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Mundo (quase) mágico

Urna Marajoara | Museu Paraense Emílio Goeldi
Urna Marajoara estilo Joanes. Réplica em tamanho original de uma urna funerária marajoara do estilo Joanes pintado, com pintura polícroma em preto, vermelho e engobo branco e rico detalhamento de formas, cores e grafismos, misturando elementos humanos e não humanos. Coletores da peça original: Betty Meggers, Clifford Evans e Peter Hilbert

Na ocasião da visita à Bienal das Amazônias, no mês de novembro de 2023, em Belém, no Pará, tivemos a oportunidade de adentrar-nos num mundo quase mágico, construído pelo trabalho de equipes dedicadas à pesquisa e conservação de uma parte substancial da história do Brasil, não apenas sustentada em documentação, como por centenas de vestígios coletados por especialistas arqueólogos – escavadores, que revelaram uma riqueza milenar.

O Museu Paraense Emílio Goeldi é uma instituição de pesquisa vinculada ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações do Brasil. Está localizado na cidade de Belém, Estado do Pará, região amazônica. Desde sua fundação, em 1866, suas atividades concentram-se no estudo científico dos sistemas naturais e socioculturais da Amazônia, bem como na divulgação de conhecimentos e acervos relacionados à região.

A instituição guarda uma das maiores e mais antigas coleções de arqueologia amazônica do Brasil e do mundo e já emprestou várias peças fundamentais para museus internacionais, como o Museu Britânico de Arqueologia ou o Museu Etnográfico de Berlim.

Ao nos receber, a Dra. Helena Pinto Lima – arqueóloga, pesquisadora titular do museu, onde atua também como curadora da coleção arqueológica e professora do programa de pós-graduação em Diversidade Sociocultural – contextualiza para nós os desafios e objetivos do Emílio Goeldi:

“Em meados dos anos 1950, 1960, construiu-se a ideia de que a Amazônia é vazia, uma floresta pronta para ser ocupada, um lugar para ser colonizado. Sob o argumento de que aqui a floresta não daria conta de sustentar, do ponto de vista de proteína de alimentação, grandes civilizações como as dos incas, ou as da América Central, por exemplo. Do ponto de vista da antropologia e da arqueologia, as comunidades, os povos indígenas dos anos 1940, 1950 e 1960, quando começaram a ser melhor documentados, estavam num dos momentos mais críticos da história, com muitas epidemias, violência colonial e pós-colonial. Nesse momento as comunidades estavam minguando.

Com um ethos em que predominam ontologias perspectivistas e práticas xamânticas de transformação corporal”

O certo é que a floresta, tal como a conhecemos, a biodiversidade é fruto das ocupações humanas, fruto da sociobiodiversidade, das interações entre essas comunidades, esses povos e a floresta. As terras pretas, a Terra Preta de Índio é um solo extremamente fértil, procurado até hoje em dia para agricultura, para roça.

São resultados de produção intencional. E isso foi um processo de gerações e gerações. São 13 mil anos de história de povos e floresta e rio. A gente tem na Amazônia as cerâmicas mais antigas das Américas, que estão na região de Santarém, que são cerâmicas de capelinha, no Sambaqui, inclusive. Estudamos hoje uma história de inovação cultural, de tecnologias, criação de tecnologia, de manejo de floresta, manejo de engenharia de terra, construção de textos etc. As evidências de diferentes partes da Amazônia revelam tecnologias sofisticadas de transformação da natureza. Com nossas pesquisas hoje, temos o trabalho, a tarefa de desmontar, de recriar e recontar essa história.”

Na publicação conjunta do Iphan e o MPEG, de 2016, Cerâmicas arqueológicas da Amazônia – Rumo a uma nova síntese, as organizadoras – Cristiana Barreto, Helena Pinto Lima e Carla Jaimes Betancourt – descrevem a história das cerâmicas da Amazônia, a classe mais abundante de vestígios arqueológicos, subindo o rio Amazonas, trazendo estudos e reflexões de diversos sítios cerâmicos de cada região e tentando entender as suas diferentes tecnologias para posteriormente trabalhar na reconstrução destas tradições ancestrais. No museu existem oficinas de restauro e reprodução de peças, altamente capacitadas.

“Toda arte impõe uma forma a uma matéria. Mas entre as artes ditas da civilização, a cerâmica é provavelmente aquela na qual a passagem entre a matéria prima e o produto, se dá de forma mais direta, com menos etapas intermediárias entre a matéria-prima e o produto, saído das mãos do artesão já formado, antes mesmo de submetido a queima.” (Claude Lévi-Strauss, 1985:235) (pág. 20)

As vasilhas tiveram diferentes papéis: consumo de bebidas e alimentos, mídia para compartilhar e transmitir ideias através de imagens pintadas, gravadas ou modeladas em suas paredes, urnas funerárias capazes de preservar os restos humanos ou representações de um lugar simbólico, como a demarcação de territórios sagrados. Todas trazem diferenças nas pastas e argilas utilizadas, na queima, torração ou oxidação, já que pertencem a territórios e grupos sociais diferentes.
Hoje se sabe, por meio destas e de outras pesquisas, que vestígios encontrados por escavadores datam de até 13mil anos atrás. No caso das cerâmicas da Amazônia, elas estão entre as mais antigas das Américas. “Se considerarmos as datações de Taperinha, no Baixo Amazonas (remontando a ca. de 8000 AP), e da Tradição Mina, no litoral do Pará, (remontando a ca. de 6000 AP).” (pág.23)

Dentre os diferentes grupos, as cerâmicas Marajoaras foram das mais estudadas da Amazônia. À diferença das cerâmicas andinas ou mesoamericanas, em que as representações de cultivos são comuns, na iconografia das cerâmicas Marajoaras enfatizam-se corpos animais e humanos. “Com um ethos em que predominam ontologias perspectivistas e práticas xamânticas de transformação corporal (Viveiros de Castro, 2002).”

Replicando o passado, cortesia do Museu Goeldi
Replicando o passado, cortesia do Museu Goeldi

Estas cerâmicas pertencentes à Tradição Polícroma – que se expande ao longo de 6.600 km em distintos pontos da bacia amazônica e, cronologicamente, por mais de 1000 anos – possuem técnicas decorativas, enorme repertório de símbolos, a determinação de certas partes de animais como cobras e escorpiões no lugar de olhos e braços, constituindo exemplos claros da vivência cosmogônica, homem-natureza, da Amazônia.
Há uma infinidade de grupos estilísticos, com diferentes particularidades: as das guianas; as do complexo do Amapá; a cerâmica Mina do Pará, as do Maranhão; as do Tupi Guarani no Baixo Amazonas; do Baixo Xingu Guarani, Médio-Baixo Xingu, Volta Grande do Xingu, Foz do Xingu, Alto Xingu, as de Açatuba e Manacapuru, da Amazônia Central, do Caiambé no Lago Amanã, no meio Solimões.

Dentre tantas, as da cultura de Santarém e Baixo Tapajós pertencem a sociedades indígenas que habitaram a região entre os séculos VIII ou IX até XIX, no período pós-colonial, marcando, a partir daí, culturas híbridas. Mais recentemente estudadas, possuem uma diferença substancial das outras, apresentando, por exemplo, nos denominados vasos de cariátides, iconografias e esculturas de elementos zoomorfos (cabeças de urubus) e antropomorfos (figuras femininas sentadas) desenhadas e aderidas às suas bordas.

Souza Lima (2020), construiu a história de vida de uma urna marajoara que foi historicamente individualizada e descontextualizada

O desafio e as estratégias para dialogar com a memória
Em Devires para a diversidade no campo museal, artigo que faz parte do projeto Arqueologias, materialidades e paisagens entre os povos da floresta, Helena Pinto Lima coloca uma das maiores preocupações dos acadêmicos e curadores na contemporaneidade:
“Qual é o papel do museu nos atuais tempos de crise, tempos de transformação? Essa é uma discussão não somente pertinente, mas latente no campo dos museus, mundialmente. Produtos da lógica eurocêntrica e da empresa colonial, os museus operaram historicamente nas rememorações coletivas e no esquecimento seletivo a serviço de tal empreita nacional. Apesar dos importantes avanços sociais liderados pela nova museologia da década de 1970, só mais recentemente a problemática da descolonização ganha mais espaço nas práticas, alinhada com reivindicações identitárias hoje em voga. Junto com o Conselho Internacional de Museus (ICOM), estamos enquanto sociedade na busca de uma nova definição de museu que se enquadre melhor a este contexto. A consulta pública à comunidade museal mundial expressa um vislumbre deste novo lugar dos museus, agora e para o futuro. A nova de definição de Museu, aprovada em Praga em 2022, expressa bem essa ideia:

“Um museu é uma instituição permanente, sem fins lucrativos e ao serviço da sociedade que pesquisa, coleciona, conserva, interpreta e expõe o patrimônio material e imaterial. Abertos ao público, acessíveis e inclusivos, os museus fomentam a diversidade e a sustentabilidade. Com a participação das comunidades, os museus funcionam e comunicam de forma ética e profissional, proporcionando experiências diversas para educação, fruição, reflexão e partilha de conhecimentos. (ICOM, 2022)

(…) “A curadoria arqueológica é, por definição, um campo investigativo interdisciplinar. Ela integra arqueologia, museologia, conservação, educação e outras áreas, para nós, de salvaguarda, pesquisa, ensino e divulgação de acervos. Saliento que a curadoria é também potencialmente um campo fértil para a pesquisa intercultural. E é esta a ideia, a de fertilização interdisciplinar e intercultural da curadoria arqueológica, que pretendo abordar neste texto. O foco de reflexão se situa nas inter-relações entre comunidades, materialidades, e as coleções arqueológicas musealizadas.”

(…)“Com vistas a “acordar” os objetos na reserva técnica à novas possibilidades de geração de conhecimento, os estudos para reconexão de acervos (tridimensionais e documentais) e sujeitos têm guiado nossas iniciativas enquanto diretriz para pesquisa e gestão. Para as urnas funerárias Maracá, Lucas Silva, aluno de museologia da UFPA (Universidade Federal do Pará) desenvolveu uma pesquisa de forma a reconectar urnas funerárias com os remanescentes humanos, e aos contextos em que foram originalmente encontradas (SILVA et al., 2021). Aqui (no MPEG), os corpos cerâmicos estão sendo reunidos aos seus corpos biológicos (osteológicos), devolvendo a individualidade de cada um destes sujeitos Maracá que hoje habita a reserva técnica”. (PR: Aqui a dra. Helena se refere a uma das salas especiais construídas no museu, fechada ao público, devidamente climatizada, proibida de ser fotografada, onde mais de 200 urnas funerárias, estão expostas sobre uma plataforma e, embaixo, em gaveteiros catalogados, jazem os restos osteológicos referentes a cada uma”

(…) “Com as cerâmicas marajoaras, a abordagem rendeu importantes reflexões sobre a dispersão, ou êxodos, de enormes coleções do Marajó distribuídas por vários museus, bem como sobre o ato de exibir estes itens funerários para o grande público.” (…) Neste mesmo contexto, Simas nos provoca a refletir sobre questões complexas relacionadas com a conservação e gestão dessas coleções, doações e descontextualização de acervos, políticas de empréstimo e partilha de coleções de objetos formados por fragmentos ao cuidado de diferentes instituições.” (IDEM).

Anita Ekman: Tupi or not Tupi.
Anita Ekman: Tupi or not Tupi. Como se deve (re)escrever a história do Brasil. 2022. Série Ocre Marajó – Museu Paraense Emílio Goeldi. Fotogra a de Edu Simões. A série integra a pesquisa curatorial do projeto Ore ypy rã – Tempo de Origem, de Sandra Benites e Anita Ekman. Realizado com a Bolsa de Artes Visuais -2021 concedida pelo Instituto Goethe e Consulado da França no Rio de Janeiro. A obra foi exposta na mostra “Deep Marajó : Contemporary Marajoara Ceramic” no Americas Society em Nova York (jan-jul 2023) e foi exposta na Bienal das Amazônias em Belém (ago-nov 2023).

Souza Lima (2020), construiu a história de vida de uma urna marajoara que foi historicamente individualizada e descontextualizada (SOUZA LIMA, et al., 2020), bem como analisou o processo de reprodução de sua imagem em diversos suportes no Marajó e a feitura de uma réplica artesanal dela na reserva técnica (SOUZA LIMA, 2023). De fato, a proposta de construir histórias de vida (de pessoas e de objetos, ambos entendidos como sujeitos) a partir do acervo tem mostrado um enorme potencial.
Aqui, por exemplo, as fotografias da Performance de Anita Ekman (pintura corporal com carimbos marajoara e ocre) com Urna Marajoara (estilo Joanes) no Museu Paraense Emílio Goeldi, 2022.

“Para além dos muros da reserva técnica vejo igualmente importante explorar, in loco, a experiência sensível do mundo material dos objetos e das paisagens construídas, enquanto lugares significados, para nos aproximarmos mais das complexas teias de relações entre essas materialidades e as sociedades humanas, no presente e no passado. Para isso, os métodos convencionais da arqueologia e ciências sozinhos, são insuficientes para revelar elementos latentes do universo material que são, em alguns casos, essenciais para entender os conhecimentos, conceitos e práticas indígenas e de outros povos da floresta amazônica.”

É preciso dizer que as cerâmicas, e outros vestígios arqueológicos, falam e têm muito a nos dizer. Cabe a nós saber escutá-los.

Arte sem fronteiras

Miguel Penha, Igarapé / Bienal das Amazônias
Miguel Penha, Igarapé. Foto: Patricia Rousseaux

Por Vânia Leal*

Nasci às margens do Rio Amazonas, em Macapá, no Amapá. Ser conterrânea fortalece o vínculo que tenho com a região Norte do Brasil porque este rio foi o primeiro que me levou a navegar por outras águas que me trouxeram à 1ª Bienal das Amazônias. Evento que já inicia com abordagens do próprio lugar e nos convoca para uma construção discursiva acerca da complexidade de distintos ecossistemas que formam o bioma, como florestas densas de terra firme, florestas estacionais, florestas de igapó, campos alagados, várzeas e formações pioneiras que, naturalmente, constituem os múltiplos tempos do espaço amazônico.

Debater e refletir arte na Amazônia requer a compreensão desse espaço geográfico de diferentes épocas e ambiências. A partir desses diferentes, o geógrafo e escritor brasileiro Milton Santos se torna uma inspiração pessoal quando diz sobre tempos onde convivem, simultaneamente, diferentes temporalidades. É com essa referência que sigo a jornada atenta à urgência de repensar e decolonizar o espaço da arte enquanto lugar que pode ser ocupado por corpos de artistas diversos, compreendendo a perspectiva intercultural do Brasil. 

Valorizar a produção de artistas nas Amazônias aqui e agora também é evidenciar um corpo amazônida de multiplicidade de povos indígenas, negros, afro-indígenas, caboclos ribeirinhos, mulheres, quilombolas, corpo LGBTQIAPN+ e de outros artistas que estão cravados na floresta. Todos com distintas nuances aliados a uma linguagem pessoal, que potencializam esse espaço da arte – não como um ambiente estanque, mas como um território de ocupação resistente aos processos coloniais e que se reinventam potencialmente com o diálogo entre as culturas, que não se dá num vazio de relações sociais e de poder.

Além da riqueza da biodiversidade amazônica, ressalta-se a diversidade cultural existente no Norte. Realidade que deve nos conscientizar de que existem Amazônias e amazônidas e o desafio em pensar a região como uma extensa floresta tropical úmida e complexa, com uma área equivalente a 8 milhões de km2, como se fosse homogênea implica tornar invisíveis ecossistemas habitados por diversos povos e suas territorialidades ancestrais, que aliam experiências próprias com as ambiências dos lugares de origem.

O lugar do sujeito artista produzindo arte nas Amazônias com o sentimento de pertencimento do lugar, com atitude e olhar de dentro para fora, cria diferenciadas experiências de práticas artísticas. Cada uma advinda com o conhecimento intrínseco que acontece, por vezes, através de tensões, violências, intimidade, aproximações e distanciamentos. Infindáveis narrativas que visibilizam o seu potencial político e cultural sem enrijecimentos dos modos de vida. As narrativas não são fantasiosas, são reais.

Neste sentido, a bienal aponta que é imprescindível não desperdiçar o grandioso acervo de conhecimentos e os complexos tecnológicos dos povos que habitam a região Norte do Brasil. Apostar na pluriculturalidade é necessário, no diálogo de saberes e práticas para qualquer projeto de futuro da Amazônia. Importante ressaltar que o conhecimento e a intimidade com a natureza para os povos que aqui habitam é condição do viver. Não há fazer sem sentir e saber. 

Evna Moura, Brasil, Pará, Orí da série “Água”, 2017. Fotoperformance
Evna Moura, Brasil, Pará, Orí da série “Água”, 2017. Fotoperformance.
Foto: Patricia Rousseaux

Amazônias na Bienal

Diante disso, é inegável a importância da 1ª Bienal das Amazônias ao trazer visibilidade ao que as Amazônias têm projetado e produzido com artistas já consolidados no circuito das artes e outros com novas produções que estão surgindo. O evento abre caminhos de descentralizações oportunas de produção e fruição sensível a todas as regiões que compreendem as Amazônias como um território transcultural, com potencial para constantes trocas de experiências com outros lugares do país.

Nesta perspectiva, a representatividade na produção dos artistas do território da Amazônia brasileira – nas cidades que fazem parte do território amazônico previsto em lei (Amazônia Legal), que compõem esta edição do evento, de forma alguma é alicerçada por uma história única e alienígena. Pensar nesta possibilidade é reforçar um imaginário regional exotizado amparado por oposições semânticas que não cabem. 

Por exemplo: centro e periferia, pois chegará o dia em que entenderemos que não há “centro” e, como diz o escritor e teórico da arte brasileira Ariano Suassuna, “ao redor do buraco, tudo é beira”. Outro ponto de atenção importante é persistir no pensamento da existência de um fazer artístico Amazônico como algo modelado esteticamente. Tais afirmativas, além de nivelar as multifacetadas diferenças culturais e territoriais, é o disparador de um pensamento colonial. 

Acredito que visibilizar o potencial político, social, intelectual e cultural da produção artística das Amazônias é premissa necessária na agenda. Tentar padronizar a arte produzida nas Amazônias é fazer o caminho inverso que diz respeito à relação com a natureza. Os artistas, os povos amazônicos e os espíritos florestânicos são guardiões e não importam modelos e relações. Colocam-se como interlocutores em qualquer debate sobre o futuro da região e do mundo. Afinal, a arte nos ensina a ver e fortalece a existência.

Por sua vez, os artistas lançam o convite para conhecer a vida pulsante desses territórios. Compreender o jeito de ser dos povos daqui é o início dessa jornada para escutar e vivenciar as infindáveis histórias que transbordam nos cantos, pajelanças, ciência caseira, rezas das benzedeiras, alternâncias de marés, festas coloridas, florestas, águas, cheiros, danças, mulheres erveiras e tantas outras experiências significativas. Como cabocla tucuju do Amapá, reforço a nossa amorosidade desejante para que estejamos em comunhão. É o que me move na arte e na vida.

*Curadora da primeira Bienal das Amazônias

Poética do Imaginário

João de Jesus Paes Loureiro
Foto do professor João Pães Loureiro com o rio Guamá ao fundo

João Pães Loureiro nasceu em 1939, em Abaetetuba, cidade paraense situada à margem do Rio Tocantins, onde passou sua infância. Estudou Direito, Letras, Artes e Comunicação na Universidade Federal do Pará. Foi preso entre 1964 e 1970 em decorrência da sua militância política contra a ditadura militar. Muito depois tornou-se mestre em Teoria Literária e Semiologia pela PUC Campinas e doutor em Sociologia da Cultura pela Sorbonne, Paris, em 1990. Exerceu vários cargos públicos, tendo sido Secretário de Cultura do Pará, assim como criador e presidente do Instituto de Artes do Pará.
“A natureza havia no princípio. O homem veio depois. Confrontaram-se alternaram-se, modificaram-se, transfiguraram-se. Uma lenta perda da inocência e ingresso na história.” Assim começa seu livro tese, Cultura Amazônica – Uma poética do imaginário, publicado em 2015 pela Editora Valer, de Manaus.

Poeta, escritor e professor, Paes Loureiro é autor de vários ensaios sobre a cultura da região, dentre eles A conversão Semiótica na Arte e na Cultura. Loureiro pesquisa o significado dos espaços e dos objetos além das suas necessidades de uso, preocupado pela ressignificação simbólica que estes adquirem ao serem recebidos segundo diferentes hierarquias das funções neles contidas. A verdadeira construção cultural estaria dada, portanto, pela relação entre o homem e esse ajustamento.

Na História da Arte vimos vários movimentos – a pop-art, os happenings, o ready-made etc. – mudaram a hierarquia de objetos demostrando essa conversão semiótica, e Paes Loureiro mergulha nas origens da estética amazônica, tentando entender a construção dessas relações num espaço cuja historia é precedida de mitos, lendas, despojos, isolamento, habitada e invadida.

No capítulo Do olhar do índio ao do Caboclo – Um mesmo Percurso, (pág. 83), diz Loureiro:
“Na cosmologia indígena, quando os mitos se reportam à criação do mundo amazônico, na verdade, estão se referindo à criação do mundo”, à criação do planeta Terra. A primeira noite de tudo saiu do coração de um tucumã (pequeno coco de palmeira). (…) Pode se também recorrer a Nunes Pereira, no antológico Moronguetá – um decameron indígena: O sol, antigamente, era um moço forte e bonito (…) O sol bebeu todo o urucu e foi ficando com a cara vermelha como o urucu e a muirapiranga. Depois subiu para o céu e se meteu entre as nuvens. (1) (…) Há no mundo amazônico, a produção de uma verdadeira teogonía cotidiana. Revelando uma afetividade cósmica, o homem promove a conversão estetizante da realidade em signos, por meio dos labores do dia a dia, do diálogo comas marés, do companheirismo com as estrelas, sasolidariedade dos ventos que impulsionam as velas, da paciente amizade dos rios. (…) Um mundo único real e imaginário.”
A seguir, as palavras de Loureiro durante nosso encontro, no seu apartamento em Belém, no mês de novembro.

arte!✱ – Queria que você começasse nos contando quando e como foi que você iniciou sua pesquisa sobre as diferentes formas do encontro do homem e a natureza.

João de Jesus Paes Loureiro – Nasci numa cidade do interior do Pará, a cidade de Abaetetuba, que fica debruçada no rio Tocantins, num trecho chamado Baixo Tocantins, próximo de Belém. Lá nós temos em frente a cidade, mas fazendo parte do município uma reunião de 72 ilhas. Eu sempre lembro isso, porque essas ilhas são uma espécie de região mítica do nosso município. Ela é uma espécie de labirinto e, nesse lugar, íamos passar todos nós, eu e minhas irmãs, as férias. O meu pai veio de um dos rios dessas ilhas, do Rio Távora, e um tio nosso morava no Engenho Tucumã, em Tubarão, onde a garotada toda passava as férias de junho.

Curiosamente, foi lá que me refugiei da ditadura. Era jovem, tinha 20, 21 anos, e foi para lá que fugi, para me esconder em algum lugar que não pudesse ser visto, indo de casa em casa. Fiquei uma temporada escondido numa numa pensão da zona de meretrício aqui de Belém porque, digamos assim, não seria procurado lá. E depois eu fui para essas ilhas. Fiquei um tempo lá, até que eu não suportei aquele isolamento, aquela angústia, ouvindo as notícias de rádio que vinham de Belém, do Brasil. Decidi voltar porque eu estava no quinto ano de Direito e iria colar grau e eu não queria perder o curso.
Então eu voltei. Enfim, para simplificar, voltei para Belém. Fui preso. E depois fui para o Rio. Lá foi barra pesada, porque participava da União Nacional dos Estudantes e eu tinha uma presença muito, muito próxima no CPC, no Centro Popular de Cultura, onde íamos criar um programa nacional de valorização da escuta, da cultura, das artes, das diferentes regiões do Brasil.

Éramos uma comissão de cinco coordenadores. Entre outros, Ferreira Gullar, que era poeta de uma geração bem anterior à minha, a Teresa Aragão, que era mulher dele, ligada à questão de teatro, uma produtora muito ativa. Todos nós continuamos sendo e perseguidos em função disso. Para poder participar dessa coordenação eu precisava estar estudando na Faculdade Nacional de Direito.

Quando eu voltei para Belém para continuar no quinto ano de Direito, para poder me formar, estou falando de 1964, eu já trouxe a minha transferência assinada pelo ministro de Educação da época.

Estou colocando essas duas situações para que você perceba, primeiro, minha vinculação com a cultura ribeirinha, e, depois, a minha vinculação, através da vida acadêmica como estudante, com os movimentos de renovação do Brasil nessa época, que me deixaram sempre esse desejo, essa inquietação por uma sociedade igualitária, uma sociedade democrática, uma sociedade que tivesse uma universidade que fosse aberta cada vez mais para as pessoas. Tanto que quando estourou aqui a ditadura em Belém nós estávamos realizando o primeiro Congresso Latino-americano de Reforma Universitária. Tinha gente de Cuba, do Chile, gente da Argentina.

Percebi que todos os grandes textos, as teses que eu conheço e tudo sobre a Amazônia e a aplicação da Amazônia como motivo de teoria, acho que são de autores, sociólogos e antropólogos europeus. Que aplicam as matrizes deles para estudar o lugar, em vez de estudarem o lugar para criar uma matriz dele”

arte!✱ – Vamos voltar a essa forte presença da infância…

Sim, toda essa origem ribeirinha serviu para mim como uma forma de incorporar aquele tipo de comportamento do homem face à realidade. Primeiro, o respeito e o diálogo com a natureza. Depois, a vivência de uma forma de sabedoria, de experiências dos canoeiros, dos plantadores e das pessoas que enfim, conviviam com o rio de uma forma quase existencial. Hoje menos, mas na Amazônia profunda, na Amazônia mais distante de Belém e Santarém, ainda preside muito uma relação com o imaginário através da mitologia, através das lendas e através de uma forma de compreensão do mundo mesmo. Na Amazônia o imaginário é um fato social, algo compartilhado nas ruas e na convivência das pessoas.

arte!✱ – Isso tende a ser divulgado apenas como uma questão indígena…

Sim, mas é ribeirinha, indígena e rural, mas de maior intensidade a ribeirinha. Até porque costuma se fazer referência aqui a essa cultura, digamos assim, nascida na Amazônia, como sendo folclore, inclusive no mau sentido. Folclore no sentido de diminuição de importância cultural, científica. E isso é uma falácia. Nós não temos folclore no Brasil. O que foi catalogado como folclore brasileiro é o folclore trazido pelo colonizador, que foi incorporado e, digamos, se superpôs à cultura que já havia aqui. À cultura indígena, sobretudo. Foi mais uma forma de dominação cultural e religiosa. Mas o folclore, na verdade, no sentido meio científico e linguístico da palavra, nós não temos, o que nós temos é cultura popular. Pena que, quando se consagrou a chamada corrente folclorista no Brasil, depois da Semana de Arte Moderna e de 1930 para cá, quando começaram a se interessar cientificamente por buscar as diferenças originais pelas regiões, por descobrir o folclore brasileiro, caso do próprio Câmara Cascudo, que é um grande pesquisador disso, uma figura admirável, cometeu muitos erros com relação à Amazônia, porque ele nunca veio aqui. Ele, por exemplo, cataloga o Pássaro Junino, que é um teatro popular, musicado, criado pelo povo aqui, como folclore, confundido talvez com a ideia do Boi bumbá nordestino e tudo que é folclore europeu implantado no Nordeste.

arte!✱ – Por quê?

Porque ele não foi criado pelo povo nordestino!

arte!✱ – O Boi bumbá?

O Boi bumbá, não, veio com os portugueses, veio com os espanhóis que já tinham manifestações similares lá. Então, o boi, o nosso, ele tem as suas variantes, por exemplo, nós temos aqui um boi que é da cidade de São Caetano de Odielas, que é coreográfico apenas, que não tem enredo, que é como se fossem pierrôs e colombinas. No vestuário, o colorido é o boi, tem música, tem uma coreografia própria, mas não tem enredo, não tem fala. Esse (o bumbá) não é um boi, é coreográfico, porque sabemos quem inventou, sabemos as pessoas que continuaram cultivando e criando outros bois que eram semelhantes, chamando o boi de máscara. Porque as pessoas vão mascaradas. Aquele boi, por exemplo, lá de Parintins, o que é um boi tecnológico?

Um boi que ganhou o mundo também não é folclore. Ele tem raiz, claro, mas ele é uma variante com um autor definido, com pessoas que criaram e tem outra estrutura e tudo mais. Então há uma necessidade, por exemplo, de se distinguir nas regiões do Sul. É mais o folclore trazido pelo colonizador migrante. Sim, é. Eu não posso dizer que, por exemplo, a cultura indígena era folclore, a cultura indígena, a cultura legítima popular, do indígena.

Percebi que todos os grandes textos, as teses que eu conheço e tudo sobre a Amazônia e a aplicação da Amazônia como motivo de teoria, acho que são de autores, sociólogos e antropólogos europeus. Que aplicam as matrizes deles para estudar o lugar, em vez de estudarem o lugar para criar uma matriz dele. Reconhecer que no lugar existe também um pensamento. Existe também uma reflexão própria. Existe também uma experiência de vida refletida pela arte e mitologia.

arte!✱ – Sim. Você leciona na universidade. Como, através da educação, seria possível ampliar e respeitar estas vivências?

Não se tem estudos das questões amazônicas no sistema de ensino. As escolas particulares, em grande maioria, passaram a pertencer a grandes grupos nacionais, que vêm com as apostilas já criadas com modelos pre-estabelecidos.

Não é apenas nós criarmos “interpretações”, achando que, bebendo nessa fonte, vão se desentranhar coisas muito originais. Não. Eu, por exemplo, acho que nesses campi da universidade que estão se espalhando pelo Estado, todos, sejam da Federal, seja da estadual, começam a gerar dissertações e teses de pessoas que vivem no lugar certo, que têm pertencimento, que falam puro, coisas que gostam, que amam, que acreditam, que revelam uma vivência das quais se poderiam desenvolver inúmeros conteúdos.

E se aprofundar na cultura amazônica, numa poética do imaginário em diálogo com “a cultura mundo”. Entendo a cultura amazônica como uma coisa que vive na atualidade, não como uma história dela, do passado. Uma coisa que aconteceu, não. Eu acho que ela vive em diálogo com o mundo atual, e é através desse diálogo que mostra ainda sua presença viva.

Achei que bubuiar, ir de bubuia, dibubuiar, dibubuismo, revelavam a intercorrência de ação exterior com a interior, navegação e devaneio, sintoma de atitude reveladora de inteligente convivência do nativo com o ambiente e resolvi denominar esse ato de dibubuismo”

arte!✱ – E a ideia de “dibubuismo”, como surgiu?

Nessas minhas contemplações eu via passar, e não era jovem, já depois de adulto, no Baixo Amazonas, pedaços de terra deslocados da margem pela força do rio na enchente, que viravam uma ilha pequena. Uma ilha flutuante com árvores, com touceiras, troncos de um açaizeiro [palmeira do açaí], com cobras e também com garças que vão pousar nelas.
Via que muitas vezes o canoeiro que vinha remando na direção do seu trabalho ou para chegar na cidade, por exemplo, para comprar as coisas e voltar, ou para ir para o lugar onde ele podia pescar, enfim, coincidia de encontrar, indo na mesma direção, um desses marapatá ou periantã, que é o nome indígena.

Pois bem, então eu vi. Amarrava aquela canoa numa touceira daquelas, e, nessa aliança com a natureza, se deitava de chita, descansando. A reboque do periantã, seguia viagem tranquilo, boiando, ou bubuiando nas águas, como se diz na linguagem ribeirinha. Sem precisar fazer esforço de remar, uma vez que rebocado pela ilhota flutuante chegará aonde pretende sem gastar inutilmente suas energias. Fica pensando, se lembrando das suas histórias, do que ele quer fazer.

Esta seria uma espécie de atitude de você não desperdiçar sua energia quando em aliança com a natureza. E não é nem no momento de ócio. Ao se liberar do trabalho, você gera uma oportunidade para o outro tipo de trabalho.

Assim, achei que bubuiar, ir de bubuia, dibubuiar, dibubuismo, revelavam a intercorrência de ação exterior com a interior, navegação e devaneio, sintoma de atitude reveladora de inteligente convivência do nativo com o ambiente e resolvi denominar esse ato de dibubuismo. O dibubuismo difere do “ócio criativo” [conceito criado pelo italiano Domenico De Masi] porque não é uma reação ao trabalho prático. É uma alternância compatibilizadora com ele e parceria de harmonização com a natureza.
Jamais alguém poderia fazer isso com motosserra. Jamais alguém poderia fazer isso com um navio. Jamais. Então, essa foi, digamos assim, a gênese, a origem, digamos, experiencial, da construção desse conceito. ✱

Bebendo da fonte

Bebendo da fonte

Nesta edição, mergulhamos num manancial de iniciativas de instituições culturais de São Paulo, do Norte e do Nordeste do Brasil que estão interessadas em revelar parte do apagamento de nossa história, parte do apagamento pós-colonial. A exemplo das exposições Ensaios para o Museu das Origens, montada no Tomie Ohtake e no Itaú Cultural e Histórias Indígenas, no MASP; da mostra com as recentes aquisições para a coleção o Banco do Nordeste, em Recife (PE); da Bienal das Amazônias, em Belém do Pará, e do percurso do Manto Tupinambá, apresentado por Célia Tupinambá. Entrevistamos curadores, pensadores, arqueólogos e artistas de várias regiões do país. Ouvimos falar da necessidade de mudanças radicais nos museus e do quanto seria necessário ouvir a natureza. Num país que foi e é indígena, caboclo, ribeirinho, afro-descendente e branco. Num país cuja pluralidade tem início há mais de 6.000 anos, e não, como é tradicionalmente entendido, num país que teria nascido em 1500.

Nesse percurso de quase dois meses conferimos o quanto nossa visão de interdisciplinariedade é fundamental para analisar praticamente todos os fenômenos que se relacionam com o indivíduo e, por tanto, o impacto que eles têm na arte. Isso já foi abordado profundamente por arte!brasileiros, no seu VI Seminário: Em defesa da Cultura e da Natureza, ainda na pandemia, e nossa experiência frente ao colapso já trazia a necessidade de se “pensar em volta”. 

Claro que muitas dessas conclusões são óbvias para os antropólogos ou historiadores, os estudantes de história da arte ou filósofos, mas definitivamente não são óbvias para muitos.

Sempre desenvolvemos tecnologias: está aí a reportagem no Museu de Arqueologia Emílio Goeldi, de Belém de Pará, mostrando técnicas ancestrais de comunicação, torração e agricultura. A questão é: nós a colocamos a serviço de quê?

Ainda hoje currículos nacionais não levam em consideração saberes regionais e estudos, que já vêm sendo feitos respeitando linguagens, sabedorias, crenças, pesquisas realizadas por universidades nacionais, com profissionais capacitadíssimos. O fato de se ter declarado a independência dos colonizadores não extirpou uma construção intelectual voltada para fora. A Amazônia está mais perto da história dos países andinos, de suas sabedorias e descobertas ancestrais, do que da europeia, por exemplo. Não obstante, sua construção pós-colonial a levou a olhar por cima do Brasil e do Oceano Atlântico, para a Europa ou ainda para os países do Norte. 

As elites latino-americanas cresceram com o capital financeiro, pouco preparadas ou preparadas para uma visão individualista de construção da sociedade. Com o auge do neo-liberalismo, a partir dos anos 1980, a sociedade como um todo foi se afastando cada vez mais da tentativa de entender quem somos, onde habitamos, e a floresta ficou cada vez mais longe e os nossos “sintomas sociais” só pioraram. Recomendamos a leitura do capítulo Diagnóstico da Modernidade e Perspectivismo Ameríndio, (Mal-estar, sofrimento e sintoma, Christian I. L. Dunker, pag. 273, Editora Boitempo) 

Estamos avançando. A mais recente Bienal de São Paulo foi uma excelente surpresa, fazendo associações entre passado e presente, trazendo questionamentos e uma estética cuidadosa. A volta dos investimentos em cultura vai servir para isso, mas é necessário não perder de vista a necessidade da crítica e o quanto, muitas vezes, lutas anti-hegemônicas servem apenas para serem capturadas por campanhas de marketing, ao invés de se tornarem o devido caminho para construir saberes formativos e coletivos. 

Boa leitura, bom 2024, com saúde, força e alegria. ✱

OS: Recomendamos “bubuiar” ( leia entrevista com Professor Paes Loureiro) nas férias!

Colaboradores da edição #65

FABIO CYPRIANO, crítico de arte e jornalista, é diretor da Faculdade de Filosofia, Comunicação, Letras e Artes da PUC-SP e faz parte do conselho editorial da arte!brasileiros. Neste número, assina a entrevista com François Vergès e as matérias sobre o livro de Nêgo Bispo e o projeto expositivo Manar Abu Dhabi.

JOTABÊ MEDEIROS é repórter e biógrafo, entre outros, do cantor Belchior. Foi repórter de O Estado de S.Paulo e da Folha de S.Paulo, entre outros. Jotabê assina uma entrevista com Célia Tupinambá, artista indígena selecionada para representar o Brasil na 60ª Bienal de Veneza, em 2024.

LEONOR AMARANTE é jornalista, curadora e editora. Trabalhou no Jornal O Estado de S.Paulo, na revista Veja, na TV Cultura e no Memorial da América Latina. Nesta edição, são de autoria a matéria sobre a exposição Histórias Indígenas, do Masp, e a entrevista com Adriano Pedrosa.

LUIZA SIGULEM é fotógrafa formada pelo Senac em 2010. Atua principalmente como retratista em seu estúdio. Trabalhou em diversos meios de comunicação e colabora com a arte!brasileiros desde o seu primeiro número. São dela as fotos para a matéria sobre Ensaios sobre o Museu das Origens.

MARIA HIRSZMAN é jornalista e crítica de arte. Trabalhou no Jornal da Tarde e em O Estado de São Paulo. É pesquisadora em história da arte, com mestrado pela USP. Para este número, Maria escreve sobre a exposição Ensaios sobre o Museu das Origens.

Fotos: arquivo pessoal

Nova presidência da Bienal propõe colegiado para selecionar curador da 36ª edição da mostra

Pavilhão da Bienal, durante a 35ª Bienal de São Paulo. Foto: Levi Fanan/Fundação Bienal de São Paulo
Pavilhão da Bienal, durante a 35ª Bienal de São Paulo. Foto: Levi Fanan/Fundação Bienal de São Paulo

Com posse marcada para 2 de janeiro de 2024, a banqueira Andrea Pinheiro assumirá a presidência da Bienal com dois objetivos: criar um colegiado para a seleção do curador da 36ª edição da mostra, que acontecerá em 2025, e ampliar o alcance nacional das ações do educativo da instituição junto a professores. Também conselheira do MASP, Pinheiro atuou como segunda vice-presidente nas duas últimas gestões da Diretoria Executiva (2019-2023), e seu papel principal era a captação de recursos. Segundo comunicado da Bienal, a quantidade de patrocinadores da Fundação Bienal passou de 18, em dezembro de 2018, para 48, em dezembro de 2023, sem contar os mais 13 apoiadores internacionais e 16 parceiros.

“A gente vem, há muitos anos, num processo de gestão financeira bastante saudável na Bienal. Mas o papel da instituição é democratizar a arte. Como é possível fazer isso? Sendo gratuito, com as itinerâncias nos estados e conversando com o público por meio das redes sociais e do educativo, que toma a Bienal como ponto de partida para levar a arte às escolas públicas, principalmente, municipais e estaduais, e também a ONGs especializadas em educação. Isso tudo requer dinheiro”, pondera Pinheiro. “Em São Paulo, o educativo é fortíssimo. A gente treina 18 mil professores da rede pública de ensino, com classes que em média têm 44 alunos. Então você imagina o impacto o programa tem. Mas queremos que esta informação chegue a outros estados.”

O mandato de Pinheiro, que foi eleita pelo Conselho de Administração da Fundação na última terça-feira (12/12), tem vigência de dois anos, podendo haver reeleição para mais dois. Apesar de ser uma prerrogativa do presidente da instituição, a executiva quer que a escolha da curadoria da próxima Bienal seja feita por um comitê colegiado.

“Obviamente o presidente da Bienal se aconselha com sua diretoria e seus conselheiros para tomar essa decisão. Mas, para deixar a escolha mais transparente, quero criar um comitê de oito pessoas, com perfis complementares, que será um mix dos diretores com conselheiros, que possam deixar o processo mais rico”, explica.

As itinerâncias da 35ª Bienal, que acontecem a partir de 2024, terão um alcance recorde, chegando a 11 cidades brasileiras e quatro, estrangeiras. Pinheiro também estará à frente da participação oficial do Brasil na 60ª Bienal de Veneza e na 19ª Bienal de Arquitetura de Veneza. Em sua gestão, dará continuidade ainda às ações de catalogação e conservação do Arquivo Histórico Wanda Svevo e a um cronograma de melhorias do prédio. Também está entre seus objetivos “aprofundar a visão de sustentabilidade da instituição”.

Pinheiro inicia seu mandato com uma Diretoria Executiva parcialmente renovada. Permanecem na instituição Ana Paula Martinez, Francisco Pinheiro Guimarães, Luiz Lara e Rita Drummond, e passam a integrar o colegiado Roberto Otero e Solange Sobral. A primeira vice-presidente será Maguy Etlin, desde 2019 integrante do Conselho de Administração da Fundação Bienal, em que atua como coordenadora do Comitê Internacional e presidente do Conselho Consultivo Internacional.

“Acho que a minha indicação vem desta experiência de cinco anos, em que eu aprendi muito com o Zé [Olympio, atual presidente da instituição], mas eu não me considero uma expert”, avalia Pinheiro. “Não sou uma colecionadora, mas tive a sorte de ter pais que sempre me expuseram à arte. E você aprende sendo exposta, por isso a importância que eu vejo no educativo da Bienal”.

 

Luz é matéria-prima para exposição superlativa em Abu Dhabi

Esculturas de Dawaran Ayesha Hadhir, Rawdha Al Ketbi, Shaikha Al Ketbi na exposição "Manar Abu Dhabi". Foto: Fabio Cypriano
Esculturas de Dawaran Ayesha Hadhir, Rawdha Al Ketbi, Shaikha Al Ketbi na exposição "Manar Abu Dhabi". Foto: Fabio Cypriano

Superlativo é uma condição que parece ser rotina nos Emirados Árabes, mas a mostra de arte com luz Manar Abu Dhabi, inaugurada no fim de novembro passado, chegou a um patamar realmente além no quesito exagero.

Composta por cerca de 20 artistas, a mostra tem entre uma de suas mais impactantes iniciativas o uso de uma pequena ilha, até então desabitada, a Lulu Island. Ela foi ocupada pelo artista o mexicano-canadense Rafael Lozano-Hemmer, em um circuito de dois quilômetros que perfazem dez obras de grande escala. A mais impressionante delas é Collider, formada por centenas de holofotes robóticos de feixe de luz que podem ser vistos a partir de um raio de nada menos que cinco quilômetros.

“Não havia nada aqui, instalamos tudo”, conta a palestina Reem Fada, curadora da mostra, junto a Alia Zaal Lootah, que é dos Emirados Árabes, durante o jantar de abertura da exposição, para cerca de 500 convidados, mantendo a tradição superlativa.

Reem é responsável pela seção de Arte Pública do Departamento de Cultura e Turismo de Abu Dhabi (DCT), que possui um orçamento de US$ 35 milhões (cerca de R$ 175 milhões) e, no próximo ano, ela organiza por esta instituição a primeira Bienal de Abu Dhabi, junto com a israelense Galit Eilat, uma das responsáveis pela 31ª Bienal de São Paulo, em 2014. A poucos quilômetros dali, outro emirado, no caso Sharjah, já organiza uma bienal, que em 2023 teve sua 15ª edição.

O que impressiona em Lulu Island é a perfeição de sua ocupação: como a mostra ocorre à noite, já que as obras são em sua imensa maioria tendo a luz como constituição, há um circuito extremamente organizado, com luminárias sofisticados, banheiros com ar-condicionado e áreas de descanso.

As dez obras de Lozano-Hemmer são todas elas em grande escala. É o caso das quatro mil lâmpadas de Pulse Island, espalhadas entre arbustos e árvores, criando uma topologia a partir da pulsação que é captada de cada visitante por uma máquina. Com isso, as lâmpadas vibram a partir da batida do coração de cada pessoa que passa pela obra. “Nossa preocupação é também com sustentabilidade e essas quatro mil lâmpadas gastam a mesma energia de apenas um aspirador de pó”, conta Reem.

A interação mediada pela tecnologia é uma das principais investigações do artista mexicano e uma condição de todas as obras em Lulu Island. No caso de Collider, essa interação não se dá com humanos, mas por contadores Geiger dotados para detectar prótons e partículas alfa que chegam constantemente à Terra, como raios cósmicos criados por estrelas e buracos negros. Com isso, a cortina de luz reage às colisões criando padrões em cascata de movimento ondulatório que nunca se repetem e que tornam tangível a ligação invisível com o espaço exterior. É desses trabalhos realmente impressionantes e inesquecíveis.

Performance no céu

Hiperbólica também é a obra da companhia francesa Groupe F, especializada em participar de abertura de olimpíadas, incluindo a do Rio, em 2016, e grandes eventos semelhantes. Em Abu Dhabi ela apresenta Persistência da Forma, uma performance de 20 minutos, na qual centenas de drones desenham no céu em 3D seis dos equipamentos culturais icônicos já prontos ou em construção do bairro cultural da cidade. Entre eles estão o museu do Louvre, o Guggenheim e a Casa da Família Abraâmica, único complexo fora de Jerusalém que abriga na mesma área uma igreja católica, uma sinagoga e uma mesquita, inaugurada há poucos meses.

O espetáculo visual ocorre acima da cúpula arredondada do Louvre, projeto do arquiteto francês Jean Nouvel, e pode ser vista de distintos pontos da cidade, dada à sua dimensão, com direito a reflexo no mar. Entre cada um dos espaços culturais visualizados, os drones criam imagens abstratas. Segundo Christophe Berthoneau, CEO e diretor criativo do Groupe F, em debate realizado pouco antes da inauguração da obra, “tem sido mais recorrente o uso de drones ao invés de fogos de artifício pelo impacto ambiental ser menor”.

Apesar da tecnologia de ponta, ele afirma que ocorre com os drones problemas técnicos semelhantes aos dos fogos de artifício: “De fato é uma performance porque nunca temos garantia que tudo ocorre como o planejado, há casos em que o drone não volta mais.”

Arquipélago

Abu Dhabi é um arquipélago e, por conta disso, muitas das obras estão dispostas em ilhas. A única que precisa de barco para visita, de fato, é Lulu – o nome da dela, aliás, é uma das formas de se dizer pérola, o que era uma das atividades da região, bem antes da descoberta do petróleo, quando as famílias que se ocupavam desta economia se tornaram bilionárias.

“Essa é uma mostra feita em Abu Dhabi para Abu Dhabi, por isso usamos sua própria geografia, com as ilhas e os manguezais como espaço expositivo”, explicou Reem na abertura do evento. Os manguezais, de fato, são dos lugares mais inusitados da mostra. Eles são ocupados por três obras criadas por três artistas em conjunto: Shaikha al Ketbi, Radwha al Ketbi e Ayesha Hadhir, todas nascidas nos Emirados Árabes.

São esculturas que flutuam e possuem lâmpadas que se situam em seus contornos, como três figuras femininas que carregam instrumentos em sua cabeça, que podem representar as mulheres que lavavam roupa nos mangues.

“Ao conversar com as artistas, foram elas mesmas que escolheram esse local, que por viverem aqui, conhecem bem e decidiram usar os mangues para suas obras”, explica Alia, curadora da mostra. Para acessar esses trabalhos é preciso ir até uma embarcadouro e de lá fazer um percurso de barco de 20 minutos. Como as obras só podem ser vistas de fato após o entardecer, o melhor horário é logo após o pôr do sol, quando a vista nos manguezais é acachapante.

Corniche

Mas nem todos as obras estão instaladas em locais de acesso complexo. Ao menos metade das instalações está ao longo de Corniche, um calçadão de frente para o golfo Pérsico. Lá se encontra, por exemplo, Água, da argentina Luciana Abait, um imenso painel eletrônico que projeta uma espécie de cachoeira, fenômeno natural inexistente nos Emirados _nem rios perenes existem no país desértico.

“Sequestraram meu trabalho”, comentou ironicamente Reem, ao perceber que em frente à obra de Luciana foi montado uma área efêmera para promoção de esportes, como se a instalação fosse parte da ação de marketing. Esse é o tipo de apropriação que acaba acontecendo quando se trata de obra em espaços públicos.

No total, Corniche abriga nove trabalhos, entre eles vídeo-projeções da palestina-norte-americana Samia Halaby e uma obra interativa de Carsten Höller, alemão nascido na Bélgica.

Nascida em Jerusalém e radicada nos Estados Unidos, Samia estudou pinturas já nos anos 1950 e as duas obras expostas são pinturas cinéticas e abstratas, criadas em 1992, uma das primeiras obras em artes visuais a serem criadas com o uso de computadores. O que foi feito originalmente para uma pequena tela ganhou dimensões bem maiores para Manar, em duas telas de LED.

Já Carsten participa com Abu Dhabi Dots, uma espécie de jogo interativo na areia, onde são projetadas luzes de distintas cores e os participantes podem caminhar com essas cores e, ao encontrar com outras pessoas, pode “roubar” a cor que a está iluminando, uma proposição com a qual principalmente as crianças se divertem.

É lá de Corniche que avista ainda Memórias de um Porto, do artista dos Emirados Árabes Ahmad Saeed Al Areef Al Dhaheri, com projeções de imagens de arquivo no prédio sede da Câmara de Comércio, um dos primeiros edifícios modernos dos Emirados Árabes. Trata-se aí de uma mistura de cenas, algumas que retratam a vida modesta antes da explosão de riqueza da região com o petróleo.

Os Emirados Árabes foram criados em 1971, portanto um dos mais jovens países do globo, a partir da união de sete monarquias. Sua população de cerca de 10 milhões de habitantes tem nada menos que 80% dela composta por estrangeiros. O poder do dinheiro é visível o tempo todo – tudo parece recém-construído no país, e não por acaso é um dos novos membros do bloco econômico Brics.

A relevância da arte e da cultura neste cenário acaba sendo um diferencial, como sê em dimensões “hiperlativas”. Mas a presença feminina no comando também é um elemento que vale nota – no governo, 50% dos ministros são mulheres. “Eu sofri muito mais com a cultura patriarcal nos Estados Unidos do que aqui”, sentencia Reem, que também é vinculada ao Guggenheim Abu Dhabi, previsto para ser inaugurado em 2025.

Quilombola Nego Bispo questionou cânones da modernidade

Antônio Bispo dos Santos. Foto: Divulgação
Antônio Bispo dos Santos. Foto: Divulgação

Humanismo é uma palavra companheira da palavra desenvolvimento, cuja ideia é tratar os seres humanos como seres que querem ser criadores, e não criaturas da natureza, que querem superar a natureza”. Com uma frase tão simples quanto contundente, Antônio Bispo dos Santos, desmontou um dos conceitos da modernidade, o humanismo, quase unanimidade no campo progressista.

Às vezes é preciso que uma voz bastante fora do sistema, como é o caso do quilombola Nego Bispo, como ele costumava ser chamado, para que algumas certezas até então consolidadas passem por uma necessária revisão.

Nomes como os indígenas Ailton Krenak e Davi Kopenawa há décadas vêm apontando que o respeito e a convivência com a natureza são condições para se adiar o fim do mundo e evitar a queda do céu, mas a eles se juntou esse quilombola, com um desses livros básicos que se propõem a repensar a condição do própria planeta: A terra dá, a terra quer, publicado agora em 2023 pela editora Ubu junto com Piseagrama, e ilustrações de Santídio Pereira.

 "A terra dá, a terra quer"

Na publicação de 109 páginas, longe portanto de um tratado, Nego Bispo, que nasceu em 1959, traz uma série de conceitos a partir de sua experiência nos quilombo Saco Curtume, no município de São João do Piauí, sendo o primeiro de sua família a ser alfabetizado. Exercendo papel de liderança, atuou na Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Piauí, tendo vivido algum tempo em áreas urbanas.

“Fiquei na cidade grande por cerca de cinco anos, até chegar o momento em que compreendi que ali não era meu lugar. (…) A cidade não me cabe. Enquanto a sociedade é feita por posseiros, as nossas comunidades são feitas por pessoas. Na cidade, as pessoas tinham medo da gente. Nas comunidades (…) vivíamos tranquilos”, escreve ele em sua linguagem direta.

É central em seu pensamento, e certeiro em sua análise, toda a alienação e submissão ao medo, que é o que se tornou viver nas metrópoles, assim como a centralidade do sistema mercantilista em todas as áreas. “Os adultos da cidade brincavam de fazer as coisas e outros adultos pagavam para vê-los: era o que chamavam de teatro. Quando a arte vira mercadoria, passa a ser uma brincadeira de não fazer nada”, escreveu ele. E a conclusão é muito semelhante a tudo que se defendeu em arte desde os anos 1960, ou seja, que arte é vida, portanto não há razão para representação, é preciso simplesmente ser: “O teatro, assim como qualquer outro tipo de arte que é mercantilizada, bloqueia a conversa das almas, porque a arte é conversa das almas, a arte alimenta a vida, ela não pode ser mercadoria.”

Ilustrações de Santídeo Pereira,

Nego Bispo desconstrói várias certezas ao longo do livro a partir de conceitos inovadores como “afroconfluentes”, “confluências” e “contracolonialismo”, repensando até mesmo projetos sociais de repercussão como as moradias de Minha Casa, minha vida”, que, em sua visão, ignora conhecimentos e práticas locais para padronizar um tipo de habitação “colonizadora”.

Não é só no livro que Nego Bispo repassa seus petardos contra a decadência da civilização monoteísta ocidental. No episódio 81 de Confluências – o podcast da ocareté, ele apontou como até mesmo o ensino público é problemático: “A educação pública é colonialismo, escolas públicas não ensinam o que se precisa para viver na Caatinga, na Amazonia. Escolas públicas só ensinam a viver nas grandes cidades, na lógica industrial, mercadológica, sintética”, conta.

Em um momento que a democracia volta a se normalizar no país, vozes como Nego Bispo são essenciais para avançar em uma agenda que repense conceitos e pensamentos que nem as universidades, nem os partidos políticos estão dando conta de abarcar.

 

Célia Tupinambá reata um fio de 400 anos

Na 60ª Bienal de Veneza, na Itália, a partir de 24 de abril do ano que vem, o
Brasil será representado por uma obra da artista visual, cineasta, escritora,
antropóloga e pesquisadora baiana Glicéria Tupinambá, conhecida como Célia
Tupinambá. Célia vai levar a Veneza a exposição Ka’a Pûera: nós somos
pássaros que andam, de Glicéria Tupinambá e convidados, com curadoria
de Arissana Pataxó, Denilson Baniwa e Gustavo Caboco Wapichana. Ka’a
Pûera é como se designa uma grande área de mato que está em processo de
regeneração após uma queimada ou utilização como lavoura ou pasto.
A mostra na Itália prevê também que o Pavilhão do Brasil nos Giardini della
Biennale seja renomeado para Pavilhão Hãhãwpuá (nome Pataxó que era
usado para descrever o Brasil antes do avistamento português). Segundo a
Fundação Bienal de São Paulo, a mostra de Célia Tupinambá a ser instalada
na Itália aborda “questões de marginalização, desterritorialização e violação
dos direitos territoriais, convidando à reflexão sobre resistência e a essência
compartilhada da humanidade, pássaros, memória e natureza”, o que a integra
ao tema geral da 60ª Exposição Internacional de Arte – La Biennale di
Venezia: Foreigners Everywhere (Estrangeiros em toda parte).

Nascida em 1982 na aldeia Tupinambá da Serra do Padeiro, em Olivença, no Sul da Bahia, Célia é mestranda em Antropologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e encabeçou as negociações para repatriar ao Brasil, em 2024, o Manto Tupinambá que se encontra atualmente no Museu Nacional da Dinamarca, em Copenhague. Durante a colonização do Brasil, os mantos dos Tupinambá viraram objetos de escambo, saques ou negociações, e sua tecnologia construtiva perdeu-se no tempo. Ela reaprendeu a confeccionar o manto, tornando-se a primeira mulher a construir tal artefato em mais de 400 anos.

Nos próximos dias 25 e 26 de novembro (sábado e domingo), o Festival ZUM, organizado pela revista de fotografia do Instituto Moreira Salles, reunirá artistas, fotógrafos e pesquisadores para conversas, oficinas, exposições, feiras e outras atividades gratuitas. O evento, que chega a sua 8a edição, acontece na sede do IMS de São Paulo (Av. Paulista, 2424), e terá como destaque uma ação de Célia Tupinambá, no dia 25 (sábado), às 14h. Ela irá à frente de uma caminhada coletiva, com o Manto Tupinambá, pelos espaços do
IMS, acompanhada de representantes de outras Nações indígenas. Glicéria Tupinambá concedeu a seguinte entrevista à arte!brasileiros:

ARTE!✱ – O Censo do IBGE, divulgado recentemente, informou que a população indígena hoje no Brasil representa 0,83% do total de brasileiros, cerca de 1,7 milhão de pessoas. E é uma representação muito diversa, há grupos com 12 indivíduos e outros com 20, 30 mil pessoas. É muito complicado ir a Veneza representando toda essa diversidade?

Depende de que ponto de vista você tá falando. Porque, se você pensar que o Brasil é território indígena, e se você pensar que esse percentual que o IBGE levantou, tentando demarcar essa presença, essas populações tentando resistir, tentando não ser engolidas… Bom, eu estou indo representando o povo indígena. Mas tem uma parceria imensa com outras Nações Indígenas, como por exemplo Denilson Baniwa, que é do Amazonas; Arissana Pataxó, que é da Bahia, Gustavo Caboco, que é Wapixana, de Roraima. É uma geografia bastante intensa, territorialmente. Ocupar esses espaços coloca a população
indígena em evidência, faz com que se compreendam os povos indígenas que estão sendo engolidos por uma dinâmica muito agressiva. Ajuda para que vejam a presença indígena.

ARTE!✱ – Na próxima semana, você mostra o Manto Tupinambá que você confeccionou no Instituto Moreira Salles, na Avenida Paulista, em São Paulo. Qual é a importância do Manto Tupinambá nessas itinerâncias? Para essa atividade eu estou convocando os parentes. Então tem Pankararu, Pankararé, Guarani, Tukano. O manto traz esse espaço de diálogo e ruptura, a gente tende a encontrar as tensões, os desafios. E não é somente Célia Tupinambá, é uma carga histórica, e essas alianças, esse estar com os parentes (serve) para ver em que situação estão, em que lugares estão. Então, é importante é fundamental essa presença do manto faz as pessoas pensarem, reelaborarem outras concepções. Estar com os parentes, por conta dos possíveis diálogos, é importante, como é importante que o manto esteja em movimento para que as pessoas possam entender uma outra lógica. O Manto é um corpo provocante.

Manto tupinambá. Foto: Pérola Dutra
Manto tupinambá. Foto: Pérola Dutra

ARTE!✱ –Você fez o primeiro Manto Tupinambá em 2006. Isso já tem 17 anos.
Quantos mais você fez depois daquele primeiro?

Fiz mais dois. Esse que vou apresentar agora é o manto feminino, tem uma diferença. O primeiro eu fiz a partir de uma imagem, uma imagem que eu vi do manto que está na Dinamarca. Então ele é uma aproximação, não dava para ver a trama, era muito cheio de penas. Em 2018, quando eu vi na França um manto, e logo depois, outro manto na Suíça, em Basel, eu passei a tentar entender a malha. Tem um manto lá em Basel que é mais desgastado, dele dá para ver a malha perfeitamente. A minha ideia era entender o cerne o osso do manto. Eu tentei, anteriormente, que as minhas tias-avós me ensinassem o seu
jeito de fazer o manto. Mas elas me disseram que, como eu já tinha sonhado o manto, eu já sabia como fazer, não havia o que ensinar. Então eu aceitei o conselho delas e fiz o primeiro manto, que hoje está no Museu Nacional do Rio de Janeiro. Ele foi incorporado a partir da itinerância da exposição Os Primeiros Brasileiros, com curadoria de João Pacheco de Oliveira, em 2021. Em 2020, eu fiz o segundo manto, que foi para o meu irmão, que é o cacique Babau do povo Tupinambá. Foi então que o manto falou para mim que ele era feito por mulheres. Quando isso aconteceu, eu fiquei com essa “cosmo-agonia” (risos). Eu não tinha o que as pessoas chamam de “provas”, eu só tinha essa autorização dos Encantados. Então eu fui atrás. Depois, a Fernanda Liberti (fotógrafa e artista visual) chegou lá na aldeia e me trouxe um livro chamado O Rio Antes do Rio, de Rafael Freitas Silva (Editora Relicário, 2021). Na capa desse livro tem uma mulher em uma ilustração, uma mulher usando o manto com uma criança nas costas. É uma xilogravura. Essa imagem, da mulher usando manto, depois eu fui ver novamente em outros três desenhos. Em outro desenho, ela usava o manto, a saia e o maracá. Mais adiante, a (antropóloga) Daniela Alarcon e eu acabamos encontrando esse material. Mas ainda era pouco vestígio. Em 2022, quando estive na Dinamarca, o manto falou comigo.

ARTE!✱ – O manto fala com você quando você está perto dele?

Quando eu estou perto dele, ele fala comigo, e ele me disse que era feminino. Eu já tinha essa comprovação, por ter visto manto sendo utilizado por seis a sete mulheres, e cada textura do manto era diferente. Em 2023, eu estive no Palácio de Versalhes, na França, e no Salão Real vimos essa ilustração lá de uma obra que representava os continentes. No continente sul-americano havia uma mulher vestindo o Manto Tupinambá. As pessoas que estavam com a gente me disseram: “Ah, Célia, mas esse manto tem um traço grego”. E eu respondi: “Isso muda o fato de que é uma mulher?”. No imaginário do Hans Staden (1525-1576), o manto só é utilizado pelos pajés, e nós sabemos que era utilizado também pelos caciques. É o pajé e a sociedade Tupinambá em torno dele e do manto. Mas quando encontramos essas imagens, fechamos esse círculo de seis mulheres usando o manto. A última foi no mapa que eu vi da França Atlântica, que tem uma ilustração com outra mulher usando o manto. Então eu me dei conta que o manto era feminino.

ARTE!✱ – Quantos Mantos Tupinambás existem hoje no mundo?

São 11 mantos. Estão em Bruxelas, Copenhague e Basel. Há também muitos objetos Tupinambá nos gabinetes de curiosidades, Na França, há um machado, uma borduna, uma rede. Aquela semana em Versalhes foi bem intensa, a gente viu muitas coisas na França, e a memória Tupinambá muito forte. Foi então que eu tive essa comprovação de como o povo Tupinambá era recebido. A gente, na narrativa histórica, nunca teve um lugar político de igualdade, mas as várias representações dos indígenas que eu pude ver, e uma delas é um afresco exclusivo, coisas que a gente nunca tinha visto, demonstram que havia uma aliança e respeito. A história contada no Brasil a respeito dos Tupinambás tem outro recorte, invisibilizando a nossa presença. Para as pessoas entenderem porque esses mantos europeus se encontram na posse de reis na Europa, é preciso saber que é isso aconteceu porque era uma aliança de rei para rei. As pessoas falam um monte de coisa, mas é preciso entender esse fio contínuo.

ARTE!✱ – Originalmente, o manto era feito de penas de guarás. Mas isso não é mais
possível hoje, é?

Graças a Deus, existem ainda os guarás. E, agora, os guarás chegaram à Bahia, tem uma cidade chamada Salinas que tem um mangue que tem guarás. Mas o manto que eu fiz, eu fiz com as penas da arara que estavam ali à minha disposição. Os pássaros deixam as penas para mim, não precisa matar, eles trocam de penas a cada ano. Eu uso as que tenho à mão: sabiá bico de osso, gavião, canário da mata, inhambu, tururim. Agora mesmo recebi centenas de penas de Guará de um artista de um quilombo. Depois que a gente aprende o nó, a malha, o fio condutor, tudo é possível. Não é uma réplica. Trata-se de entender essa complexidade, porque isso faz entender o fio. É preciso internalizar, ouvir. Em geral, a gente pensa no outro sempre ensinando, né? As pessoas já não sonham mais, acham que tudo é material, tudo é factual, tudo é marxista, né (risos). Então, esse manto que eu vou apresentar agora, feminino, eu apresentei em 2021 na Casa do Povo. É esse aí que está fazendo o trabalho de abre-alas para o manto que vai vir da Dinamarca no ano que vem.

ARTE!✱ – A questão é: se já é possível fazer novos mantos, já há o conhecimento,
qual o sentido de trazer o manto da Dinamarca? É porque é sagrado?

O manto e os Encantados me mandaram escrever uma carta em 2022. Eu encaminhei a carta em setembro de 2022 para a Dinamarca. Depois que fiz a escuta, o manto me disse que eu pedisse essa doação para o Museu Nacional. Aí eles me perguntaram: qual manto teria que vir? O embaixador me perguntou e eu disse: “O manto principal, o que está em exposição. Ele me disse que já estava preparado para voltar”. As pessoas riram, acharam que não ia acontecer. Eu acho que muita gente trata o manto como um objeto, e ele é um ancestral. O retorno do manto, em primeiro lugar, serve para poder diminuir esse oceano de distância. Ele tem quase 400 anos, é um manto idoso (risos). E tem uma estrutura, mas essa força de vontade que ele demonstra de regressar para o seu povo tem que ser respeitada, é um ancestral regressado é assim que eu defino. Um ancestral há muito tempo silenciado. Nós chamamos isso de objeto agenciado. Ele carrega a espiritualidade, é um artefato agenciado pelos rituais Tupinambá. Nem todo mundo entende o que é um objeto agenciado; as pessoas de formação cristã, católica, evangélica, elas têm uma visão de sagrado que eu considero mais volátil, que reduz a quantidade daquilo que significa para gente. Um ancestral é um ser vivo. E isso explica o que levou essas pessoas a cuidarem dessa coisa tão frágil durante tanto tempo; você o vê hoje, ele parece novo. Parece que foi feito ontem. É muito mais do que sagrado para a gente; dizer que é sagrado reduz a potência do que ele representa.

ARTE!✱ – Até 2009, os Tupinambás eram considerados extintos no Brasil. Agora, estão já repatriando sua História, seus artefatos. Tem sido uma série intensa de acontecimentos, não?

Eu, na minha ignorância do pensamento do outro, digo que é difícil dizer o que eu tô sentindo. Tem gente que olha para o manto e não vê e vê um objeto estético, tem gente que pensa também que nós nunca existimos. Mas nós existimos e estamos aqui. A gente precisou se isolar para não ser totalmente extinto, né? Porque nós habitamos a região cacaueira, a região dos coronéis, e vocês sabem como é isso. Em 2000, quando a gente começou o processo de reconhecimento, nós precisamos reunir todas as provas porque não havia ainda a Convenção 169, a da autodeclaração (norma estabelecida pela Organização Internacional do Trabalho, assinada pelo Brasil em 2002), então nós tivemos que reunir todas as provas, até os sítios arqueológicos, para poder provar que nós existimos. Tivemos que buscar documentos, fotografias históricas. Então a gente voltou à cena, voltou a coexistir, e sempre num cenário de conflito que não é pequeno na nossa região. O manto volta para estabelecer essa conexão. Mas ele não cabe dentro dos parâmetros cristãos, evangélicos. Embora ele tenha que ser reintegrado, a sua existência deve ser restabelecida em um diálogo com os códigos de vocês. E é um tratado de doação, não existe o conflito nesse caso. O retorno do Manto Tupinambá se dá em uma situação na qual o outro entende o que é que o outro necessita. E concorda com isso, né? Eu me lembro que o embaixador da Dinamarca brincou comigo um dia: “E aí? o manto tá pronto para voltar?”. E eu disse sim, ele me disse que está pronto, e ele perguntou: “E qual vai voltar?”. Eu respondi: o principal, o que está em exposição na Dinamarca. E ele riu, e no entanto o manto está voltando agora, e eu gostaria de encontrá-lo de novo para lembrar disso.

ARTE!✱ – Quantos Mantos Tupinambá existem no mundo atualmente?

Nós temos 11 mantos Tupinambá na Europa. Estão em Bruxelas, Basel e Copenhague. E outros três na Itália: dois em Florença, um em Milão. Outros na França.

ARTE!✱ – O Censo do IBGE estimou em mais de 7 mil indivíduos o povo Tupinambá no Brasil. Esse número surpreendeu você?

Olha, eu não trabalho com números, eu acho que ainda é pouco. É preciso lembrar que a gente não fala a linguagem do colonizador. Eu não falo português, eu não falo inglês, eu não falo africano. Eu não falo tupi. A gente fala a nossa língua, a gente conseguiu contrariar essa lógica de invisibilização. Cada vez mais as pessoas vão criando consciência para entender que seu lugar no território é único, é um lugar seu, da sua existência dentro de uma Nação. E aí elas vão elaborando a sua consciência do mundo.

Inhotim inaugura último ato em homenagem a Abdias Nascimento e instalação de Luana Vitra

Obra presente na exposição "Quarto Ato - O quilombismo", no Instituto Inhotim. Foto: Ícaro Moreno

A partir de diálogos iniciados entre o Instituto Inhotim e o Ipeafro em novembro de 2020, foi inaugurado em dezembro do ano seguinte o programa de exposições intitulado Abdias Nascimento e o Museu de Arte Negra. Abdias Nascimento (Franca, SP, 1914 – Sao Paulo, SP, 2011) é uma das principais referências de atuação crítica quando o assunto é luta antirracista. Foi poeta, escritor, dramaturgo, curador, artista plástico, professor universitário, pan-africanista, parlamentar e fundador do Teatro Experimental do Negro, projeto que idealizou o Museu de Arte Negra. Em oposição ao eurocentrismo nas artes, o MAN foi projetado por Abdias e companheiro dedicados à valorização da produção artística e do pensamento de pessoas negras e grupos minorizados. É composto por obras reunidas por Abdias de 1950 a 1968, depois no exílio, entre 1968 e 1981, e após o retorno ao Brasil. A diversidade e quantidade de obras e artistas reforça o caráter de articulador e comunicador próprios a Abdias.

Organizada por atos, a agenda se realiza tanto através de exposições semestrais do acervo do MAN, que ocupam a galeria Mata, do Instituto Inhotim, quanto exposições temporárias e o comissionamento de obras. Cada ato é presidido por um orixá: o Primeiro ato – Abdias Nascimento, Tunga e o Museu de Arte Negra, tomou como referência epistemológica a orixá Oxum, entidade da fertilidade e prosperidade, presente nas cores amarelas das paredes; o Segundo Ato: Dramas para negros e prólogo para brancos, foi presidido por Oxóssi, orixá do conhecimento; o Terceiro Ato: Sortilégio, trouxe Exu, orixá da comunicação; e, por fim, Quarto Ato – O Quilombismo: Documentos de uma Militância Pan-Africanista, está sendo apresentado em novembro de 2023, junto a Xangô, orixá da Justiça, como um anseio por reparação.

Fundamentado no conceito de “quilombismo”, proposta de mobilização sociopolítica a partir de perspectivas afro-diaspóricas elaborada por Abdias, o Quarto Ato apresenta momentos da trajetória de vida do autor mesclados com suas práticas de organização e articulação coletiva que resultaram na criação do Teatro Experimental do Negro (TEN) e no Museu de Arte Negra. Outros eixos da mostra do Instituto Inhotim falam sobre a Santa Hermandad Orquídea (1939), grupo de poetas que marcou a trajetória de Abdias, e as viagens ao continente africano (1974-77), onde buscava seus referenciais epistemológicos e estéticos. A última parte da exposição mostra obras do MAN que revelam o pensamento pan-africanista de Nascimento. Toda a mostra é habitada por trabalhos de diversos artistas pertencentes à coleção.

Giro, Luana Vitra

Como parte do programa, no último sábado (11/11) foi aberta ao público, também no Instituto Inhotim, a instalação Giro (2023), da artista Luana Vitra (Contagem, MG, 1995), comissionada pelo Inhotim como primeira ocupação da Galeria Marcenaria. Dois meses antes, ocorreu a abertura da impressionante instalação Pulmão da mina, comissionada para a 35ª Bienal de São Paulo, na qual Vitra utiliza o recurso de repetição para realizar uma oração pelas vidas humanas e não humanas perdidas em desastres durante atividades de mineração no período escravista. Com o seu olhar formado pelas cadeias de montanhas das paisagens distantes de Minas Gerais, a artista mineira segue permeada pelas histórias e poéticas locais na instalação Giro. A obra recebe este nome devido ao interesse de Vitra com o movimento do torno, que ao rodar uma matéria base como a madeira ou o barro, permite que a mesma seja moldada.

Ao entrar na galeria, que parece uma casa estreita e comprida com um único cômodo, nota-se a parede branca marcada de ponta a ponta por um caminho de pregos de ferro aplicados um ao lado do outro a formar a silhueta de montanhas mineiras. Sobre eles, pequenos vasos de cerâmica foram cuidadosamente posicionados. Próximas ao chão, pequenas flechas feitas de cobre apontam para o alto. Acima deste conjunto, um fino tecido azul transparente sobe a parede e cobre todo o teto da sala, como um véu a imantar o ambiente. Na borda do tecido, pequenas encruzilhadas feitas de cobre se repetem linearmente por toda a sala. Cobre, barro, pedra de minério de ferro, tecido e anil são os elementos que compõem a instalação de Luana para o Inhotim e vêm se repetindo em seus últimos trabalhos.

À direita do visitante, grandes urnas de cerâmica estão posicionadas sobre pedras de minério de ferro coletadas pela artista no Inhotim. De dentro de cada uma delas, sai uma grande flecha de cobre que aponta para o teto. No ano em que se completam quatro anos do rompimento da barragem em Brumadinho, Luana recupera desenhos que fez na ocasião do crime ambiental. Na época, desenhar as serras e cadeias montanhosas de Minas era, para a artista, como recuperar a paisagem local que vem desaparecendo. Compreendendo que o limite do olhar humano só permite observar um objeto distante até o ponto deste ser tomado pela cor branca, a artista escolhe a raspagem da cerâmica como procedimento poético para revelar montanhas com a cor do barro ao fundo. Neste sentido, retirar a cor branca da cerâmica e trazer à vista o marrom traz para a obra não apenas dimensões cromáticas, mas também sociais.

Seguindo o procedimento de escuta dos materiais, Vitra encontra maneiras de perceber o ferro, matéria local mais abundante e explorada. Sendo o cobre o segundo metal mais condutivo, as flechas apontadas para o alto sinalizam o sentido da energia, o que dá ao trabalho a potência de cura para os metais e para a terra local, em conexão com outros lugares do mundo onde a terra é explorada. A obra se conecta ainda a diversos outros trabalhos espalhados pelo museu e que possuem o ferro como principal elemento, como em Beam Drop Inhotim (2008), de Chris Burden, e Sonic Pavilion (2009), de Doug Aitken. Tendo Minas Gerais como lugar de afeto e ancestralidade, Luana Vitra cria na galeria Marcenaria uma instalação de fé, com o cuidado ético e estético de trabalhar com artistas mineiros e realizar uma prece coletiva para cura local.

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Maria Luiza Meneses é curadora independente e educadora. Graduanda em história da arte
pela UNIFESP, integra os coletivos RedLEHA, Nacional TROVOA e Rede Graffiteiras
Negras. Realiza o projeto Pinacoteca Digital Mauá (2019 – ), foi curadora das exposições
Travessias do moderno em Mauá (2022) e Resíduos Mundanos (2023). Foi assistente pessoal da curadora Diane Lima, atuando com ênfase em pesquisa, produção e curadoria durante a 35ª Bienal de São Paulo, Coreografias do Impossível (2022-2023). Possui textos publicados sobre arte contemporânea, artistas afro-brasileiros, cultura hip-hop, educação freireana e guerras culturais.