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Povo de cores infinitas

Tintas Polvo, 2013 - Foto: Vicente de Mello
Tintas Polvo, 2013 - Foto: Vicente de Mello
  • Por Leonor Amarante e Patrícia Rousseaux

Adriana Varejão está sempre alerta. Sua curiosidade e sensibilidade permitem localizar conotações culturais e simbólicas em objetos aparentemente simples. Pode ser um azulejo, um prato ou até uma bisnaga de tinta. Tudo pode ser transformado, em seu trabalho.

Sua inspiração para o projeto Polvo nasceu nos anos 1990 em uma associação entre sua pesquisa sobre tintas para pintar a pele em suas obras e a leitura de um censo realizado pelo IBGE de 1976, mostrando que, ao serem perguntadas pela sua cor de origem, as pessoas chegaram a nomear 136 cores: “Acastanhada, agalegada, alvinha, azul-marinho, escura, bronze, cobre, cor de canela, cor de cuia, meio preta, lilás, amarelosa, puxa para branca, queimada de praia, pálida, branca melada, branca suja, sarará, morena bem chegada, enxofrada, burro quando foge, etc.”.

Quem poderia imaginar que os brasileiros não se reconhecessem apenas nas cinco cores estabelecidas nos censos oficiais nacionais. A simples cor rosa das tintas existentes no mercado não chegavam, nem de longe, a dar conta de tamanha diversidade de identidades.

Um trabalho árduo de pesquisa, escrita e criação deu lugar a Polvo, um projeto conceitual sintetizado em três exposições, uma em Londres, em 2013, na Galeria Victoria Miro; outra em 2014, em São Paulo; e depois em Nova York. Ainda o lançamento de um livro escrito a quatro mãos com a historiadora e doutora em Antropologia Social, Lilia Moritz Schwarcz.

Naquele mesmo ano, ambas contaram à ARTE!Brasileiros detalhes sobre o processo desse trabalho.

ARTE!Brasileiros – Conte um pouco sobre o processo de pesquisa histórica e as associações que você fez. Como é que você chegou a essa pesquisa de cores?

Adriana Varejão – Bem, eu não sou especialista no assunto, mas gosto de ler sobre Antropologia, Sociologia, História e Cultura, especialmente do Brasil. Não lembro exatamente quando tive conhecimento desse censo, mas creio que foi no final dos anos 1990. Vi a lista das cores de pele, e eu tinha um trabalho em mente, no qual eu “colecionava” cores de pele, cores de tinta de pele de vários lugares do mundo. Na maioria das vezes, elas eram rosa e pensei em trabalhar essa questão. Juntei as duas coisas e pensei em fabricar tintas com cores de pele que não fossem aquele rosa, e sim cores de pele mais miscigenadas, mais relativas ao que realmente existe. Juntei as duas informações, a questão das cores que apareciam no censo e que vinham nomear as tintas e a própria fabricação da tinta óleo. Na verdade, fiz isso mais no sentido de dizer que cor é linguagem, antes de qualquer outra coisa. Cor vai muito além da questão racial. Acho incrível a ideia das pessoas autodenominarem sua cor. Fiz alguns trabalhos nos anos 1990 que eram autorretratos meus, como se eu fosse de diferentes etnias. Fiz um tríptico em que eu era chinesa, índia e moura. Também já havia flertado com questões relativas às castas sociais mexicanas, todas as classificações raciais entre índios, ameríndios e espanhóis. Essas questões sempre habitaram meu universo de leitura e de conhecimento.

A pintura está presente em sua obra desde os primeiros trabalhos. Qual é o protagonismo dela nessa série? 

Adriana – É um pouco diferente, mas tem um elemento comum: nessas duas obras, eu não pintei os retratos. Essa obra foi uma encomenda para a Ana Moura, uma pintora que sempre colabora comigo, e pintou vários retratos. Mas não acho que esse seja um trabalho que passe muito pela questão da pintura em si. É uma questão mais conceitual. A ideia de ter retratos da mesma pessoa com várias cores diferentes, como a ideia da cor é ligada à raça, é muito fluída e fica muito clara quando as pessoas se denominam “queimada de praia” ou “morena bem chegada”, muitas cores curiosas, o que isso quer dizer? Há muitas definições curiosas de cor, que não sabemos exatamente o que quer dizer ou, então, que quer dizer exatamente isso: “É impossível determinar cores para as pessoas”. É um trabalho que não nos dá muitas respostas, mas suscita vários questionamentos. As interferências que eu fiz sobre os retratos foram feitas com as tabelas de cores. Foi a última etapa do trabalho, com a Ana a meu lado, no ateliê. Uma espécie de ficção do que seria uma pesquisa cromática. O mesmo ocorre com a própria caixa das tintas Polvo. Eu acho até que elas são, na verdade, uma pintura.

Você diria que são metaquadros?

Adriana – Poderia dizer, sim. Como a pintura também é uma espécie disso. O trabalho que vai para São Paulo, por exemplo, foi encomendado e são todos iguais e os retratos são quase todos em preto e branco. Faço interferências neles, utilizando as próprias cores das tintas Polvo. Os rostos são pintados com figuras geométricas. São 33 retratos e cada um tem a interferência de uma cor sobre o rosto. É uma pintura hiper-realista, mas seriada e quase sem cor. A cor fica por conta dessas interferências que tomei como referência nas pinturas indígenas. Eles fazem pinturas com geometrias incríveis. Tive algumas conversas com o Adriano Pedrosa sobre isso e pensamos que “existia um modernismo antes do modernismo”. Um modernismo selvagem.

Poderíamos dizer que esse conjunto de pinturas é uma espécie de contágio cultural? 

Adriana – Sim, como em toda minha obra estou sempre fazendo cruzamento de histórias.

Quando você diz “um trabalho encomendado”, quer dizer que uma equipe trabalhou com você, ajudou a fazer a intervenção?

Adriana – Não, a pintura-base eu não fiz. Faço as intervenções todas. Fiz toda a intervenção da pintura indígena sobre os rostos. Atuei como se fizesse uma direção do trabalho. Eu queria o conceito de retratos que mudassem de cor e fiz interferências de culturas sobre o retrato que foi encomendado. Estou fazendo o mesmo na série China, que eu chamo de Polvo Portraits, e tem vários conjuntos. Um deles, eu fiz para a Galeria Victoria Miro, outro estou fazendo para a Fortes Vilaça, e outra para Lehmann Maupin, que me representa em Nova York. Os conjuntos vêm acompanhados de uma caixa das tintas Polvo. Fiz um múltiplo de 200 caixas e cada galeria terá uma série de retratos. Na Victoria Miro tem a chamada Classic Series. Uma série de retratos mais tradicionais. Já a Fortes Vilaça vai apresentar a China Series. Mandei pintar todos os retratos na China e eles pintaram 33 retratos iguais. O conjunto de Nova York quem vai pintar é a mesma artista da Classic Series, vai se chamar Seashore Portraits, alguma coisa assim, ficamos discutindo horas, retratos com fundo claro, como se fosse em uma marina, uma praia.

Como se dá o processo conceitual do seu trabalho impregnado de história e que requer muita pesquisa? Como você faz essas adequações, como tudo se desenrola? 

Adriana – Tenho uma rotina de trabalho diário. Vou para o ateliê e fico ao menos oito horas por dia. Leio muito, converso com muita gente de outras áreas e sou muito curiosa. Estou sempre aberta a conversar sobre qualquer coisa. Gosto muito de me arriscar. Tenho inquietações no meu trabalho. Eu não precisaria fazer outra coisa na vida a não ser azulejos…

Exatamente, mas você se arrisca fazendo outras coisas, mudando constantemente o percurso…

Adriana – Haveria um campo infinito para mim se eu quisesse fazer somente isso. Mas eu não fui ser artista por causa disso. Gosto de me embrenhar em projetos diferentes, de ir para várias áreas, mas sempre gostei mais de História e História da Arte, mais ligada à arte decorativa. Vou muito a museus. Museus de arte popular, de antropologia. São assuntos que sempre estão me interessando. Veja como se dão os processos: eu estava na casa de um amigo e comecei a folhear um livro sobre o Rafael Bordalo Pinheiro, um ceramista português, incrível, do século XIX. Lembrei que eu tinha em casa um livro dele e fiquei enlouquecida com o trabalho. Fui à Holanda pesquisar mais sobre cerâmica, queria fazer cerâmica e descobri que era impossível. Resolvi fazer uns pratos que não eram, mas que pareciam de cerâmica. Pensei: se faço azulejo sem fazer azulejo, vou fazer cerâmica sem fazer cerâmica. Resolvi a questão dos pratos com fibra de vidro e resina. Uma coisa prazerosa que vou desenvolvendo, como se fosse uma paixão. Tenho também uma ideia de carnavalização das coisas. De tratar as coisas como um enredo de carnaval. Sabe quando você vê a história sendo contada e, de repente, vem aquela ala completamente enlouquecida e a história se abre de maneira dinâmica. Vocês não percebem isso?

Sim, enlouquecida e teatralizada também…

Adriana – Sim, surgem piratas do nada. Aí, você associa: “Ah, sim, é, porque, certa vez, eles invadiram o nordeste…”. Abro muitas janelas de interpretação. Comecei a fazer os pratos e depois, na internet, passei a pesquisar sobre sereias. Do Bordalo Pinheiro fui parar nas sereias. Porque eram motivos de mar, das sereias fui parar nas Ama Divers, tribos de mulheres japonesas que mergulham como caçadoras. Uma tradição de mais de dois mil anos. Elas mergulham só com a parte de baixo da roupa de banho, vão com os peitos de fora, uma faca na cintura e lencinhos na cabeça. Existem fotos dos anos 1940 que mostram centenas de mulheres indo ao mar. Parecem “cardumes” de mulheres. Os homens é que costumavam ir, mas, nas regiões onde existem as Ama Divers, as águas eram tão geladas que as mulheres, supostamente com mais gordura, passaram a ir no lugar deles. Houve uma inversão de papéis. Os homens ficavam em casa cuidando dos filhos e as mulheres iam para o mar.

Gostaria que você falasse dessa questão da carne. De como a pele, a carne e o sangue estão presentes em sua obra. Goya ou Rembrandt tem alguma coisa a ver? Você tem alguma influência desses dois pintores?

Adriana – Não especialmente deles, mas a história da carne, na pintura, é longa, é uma tradição. Tem vários pintores que pintam ou pintaram a carne. Minhas primeiras referências são Goya e Rembrandt, assim como Caravaggio, que tem certa visceralidade. Depois, veio Chaïm Soutine, Francis Bacon, Géricault, o barroco…

Goya é muito visceral e político. De certa forma, seus trabalhos também são políticos, você traz toda essa carga da história, da colonização, naturalmente suas obras têm um forte viés político…

Adriana – Meu trabalho é muito político, mas eu não faço militância com ele. A história é o que me interessa.

Polvo Portraits VII (China Series), 2014 - Foto: Jaime Acioli
Polvo Portraits VII (China Series), 2014 – Foto: Jaime Acioli

Como foi o seu começo? Por que você quis, lá atrás, falar de tudo isso dessa maneira? Você se sente comprometida com essa história?

Adriana – Não é um compromisso. É uma sensibilidade. E até pago por isso. O trabalho é feito a partir de nossa personalidade. E acho que sou sensível a questões de identidade. Mas estou longe de ser uma pessoa politizada e comprometida com mensagens políticas.

Adriana, para concluir, me permita fazer uma brincadeira: se você tivesse sido abordada naquele censo, de 1976, que cor atribuiria a você mesma?

Adriana – Não pensei, mas tem uma cor ali de que eu gostei, e acho que tem a ver comigo, que é “branca melada”.

Quando soubemos da exposição que Adriana Varejão ia inaugurar em abril, pensamos em convi­dá-­la para escrever um texto e aí soubemos que você estava escrevendo um livro…

Lilia Schwarcz – O livro está quase pronto. O lançamento está previsto para abril. Ele não trata apenas dos trabalhos recentes da Adriana. Escrevemos ao longo de quatro anos e vi o trabalho crescer. A Adriana canibaliza as coisas, pega as referências, puxa e  transforma em outra coisa. Ela canibalizou o meu livro. Disse que tinha “lido” em O Espetáculo das Raças coisas que eu mesma não escrevi. Nos demos muito bem. Quando começamos, disse a ela que eu não era especialista, nem crítica de arte, mas ela me deu muitas “aulas”. Quando o outro livro dela foi lançado (Entre Carnes e Mares, 2010, Editora Cobogó) conversamos muito e veio daí essa ideia de fazermos, juntas, um novo livro. Não sabíamos muito bem, no começo, como seria.

No texto de apresentação da exposição Polvo, na Galeria Victoria Miro, a critica de arte Margherita Dessanay, comenta como a língua trabalha em diferentes níveis de cognição.

Lilia – Uma coisa importante que sempre digo: cor é linguagem. Trabalho muito a ideia de que não existe uma noção absoluta de cor. A cor é uma relação entre outras cores. É uma linguagem, no sentido de que falamos articulado, pausadamente. Nunca dizemos coisas isoladas, usamos termos que conhecemos e que só fazem sentido em comparação. “Branco sujo, quase branco, puxa para o branco.” No Brasil, o branco é uma cor que tem uma força simbólica muito forte. No Brasil, a noção de raça vem pela noção de cor. As pessoas muitas vezes não querem falar de raça, mas falam de cor. A cor é uma forma de estratificação social, é um marcador social de diferenças. Então, acho essa uma questão super importante. É uma maneira de pensar o Brasil. A Adriana tem produzido uma arte em diálogo com a história, com o que a gente vive no País, e acho essa reflexão sobre a cor uma decorrência forte das perspectivas dela. Ela vem discutindo a colonização, os ganhos e as perdas e como a colonização é linguagem. É uma maneira privilegiada de falar do Brasil.

Dessanay afirma nesse texto que definições usadas pelas pessoas de raças misturadas na pesquisa do Penade de 1976 – “Sou mais branca, sou branquela, sou mais clara” – refletem uma proximidade com a etnia branca, mostrando um nível de introjeção do racismo no Brasil. Pessoas de raças misturadas sentiriam a necessidade de se valorizar por seu grau de brancura. Ser mais branco seria um qualificador de hierarquia social. Você acha que essa afirmação procede?

Lilia – Não li o texto, porém, no Brasil, o último censo, identifica cinco cores oficiais: branco, preto, amarelo, vermelho e pardo. Mas, por que o vermelho é o nativo? Por que o amarelo é o oriental? Na classificação oficial do censo consta o termo pardo, se você pensar bem, é uma cor que é uma espécie de “etcetera “. Quando dizem que alguém é pardo é porque ele não se encaixou em nenhuma das cores anteriores. Se você pedir a uma pessoa para identificar sua cor ela pode até dizer parda. Mas se você der para ela as cinco opções, quem sabe ela não dirá que é branca? “Não sou vermelha, não sou amarela, não sou preta, então sou branca!” É interessante essa não definição de cor do pardo e como o censo a utiliza como uma espécie de etcetera. No fundo é isso: você é branco, amarelo, vermelho ou etcetera? Cor não é só linguagem, é também relação. A cor aglutina outras relações. É claro, essas definições, como “puxa para branco, quase branco”, são definições que dariam razão ao texto de Dessanay: um pouco de “brancura” é melhor. Mas são definições que falam também de um lugar social e de uma experiência social. Não é só a cor pela cor. A cor aglutina experiências sociais. Como se a gente dissesse: “Eu negocio a minha cor”. Cor não é uma situação fixa. Varia conforme a circunstância. Um termo como “queimado de sol” quer dizer o quê? Envolve várias situações. A pesquisa do Penade foi feita em 1976, são quase 40 anos…  Muita coisa mudou. Mas o que eu gosto de pensar é: o termo cor é mais poroso que o termo raça. Raça é um termo fixo e o termo cor, não. As pessoas no Brasil negociam a sua cor. O que eu não quero é fazer da obra da Adriana um reflexo do contexto social…

Sim, também não queremos dizer que esse trabalho é fruto de uma pesquisa sociológica ou antropológica. É produto das associações criativas e interdisciplinares da Adriana. Ela associa coisas que intui. Como você mesma disse, “canibaliza” as informações e as transforma em uma obra potente… Vamos falar um pouco do livro…

Lilia – O livro vai se chamar Pérola Imperfeita – A História e as Histórias na Obra de Adriana Varejão. É um livro grande, com mais de 400 páginas. Uma reflexão sobre toda a obra dela. O livro é uma “conversa” e gosto muito da ideia de que ela às vezes trabalha como escriba. A Adriana acabou coautora do livro por muita insistência minha, porque ela, de fato, montou o livro comigo. Discutimos parte a parte, cada trecho, e ele trata de todas as telas: de catequese, trabalhos sobre colonização, telas acadêmicas, azulejos, bordados e pratos. Tem um capítulo que acho muito bonito. Trata dos ianomâmis e da experiência belíssima que ela teve com eles. No final, há uma discussão que junta os irezumis, os tiradentes, com o trabalho sobre pele, as trocas de pele. Tem essa expressão no Brasil. O André Rebouças, por exemplo, que era muito próximo à coroa, narra que nunca teve problema com relação a sua raça e só quando foi para os Estados Unidos percebeu que era negro. Ele fala algo como “tive de mudar de pele”. E essa reflexão sobre “mudar de pele” combina muito o trabalho anterior da Adriana com esse novo. Isso é muito bonito no trabalho dela. Um percurso que é inesperado sendo coerente,  muito estudado. Ela tem uma dimensão muito impactada com o contexto social, mesmo não sendo uma refém dele.

Papéis Efêmeros: memórias não descartadas

Os papéis aleatórios de nosso dia a dia podem ser descartados, mas a lembrança deles fica em nossa memória. É isso o que a exposição Papéis Efêmeros: memórias gráficas do cotidiano, em cartaz no Sesc Ipiranga até 9 de setembro, prova.

Reunindo diversas peças que contam 100 anos de história do impresso gráfico, a exposição é uma viagem nostálgica para o público que viveu especialmente no século 20. Ela é uma parceria entre a USP e o SESC, partindo de um grande acervo do Museu Paulista da Universidade de São Paulo, o Museu do Ipiranga.

Rótulos, embalagens, cartazes, papéis de bala… Coisas inusitadas que ninguém diz que possam fazer parte de um museu podem ser vistas na mostra, que tem curadoria do designer Chico Homem de Mello e da diretora do Museu do Ipiranga Solange Ferraz de Lima.

O visitante fará uma viagem desde a criação da prensa, com clichês tipográficos, até a era da internet, com capas de revistas deixaram de ser impressas e passaram a figurar apenas virtualmente. Papéis Efêmeros é um prato cheio de recordações e curiosidades.

Assista:

Erudição com sotaque germânico

"Não estudei nenhum instrumento, mas acho que basta gostar de música para apoiar os artistas e frequentar seus espaços", afirmou Sabine na edição 9 da CULTURA!Brasileiros. Foto: Diego Rousseaux

Em 1989, a alemã Sabine Lovatelli foi laureada com a Ordem do Rio Branco, a maior honraria concedida pelo governo brasileiro. A paixão de Sabine por nosso País foi consequência de outra longeva história de amor, nascida de seu encontro, na Europa, com o empresário Carlo Lovatelli, seu companheiro há 45 anos. O casal se conheceu na terra natal de Sabine em 1971, mesmo ano em que a bela jovem de olhos azuis – nascida em Iena e criada em Hannover, com estadas em Paris e Londres – decidiu aceitar o convite de Carlo para vir morar no Brasil e fazer dele sua segunda pátria.

Dez anos depois, Sabine deu início ao projeto sociocultural que rendeu a ela a prestigiosa comenda, uma aventura que partiu de outro amor incondicional de sua vida, a música clássica. Ao lado do amigo Claude Sanguszko, Sabine fundou, em 1981, o Mozarteum Brasileiro, instituição paulistana que já trouxe ao País mais de 50 das melhores orquestras do mundo, realizou mais de mil concertos e contribui para a formação e a visibilidade de músicos locais, por meio de bolsas de estudo e intercâmbios internacionais. Além disso, organizando eventos gratuitos, como os que fez por 15 anos no vão livre do Museu de Arte de São Paulo (Masp) e ainda faz no Parque Ibirapuera, ela também luta para desmistificar a ideia de que a música erudita é uma expressão artística destinada à elite socioeconômica.

Em 2012, Sabine expandiu a atuação do Mozarteum para o litoral sul da Bahia, com a criação do Festival Música em Trancoso. Desde então, levou um sem-número de grandes talentos da música clássica e da música popular ao idílico distrito de Porto Seguro. Dessa forma, também contribui para triplicar a circulação de pessoas no vilarejo de oito mil habitantes, com a presença de 20 a 25 mil turistas que prestigiam o evento e movimentam a economia local.

Na conversa a seguir, carregada de um delicioso sotaque alemão e realizada em seu apartamento no bairro do Jardins, em São Paulo, Sabine faz reflexões sobre a importância da música para a formação do ser humano, fala das alegrias e das adversidades que estiveram em seu caminho nos últimos 35 anos e também lamenta a perda do cantor Al Jarreau, que seria um dos destaques da sexta edição do Festival Música em Trancoso.

O evento terá início no dia 18 deste mês, com um concerto noturno que reunirá a Orquestra Acadêmica Mozarteum Brasileiro, sinfônica recém-criada pela instituição, e o Coro Acadêmico Yurlov da Rússia.

CULTURA!Brasileiros – Como se deu a criação do Mozarteum Brasileiro?
Sabine Lovatelli – Como sempre gostei de música clássica e frequentei muitos eventos musicais na Europa, eu achava que no Brasil havia pouco espaço para essa música. Não estudei nenhum instrumento, mas acho que basta gostar de música para apoiar os artistas e frequentar seus espaços e, então, pensei: “Acho que posso ajudar e criar algo que também fará com que eu me sinta mais parte do Brasil”. Como a música erudita veio sobretudo de países de língua alemã, tive acesso fácil às pessoas. Começamos o Mozarteum em 1981, abrindo com a Cleveland Orchestra e o maestro americano Lorin Maazel.

Nesses primeiros concertos houve também a participação de músicos brasileiros?
Trouxemos mais músicos de fora, mas já no primeiro ano começamos a fazer os Concertos do Meio-Dia, uma série de apresentações no vão livre do Masp, que durou 15 anos. Criamos, assim, uma série especial para os músicos brasileiros, em que o público de São Paulo podia ouvir boa música, de graça, no Masp. Quando fiz o Mozarteum, minha ideia era também criar algo para a cidade, levando em consideração que isso tinha de ser feito ainda mais para a juventude. O ensino de música no Brasil não é intensivo. Não temos muitas escolas, professores. Para o músico daqui se profissionalizar é um sacrifício só. No Brasil, a música clássica sempre foi tratada como uma arte elitista, o que demonstra a falta de cultura das pessoas. As coisas que ninguém sabe são sempre só para os outros, não é? Mas a música clássica não é só para a elite. Ela é uma base de informação, uma base de estudos. Depois o músico faz jazz, faz bossa nova, faz o que quiser.

Por que os Concertos do Meio-Dia chegaram ao fim?
Porque teve início uma grande reforma no museu ao mesmo tempo que o Banco Francês e Brasileiro fechou. Eles foram nosso principal patrocinador durante todos esses anos. Então, perdemos, de uma só vez, o espaço e o apoiador. Mas acho que o projeto foi muito bom. Abriu muitos caminhos para jovens músicos e também para o público de São Paulo.

Em 1985, o Mozarteum começou a promover concertos no Parque Ibirapuera, oferecendo, desde en­­­­­tão, mais de 50 apresentações gra­tuitas de algumas das melhores orquestras do mundo. Como surgiu a ideia?
Fizemos o primeiro concerto com o Bernard Haitink e a Concertgebouw Orchestra (maestro e orquestra holandeses). Foi a primeira vez que fizemos um evento ao ar livre. Depois tivemos um concerto com Zubin Mehta e a New York Philarmonic, para um público de milhares de pessoas, um mar de gente. O palco ficava na Praça da Paz e o público ultrapassava o lago, ia até o fundo do Ibirapuera. Esse concerto foi gravado e a New York costuma mostrar esse vídeo como um exemplo de como tem de ser feito um concerto ao ar livre. Toda vez que vem a São Paulo, Zubin (atualmente, o maestro indiano dirige a Orquestra Sinfônica de Israel) quer voltar a tocar no Ibirapuera. São Paulo cresceu muito culturalmente. Nesse início, tudo era sempre como um happening.

Essa informalidade facilitou a con­solidação do Mozarteum?
Sim. Tudo era mais leve, feito na base da confiança e da amizade. Tive também a sorte de ser convidada para participar das reuniões do European Conferences for Symphonies Orchestras. As conferências reuniam o top ten da Europa, orquestras como Berlin Philarmonic e Munich Philarmonic. Nas reuniões com os managers, falávamos sobre programas, salários de músicos, boas turnês. Eu era a outsider que eles poderiam evitar, mas esses managers me ajudaram muito durante anos. Hoje as organizações e a burocracia são muito maiores. Lá atrás existia uma certa dinâmica no modo de agir e decidir.

Ao longo desses 35 anos do Mozarteum, como foi possível dri­blar as instabilidades políticas e econômicas do País?
Nossos programas são feitos sempre três anos antes de acontecerem e é impossível saber o que virá pela frente. Depois, na hora em que a crise chega, a gente tem de se virar e correr atrás de dinheiro. Acho que sempre consegui fazer com que o Mozarteum tivesse um bom nome porque honramos com nossos compromissos. Se eu digo para os músicos de uma orquestra que daqui a três anos eles virão para o Brasil, eles têm certeza de que virão. Nosso maior capital é que as pessoas acreditam na gente.

E como foi idealizado o festival Música em Trancoso?
Reunimos um grupo de amigos que queria fazer algo pelo lugar. Telefonei para músicos da Berlin Philarmonic, as Irmãs Labèque (duo de pianistas francesas, formado por Katia e Marielle Labèque), vários solistas, e disse: “Vamos fazer em Trancoso um novo evento, pode ser um fracasso total, mas o lugar é muito bonito e garanto que valerá a pena participar do teste”. Já nos primeiros anos trouxemos ótimos artistas e, desde o começo, também pensei em ajudar os jovens e colocá-los ao lado desses músicos internacionais, para criarem ligações. Os músicos têm masterclasses todos os dias, com acesso livre a gente de renome, que sabe ensinar a técnica instrumental, mas que também dá dicas de vida, de como enfrentar certos momentos. No ano passado, anunciamos a formação de uma orquestra jovem na Internet, e logo havia mais de 400 inscritos. A Orquestra Acadêmica Mozarteum Brasileiro será formada por 85 jovens, todos bolsistas.

Na contramão dessas iniciativas, vemos agora, por exemplo, o fim da Banda Sinfônica do Estado de São Paulo. Uma decisão como essa não deixa a impressão de que, para o poder público, música clássica é algo supérfluo?
Nossos políticos não entendem a música clássica. Como eu disse, isso demonstra falta de cultura de quem trata arte como lazer. Gente que não entende a diferença entre o que o ser humano é e o que ele poderia ser. Infelizmente, é isso que a gente sente diariamente, de Brasília para os estados e municípios. A cultura é a base do desenvolvimento do homem. Sem cultura, a humanidade não anda.

Considerar música clássica algo elitista não é também menosprezar a capacidade humana? Afinal, a música lida com algo universal, a sensibilidade…
O fato de não termos nas escolas públicas do Brasil esporte, música e arte em geral é um escândalo. Onde é que essas crianças vão aprender a ter empatia, a achar as coisas bonitas? Se você pega um desses criminosos que estão hoje na rua, é óbvio que o coitado teve uma vida difícil, que não teve acesso a nada. Entrando na história dessas pessoas você vai sentir pena, porque perceberá que elas perderam a vida. E essas questões têm de ser direcionadas para o governo, o grande responsável por isso.

Que outras ações são realizadas em Trancoso, além do festival?
Temos em julho uma semana de canto lírico (o projeto Academia Canto em Trancoso), quando escolhemos 50 alunos entre centenas de inscritos de todo o Brasil. Eles ganham uma bolsa para ficar oito dias em Trancoso ao lado de professores internacionais. No final, fazemos um concerto aberto e geralmente damos cinco ou seis bolsas de estudo na Europa. Esses alunos dizem que realmente deram um grande passo em suas carreiras. Dos que vão para a Europa, alguns conseguem emprego e ficam por lá. A Josy (a mezzo-soprano Josy Santos), por exemplo, está estudando na Ópera de Stuttgart. Nossa intenção é essa, ajudar a internacionalizar os músicos daqui. Em novembro deste ano, teremos a Orquestra Sinfônica de Bucareste e, depois, faremos uma festa de Natal para as crianças de Trancoso, com um coral e músicos locais. Além disso, sempre que possível alugamos o teatro. Ivete Sangalo, por exemplo, gravou lá um DVD fantástico. Isso ajuda a resolver as questões de manutenção do espaço.

Na edição do ano retrasado, entrevistei Cesar Camargo Mariano e ele falou, com muita alegria, sobre a relação de troca e o fascínio que a música brasileira desperta nos estrangeiros…
A parceria com Cesar nasceu quando bolei o programa do primeiro ano. Como eu ainda não sabia do que o público ia gostar, para experimentar, fizemos uma noite diferente da outra. Começamos a misturar música de câmara com bossa nova, com jazz. Faltava um dia para fechar a programação e pensei: “Por que não fazer uma jam-session entre os músicos clássicos e os populares e ver no que dá?”. Dos clássicos, muitos disseram: “Não podemos fazer isso, porque não improvisamos, fazemos tudo conforme está escrito”. Cesar, que é um ótimo músico, disse: “Fique tranquila. Vou separar uns compassos e, quando se sentirem à vontade, eles vão sair com os solos”. Eles ficaram encantados com a ideia e um clarinetista lançou o primeiro solo. Todo mundo se divertiu e se soltou, quando ele quebrou o gelo, e daí nasceu uma grande amizade entre eles.

Como foi lidar com a perda do Al Jarreau, que seria um dos destaques do festival deste ano?
Foi muito duro. Uma semana antes de ele morrer eu já sabia que ele estava no hospital, mas não imaginava que isso pudesse acontecer. A repercussão que houve no mundo todo comprova que Al deixou um legado importante para a música. Ele transformou a forma como a voz pode ser ouvida no jazz. Dias antes de partir, ele deu uma entrevista muito boa e falou de seu interesse pela bossa nova. Quando músicos como ele dizem isso, percebo o quanto precisamos reafirmar a importância da música brasileira. Assim que soubemos que ele estava doente e que não poderia vir, tivemos de repensar tudo, porque fizemos boa parte do programa em função da presença dele. Encontrei um grupo excelente, o Vocal Six, formado por seis cantores suecos que vão fazer metade da programação à capela, o forte deles, e a segunda metade com orquestra. Acho que o público vai adorar. Tem coisas de Michael Jackson, Abba, Queen e canções consagradas pelo Al Jarreau.

Como são desenvolvidas as pesquisas para definir as programações do Mozarteum e do festival Música em Trancoso?
Vou a muitos eventos de música. Agora, por exemplo, vou para o Festival de Salzburg, e também vou ver a Filarmônica de Hamburgo. Com isso, encontro pessoas que também gostam de música clássica. Ouço muitas sugestões, porque há muita coisa acontecendo na Europa e nos Estados Unidos e a gente não tem como ficar a par de tudo. Sigo muitos conselhos.

E como são definidas as atrações de música popular?
Meu grande maestro é o Cesar. Como ele não virá neste ano, eu fiz a programação. Teremos o Gershwin Piano Quartet e o quarteto de Oscar Peterson, que era meu grande amigo, com Gary Clayton, que o substitui ao piano, e os músicos que tocavam com Oscar. A apresentação deles vai ser linda. Oscar compôs músicas que tocou pouco, mas que tinham significado especial para ele, e que recentemente foram recuperadas pelo quarteto em um CD.

Que balanço pode ser feito dos 35 anos do Mozarteum e, até aqui, das cinco edições do festival?
O Mozarteum é reconhecido dentro e fora do País, e acho que a gente abriu portas e novos caminhos para os músicos. Com isso, ajudamos a elevar o nível da música erudita por aqui e estamos conseguindo fazer com que mais pessoas se interessem por ela e se ocupem dessa coisa inteligente, que abre horizontes e, como falamos antes, ajuda a construir uma vida melhor. O que me entristece é ver que os esforços dos músicos brasileiros são pouco honrados por nossos políticos. Essa frustração sempre me leva a pensar: onde podemos ajudar?

Como se sente ao encarar esse e outros desafios?
Quando fizemos a primeira edição do Música em Trancoso, perguntei às pessoas do que elas tinham gostado e o que mais ouvi foi: “Tudo”. Por isso, mantivemos essa programação tão misturada. Trancoso é um lugar pequeno, tem oito mil habitantes e esse número triplica durante a semana do festival. François, nosso arquiteto (o luxemburguês François Valentiny, autor do projeto do Teatro L’Occitane, principal palco do festival, que também ocorre em espaços públicos), vai ao festival e diz que quando passeia na praia todo mundo o cumprimenta. Isso me deixa feliz, porque percebo que as pessoas se acham corresponsáveis pelo evento. Uma vez saímos de um restaurante, tínhamos que atravessar o Quadrado (ponto central de Trancoso), e lá estavam três celistas ensaiando à meia-noite. Ficamos observando aquela música linda embaixo de um céu de estrelas e, pouco depois, chegaram um violinista, um músico da noite da bossa nova e vários outros. Quando chegou a turma do batuque, do samba de Trancoso, eles fizeram uma espécie de happening, uma música espontânea que não acontece em nenhum outro lugar. Isso é fantástico!

O crime da mala

Maria Mercedes Féa tinha apenas 20 anos, cabelos cortados à la garçonne e viajava da Itália para a Argentina, quando conheceu Giuseppe Pistone, italiano como ela, a bordo do navio Conte Biancamano. Três anos depois, em outubro de 1928, o corpo de Maria Féa foi embarcado em um baú, no Porto de Santos, para fazer o percurso de volta no vapor Massila.

Junto com o corpo, estavam objetos pessoais da garota italiana, como almofadas, roupas e maquiagem. Só foram descobertos porque a corda que içava a bagagem para o navio se rompeu. Com a queda, o baú se abriu. O comandante do Massila logo constatou que a etiqueta da mala registrava um nome que não constava da lista de passageiro – Ferrero, Francesco.

O crime deixou o País em polvorosa. Afinal, 20 anos antes, uma outra mala havia estarrecido os passageiros de um navio que zarpara para a Europa, com escala no Rio. Na ocasião, o sírio Michel Trad fora flagrado arrastando a mala para a amurada, com a intenção de jogá-la ao mar. Nela estava o corpo do comerciante Elias Farhat, para quem Trad trabalhava.

No caso da garota italiana, que só tarde seria identificada, existia ainda um agravante: Maria Féa estava grávida. Para chegar a ela, a polícia montou um quebra-cabeças que começava com a descrição do homem que entregara a mala aos carregadores, passava pelo vagão de primeira classe de um trem que partia de São Paulo e chegou até a um motorista de praça.

Depois de ver a fotografia do baú estampada nos jornais, o motorista Vicente Caruso procurou a polícia. Contou que retirara a bagagem do terceiro andar de um prédio do centro da cidade, para levar, junto com o passageiro, até a estação de trem. Tinha prestado atenção, pois achara muito pesada para conter apenas roupas, como enfatizara o passageiro.

Naquela altura, o passageiro tinha se mudado do prédio. Na São Paulo repleta de imigrantes saídos da Europa devastada pela guerra, a polícia acionou a comunidade italiana. Não demorou a encontrar o homem que havia despachado a mala de forma clandestina: Giuseppe Pistone, o italiano que Maria Féa conhecera na viagem de vinda e com quem se casara.

O sujeito tentou emplacar a versão de que sufocara a mulher em momento de desatino, depois de surpreendê-la com um amante. Na verdade, Pistone era um golpista, que depois de saques ao cofre da mãe na Itália, preparava novos botes nesta parte do mundo. Maria Féa estava prestes a denunciá-lo. Mesmo sem empurrar a mala ele próprio, o golpista foi desmascarado.

1961, o ano que atocharam o parlamentarismo no Brasil

A manchete sobre o sistema de governo implantado a toque de caixa. FOTO: Reprodução

Na falta de termo melhor, chamaram de “solução de compromisso”. Da noite para o dia, o sistema de governo parlamentarista foi adotado para permitir o desembarque de João Goulart, o Jango, no Brasil, e sua posse na presidência da República. Vice de Jânio Quadros, Jango fazia escala em Singapura, voltando de viagem à China, quando o presidente renunciou.

Se as regras do jogo democrático estivessem valendo, Jango assumiria o governo e ponto final. Os ministros militares, no entanto, viram em sua ausência momentânea a brecha para impedir a posse de um político nacionalista, de esquerda, próximo dos sindicatos. Com o apoio de setores conservadores da sociedade, anunciaram sua posição e tentaram o golpe.

A resistência foi liderada pelo governador gaúcho Leonel Brizola, que deflagrou uma bem-sucedida campanha pela legalidade, escudado pelo III Exército, do Rio Grande do Sul. Temendo que o conflito se degenerasse em guerra civil, Jango aceitou assumir só como chefe de Estado, impedido de elaborar leis e orientar a política externa, entre outras restrições.

Jango tomou posse no Palácio do Planalto em 7 de setembro de 1961, 13 dias depois da renúncia de Jânio Quadros. Naquela altura, havia sido aprovada a emenda constitucional que instalava o sistema parlamentarista no Brasil. Nos 17 meses de duração do regime, o Brasil teve três primeiros-ministros: Tancredo Neves, Brochado da Rocha e Hermes Lima.

Só que a emenda à Constituição que implantou o parlamentarismo também previa a realização de um plebiscito em 1965 para decidir pela manutenção ou não do sistema político imposto pelo conservadorismo. Jango, que desde o primeiro dia como presidente trabalhou pela volta do presidencialismo, conseguiu que o Congresso antecipasse o plebiscito para janeiro de 1963.

“Libertado o presidente, as reformas vão pra frente”, foi um dos lemas da campanha pelo “Não” ao parlamentarismo. Com 82% dos votos válidos, a consulta popular restaurou o presidencialismo. Trinta anos depois, em abril de 1993, a pergunta sobre o regime político que deveria reger o País foi repetida aos brasileiros. De novo, deu presidencialismo, com 55% dos votos, contra 25% para o parlamentarismo e 10% para a monarquia.

Emanoel Araújo, conhecedor de arte

"Quando fui nomeado diretor da Pinacoteca do Estado de São Paulo, em 1992, as pessoas diziam: 'Como um negro, baiano?'. Eu dizia: 'Não só negro, mas homossexual também'", conta Emanoel. FOTO: Silvia Zamboni.

Diretor artístico do MASP e um dos curadores da exposição Histórias Afro-atlânticas, Adriano Pedrosa entrevistou, em 2013, Emanoel Araújo. O artista e diretor do Museu Afro Brasil passou a limpo o circuito brasileiro de arte. O texto foi publicado na edição 26 da ARTE!Brasileiros, em setembro de 2014.

Emanoel é um dos artistas que participam da mostra Histórias Afro-atlânticas, parceria do MASP com o Instituto Tomie Ohtake. O artista também recebeu homenagem do MASP com exposição de 70 obras, que ficou em cartaz até o início de junho de 2018. Leia a entrevista:

*Por Adriano Pedrosa

Adriano Pedrosa – Você vem de uma experiência singular como artista. Como começou a trabalhar como curador em exposições, coleções e museus?

Emanoel Araújo – Trabalhei no Museu Regional de Feira de Santana, na Bahia, criado por Assis Chateaubriand, dentro do projeto de museus regionais, inaugurado em 1967. O museu recuperava a civilização do couro e seus artefatos em Feira de Santana, que fica na boca do sertão. Havia também uma coleção de arte brasileira reunida por Odorico Tavares, diretor dos Diários Associados, na Bahia, e pelo Chateaubriand, por meio da amizade que mantinham com artistas, como Djanira e Di Cavalcanti.

Qual era sua atividade no museu?

Trabalhei na montagem, na museografia, com os arquitetos.

E desenvolvia, paralelamente, seu trabalho como artista? 

Sim

Qual sua formação?

Sou de Santo Amaro da Purificação e estudei Belas Artes na Universidade Federal da Bahia, em Salvador. Mas não terminei o curso, fui trabalhar profissionalmente. Em 1965, expus na Galeria Bonino, no Rio de Janeiro, e na Astreia, em São Paulo, as mais importantes do Brasil na época. Em 1963, trabalhei com Lina Bo Bardi na exposição Civilização do Nordeste, no MAM da Bahia. Em 1972, fui para os Estados Unidos, a convite do Departamento de Estado, e conheci, de costa a costa, museus de arte americana, chinesa, europeia, afro-americana, e tive a sorte de ter curadores que me mostravam os acervos, a reserva técnica.

Você foi convidado como artista ou como profissional de museu para essa viagem?

Como artista. Nessa época não existia profissional de museu no Brasil. Em 1981, fui nomeado diretor do Museu de Arte da Bahia, em Salvador, onde fiquei até 1983.

Assim começa sua trajetória como curador?

Sim, inclusive com a reforma e a mudança do Museu. Essa era uma das exigências que fiz ao governador da Bahia na época, Antônio Carlos Magalhães, para voltar a Salvador. Mudamos o museu para a sede atual, no Palácio da Vitória. Montei um grupo de restauro de pintura, porcelana, mobiliário, criando um museu a partir do ponto de vista do design e da arte decorativa. Era eclético, com pintura, porcelana, mobiliário, imaginária religiosa, joias, como vários museus da Bahia, Pernambuco e Ceará. O museu estava em mau estado, a reforma durou um ano e depois de pronta eu saí. Durante esse período, fiz exposições importantes: Os 400 Anos do Mosteiro de São Bento, Escola Baiana de Pinturae, em 1982, África BahiaÁfrica, quando eu comecei a desenvolver essa pesquisa.

Como foi a exposição?

Programei performances na abertura, com os Filhos de Gandhy, o maior afoxé do Carnaval da Bahia, e um grupo de dança afro-brasileira. Houve 1.500 pessoas na abertura vendo fotografias de Pierre Verger, objetos de candomblé, entre outras coisas. Mais tarde, em 1987, desenvolvi o tema na exposição AMãoAfro-Brasileira – Significado da Contribuição Artística e Histórica, no MAM de São Paulo, com o diretor Aparício Basílio da Silva.

Como se desenvolveu esse projeto no MAM-SP?

O projeto nasceu no Senegal.

Qual foi sua primeira viagem à África?

Para a Nigéria, em 1976, no Festival de Arte Negra, com Roberto Pontual, crítico e historiador de arte pernambucano.

Como foi sua experiência com o II FESTAC World Black and African Festival of Arts and Culture, em Lagos, em 1977?

Perturbadora, perdi a abertura. O avião que fazia São Paulo-Dacar atrasou e nós perdemos a conexão do voo direto para Lagos. Havia a exposição organizada pelo crítico baiano Clarival Prado Valadares. Mostrei relevos enormes, foi um pandemônio para eles chegarem àÁfrica. O Pontual escreveuo texto A Raiz Localizadora. Naquela circunstância, conheci um brasileiro, o Mister da Silva, que morava lá.

De antepassados brasileiros, dos escravizados libertos que voltaram para a Nigéria no século XIX?

Sim. Mas ele não falava português nem sabia nada sobre o Brasil. Para ele, o Brasil era uma abstração. Ele tinha agência de viagem, Da Silva Travel. Fiquei seu amigo e armei uma viagem para Osogbo, a terra de Oxum, com o escritor Gumercindo da Rocha Dorea, Roberto Pontual e Cleusa, a filha de Dona Menininha do Gantois. Passamos por Ife e Ibadan, para ver o rio Osun, e lá tive a surpresa de conhecer Susanne Wenger.

Sim, a artista austríaca. Vi recentemente o trabalho dela no catálogo de The Short Century: Independence and Liberation Movements in Africa 1945-1994, de 2001, do curador nigeriano Okwui Enwezor. Ela era uma figura interessante?

Interessantíssima. Eu escrevi um artigo sobre essa viagem. No meio da floresta comecei a ver grandes esculturas de terracota. Ela fazia uma versão bastante europeia do culto de Oxum. Eram grandes monumentos, de 5 m, 6 m de altura, esculturas completamente surrealistas.

Você foi com expectativa de reconexão com a África?

Não. Tanto que briguei com Gilberto Gil, que estava lá com Caetano Veloso. Ele me perguntou: “O que você veio fazer na África?”. Eu respondi: “Vim ver a África”. E ele me disse: “Eu vim colher minhas raízes”. Aí, respondi: “Você se enganou, suas raízes estão na Bahia, não aqui”. Mas o que eu queria dizer é que aquilo era tão distante da gente, que o mais próximo era a Bahia. Nós não sabíamos da África, como os africanos não sabiam de nós, como o agente de viagens Da Silva, que não tinha a menor ideia do que era o Brasil. Ele sabia da sua descendência, mas nada mais.

A essa altura você já tinha ido para Europa?

Sim. Em 1972, fui à Itália, Áustria e, depois, aos Estados Unidos e à Inglaterra. Minha visão de África era distante, embora eu fosse filho de Santo Amaro da Purificação, cidade com muitos escravos, muitos africanos, por causa dos engenhos de cana-de-açúcar. Voltei à África em 1987, a mando do presidente José Sarney, em um encontro em Dacar, pois estavam pensando em refazer o FESTAC. Ali nasceu a ideia da Mão Afro-Brasileira. Visitando a ilha de Goré, no Institut Fondamental d’Afrique Noire (IFAN), o guia de uma escola nos viu e disse aos alunos: “Vejam, esses são nossos primos do outro lado do Atlântico”.

Como foi a pesquisa para essa exposição?

Foi tudo feito em seis meses, coisa maluca.

Aquilo era muito material, muita pesquisa, muito tempo. Mas era um trabalho que você vinha recolhendo há tempos?

Seis meses. Coisas que eu sabia, havia guardado. E também me valeu a pesquisa para o África Bahia África.

O livro é impressionante, e a 2ª edição, de 2011, é mais ainda.

Na primeira, o Itamaraty providenciou a tradução para o inglês, mas o tradutor era preconceituoso e escreveu The Afro-Brazilian Touch,dizendo que não havia “mão” afro-brasileira. Ele tinha uma visão eurocêntrica, na qual o negro não criara coisa alguma.

Existem imagens da exposição? Talvez eles tenham lá no MAM.

Talvez, mas eu acho que não. A exposição foi fracasso de público.

Mentira!

Sim. A exposição coincidiu com o convite para eu ser visiting-professor na City University of New York – CUNY, e dar aula de desenho e gravura.

A exposição então é de 1987 e não de 1988, no centenário da abolição da escravatura no Brasil.

Foi em 1987, mas era para festejar o centenário da abolição. Então, fui aos Estados Unidos, fiquei dois anos lá e me valeu muito. 

Mas A Mão Afro é um estudo verdadeiramente pioneiro. Olhando as divisões que você fez no livro – “Barroco e Rococó”, “Século 19”, “Herança Africana na Arte Popular”, “Arte Moderna e Contemporânea”, e “Múltiplas Contribuições”, que é música, literatura, culinária –, como chegou a essa divisão?

Eu parti do Barroco porque é esse o momento em que há maior ênfase nessa questão, com os escultores mineiros Mestre Valentime Aleijadinho, Francisco de Paula Brito e o pintor baiano José Teófilo de Jesus. O século XVIII no Brasil tem uma arte completamente negra, porque é o negro que faz, embora o padrão seja europeu, português. É o Thebas (Joaquim Pinto de Oliveira), por exemplo, que era escravo e depois virou mestre de obra, aqui em São Paulo, e fez a Catedral da Sé.

De onde veio esse interesse?

Eu havia estudado com o Manoel Quirino (1851-1923), intelectual baiano, pioneiro nessa questão de artistas negros e baianos. Ele escreveu sobre arte religiosa, comida, o africano como colonizador. Outra pesquisadora importante foi Marieta Alves, uma das poucas que dava a origem e a cor da pessoa. Quando voltei da África em 1987, me centrei nisso. Embora me recuse a dizer a cor da pele, penso nela como fundamento e como princípio. Quando fiz a exposição dos irmãos Timóteo recentemente, esse era meu foco. Foi a descoberta desses pintores cariocas extraordinários do século XIX: Estêvão Silva, Antônio Rafael Pinto Bandeira e Firmino Monteiro.

Existe essa questão do pardo, do mestiço. Se todo mestiço ou pardo tem algo do africano, ele também tem a mão afro…

Eu parto do princípio de que todo pardo é negro.

Então o Museu Afro poderia ser um Museu Negro…

Na verdade, é um museu negro.

Mas se todos nós brasileiros somos mestiços, o Museu Afro é também um Museu do Brasil?

Por isso que se chama Museu Afro Brasil. Não é Museu Afro Brasileiro, porque eu criei a ideia de que poderíamos discutir as questões africanas, mestiças, brasileiras, incluindo outros povos, que também são brasileiros – os italianos, os japoneses. Nós abrimos essa possibilidade. Às vezes, as pessoas chamam de Museu Afro Brasileiro, mas isso muda completamente o conceito, porque não é museu de gueto.

E o Negro de Corpo e Alma, uma das 12 exposições da Mostra do Redescobrimento, em 2000, e que tem o maior volume do conjunto de catálogos da mostra? É também uma pesquisa impressionante.

Eu queria olhar a iconografia do Rugendas, do Jean-Baptiste Debret e outros para incluir no processo. 

Isso já amplia bastante o projeto.

Sim. Inclui Lasar Segall, Pancetti, Candido Portinari. Depois, fiz a exposição Imagens Inocentes e Perversas, no Museu Afro Brasil, em 2007sobre essa representação que fortalece o preconceito. E a Mão Afro Brasileira que inclui essa iconografia que não é perversa, mas registra o negro, e o negro representando a si próprio. São pontos que se cruzam e criam novos campos de pesquisa.

Alberto da Costa e Silva, diplomata e historiador da África, escreveu em Um Rio Chamado Atlântico (2012), que todo brasileiro tem o escravo dentro de si, algo que o antropólogo Darcy Ribeiro escreveu de algum modo em O Povo Brasileiro, a Formação e o Sentido do Brasil (1995)…

Éum desejo de Alberto Costa e Silva, mas não é verdade. Ou melhor, eu acho que é verdade, mas as pessoas não admitem isso. Senão, o Brasil não seria o País tão preconceituoso que é. Você vê a TV brasileira e parece que estamos na Suécia, sem negros. A Rede Globo coloca o negro sempre no pior papel, e os atores aceitam isso porque não tem alternativa.

Você acha que está mudando?

Não.

Mas o Museu Afro não exerce um papel nesse sentido.

O Museu só tem 9 anos, o Brasil é muito devagar.

Você acha que o meio de arte no Brasil é mais preconceituoso?

Sim, mais preconceituoso. Quando fui nomeado diretor da Pinacoteca do Estado de São Paulo, em 1992, as pessoas diziam: “Como um negro, baiano?”. Eu dizia: “Não só negro, mas homossexual também”.

No entanto, hoje todos sabem que a reforma que Paulo Mendes da Rocha fez na Pinacoteca durante sua gestão é o grande ponto de inflexão na história do museu.

Mas há muito preconceito, é uma coisa silenciosa, o Brasil é silencioso. É uma coisa perversa.

Você não acha que melhorou de 30, 40 anos para cá?

Piorou. A África não existe para o Brasil. Como é que o Brasil não tem um museu de arte africana?

Mas o fato de o museu existir já é algo importante. Ainda que só tenha 9 anos.

Sim, mas estou investindo para futuro. Quando cheguei à Pinacoteca, a instituição já tinha completado 90 anos, e era aquele desastre, uma pocilga. No segundo dia, choveu e aquilo parecia Veneza. Então, acho que preciso completar 90 anos aqui também no Museu Afro Brasil.

Na Pinacoteca, você ficou de 1992 a 2001.

Quando cheguei à Pinacoteca, em 1992, também comecei minha gestão com um projeto de reforma do museu, escancarando ao público de São Paulo o estado desgraçado daquele museu. Para mim, o Museu Afro Brasil é um investimento, uma homenagem ao meu passado.

ÀÁfrica que estádentro de nósNa Pinacoteca, você fez exposições afro-brasileiras?

Eu fiz Vozes da Diáspora, em 1993, e Herdeiros da Noite: Fragmentos do Imaginário Negro, em 1994. Fizemos a retrospectiva de Rubem Valentim, O Artista da Luz, 2001, com curadoria de Bené Fonteles, trouxe obras de artistas negros para a coleção. Mas também trouxe obras do Willys de Castro, comprei Hélio Oiticica, ampliei a coleção de esculturas do museu.

Você acha que sua perspectiva como artista trabalhando com museus e curadoria é diferente daqueles outros que só têm um trabalho institucional?

Eu acho que tenho uma visão ampla da questão, que inclui restauro, conservação, educação, mas também das artes plásticas do Brasil. O curador fechado, que estabelece princípios e conceitos, é diferente de um diretor de museu, as perspectivas são bem diferentes.

Como foi a criação do Museu Afro Brasil, em 2003, ocupando esse grande prédio no Parque Ibirapuera, em São Paulo?

A Marta Suplicy, na época prefeita de São Paulo e atual ministra da Cultura, tinha pensado em fazer um museu afro aqui, mas ela não sabia como começar nem com que acervo. O secretário de Cultura me perguntou se eu não queria emprestar minha coleção. Aí, foi formado um grupo para armar esse conceito; eles ficaram discutindo, discutindo, e eu cheguei e fiz o museu. Quando terminou a discussão, eu disse: “O museu está pronto!”.

E a discussão era em torno de quê?

Do conceito do museu. Tinha antropólogo, sociólogo, e não sei mais o quê. Eu disse: “Eu não vou cair nessa armadilha de vocês”. Então, apliquei a ideia da mão afro-brasileira.

Mas aqui também há objetos ameríndios.

A questão da arte indígena é que o africano sempre teve o índio como um deus da terra. Tanto que todo candomblé da Bahia tem o seu caboclo, o mestiço de branco com ameríndio. Porque o orixá da terra é o caboclo que faz, é o caboclo que significa. E toda casa de candomblé, toda mãe de santo tem o culto ao caboclo, que é uma forma de honor a essa herança. É por isso que aqui no Museu Afro nós começamos a exposição com o caboclo, com o índio. Essa história é muito intrincada, mas é muito clara também. É possível lê-la, mas é preciso querer.

Você acha que o Brasil é um país ocidental?

Ée não é. Tem tanta coisa aqui dentro que ainda não foi descoberta.

Parece-me que a antropofagia é um projeto incompleto, porque ela se voltou muito para a canibalização das referências europeias e poderia devorar outras matrizes, a africana e a ameríndia, o que a repotencializaria.

Claro.

Em vez de olhar apenas para o Léger, para o construtivismo…

Esse é o erro do (Manifesto da PoesiaPau Brasil, de Oswald de Andrade, de 1924, e da Semana de Arte Moderna de 1922. A Semana foi feita por elitistas, tinha apenas um sujeito, o Mário de Andrade, escritor e crítico paulista, que tinha uma visão brasileira, os outros eram alienados.

A Tarsila do Amaral vem de uma família de elite, mas tem quadros…

Vem de uma família de elite, e toda vez que ela se manifesta na representação do negro é perversa. 

Mas A Negra (1923) de Tarsila, você acha perversa?

Acho perversíssima, na medida em que ela transfigura a imagem da negra com protótipos da perversidade, acentuando seus traços, os seios, a boca. O Portinari também é perverso. O único que é mais livre é o Segall.

O Segall se pinta negro, mestiço.

Ele se pinta negro, mulato. E a ilustração que ele faz para Jorge de Lima, para Poemas Negros,de 1947, aquilo tudo tem um contexto em que ele entende o Brasil mais do que os brasileiros. Aliás, para entender o Brasil precisa ser estrangeiro. Nesses 500 anos de Brasil, desde Caramuru e Catarina Paraguaçu, Pernambuco com os holandeses, há toda uma história complexa por aqui, uma mélange. Nós fizemos a exposição dos Bijagós, de Guiné Bissau – A Arte dos Povos da Guiné Bissau, Museu Afro Brasil, 2008 –, e fomos descobrir que os primeiros africanos que vieram para o Maranhão foram os Bijagós, que plantaram arroz no Maranhão, sua cultura de origem. Mas ninguém sabe disso. 

Émuita ignorância. O Mestiço (1934), de Portinari, você também o considera perverso?

Não. O Portinari é muito melhor do que a Tarsila nesse sentido.

E o Christiano Júnior que fotografou escravos?

É interessante…

Ele trata o escravo com dignidade.

Trata com naturalidade, embora sejam fotos de estúdios, não se sabe se ele acrescenta alguma coisa. O mais importante é Militão, Augusto de Azevedo, fotógrafo carioca, que revela uma sociedade negra no final do século XIX com o poder de se fotografar. Tem muita coisa ainda encoberta. Mas os dois são importantes no registro de um Brasil…

Precisava se conhecer muito mais.

Mas não tem dinheiro de pesquisa. A Universidade não investiga isso.

Mas hoje há muitos estudos de escravidão.

Tem, mas…

Fica na Academia.

Sim. Há uma anemia profunda disso.

Mas esse descompasso entre a academia e o grande público poderia ter o museu para fazer a conexão, a ponte, sobretudo no que diz respeito à história visual.

Difícil, assim como o Museu de Antropologia da Universidade de São Paulo não faz. Outro dia, fizemos aqui um seminário sobre as coleções africanas nos museus e a pior apresentação foi a da USP.

Não temos experts, especialistas no assunto.

Mas poderíamos ter. Há uma dicotomia entre a arte africana tradicional e a arte africana contemporânea. Isso não chega até aqui.

Mas um dia vai chegar.

Um dia nós não estaremos vivos! E o Brasil vai ficar branco, aquela tese do branqueamento! Eu tenho observado que negro com branco dá branco, a primeira geração já nasce branca. A Universidade teria um papel fundamental se ela não fosse tão eugênica. Você vai ver como lidar com essa questão no Brasil é complexo.

Mas aí é que a gente pode trabalhar na questão.

Eu não desanimo porque tenho o compromisso da cor da pele e tenho de levar adiante. Mas acho muito difícil. E eu sou otimista, sou teimoso, vou até o fim.

Você teve muito apoio para fazer esse museu, essas exposições, essas publicações?

Tenho, mas não tenho o eco que gostaria de ter.

Você acha que poderia ter intercâmbio e residências, por exemplo, entre os artistas brasileiros e os africanos?

Sim, nós estamos fazendo.

Rosângela Rennó e Paulo Nazareth estiveram na África. Eu falo que tem arquitetura brasileira do século XIX lá e as pessoas não acreditam.

Tem a festa do Carnaval em Porto Novo, da comunidade brasileira local. Só que eles estão abandonados. Quero ver se neste ano vamos até lá, para dar dinheiro para manterem aquela associação. Tem uma missa linda, rezada em português. O que é extraordinário é que em 200 anos ainda tem uma comunidade brasileira.

O mais impressionante é que ninguém sabe disso aqui no Brasil…

Há famílias brasileiras lá no Benim, tem muitos Rego, Sousa, Oliveira. É inacreditável que isso exista, vivo. Essa conexão é que está faltando, parece que é uma coisa muito distante, e não é, é muito próximo. O nível de alienação no Brasil é impressionante.

Paredes brancas, presença negra

As pessoas negras tem muita dificuldade de se inserir no meio da arte” explica Moisés Patrício. FOTO: Andre Stefano/Facebook Presença Negra

*Por Theo Monteiro

 

A tarde do dia 5 de março de 2016 foi marcada pela inauguração da nova sede da Casa Triângulo, galeria de arte localizada no bairro do Jardins. Em meio à cor branca das paredes do prédio, bem como da cor da pele da maior parte das pessoas, se destacava a presença do artista Moisés Patrício: negro, vestindo uma bata branca e adereçado com um colar de contas que remete à cultura afro-brasileira. A ele, se juntariam mais alguns negros no decorrer do evento, cuja cor da pele ajudou a quebrar o monocromatismo até então reinante no ambiente. Para os desavisados, aqueles personagens negros no recinto poderiam estar ali apenas por acaso. Poderiam.

Na verdade, aquelas presenças não foram fruto de coincidência. Desde alguns dias antes estava agendado no Facebook um evento intitulado Presença Negra, que chamava artistas e pessoas negras de um modo geral a comparecerem a abertura na mesma galeria. “Este não é um ambiente considerado nosso. As pessoas negras tem muita dificuldade de se inserir no meio da arte” explica Patrício, um dos organizadores do ato, criado em parceria com Peter de Brito, outro artista negro.

“A ideia é ser uma intervenção pacífica e alegre, que incite os afrodescendentes a ocuparem espaços específicos que lhes são historicamente negados, no caso, aberturas de exposições e mostras, para que venham prestigiar as aberturas”, conta Patrício. “O Brasil é um país diversificado: variadas culturas, cores, religiões e formas de pensamento convivem nesse território. No entanto, e surpreendentemente, essa diversidade praticamente inexiste em diversos meios, e a arte é um deles. Pra mim, que sou artista negro, foi muito difícil se fazer presente. O Brasil possui uma vastíssima produção artística, mas a que entra no meio comercial e é divulgada é unicamente a produção branca”, lamenta.

Poética diferente

Segundo Patrício, se você indagar qualquer galerista sobre a ausência de artistas negros nestes espaços, a justificativa será a praticamente inexistência dos mesmos. A explicação não corresponde à realidade. O fato de não ter sido absorvida pelos circuitos comerciais não torna a arte dos afrodescendentes menos importante para a cultura brasileira. “Ela carrega uma poética diferente, distinta da produção corrente no mercado da arte, que é muito marcada por uma temática individualista. A produção afrodescendente carrega questões próprias, porque os artistas tem outro tipo de vivência e são submetidos a uma série de violências”, explica Patrício. “A poética negra no Brasil é muito próxima da matriz africana, que é coletivista, que pensa a fruição num sentido mais amplo, e não apenas para um público seleto de pessoas.”

Ainda que menos destacada, a produção negra no Brasil existe e remonta ao período colonial: desde o mineiro Aleijadinho (173?-1814) até artistas contemporâneos como Sidney Amaral, Emanuel Araújo e Lidia Lisboa. “Não é porque somos alvo de grande violência em todas as esferas sociais que elas nos pertençam menos. Pelo contrário, esses espaços também são nossos e intervenções como a Presença Negra são fundamentais para que os ocupemos”, explica Patrício.

Outra questão levantada pelo artista é a de que essa constante exclusão e negação de qualquer produção negra acaba tendo consequências nefastas para os indivíduos: “A depressão que acomete muitos afrodescendentes acaba tendo como origem justamente essa identidade que nos é negada. É uma crise de identidade que nos é imposta, e a nossa exclusão do circuito das artes é mais uma faceta disso”. No entanto, para ele, ainda que o preconceito racial persista, houve muitos avanços na última década. “O racismo no Brasil praticamente não era discutido dez anos atrás. Esse era um tema que incomodava e por isso o seu debate ficava adormecido. Agora o negro tem mais acesso à itens básicos, à informação e a cultura e está na universidade. Estamos finalmente colocando o pé na porta, e essa discussão não pode ser diferente na arte. A arte incomoda, provoca, levanta questões. Pensar o racismo nesse meio é fundamental”, conclui.

Uma nova gramática para a arte

Por esta fotografia, Rafael foi mantido por dez dias em uma solitária. FOTO: Reprodução/Facebook DHH.

*Por Mariana Tessitore

Símbolo de Campanha Pela Liberdade de Rafael Braga está na exposição Histórias Afro-atlânticas. O Instituto Tomie Ohtake, que hospeda a exposição junto ao MASP, promoveu em 2017 a mostra Osso, exposição-apelo ao amplo direito de defesa de Rafael Braga. Relembre conversa, publicada na época, da jornalista Mariana Tessitore com acadêmicos, curadores e artistas para saber o que eles pensam sobre a relação entre arte e política hoje:

“A arte é a ciência da liberdade”, já dizia Joseph Beuys. Mas como interpretar essa frase do mestre alemão à luz da crise democrática que assola o Brasil? Esse debate ganha fôlego com a inauguração da mostra OSSO: Exposição-apelo ao amplo direito de defesa de Rafael Braga. Feita em parceria com o IDDD (Instituto de Direito do Direito de Defesa), a mostra debate o caso de Rafael Braga, jovem negro que foi detido nas manifestações de 2013 por portar desinfetante e água sanitária. Braga foi o único condenado no contexto dos protestos, seu caso se tornou um símbolo de luta dos movimentos sociais.

Em cartaz no Instituto Tomie Ohtake, a exposição apresenta 29 trabalhos, reunindo desde nomes consagrados, como Cildo Meireles e Anna Maria Maiolino, até jovens artistas representados por Moisés Patrício, Paulo Nazareth, entre outros. Junto às obras, também há documentos sobre o caso de Braga. Segundo o curador, Paulo Miyada, os artistas participam da mostra como se estivessem assinando um abaixo-assinado.

“O caso do Rafael é paradigmático por ser um exemplo de uma situação institucionalizada. Ele revela o quanto a cidadania, no Brasil, é desigualmente atribuída, dependendo do grupo social, da raça e etc”. Miyada afirma que há um “consenso de que não está tudo bem no País” e que é preciso entender qual é a “pertinência da arte e da cultura nesse contexto”.

Com uma retórica clara, já enunciada no próprio título, a mostra marca posição, sem precisar recorrer a trabalhos panfletários ou “verborrágicos”, como define o curador. “Privilegiamos obras que não fossem tão discursivas. A palavra ‘osso’ remete ao que há de mais agudo, afiado e conciso na arte contemporânea. É como se cada trabalho equivalesse a um gesto, uma ação direta feita pelo artista”, explica.

Símbolo da Campanha pela Liberdade de Rafael Braga que será exibido em ‘Histórias Afro-atlânticas’.

Uma das participantes da mostra, Carmela Gross acredita que as obras devem “agudizar” as questões sociais: “A arte sempre é política. Claro que não podemos entender a política num sentido estreito. Trata-se, antes de tudo, de produzir um acontecimento sensível que possa reverberar nos outros”. Nuno Ramos, que exibe a obra Balada, composta por um livro alvejado por uma bala, concorda com a colega.

“Não se faz política apenas quando se trata de uma pauta engajada. Quer dizer, há política em toda obra. A Bossa Nova, por exemplo, tinha uma grande potência política, apesar de não ser uma intenção explícita dos autores”, afirma o artista. Ele ainda chama atenção para os riscos de “leituras enviesadas”: “Não necessariamente as obras mais engajadas serão aquelas que permanecerão, dando conta do seu tempo.  Precisamos interrogar os trabalhos com bastante riqueza para não ficarmos presos ao seu conteúdo”.

Em rumo ao impossível

Para o filósofo e professor da USP, Vladimir Safatle, a força da obra de arte não pode ser reduzida ao seu discurso.“A dimensão política fundamental da arte não está no engajamento explícito, mas na sua capacidade de dar forma ao que é tido como impossível. E isso não é simplesmente uma função utópica da arte, é a sua dimensão mais concreta, ela permite a criação de novas formas de sociabilidade”. Ele explica que aspirar ao impossível significa, sobretudo, pensar em outras maneiras de habitar e sentir o mundo. E, para isso, é preciso criar novas linguagens.

“Hoje, se olharmos nas galerias de arte, há muitos trabalhos que tratam diretamente de problemas sociais. Mas o que talvez nós precisemos seja algo de outra natureza. Um dos motivos do embotamento da nossa imaginação política vem do fato de adotarmos a gramática daquilo contra o qual se combate. Acabamos falando a mesma linguagem, ainda que para fazer frases diferentes. E é óbvio que, dentro desse processo, o jogo já está perdido. Talvez a arte seja um dos poucos discursos que possa nos lembrar disso. Não há instauração política sem criação de uma nova gramática”, pontua.

Na mostra em cartaz no Tomie Ohtake, um trabalho em especial traz a a ideia da arte em busca do impossível. Trata-se do registro de uma exposição que o artista Paulo Bruscky montou em Recife, em 1974. Intitulada Nadaísmo, a mostra não era composta por nenhuma obra, a galeria estava totalmente vazia. O público era convidado a comparecer com um panfleto irônico: “As pessoas chegam à sala e nada acontece. (..) Nada e somente o nada que perturba tanto. Mas então o nada é algo. Se perturba tanto, então não é só algo, como muito. O nada é muito”.

O encontro com o nada, proposto por Bruscky, desarma o espectador, convocando-o a refletir sobre o inesperado. Para Paulo Miyada, é preciso de fato pensar a política de uma forma mais ampla. “Como curador, tento desautomatizar os jeitos em que trago as pautas para os meus projetos. É uma forma de revalorizar a ideia de política como algo que deve ser conquistado e não uma palavra-chave a priori”, pontua.

Perspectiva histórica

Olhar o passado pode ajudar a entender a relação entre a arte e a política hoje. Segundo o professor do departamento de história da USP, Francisco Alambert, a arte moderna se baseava em duas formas de revolução: a social, pautada pelos exemplos das transformações na França, em 1789, e na Rússia, em 1917, e a formal, associada às vanguardas artísticas. “A arte contemporânea, por sua vez, nasce sob o signo da pós-revolução, quando a perspectiva de uma transformação radical nas coisas e na arte, ainda que não desapareça, já não é mais vista como necessária. Daí o desafio da arte contemporânea de ter que procurar o seu lugar político”.

Nessa busca por uma nova gramática, como afirma Safatle, talvez um dos maiores impasses seja a relação dos artistas com o mercado. Alambert  defende que, diferentemente da arte moderna que no início se opunha aos parâmetros oficiais– os quadros de Picasso, por exemplo, chegarem a ser censurados- a produção contemporânea já surge em diálogo com as instituições.

“A política da arte contemporânea é muito contraditória porque, por um lado, os artistas romperam completamente com as linguagens tradicionais. A arte foi para a rua, o corpo, as instalações. Nesse sentido, ela é muito livre. No entanto, essa liberdade é limitada pela condição de mercadoria e pelo fato das obras sempre estarem dentro de uma instituição que as legitime: museus, bienais, galerias. Muito raramente a produção de arte contemporânea está associada a movimentos sociais maiores”, defende o historiador.

Rosana Paulino, ‘O Progresso das Nações’, 2016e

Mesmo que dentro de uma instituição, a mostra OSSO representa essa tentativa de diálogo com outros setores da sociedade civil, sendo uma parceria da arte com a justiça. Segundo o curador, a exposição funciona como um “chamado social” para que cada setor colabore trazendo reflexões. “Esse diálogo foi fundamental para o projeto. E talvez seja algo mais ou menos raro porque geralmente o próprio sistema da arte se retroalimenta e tem todas as suas dinâmicas e reflexões internas”, pontua Miyada.

Nuno Ramos também considera importante que as mostras consigam “dialogar cada vez mais com outras parcelas da sociedade”. Ainda assim, ele comenta que a relação entre arte e política deve ser vista a partir de suas nuances:“ Em um momento em que tudo indica que a função do artista é assumir para si questões éticas, talvez o que devamos fazer seja trair essa expectativa e não assumir nenhum papel. E isso em si já é uma postura política. No fundo, é pensar um pouco a arte como uma forma de solidão, algo que não se identifica com as funções do mundo”.

 

*Mariana Tessitore é jornalista e historiadora

Jaime Lauriano e a desmistificação da democracia racial

O artista Jaime Lauriano conta que começou “a entender que tinha uma responsabilidade muito grande, por ser um produtor negro de arte contemporânea dentro de uma sociedade de segregação racial". FOTO: Divulgação

 

*Por Mariana Tessitore

“Para eu estar aqui hoje falando, muitas pessoas que vierem da África para serem escravizadas tiveram que morrer.” É assim que o artista Jaime Lauriano começou essa conversa com a ARTE!Brasileiros no final de 2016. Com seus óculos grandes e redondos, e o mapa do continente africano tatuado em seu braço, ele recebeu a reportagem no Ateliê 397, espaço de intervenção cultural sediado na Vila Madalena, na zona oeste de São Paulo.

Lauriano falou sobre a sua atuação como artista iniciada em 2007, após sua formação no curso de artes visuais na Faculdade Belas Artes. Em 2011, sua produção teve um hiato de um ano, no qual trabalhou com marketing político “para entender como a estrutura funcionava por dentro”.

Porém, em 2012 decidiu retornar ao campo das artes, iniciando um projeto que propõe releituras de momentos chaves da história brasileira. No ano passado, a Pinacoteca do Estado de São Paulo adquiriu a sua instalação Nesta Terra Em Se Plantando Tudo Dá, o que conferiu maior projeção ao artista.

O coletivo é uma questão central para Lauriano. Ele reforça que o seu corpo é fruto de uma ancestralidade, marcada pelas lutas dos grupos marginalizados ao longo da história. “Falar dessa coletividade é uma das responsabilidades que assumi para mim. Não necessariamente tematizando isso, mas afirmando que sou um produtor de origem africana, que algo está gravado no meu corpo. E isso a polícia e a segregação racial me lembram a todo o momento”, conta o artista.

Em seu último projeto, Lauriano reconta a história brasileira a partir de três perspectivas: o trabalho, a dominação do solo e a criação do Estado nação. Esses três pontos foram investigados em exposições que o artista realizou respectivamente no Centro Cultural São Paulo, na Galeria Leme e no Centro Cultural do Banco do Brasil do Rio. Segundo Laureano, o intuito era “buscar no passado as explicações para o que acontece no presente. Queria entender questões como: por que se matam tantos jovens negros? Ou por que até hoje ainda criamos tantos slogans nacionalistas?”.

Para responder a essas indagações, ele foi aos arquivos públicos do Rio e de São Paulo. Lá encontrou diversos documentos, a partir dos quais criou suas obras mais recentes.  Nos últimos anos, o arquivo se tornou uma referência constante nos trabalhos de arte contemporânea. Indagado sobre essa questão, Lauriano comenta: “É uma tentativa de ‘ficcionalizar’ os arquivos para mostrar que a história que nos é contada também é uma ficção. Não se trata de criar uma nova história oficial, mas de apresentar outras possibilidades e perspectivas”.

Em 2014, Lauriano tirou o pó dos arquivos da ditadura militar para criar dois vídeos que apresentou na coletiva I Mostra, no Centro Cultural São Paulo, realizada durante o período da Copa do Mundo no Brasil. Em Morte Súbita, o artista filma pessoas encobrindo o rosto com a camisa da seleção brasileira, enquanto um narrador lê os nomes de 25 desaparecidos políticos da década de 1970. No vídeo, “a câmera faz um travelling, mostrando essas pessoas de perfil, como se estivessem escutando o hino antes de uma partida, tomando um enquadro ou ainda prestes a serem fuziladas”.

 

Na obra, o artista chama atenção para como o esporte pode ser utilizado como instrumento de exaltação patriótica: “Eu quis falar sobre a Copa do Mundo de 1970 porque, ao mesmo tempo em que todos torceram pelo Brasil, esse foi o ano que a ditadura militar conseguiu desbaratar a luta armada. Também foi o período do milagre econômico, a população empolgada com a distribuição de renda pelo consumo. E é muito contraditório porque essa é uma retórica que se dá até hoje em qualquer tipo de governo”.

No ano passado, o artista realizou a exposição Autorretrato em Branco Sobre Preto na Galeria Leme. A mostra foi um marco em sua carreira, funcionando como “um autorretrato, não só meu mais de uma condição social, dessa imposição da sociedade branca sobre os corpos negros, e como isso atravessa a história do Brasil”. Foi lá que ele apresentou a instalação Nesta Terra Em Se Plantando Tudo Dá, composta por uma muda de Pau Brasil plantada dentro de uma estufa. Na obra, há todo um sistema, com irrigação e ventilação, que garante as condições ideais para que a árvore viva. Porém, ao crescer, a árvore provavelmente morrerá por asfixia ou por explodir os vidros da estufa ao aumentar de tamanho.

Lauriano afirma que, assim como na estufa, no Brasil “há as condições ideias para o crescimento, mas a gente aprisiona. O Estado subsidia transporte, saúde, enfim, muitas coisas, mas também cerceia a liberdade, as pessoas têm fronteiras, passaportes, polícias. O primeiro escravizado no Brasil foi o índio para retirar o pau Brasil, que é perversamente a planta que dá nome ao País. Então, aquilo que nomeia a nação é o sinal do primeiro genocídio, a primeira tortura. No trabalho, eu queria pensar tudo isso”.

Jaime Lauriano, ‘Nessa terra, em se plantando, tudo dá’, 2015.

O atual diretor artístico da Pinacoteca, Tadeu Chiarelli, viu a obra na exposição e decidiu adquiri-la para o acervo da instituição. Depois de comprar a peça, Chiarelli fez outras aquisições de obras de artistas afrodescendentes, que comporiam a exposição Territórios, apresentada neste ano na comemoração dos 110 anos da instituição.

Lauriano conta que a partir desse momento, começou “a entender que tinha uma responsabilidade muito grande, por ser um produtor negro de arte contemporânea dentro de uma sociedade de segregação racial, mas que até hoje  prega a meritocracia e a democracia racial como pilares fundadores”.

Para o artista, a inserção do negro no mercado da arte é “um trabalho de formiguinha. Eu, por exemplo, indico pessoas para outras exposições. Entendo que criar uma rede, uma comunidade de pessoas também faz parte do trabalho artístico. Aprendi isso porque ouço muito rap desde criança e isso é muito forte no rap, essa indústria que é abastecida por produtores afro-brasileiros. E eu acho que esse pensamento também precisa estar nas artes plásticas, quanto mais gente conseguirmos trazer juntos, vamos lá sabe? Onde passa boi passa boiada. Abriu uma fresta, vem gente. Eu e algumas pessoas estamos conseguindo abrir essa fresta, esse lugar de diálogo”.

Em sua última exposição, apresentada neste ano no CCBB do Rio, Lauriano continuou propondo conexões entre o passado e o presente. Na obra Calimba, por exemplo, criou carimbos com 25 manchetes de jornais sobre linchamentos realizados no Brasil. Os carimbos remetem à prática adotada pelos senhores de marcar os escravos a ferro. O artista conta um pouco sobre o processo de concepção da obra: “Enquanto eu pesquisava nos jornais, me lembrei dos linchamentos praticados na década de 1920 no sul dos EUA. Eram homens negros espancados, enforcados e pendurados em praças públicas. Essas imagens viravam cartões postais como se fossem paisagens que deveriam ser contempladas. Isso durou cerca de 20 anos. E aqui no Brasil, nesse tempo, estávamos vivendo o auge da democracia racial. Isso também acontecia, só não era divulgado. Tudo isso me fez pensar na violência colonial, em como ela é atualizada hoje nesses linchamentos, que de novo são feitos na praça pública pela sociedade civil, e não pelo Estado. É impressionante como a violência também transita historicamente”.

Lauriano comenta que uma parte do seu trabalho é justamente aparecer na imprensa para questionar os estereótipos associados aos afrodescendentes. “É importante mostrar que existe outro lugar para o jovem negro que não o do suspeito em potencial. Até porque o negro no Brasil hoje nem é mais suspeito, ele já é o acusado, aquele que fez a treta.” Otimista, ele afirma que, devido à presença de artistas como Sonia Gomes, Emanoel Araújo e Paulo Nazareth, o meio das artes tornou-se mais aberto, mesmo que obviamente ainda exista preconceito. Porém com o fortalecimento da discussão, “torna-se muito mais difícil apagar ou silenciar o negro”. Como diz o artista, onde passa boi passa boiada.

 

*Mariana Tessitore é jornalista e historiadora

Ayrson Heráclito, um artista exorcista

Ayrson Heráclito, fotografias da série 'Bori' (2008-2011).

*Por Mariana Tessitore

Praticante do candomblé há mais de vinte anos, Ayrson Heráclito acredita na arte como uma forma de cura. Para o artista baiano, é preciso “exorcizar os fantasmas da sociedade colonial” que ainda assombram o País. Em suas performances, vida, arte e religião se misturam num mesmo caldeirão, onde também entram alimentos da cultura baiana como o açúcar, a carne de charque e o dendê.

Heráclito é um dos cinco artistas brasileiros que participaram da 57ª Bienal de Veneza, em 2017, uma das mostras mais importantes do mundo com inauguração prevista para o mês de maio. Em entrevista à ARTE!Brasileiros no período que ocorreu a Bienal, o baiano fala sobre o trabalho que apresentará na Bienal, a relação entre a  arte e o sagrado, o mito da democracia racial e a convivência com Marina Abramovic, entre outros temas.

ARTE!Brasileiros: Você poderia falar sobre a obra que apresentará na Bienal de Veneza?

Ayrson Heráclito: O trabalho se chama Sacudimentos*, é uma obra que fiz uma parte na Bahia e outra no Senegal. Em 2015, realizei dois rituais, um na Casa da Torre, sede de um grande latifúndio na Bahia, e outra na Casa dos Escravos na Ilha de Goré, no Senegal. O sacudimento é uma espécie de exorcismo que eu faço nesses dois grandes monumentos arquitetônicos, localizados nas duas margens do Atlântico ligadas ao tráfico de escravos e à própria colonização. Eu queria voltar fisicamente e poeticamente a esse passado colonial e a própria história do escravismo para refletir sobre as condições sociais do nosso presente.

Esse ritual do sacudimento é realizado no recôncavo baiano com bastante frequência pelas pessoas ligadas a religiões de matrizes africanas. É uma prática importante a de limpar o espaço e afugentar, sobretudo, os espíritos e mortos, os eguns dos ambientes domésticos. Então quando você muda para uma casa nova, você chama alguém para fazer um sacudimento e tirar  esses espíritos ruins que tendem a permanecer entre os vivos, trazendo infortunas.

Ao fazer esses rituais, eu me perguntava quais eram essas energias de mortos que eu precisava retirar dessas casas. A meu ver, essa morte que ronda os dois lugares foi causada pela própria história da colonização que tem consequências muito atuais tanto no Brasil quanto na África. Eu queria sacudir essa história, exorcizar esse fantasma do colonizador. O resultado dessas ações, registrado em vídeo, será o que eu apresentarei na Bienal.

Ayrson Heráclito, série ‘Sacudimentos’. Performance ‘O Sacudimento da Maison des Esclaves’ (2015).

Quais são as suas expectativas quanto à Bienal? Seu trabalho dialoga com outras obras que estarão na mostra?

Primeiro eu fiquei bastante feliz. Não é todo dia que um artista afro-brasileiro e, sobretudo, nordestino participa de uma mostra como a Bienal de Veneza. Minha obra estará ao lado das de outros artistas que têm práticas parecidas com a minha. É o que a curadora está chamando de pavilhão dos mágicos e dos xamãs, são artistas que trabalham com o ativismo. Porque isso que eu faço, pra mim, é política, uma política de outra perspectiva, um ativismo muito mais místico. Eu acredito na energia dos rituais, do poder de transformação que eles têm no mundo.

Num momento de tantos embates culturais e com a eleição do Trump, qual a importância de uma mostra cujo tema é a convivência?

O tema da Bienal chama atenção para esse momento de crise que estamos vivendo, o mundo todo está passando por profundas transformações. Eu não tenho conhecimento total do projeto, mas a curadora sempre falou que é uma bienal positiva. Porque não adianta apenas criticar sem apontar possibilidades de superação. O pavilhão onde estará a minha obra também é uma resposta à cultura hegemônica europeia, mostrando a complexidade do mundo. Não existe apenas a Europa. E cada região tem formas distintas de trabalhar com os problemas.

Qual a relação do sagrado com o seu trabalho? Como arte e religião se unem na sua produção?

O limite entre a arte e a religião na minha obra é bastante tênue. Eu sou praticante do candomblé há mais de 27 anos. E esse caminho religioso foi paralelo à minha trajetória artística. Eu me considero uma espécie de tradutor desse universo do sagrado. Tradutor no sentido de alguém que aproxima as pessoas de um outro universo, tornando aquilo público para os não iniciados. Eu venho me inspirando muito em artistas que têm essa relação com o sagrado, como, por exemplo, o Mestre Didi aqui na Bahia, que é um artista e sacerdote religioso.

Você costuma falar que a arte pode curar as feridas históricas. Poderia falar um pouco sobre isso?

A história sempre foi muito presente nas minhas pesquisas artísticas, principalmente o processo da escravidão. Eu me tornei uma espécie de artista exorcista. Minha função é sacudir a história, exorcizar os fantasmas. Não tenho uma concepção linear do tempo, então eu realmente acredito que essas energias que estão no passado contaminam a sociedade e atravessam o tempo, entrando na tessitura social. Porém, os escravos também nos deixaram a cura, a solução que está nos rituais religiosos, o poder das folhas, a comunicação com os elementos da natureza. A partir de todo esse conhecimento, eu tento ajudar as pessoas, dar um apoio, fazer uma limpeza e organização energética. Todos os meus trabalhos têm isso, um enfrentamento com a dor do escravismo, a dor colonial. E ao mesmo tempo uma superação dessa dor por meio de algum tipo de performance, ritual, vivência.

No Brasil, nós ainda falamos pouco da história da escravidão?

Com certeza. Caso o Brasil encarasse de fato essa questão, todos entenderiam muito bem o que é uma reparação por meio de políticas afirmativas de cotas. Até hoje, uma boa parte da sociedade brasileira acredita que todos têm o mesmo nível de acesso às coisas. O Brasil ainda vive dominado pelo mito da democracia racial, a ideia de que não existe um jogo duro da desigualdade e um genocídio das juventudes negras pelos policiais. Não podemos nos esquecer dessa ferida da escravidão, mantendo ela aberta para que ela não volte. O Brasil precisa conviver com o seu holocausto, estudá-lo para que a gente não repita as coisas terríveis que aconteceram. Principalmente a juventude precisa aprender quanto foi perverso e o quão violenta é a nossa história.

Os materiais são muito importantes em sua obra. Elementos como carne, açúcar, sêmen e principalmente o dendê aparecem bastante nos seus trabalhos. Por quê?

Fiz essa opção por esses materiais orgânicos porque eles são bastante utilizados dentro dessa filosofia religiosa que é o candomblé. O açúcar foi a matéria que empreguei para falar da crise do antigo sistema colonial português, momento-chave da nossa história. A carne de charque é o ingrediente primordial que é servido para Ogum, um orixá da guerra. Mas também é um alimento resistente, assim como a carne do corpo de nossos escravos que foram marcados a ferro. Já o dendê, eu relaciono à fertilidade, o esperma que gera novos corpos. Esses três materiais orgânicos são essenciais nessa minha gramática artística.

Falando na carne como material, você poderia comentar a sua performance Transmutação da Carne, que hoje é uma das mais conhecidas.

Transmutação da Carne foi um trabalho que surgiu em 2000. A obra foi inspirada em um documento que descreve as torturas que um senhor de engenho submetia seus escravos. Ler esse documento me chocou muito. A partir daí eu concebi o trabalho no qual os performers vestiam a carne de charque e sofriam algumas das torturas descritas no documento. Uma delas era o processo de marcação do corpo a ferro. Esse trabalho se tornou bastante popular porque, em 2015, Marina Abramovic pediu que eu o reapresentasse em sua exposição Terra Comunal, no Sesc Pompeia. A performance fala da carne de charque como uma metáfora desse corpo escravo que sofreu muitas violências, mas resistiu.

E como foi a convivência com a Marina Abramovic?

Foi incrível. Olha que eu já tenho bastante experiência com os rituais do candomblé. Mas fazer o workshop dela foi importantíssimo pra mim. Ficamos uma semana quase sem comer, sem falar, sem ler ou usar celular. Sempre envoltos num espaço da natureza e fazendo exercícios de longa duração. E eu realmente consegui entrar nesses outros níveis que nunca havia acessado, principalmente na esfera religiosa. Foi uma das experiências mais marcantes da minha vida. Ela realmente influenciou o meu método como performer.

Dentre tantas obras, com quais você mais se identifica?

Essa obra que eu vou apresentar na Bienal, “Os Sacudimentos”, é uma das mais importantes da minha vida. Não sei se no futuro vou conseguir fazer outra tão relevante. Foi um trabalho muito difícil, não só por uma questão de logística, de conseguir autorização dos espaços para fazer essas limpezas, mas também no nível espiritual, de enfrentar esses eguns. Existem outros trabalhos também muito importantes como a performance Bori, na qual eu dou comida sagrada para as cabeças de pessoas. Mas a obra Os Sacudimentos é muito importante porque ela reúne essas duas margens atlânticas, que é algo essencial pra mim.

Você está produzindo algum trabalho agora?

Muitos, graças a Deus. Mas há um em especial que se chama História do Futuro. É uma série de filmes e fotografias sobre as minhas experiências na África. O nome do trabalho é uma referência a um texto do Padre Antônio Viera, de quem eu me aproprio para pensar na relação da África com o futuro.  É uma série que pretendo mostrar logo.

 

*Mariana Tessitore é jornalista e historiadora, trabalha no IMS