Grande Hotel, Neón. Saguão de entrada Sesc 24 de Maio, São Paulo

Em plena ditadura militar, na Bienal de São Paulo de 1968, a artista Carmela Gross apresentou três obras, entre elas “Barril”, uma referência ao instrumento de tortura usado na época pela polícia para provocar uma situação de afogamento nos presos.

A obra foi apresentada justamente na Bienal do Boicote, assim chamada porque muitos artistas deixaram de participar da mostra em sinal de protesto contra a situação vivida pelo país. “Como instrumento de tortura, ele [o barril] já era, por sua vez, resíduo da indústria norte-americana do petróleo. Metáfora reduzida ao mínimo, quase uma não metáfora, mas que implicava a dominação estrangeira e a dependência brasileira, inclusive, nas práticas clandestinas da ditadura”. O depoimento atual, que após 50 anos apresenta um Brasil ainda submisso aos EUA e com a democracia ameaçada, é da própria artista no livro “Carmela Gross”.

A nova publicação traça um panorama da obra de Gross desde 1967 até 2017, portanto uma visão ampla de 50 anos de carreira, apresentando 76 obras de forma detalhada, muitas delas com relatos da artista, como é o caso de “Barril”.

Gross tem sido uma artista com forte presença na cidade de São Paulo, seja em mostras temporárias como a Bienal de São Paulo (1968, 1989 e 2002), seja em obras de caráter permanente, caso de “Grande Hotel”, a mais recente apresentada no livro. Ela se encontra no Sesc 24 de Maio, projetado por Paulo Mendes da Rocha, inaugurado no ano passado no centro da cidade. “O letreiro luminoso GRANDE HOTEL, instalado na praça de entrada do edifício, combina a descoberta de um sítio perdido com a evocação de uma promessa – a da cidade como o lugar maior de seus habitantes”, descreve a artista na publicação.

Luminosos criados a partir de luzes neon ocupam muito da obra de Gross, uma maneira de estabelecer vínculos com as formas de comunicação da própria cidade, subvertidos, contudo, conforme seu desejo. Ela escreveu Hotel sobre a Bienal de São Paulo, em 2002, uma forma que pode apontar tanto para o caráter temporário e passageiro da mostra, como para o caráter limitante e de privilégios que ela encerra.

Esse é um bom exemplo, aliás, dessa relação muito estreita entre a poética da artista e os códigos urbanos, uma linha dominante na publicação, que também ocorre com a apropriação das placas metálicas que em geral denominam nomes de rua, mas na obra de Gross se transformam em estratégias para nomear os que nem sempre possuem visibilidade.

Figurantes, 25 placas de ferro esmaltado

“Figurantes” (2015) retrata bem essa possibilidade, já que: “Alude a um cortejo insólito de dúbias figuras. São aquelas listadas por Marx em O 18 Brumário de Luis Bonaparte (1852), como membros da Sociedade 10 de Dezembro, constituída de biscateiros, herdeiros arruinados, vagabundos e desocupados de toda ordem”, segundo relato de Gross no livro.

É bastante generosa essa maneira de abordar a carreira de Gross, usando junto às imagens das obras seus próprios depoimentos em primeira pessoa para se conhecer o processo de criação da artista, suas inspirações e objetivos. Afinal, a arte contemporânea nem sempre é de fácil comunicação, mas os textos claros e precisos da artista são uma maneira de dar algumas pistas além da própria visibilidade de cada trabalho.

Essa preocupação reflexiva se expande ainda mais na segunda parte do livro organizado pelo curador Douglas de Freitas. “Carmela Gross” reúne ainda uma entrevista da artista conduzida por ele e três ensaios escritos pelos curadores Paulo Miyada, Luisa Duarte e Clarissa Diniz.

Editora Cobogó, 280 págs., R$ 150

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