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Um Milton Dacosta camaleônico

Milton Dacosta, 'Construção sobre fundo vermelho', 1957

Publicada em 5 de setembro de 2018

 

Mais de uma década após sua última individual em São Paulo, Milton Dacosta é homenageado com retrospectiva na Galeria Almeida e Dale. A exposição
entra, ainda, no conjunto de tributos pelo centenário de nascimento do artista, ocorrido em 2015. Falecido em 1988, Dacosta não era adepto dos rótulos, tendo um percurso livre em sua passagem da figuração para a abstração, enquanto os colegas artistas disputavam a importância dos estilos.

Talvez essa disposição em se movimentar tenha sido o que fez de Milton um dos maiores pintores brasileiros do século XX. Para Paulo Pasta, artista muito apreciador da obra de Dacosta, isso tem nome: “Não tem precipitação na pintura dele, tem deslocamento. Eu acho que melhor do que abstração seria chamar o que ele faz de síntese”. Paulo não chegou a conhecer Milton, mas teve muito contato com sua obra e com amigos do pintor
fluminense: “Acho que esse caminho que ele faz para a abstração ele vai palmilhando isso passo a passo. Você percebe esse caminho dele. E como ele vai depurando as figuras. Eu acho isso muito bonito e uma resposta ética do Milton”, comenta.

A exposição na Almeida e Dale segue uma ordem cronológica, começando pelas pinturas dos anos 30, incluindo Autorretrato, de 1938. É nos anos 40 que se percebe a influência da metafísica italiana em Milton.

ACIMA, FIGURA, S.D. ABAIXO, MULHER COM ROSTO APOIADO SOBRE A MÃO, DEC. 1950

Para Pasta, que também carrega um gene metafísico em sua pintura, é uma fase na qual Dacosta “começa a evasão do figurativo para a abstração”. Mas, ao invés de De Chirico – como muitos apontam -, Paulo percebe uma influência  principalmente de Carlo Carrá e completa: “Eu acho que essa escolha dele por uma influência metafisica responderia também a sua vocação um pouco intimista e comedida. Acho que é de acordo de todos que ele faz um construtivismo sensível, muito brasileiro naquilo que ele tem de pudor e  discrição”.

Casado com a pintora Maria Leontina desde o final dos anos 40, trabalhou muito ao lado dela. Alguns boatos espalham que Milton teria se apropriado de características da obra da esposa no que produziu na década seguinte. É nessa década, inclusive, que ele participa da Bienal de Veneza e ganha o prêmio de melhor pintor nacional na II Bienal de São Paulo. Filho do relacionamento, o multiartista Alexandre Dacosta conta que algumas pessoas chegam a confundir o trabalho dos dois, mas discorda: “Eu acho que não dá pra confundir porque a pintura dela era uma coisa mais fluida, na dele era uma pintura mais assentada no chão, digamos assim”.

Nascido em 1959, Alexandre se lembra que, quando moraram em São Paulo na década de 60, o casal tinha um ateliê em meu próprio lar. Em uma espécie de edícula de dois andares, nos fundos da casa, Maria produzia no térreo enquanto Milton produzia no andar de cima. É claro, também, que o casal de artistas trocava figurinhas sobre seus estudos e ideias. Alexandre define essa proximidade de ambos como “uma proximidade de alma”.

Também dedicado à pintura, além de outras modalidades artísticas, o filho afirma que já tentou negar a influência de Milton naquilo que produz. Mas não conseguiu, quando viu já estava fazendo um trabalho ligado ao construtivo, tanto com traços do pai quanto da mãe. “A fase que estou fazendo agora chama-se desconstrutiva”, conta. Paulo Pasta também acredita que foi influenciado de alguma forma por Dacosta. O equilíbrio da luz entre cores compostas, apesar de usarem paletas diferentes, é para ele um ensinamento que aprendeu observando o trabalho do pintor que, para ele, “abandonou o realismo, mas nunca abandona o real”. A exposição na Almeida e Dale pode ser visitada até 24 de novembro.

Palermo, Palermo: Manifesta 12

A dupla italiana Masbedo Protocol. No 90/6, 2018. Comissionado pela Manifesta. Foto: Divulgação

Quando o Ministro do Interior da Itália, Matteo Salvini, proibiu o desembarque de 629 imigrantes do navio Aquarius, em junho passado, o prefeito de Palermo, Leoluca Orlando tentou contrariar a ordem: “Estamos convencidos que imigrantes não são um problema. Esta situação é uma oportunidade de defender os direitos de todos os seres humanos em se mover e viver no lugar que lhes convier”, disse Orlando naquele momento. Como os portos italianos são de cuidado do poder federal, os imigrantes tiveram que desembarcar na Espanha, quase uma semana depois. A defesa do livre trânsito, contudo, ecoou nos dias seguintes, quando o prefeito participou dos eventos de abertura da 12a. edição da Manifesta, a bienal itinerante da Europa, que segue em Palermo até 4 de novembro. Político raro, ele roubou as atenções dos jornalistas que acompanhavam os dias de inauguração, com discursos que contrastam com o cenário conservador e reacionário do mundo atual.

Nascido em Palermo, onde se formou em direito, Orlando, 71, estudou em Heidelberg, na Alemanha, com professores como os filósofos Martin Heidegger e Hans Georg Gadamer. Eleito prefeito em Palermo, em 1985, foi um dos líderes que conseguiu reduzir o poder da máfia, historicamente no controle da Sicília.

Manifesta
Jelili Atiku, Festival of the earth, Alaraagbo XII, 2018. Performance realizada no Planetary Garden durante a Manifesta 12 em Palermo. Foto: Divulgação

Desde então, foi reeleito quatro vezes e o mandato atual foi conquistado com 74% dos votos. Desde os anos 1990, quatro mil mafiosos foram presos e o discurso de Orlando a favor da imigração, consolidado na Carta de Palermo, de 2015, não é apenas teórico: nos últimos dois anos 400 mil imigrantes entraram na Sicília, quantidade impressionante para uma população de 5 milhões de habitantes.

Jardim planetário

Esse contexto não podia ser mais favorável a uma mostra como a Manifesta: “Queremos ser uma bienal radicalmente local e relevante, por isso é uma mostra sobre Palermo, e as questões essenciais aqui, de uma ilha entre três continentes, que luta contra o crime, contra o racismo e o aquecimento global”, disse Hedwig Fijen, diretora e criadora da Manifesta.

Desde 1996, a Manifesta já passou por 12 cidades europeias, começando por Roterdã, na Holanda, onde a bienal foi concebida, passando por São Petersburgo (2014) e Zurique (2016), nas edições mais recentes.

Em Palermo, a concepção da mostra teve início com um projeto conduzido pelo escritório de arquitetura holandês OMA, que criou o “Palermo Atlas”, uma compilação de informações da arquitetura, cultura e história da cidade.

A mostra em si foi organizada por um time de quatro mediadores culturais, dois deles arquitetos — o espanhol Andrès Jaque e o italiano Ippolito Pestelleni Laparelli, que também trabalha no OMA —, a artista holandesa Bregtje van der Haak — que participou da 27a Bienal de SP, em 2006, e a curadora suíça Mirjam Varadinis.

“Trabalhamos em conjunto tanto na seleção como na escolha dos locais, o objetivo foi buscar espaços que não costumam apresentar arte, já que há ótimos museus aqui, para criar um novo percurso pela própria cidade”, contou Haak à arte!brasileiros. Para tanto, a mostra se divide em 20 espaços, desde pequenas capelas, passando por imensos palácios, chegando no Jardim Botânico da cidade.

É de lá, aliás, que vem o nome desta Manifesta: “O Jardim Planetário”. O termo é  emprestado do botânico francês Gilles Clément que, em 1991, usou a expressão jardim planetário, para apontar como natureza e cultura humana são corresponsáveis na manutenção da Terra. A partir desse conceito, a mostra se desenvolve por três seções: Jardim dos Fluxos, Sala sem Controle, Cidade no Palco.

Na rua 

A parte da mostra no Jardim Botânico, contudo, é a que menos empolga na Manifesta, afinal é difícil competir com as plantas que crescem no local desde 1789, uma das referências mundiais para o estudo de espécies exóticas. Originalmente, o local foi criado para o cultivo e pesquisa de plantas medicinais pela Academia de Estudos de Palermo. Atualmente, ele possui mais de 12 mil espécies. Dos oito artistas que participam desta seção, o colombiano Alberto Baraya é o que melhor explora a relação com espaço, usando uma série bastante conhecida, na qual reúne plantas falsas e as apresenta como se fossem objeto de estudo científico, o que foi apresentado na Bienal de São Paulo em 2006. “É um trabalho que na verdade não consegui evitar aqui, afinal é totalmente adequado ao Jar-
dim Botânico”, afirmou, perto de uma vitrine com vários pedaços de limões sicilianos de cerâmica em um dos viveiros do espaço.

No entanto, é nessa fricção entre a cidade, seus locais e as intervenções dos artistas que a Manifesta se realiza de fato e um dos melhores exemplos disso foram as procissões realizadas na semana de abertura. Elas ocorreram inspiradas pelas dezenas de festividades religiosas que ocorrem ao longo do ano em Palermo, entre elas a da padroeira da cidade, Santa Rosália, um dos marcos da cultura siciliana explorada por Coppola nos filmes de “O Poderoso Chefão”, uma referência impossível de se evitar por ali.

O nigeriano Jelili Atiku, a italiana Matilde Cassani, e a dupla italiana Masbedo usaram as ruas de Palermo, cada um a seu jeito, criando situações que simularam procissões e festividades públicas. No caso de Atiku, a performance Festino dela Terra misturou as celebrações de Santa Rosália com arquétipos antigos da cultura Iorubá dos homens
verdes. Já Cassani ocupou o cruzamento mais suntuoso da cidade, Quattro Canti, com uma ação denominada Tutto, jogando milhares de papéis coloridos no local, uma referência à tradição barroca da cidade. Esses trabalhos fazem parte da seção Cidade no Palco.

Manifesta
Matilde Cassani, performance realizada em Palermo com a colaboração de Francesco Bellina e Stefano Edward. Foto: Divulgação.

Golpe

As obras mais contundentes da Manifesta fazem parte da seção Sala sem controle, uma ironia explicita ao termo Sala de Controle, e nela artistas como a cubana Tania Bruguera, o francês Kater Attia, o turco Erkan Özgen, a holandesa Patricia Kaersenhout e o italiano Filippo Minelli, entre outros, dão um tom político à mostra, ao retratar dramas contemporâneos.

Esses artistas se dividem em dois palácios: Ajutamicristo e Forcella de Setta, ambos exemplos de uma Palermo suntuosa nos séculos 18 e 19, mas decadentes após o período que a máfia dominou a cidade ao longo do século 20. Esse estado de quase ruína foi cenário para a peça Palermo, Palermo, que a coreógrafa alemã Pina Bausch criou na cidade, em 1989.

No palácio Ajutamicristo, Bruguera faz uma instalação em colaboração com Movimento No
Muos, contrário ao sistema chamado Mobile User Objective System (MUOS), utilizado por uma base norte-americana que controla drones para usos bélicos e cujas antenas parabólicas são prejudiciais aos habitantes de Niscemi, a cidade siciliana onde estão instaladas. A instalação é uma espécie de compilação dos materiais de protesto dos militantes italianos contra o MUOS. A artista norte-americana Laura Poitras também aborda
o mesmo tema, apresentando em uma projeção a região onde se localizam as antenas parabólicas. Já Özgen exibe “Purple Muslim”, uma instalação criada em colaboração com refugiadas sobre o impacto da guerra nas mulheres que fogem de zonas de conflitos, um documentário que retrata os traumas da violência a partir de relatos sensíveis. Finalmente Minelli pendurou no Palazzo Ajutamicristo dezenas de bandeiras de protestos de várias procedências, entre elas uma verde e amarela com a palavra golpe em destaque.

Atual e atenta a questões locais que merecem atenção global, a Manifesta 12 é uma edição vibrante, que explora Palermo de maneira respeitosa: ao mesmo tempo que revela espaços até então não visitáveis, os preenche com obras de impacto e conteúdos urgentes.

  • Leia também sobre a Manifesta 13, aqui.

Montblanc de la Culture Arts Patronage premia a artista Mônica Nador

Prêmio Montblanc de la Culture Arts Patronage
Mônica Nador, homenageada pelo Prêmio Montblanc de la Culture Arts Patronage Foto: Coil Lopes


Desde 2016, os curadores Sam Bardaouil e Till Fellrath foram colocados à frente da Fundação Cultural Montblanc com o objetivo de pesquisar e criar estratégias  junto à Fundação. Viajaram e nomearam curadores de várias partes
do mundo para auxiliá-los nessa tarefa. Formaram, assim, um conselho.

No Brasil, o curador responsável é Jochen Volz, diretor da Pinacoteca do Estado de São Paulo. A rede de curadores é denominada por eles como Curatorium e busca aumentar a escala de alcance da instituição.

Prêmio Montblanc de la Culture Arts Patronage chega à 3ª edição no Brasil
SAM BARDAOUIL, JOCHEN VOLZ E TILL FELLRATH DURANTE A CERIMÔNIA DE PREMIAÇÃO EM 2017 NA PINACOTECA DE SÃO PAULO

Em 6 de setembro, a Fundação Cultural Montblanc agraciará pela terceira vez, com o Prêmio Montblanc de la Culture Arts Patronage, um agente da arte no Brasil, pelo seu trabalho como patrono junto à sociedade. O Prêmio ocorre em 17 países em edições especiais. Os curadores acreditam que a arte brasileira tem um enorme potencial, daí a importância de terem escolhido um curador pelo Brasil para o Conselho.

Além de oferecer um prêmio a patronos, a Montblanc se dedica a investigar o surgimento de jovens artistas que estejam fazendo um trabalho interessante em seus países de atuação. Os selecionados são contemplados com uma bolsa de comissionamento para a produção de um projeto que, mais à frente, é incorporado a grandes eventos de arte ao redor do mundo, como Bienais.

Em 2016 e 2017, o Prêmio Montblanc de la Culture Arts Patronage homenageou, respectivamente, a dupla de cineastas Luiz Bolognesi e Laís Bodanzky, pelo projeto Cine Mambembe, e Solange Farkas, pela Associação Cultural Videobrasil.

JAMAC

Neste ano, a 27a edição global e 3a no Brasil irá conceder o prêmio para o JAMAC, Jardim Miriam Arte Clube. Este projeto começa quando a artista Mônica Nador decide, em 2003, que precisava sair do conforto de Higienópolis e desbravar os espaços periféricos da cidade de São Paulo. Levou consigo uma enorme vontade de fazer a diferença na vida de pessoas que não tinham acesso ao universo artístico do qual fazia parte. Foi assim que, naquele mesmo ano, juntou e organizou suas ideias para abrir um espaço na parte marginalizada da Zona Sul de São Paulo. Espaço esse no qual conseguisse compartilhar com aquela comunidade o que ela e outros colegas artistas aprenderam ao longo de sua formação. A decisão de se mudar para o Jardim Miriam veio de um questionamento que Nador, ou Conca – como foi apelidada por suas irmãs e é carinhosamente chamada pelos mais próximos –, tinha desde os anos de faculdade. Ela conta que, quando esteve no curso de Artes Visuais entre 1978 e 1982, a formação excluía as questões sociais. A inquietação em torno disso e de outros fatores em sua vida fez com que ela se ligasse à problemática da pobreza: “Também me interesso por outras questões sociais, mas para mim o grande entrave é a distribuição de renda”, comenta.

Mas o JAMAC não seria possível, ela aponta, se a comunidade não tivesse abraçado a iniciativa e se engajado em seu desenvolvimento. A primeira pessoa que procurou ao chegar no bairro, por indicação de um amigo, foi o professor de geografia Mauro de Castro. “Eu tinha uma preocupação muito grande que era de perguntar se interessava para as pessoas que eu levasse um equipamento do tipo que eu estava propondo”, explica. Mônica não queria se impor, queria se integrar ao local onde escolheu viver e trabalhar: “Eu sempre quis construir as práticas a partir das necessidades locais e junto com as pessoas.” Mauro integra desde aquela época um grupo ligado a movimentos sociais chamado Núcleo Aparecida Gerônimo e representa uma espécie de liderança comunitária no Jardim Miriam. Nos preparativos para a implementação do projeto, Mônica se deslocava todo domingo para o bairro, se reunindo com Mauro e o coletivo para discutir e construir a ideia. Assim, aquele projeto tão pensado ia saindo do mundo das ideias.

Trabalho do coletivo Contrafilé. Segundo Mônica, a ação só foi possível por causa dos programa Pontos de Cultura, do governo Lula.

Em 2006, quando o JAMAC foi convidado para participar da Bienal de São Paulo, com curadoria de Lisette Lagnado, Mônica conheceu outra pessoa que viria a ser uma grande parceira em manter aparelho. Sob o tema Como viver junto, aquela edição trazia um grande trabalho com as periferias, recrutando também educadores que tinham alguma ligação com arte e cultura nas regiões marginalizadas da cidade. Foi então que Mônica conheceu Thais Scabio. Na época, a hoje cineasta ainda era estudante: “O trabalho deles era exercitar algumas experiências de sensibilização das pessoas da comunidade”, explica a artista.

Apesar de engajada nos saberes da arte e cultura, mesmo morando no bairro, Thais ainda não conhecia o JAMAC. O encontro mútuo gerou, desde aquele ano, muitos bons frutos e novos projetos. Thais começou montando um cineclube para exibir aos frequentadores do espaço alguns grandes filmes aos quais nunca tinham se atentado. Um tempo depois, já tinha uma proposta didática para formação audiovisual.

Foi aí que o JAMAC começou a oferecer, além do grafite, da estampa e outras propostas das artes visuais, um mergulho no mundo do cinema. De lá pra cá, muitos jovens se formaram. Brinca Mônica que muitos fugiam da oficina de estamparia para a oficina de cinema, e vice-versa, mas nunca houve ciúme por isso.

Nesses 15 anos de atuação do clube de arte na região, Nador diz que o que mais a marcou são as experiências humanas que adquiriu nos anos que se passaram: “A gente fica enorme. A diversidade é muito rica. A situação é muito rica. Eu aprendi demais com as pessoas daqui”. Ela conta que houve uma grande modificação na forma em que ela via o bairro nos anos que ali está: “Nós, em nossa bolha da classe média, somos um bando de ignorantes”, afirma. “As pessoas na periferia são muito informadas, muito articuladas. É diferente do que a gente pensava, principalmente nos anos 80 e 90. Tanto que eu vim pra cá em 2003, com a ilusão de que viria trazer a informação e a cultura”, completa.

Se antes a artista tinha um olhar um tanto colonizador para o Jardim Miriam, hoje ela consegue enxergar que o espaço também a formou: “Apesar da minha compaixão, eu ainda sim era muito branca”. Seu deslocamento de um dos bairros mais elitistas da capital para um dos bairros mais afastados fez com que ela enxergasse muito do
que era maquiado no lugar de onde veio: “Quando vim parar aqui, pensei: não é que em São Paulo tem preto mesmo? E não é que não tenha no centro, é que eles são  invisibilizados”.

Hoje, o maior sonho de quem gere o JAMAC, é ter um espaço fixo no qual possa ter a segurança que irá ficar: “Queremos comprar uma sede”, diz Conca. O que mais preocupa é saber se irão dar conta de conseguir um prédio para abrigarem todas as atividades que oferecem, tendo em vista que o atual é alugado, mas está sendo reivindicado pelo proprietário. “Não dá pra nós sonharmos muito, mas o que eu quero é que todo mundo tenha um JAMAC na esquina de sua casa”, admite. Para finalizar, ela cita José Martí: “Um povo sem a cultura nunca será um povo livre”. É por isso que acredita que a cultura
é tão diminuída, para que os poderosos neguem a liberdade às pessoas.

Arte além da arte?

arte além da arte

*Por Diana Wechsler

Pensar a arte, “além da arte” hoje, implica em se perguntar novamente sobre seus alcances e seus limites e, nesse caminho poder sustentar – hipotética e temporariamente – sempre, a consideração de que, de alguma forma, todo é arte ou não é.

Lembremos que o conceito de arte está inscrito histórica e culturalmente de forma precisa e que falar de “arte” hoje implica em se remeter, a priori, a considerações do Século XIX, que consideravam e incluíam dentro do conceito de ”arte” variáveis ligdas a necessidades representativas, mágico-religiosas, ornamentais, etc.

É certo que esta noção continua vigente em nossos dias e continua sendo eficaz, independentemente das suas limitações, para nomear certo tipo de imagens, objetos e atos. Justamente no momento em que a noção de arte se estabelecia, a historia da arte aparecia também como uma disciplina científica capaz de ordenar e pensar o sistema das imagens no ocidente europeu.

A partir daqui começamos a nos perguntar, em que medida, esta disciplina, formulada desta forma, teria condições de dar conta da diversidade da produção simbólica global, compreendida dentro da noção de “arte” e, ainda mais, dentro dos processos artísticos contemporâneos.

A expansão do seu campo de ação tem sido crescente. Nos últimos 40 anos, tanto os estudos dedicados as artes visuais, como varias das perspectivas interligadas -a sociologia cultural, a antropologia, a filosofia e a historia- contribuíram para ampliar o pensamento crítico e o repertório de objetos a considerar.

CHRISTIAN BOLTANSKI
CHRISTIAN BOLTANSKI (FRANÇA), MISTERIOS, 2017. INSTALAÇÃO APRESENTADA NO MUSEO DE BELLAS ARTES DA CIDADE DE BUENOS AIRES

Deixando sempre o debate aberto, tal vez seja necessário estabelecer alguns novos parâmetros. Situarmos a mirada e o imaginário em outro lugar, resignificar a apreensão de formas e imagens e como elas se constituem, de forma não só a ordená- las pensando desde a lógica de um “sistema”, e sim desde um lugar entrópico, procurando acompanhar seu des-orden, identificando e associando múltiplos vectores. Dado que o âmbito da produção contemporânea se expandiu – definitivamente os artistas estão cada vez mais impactados pelas esferas social, política, ambiental e procuram interferir/intervir de alguma forma- as produções simbólicas também precisaram ampliar sua caixa de ferramentas teórico-críticas, na busca de captar tanto as dimensões poéticas como sua complexidade e com elas dialogar com diferentes públicos.

Por outro lado existe a lógica do mercado que, insistentemente busca definir cidadanias e a cultura, precisamente o espaço da arte não é alheio a isto. Neste sentido, uma produção contemporânea com aspirações de incidir além dos espaços que lhe seriam naturalmente adjudicados, a lógica de obra única, de “cubo branco”, de aspiração museológica, contribui com o trabalho de emancipação do pensamento.

É a partir destas considerações que os formatos – de arte e para a arte – em que se insere a arte contemporânea demandam uma revisão e um replanejamento das relações entre os atores, os projetos e os espaços do “sistema da arte”: de artistas a curadores, críticos, colecionistas, até instituições – museus, centros, galerias, residências, centros de formação.

Neste sentido, o sociólogo Aníbal Jozami e eu pensamos criar uma plataforma, BIENALSUR que pense, além do sistema, procurando traçar outras vias para atravessa- lo. Criando regras que pudessem enriquecer (o sistema?) um pouco arrogante? Um cruze desde a sociologia e das relações internacionais e a partir de estudos culturais, junto a outras disciplinas, que permitisse analisar formas específicas e conhecidas dentro do sistema e repactuá-las, sem fugir de certas marcas da ordem geopolítica global.

arte além da arte

Decidimos trabalhar então, com alguns dos instrumentos já desenhados para representar o mundo: os mapas – instrumentos de ordem e controle de territórios – E, como forma de representar um dos aspectos marcantes de BIENALSUR, escolhemos um mapa cuja “Rosa dos Ventos” orienta, provocadoramente, onde se estiver colocado, ao SUL.

Pensar desde o SUL, não se remete somente aquela obra de Joaquím Torres García, e sim, um SUL global. Não se trata de uma questão geográfica e sim de uma tentativa de mudança do ponto de vista. Uma tentativa de “fazer girar nosso pensamento”. Podemos estar BIENALSUR, em São Paulo, Buenos Aires, Johannesburgo, Tokyo ou em Madrid o Svalbard.

Uma cartografia sem limites políticos, que presenta simultâneamente cidades-sedes de projetos artísticos escolhidos, por um conselho de especialistas, dentre uma vasta apresentação. A partir de uma convocatória aberta. Essa cartografia, longe de estabelecer fronteiras, propõe convivências. Coloca par a par, museus, escolas, espaços públicos, pequenas instituições. Estabelece convergência de temas e artistas de origens, formações e gerações variadas em exposições pensadas a partir dos projetos enviados pelos artistas, invertendo assim, a dinâmica habitual.

Este projeto que pensa criticamente os parâmetros instituídos nos permite refletir sobre as “bordas” que determinam hoje os contornos ou limites da arte. Desde onde enxergamos e como, o que fica fora ou dentro do nosso olhar, mais ainda quando exercemos um olhar crítico. Uma proposta indisciplinada é condição para expandir, desde o olhar artístico, os limites do pensamento para a emergência de um humanismo contemporâneo.

 

*Diana Wechsler é historiadora de arte, pesquisadora, diretora da área de cultura da UNTREF e diretora artística da BIENALSUR

V Seminário ARTE!Brasileiros debate os limites da arte

Diferentes perspectivas globais na experimentacao da arte no v seminário da artebrasileiros
Diferentes perspectivas globais na experimentacao da arte no v seminário da artebrasileiros

A arte contemporânea sempre estabeleceu vínculos com outras áreas, é só se lembrar de Beuys e a questão ecológica, nos anos 1970, por exemplo, ou mesmo as práticas terapêuticas desenvolvidas por Lygia Clark, no mesmo período.

Nos últimos anos, contudo, essa aproximação criou de fato relações muito estreitas, como ocorre com a agência de pesquisa Forensic Architecture, baseada na Universidade de Londres, e que é uma das candidatas ao Turner Prize, organizada pela Tate neste ano.

O grupo tem desenvolvido métodos pioneiros de investigações espaciais de violações tanto públicas quanto de corporações em todo mundo. No Brasil, o artista e cur`ador Paulo Tavares fez parte da agência inglesa, mas desde o ano passado ele criou a agência Autônoma, uma plataforma dedicada à pesquisa e à intervenção espacial.

A quinta edição do seminário internacional ARTE!Brasileiros tem como tema ARTE ALÉM DA ARTE para mapear obras, projetos, instituições e mesmo exposições que trabalham em um campo limítrofe entre arte e não arte. Tavares será um dos participantes segunda mesa da tarde, tocando na dimensão de advocacia da arquitetura/culturas visuais no contexto Latino Americano. Atualmente, ele também é cocurador da Bienal de Arquitetura de Chicago, que ocorre em 2019.

Na mesma mesa, estarão presentes o curador da 33a Bienal de São Paulo, Gabriel Pérez-Barreiro, para apresentar sua proposta; a diretora do Museu de Antioquia, Nydia Gutierrez, que desenvolveu uma aguerrida defesa da programação do Museu durante anos de luta entre as FARC e o governo e, Anneliek Sijbrandij, fundadora do projeto The Verbier Art Summit, na Suíça, criado para juntar anualmente artistas e acadêmicos e fazer reflexões críticas sobre a responsabilidade política e social do mundo da arte.

 

De novo

O seminário será aberto com a exibição da obra “Again/Noch einmal” (De Novo), do alemão Mario Pfeifer, comissionada pela 10ª Bienal de Berlim, atualmente em cartaz na Alemanha. O vídeo utiliza estratégias próximas às desenvolvidas pelo Forensic Architecture ao reencenar um caso de extrema violência e preconceito contra imigrantes ocorrido na Alemanha, há dois anos, recriando um júri popular que analisa o caso. Pfeifer vem a São Paulo e vai falar sobre sua obra no início do seminário.

No primeiro painel da manhã, vão debater Geopolítica e Arte o sociólogo e diretor da Universidade 3 de Febrero de Buenos Aires e diretor de BIENALSUR, Aníbal Jozami; o diretor adjunto do Museu Reina Sofia, João Fernandes; a artista chilena Voluspa Jarpa e a historiadora de arte, diretora diretora artística da BIENALSUR e diretora da área cultural da UNTREF, Diana Weschler.

Em cartaz em Palermo, na Itália, a 12ª edição da Manifesta, a bienal itinerante europeia (leia matéria na página xx), ocorre a partir do convite do prefeito da cidade, Leoluca Orlando, que vem marcando sua atual gestão pelo apoio à arte como forma de transformação social. Palermo é agora, em 2018, a capital cultural da Itália. “Há uma década, eu tenho certeza que não seria possível organizar um evento cultural do porte da Manifesta aqui em Palermo. A violência e a máfia não tolerariam”, afirmou Orlando na abertura da mostra há dois meses. Em seu quinto mandato não consecutivo na cidade, ele é um dos responsáveis pela transformação da capital da Sicília. Impossibilitado de comparecer pessoalmente ao Seminário, ele envia um depoimento exclusivo que será exibido durante o painel Geopolítica e Arte.

Para encerrar o Seminário, curadores e Chairmen da Montblanc Cultural Foundation fazem entrega do Prêmio Montblanc de la Culture Arts Patronage ao JAMAC (Jardim Miriam Arte Clube) e à artista responsável pela sua criação e gerenciamento, Mônica Nador.

Poema-Processo: a vanguarda que deu ao poema status de objeto

Wlademir Dias-Pino Estruturas, 1966 Madeira, tubos e plástico

 

Gustavo Nóbrega, junto à Galeria Superfície, da qual é fundador, é responsável pela criação, pesquisa e edição do livro Poema-Processo, publicado pela Martins Fontes.

Nóbrega é artista plástico e vem de uma família de galeristas. Isso o levou, desde cedo, a ter um contato estreito com a arte. Seu olhar, porém, esteve sempre voltado para artistas que tivessem um trabalho de cunho mais poético ou outros que usam a palavra na imagem. Ele trabalha nessa vertente ora na pesquisa, ora nas exposições que resolve montar na galeria.  Foi assim com Leonílson, com Mira Schendel, e agora, na mostra que acabou de apresentar e que comentamos na página 64 da edição 44, com Neide Sá.

Esse foco o levou a encampar uma importante pesquisa sobre os artistas que fizeram parte da história da poesia visual no Brasil.

“Um dia eu vi uma matéria numa revista internacional sobre o Poema-Processo. Eu achei fascinante. E pensei: ‘como é que o Brasil não conhece isso?’. Fui atrás e, a partir daí, uma coisa levou a outra. Wlademir Dias-Pino, Neide Sá (Saiba mais sobre a artista clicando aqui). Fui descobrindo o mundo dos artistas que participaram dos diferentes processos e estabeleci várias conversas com eles. Essa foi a maior fonte de pesquisa.”, diz Nóbrega.


ENTRE 1956 E 1967, DA POESIA CONCRETA AO POEMA/PROCESSO, TRABALHO DE WLADEMIR DIAS-PINO, SÓLIDO, 1962. SERIGRAFIA, CORTES E VINCOS SOBRE PAPEL

O livro mapeia a 1a Exposição Nacional de Arte Concreta, inaugurada no Museu de Arte Moderna de São Paulo, em 1956, que contou com a participação de vários pintores, escultores e poetas. Hoje, nomes consagrados como Augusto de Campos, Décio Pignatari, Ferreira Gullar, Haroldo de Campos, Ronaldo Azevedo, Waldemar Cordeiro e Wlademir Dias-Pino.

Em 1959, Ferreira Gullar assinava o Manifesto Neo Concreto, junto a Amílcar de Castro, Franz Weissmann, Lygia Clark, Lygia Pape, Reynaldo Jardim e Theon Spanudis. Alguns deles tinham fundado o Grupo Frente no Rio, e outros o Grupo Ruptura em São Paulo.

Pouco tempo depois nasceu, em Natal, o Grupo Dés, cujo manifesto intitulado “Por uma Poesia Revolucionária, Formal e Temática” era assinado por Anchieta Fernandes, Dailor Varela, Fernando Pimenta, Jarbas Martins, João Charlier, Juliano Siqueira, Ribamar Gurgel e Moacy Cirne.

Baseado nas produções criativas desses grupos, os artistas viram a necessidade de diferenciar poesia de poema. “A poesia era tomada como um conceito abstrato, enquanto o poema era enxergado em seu aspecto táctil, material, passível de ser manipulado”, diz Nóbrega na apresentação do livro.  O poema ganhou status de objeto. Produziram-se assim, poemas para serem rasgados, queimados, degustados.

O movimento Poema-Processo, em 1967, surgiu paralelo à Tropicália, numa época onde qualquer ruptura criativa colaborava com a ideia de ruptura com a comunicação institucional da ditadura. Fundado por Wlademir Dias-Pino, Neide Sá, Álvaro de Sá, entre outros, o grupo chegou a ter mais de 70 artistas e poetas brasileiros participantes e até um uruguaio, Clemente Padin, e um argentino, Edgardo Antonio Vigo.

Wlademir Dias-Pino 1967

O grupo trabalhava com a ideia de processo, utilizando a linguagem como veículo. A partir daí, se construíam várias versões que se somavam por sua vez a diferentes estilos, o que permitia uma despersonalização da obra.

O livro, que tem até um texto original do crítico Frederico Morais para o Jornal Diário de Minas, de 1957, quando este tinha apenas 21 anos, intitulado “A poesia nas Artes Visuais”, traz à luz uma das vanguardas históricas brasileiras da arte contemporânea.

(Poema-Processo: uma vanguarda semiológica, 320 páginas, WMF Martins Fontes, R$ 120)

Itaú Cultural: Germán Lorca, IMS: Irving Penn e ECPS: Bob Wolfenson

German-Lorca, Homem Guarda Chuva_Reprodução-fotográfica-João-L.-Musa-Itaú-Cultural

A Fotografia, apesar dos arautos do apocalipse terem decretado sua extinção com a chegada dos smartphones e sua provável banalização, continua mais potente que nunca.

Primeiro porque, além dos fotógrafos, artistas contemporâneos se apoderaram dela como ferramenta e como suporte para desenvolver vários dos seus trabalhos.

Segundo porque instituições passaram a valorizar a memória e a documentação e aí, a fotografia, tem um papel insubstituível. Para quem deseja refletir academicamente sobre o papel da imagem como documento e expressão artística, pode ser útil considerar a possibilidade de facharbeit schreiben lassen com esse enfoque. Terceiro porque cresceu o número de galerias que colocaram a fotografia no mercado. E, por último, com o enxugamento da mídia impressa na área de noticias perecíveis e sua migração para as plataformas digitais, editoras se voltaram para a publicação de produtos menos efêmeros, com textos, imagens fotográficas e ilustrações de alta qualidade.

Ainda se descartássemos metade do que se produz com o acesso crescente e massivo à captura e à distribuição de fotografias, teríamos hoje a oportunidade de obter imagens inéditas e outras que nos emocionam apenas ao lembrar um delicioso dia na companhia de amigos.

Agosto e setembro têm sido meses escolhidos para a abertura de feiras e exibições importantes na área da fotografia. No Museu da Fotografia, em Fortaleza, em setembro, abre exposição do renomado fotógrafo americano, que vive em Johannesburgo, África do Sul, Roger Ballen. Em Salvador, na Caixa Cultural abriu a exposição do brasileiro Christian Cravo, neto do querido multiartista Mário Cravo Júnior, que faleceu recentemente.

No Rio de Janeiro, como resposta ao ataque sistemático que tem vivido a cultura, o coletivo/movimento FOTORio, mantém uma série de atividades em várias instituições e galerias particulares.

Em São Paulo,  acontecem exposições fotográficas: a artista paraense Berna Reale na galeria Nara Roesler, o catalão Jordi Burch na galeria Janaina Torres e Alberto Ferreira na galeria Lume.

Geraldo de Barros por Bob Wolfenson
Hermeto Pascoal por Bob Wolfenson

O fotógrafo brasileiro Bob Wolfenson ganha uma grande retrospectiva, Retratos, no Espaço Cultural Porto Seguro – ECPS, Irving Penn um dos mestres da fotografia internacional é homenageado no Instituto Moreira Salles – IMS, com a mostra Centenário, a partir do dia 21 de agosto e German Lorca: Mosaico do Tempo até 4 de novembro no Instituto Cultural Itaú

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Densidade e leveza marcam o trabalho de Maria Laet

A obra de Maria Laet é uma suave projeção de sua personalidade. Ambas têm a essência onírica que brota de um imaginário quieto, afetivo e seletivo. A nova exposição, em cartaz na galeria Marília Razuk, é uma ode ao poético, com giros e achados, desenvolvida num momento especial desta jovem artista que se prepara para atuar na 33ª Bienal de São Paulo. Os onze trabalhos entre vídeos, fotografias, monotipias, objetos e uma instalação transformam-se em cerimônia íntima com a natureza. Alguns deles têm a densidade e a leveza de um nevoeiro, tudo muito intimista e repleto de imaginação analítica. Os alinhavos na terra aparecem mais uma vez na superfície, mas agora provocam tensão entre lugar e espaço, e parecem querer deter o ritmo das raízes, entrelaçadas em movimento profundo e sem fim.

Tudo em Maria Laet gera poesia, como na série em que “cadernos” de páginas brancas, delicadas, sem qualquer traço ou escrita conversam com outras obras como a foto de uma floresta rodeada por esbranquiçada bruma. No conjunto, o estilo sobrepõe a forma no domínio da sombra, luz e gesto. Na instalação, que pede participação do público, há um sussurro político. O pequeno espaço de paredes negras, com piso repleto de bolas de aço que se movem desorientadas pela presença do homem, encena a conquista por lugares.

Nos vídeos que se juntam à mostra, a respiração norteia, tira o visitante do plano ótico e o conduz à uma experiência sensitiva. Em um deles, um músico de tuba, tem o som de seu instrumento lacrado, e o “concerto” se realiza pelo aspirar e expirar do personagem. Em outro vídeo, ela mescla procedimentos e poéticas da natureza, onde o interesse está no balançar de um coqueiro, que respira na mesma cadência do músico da tuba do vídeo anterior. Esse universo tão particularizado na obra de Maria Laet parece conversar com um tonal de sua vida emotiva. Ela é admiradora confessa da obra de Ana Mendieta, artista cubana, morta misteriosamente aos 37 anos, ao cair nua do 33º andar de um edifício em Nova York, quando estava casada com o minimalista norte-americano Carl Andre, episódio até hoje não elucidado. Maria Laet e Ana Mendieta trabalham com a land art, o silêncio e captam tensões da existência humana em seu meio ambiente

Clique aqui para ler mais sobre Maria Laet na 33ª Bienal de São Paulo.

Antonio Dias e Mario Cravo Jr. in memoriam

Obras sem título de Mario Cravo
Obras sem título de Mario Cravo jr. Da esquerda para a direita, uma de 1989 e outra de 1983.

“Antonio era serenidade, equilíbrio, tranquilidade. Mario era força movimento e agito”. É assim que Thais Darzé, diretora da Paulo Darzé Galeria, de Salvador, resume suas impressões sobre Antonio Dias e Mario Cravo Jr. Ambos os artistas faleceram no último dia 1 de agosto, também dia que nos deixou Eleonore Koch. A notícia dessas partidas, com poucas horas de intervalo, deixou muita saudade.
Ambos do nordeste, Antonio, nascido em Campina Grande (PB), e Mario Jr., soteropolitano, encontraram na década de 80 mais um amigo em comum. Esse seria especial por poder apresentá-los em solo nordestino, em seu lar. Paulo Darzé tinha acabado de inaugurar a galeria homônima quando conheceu Mario. A amizade, seguida da representação do artista pela galeria, trouxe um respaldo muito grande para a galeria estreante. Ter em seu corpo de artistas o escultor baiano dava muita credibilidade, explica Thais, que também nascia naquele 1983.

Antonio Dias, Sem Título, 2014
Antonio Dias, Sem Título, 2014

A relação com Antonio vem cinco anos mais tarde. O artista também passa a ter exposições feitas pela galeria, quando esta começa a expandir os horizontes, buscando grandes artistas de fora do território baiano. Antonio fazia muito sucesso por onde passava: “Ele amplia todo esse universo, abre os olhos da formação de público aqui, além da própria projeção internacional dele, o que faz com que a gente também busque uma sintonia com tudo o que tá acontecendo no mundo da arte”, explica Thais.
Para Thais, é fácil falar sobre os dois. Ela se lembra de ter convivido com eles desde garotinha: “Eu tive a honra e a sorte de poder conviver, e crescer, com dois monstros da arte, duas pessoas maravilhosas, um com uma energia completamente diferente do outro”. Ela via em Antonio uma personalidade mais doce. Já Mario, de acordo com ela, era dono de uma “personalidade com tamanha força” que desconhece em outras pessoas.
A galeria, inclusive, foi a última a sediar exposições dos artistas ainda em vida: a de Dias em março deste ano, a de Cravo Jr. em outubro de 2017. Paulo Darzé, diretor e fundador da galeria, conta que Mario se emocionou muito nessa exposição, que reuniu uma série de esculturas em madeira e ferro. Já a de Antonio era um desejo de longa data, desde 2016 a galeria havia planejado, mas só foi possível há poucos meses. Segundo Paulo, o artista se empenhou o máximo para que a exposição saísse, inclusive trabalhando firme no catálogo.
Além do lado profissional, a amizade se estendia para a vida social. “Foi um choque muito grande perder os dois no mesmo dia”, afirma o galerista.

Mergulho no conceitual

Lygia Pape
Lygia Pape (1927-2004), Língua Apunhalada, 1968, Fotografia / Poema visual

“Estratégias Conceituais”, em cartaz na Galeria Bergamin & Gomide, se debruça sobre a sólida parceria que se estabeleceu entre arte política e conceitualismo na América Latina. Essa sincronia entre uma arte que rompe com os modelos formais e um discurso mais aguerrido, conectado com os acontecimentos associados à repressão política vivenciada no período das décadas de 1970 e 1980, fica evidente nas cerca de 80 obras selecionadas para a mostra pelo curador Ricardo Sardenberg. Sua intenção não é fazer uma revisão histórica, nem tampouco esquematizar essa ampla produção em núcleos temáticos, formais ou geográficos. Pelo contrário, é pela diversidade e pelo adensamento que Sardenberg se aproxima do tema. E de certa maneira o atualiza.

Cildo Meireles
Cildo Meireles (1948), Para ser curvado com os olhos, Madeira e Ferro, Assinada com monograma e datado, 25 X 50 X 50 Cm

“São diversas estratégias de produção e disseminação, por vezes de matizes ideológicos opostos”, explica o curador, ao reafirmar que de certa forma sua estratégia é a de diluir as grandes autorias, inserindo-as num conjunto mais amplo e diverso. Evidente que estão representados os artistas que mais se destacaram ao longo desse processo e que há uma ligeira predominância de autores brasileiros (que correspondem a cerca de 60% da lista). A seleção – que não compreende apenas obras de arte, mas também projetos, textos, documentos – começa com um trabalho mais antigo, realizado em 1962, por Augusto de Campos. E se encerra no final da década de 1980 com uma obra de Jac Leirner. Dentro desse intervalo há espaço para poéticas distintas, de artistas como Cildo Meireles, Victor Grippo, Lygia Pape e León Ferrari. Para reunir esse grupo, foi necessário recorrer a diversas coleções e, apesar de ocupar uma galeria comercial, nem todos os trabalhos estão à venda.
Segundo Sardenberg, a mostra peca propositalmente pelo excesso, como se a curadoria procurasse “redesmaterializar” esses objetos, diminuir a fetichização a que foram submetidos nas décadas subsequentes e reforçar aspectos importantes dessas propostas como sua intenção política, a revolta contra a mercadoria que marca a arte conceitual e a ênfase numa arte de caráter coletivo.

Cildo Meirelles, Espelho Cego, 1970.
Cildo Meirelles, Espelho Cego, 1970.

Não é uma coincidência que tantas exposições tenham, agora e no passado recente, se debruçado sobre esse período de contestação, no qual a arte se transforma também em linguagem de combate e resistência. É possível citar, por exemplo, as exposições Mulheres Radicais, na Pinacoteca do Estado e AI-5, no Instituto Tomie Ohtake (ver artigos nas pgs. … e …). Olhar para o passado ilumina, sem dúvida, o presente sombrio, mas é preciso ter em mente de que os tempos são outros. “O impulso autoritário é semelhante, mas não é o mesmo”, pondera o curador.