso simplesmente ser: “O teatro, assim como qualquer outro tipo de arte que é mercantilizada, bloqueia a conversa das almas, porque a arte é conversa das almas, a arte alimenta a vida, ela não pode ser mercadoria.”

Ilustrações de Santídeo Pereira,

Nego Bispo desconstrói várias certezas ao longo do livro a partir de conceitos inovadores como “afroconfluentes”, “confluências” e “contracolonialismo”, repensando até mesmo projetos sociais de repercussão como as moradias de Minha Casa, minha vida”, que, em sua visão, ignora conhecimentos e práticas locais para padronizar um tipo de habitação “colonizadora”.

Não é só no livro que Nego Bispo repassa seus petardos contra a decadência da civilização monoteísta ocidental. No episódio 81 de Confluências – o podcast da ocareté, ele apontou como até mesmo o ensino público é problemático: “A educação pública é colonialismo, escolas públicas não ensinam o que se precisa para viver na Caatinga, na Amazonia. Escolas públicas só ensinam a viver nas grandes cidades, na lógica industrial, mercadológica, sintética”, conta.

Em um momento que a democracia volta a se normalizar no país, vozes como Nego Bispo são essenciais para avançar em uma agenda que repense conceitos e pensamentos que nem as universidades, nem os partidos políticos estão dando conta de abarcar.

 

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