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“Sempre Gay”, a voz transgressora de jovens artistas

Liz Under, Mudo, 2016
Liz Under, Mudo, 2016

Sempre Gay: meninas de azul e meninos de rosa aborda conceitual e artisticamente a resistência de jovens artistas diante de situações de ódio, discriminação e apagamentos. Organizada pela Transarte, galeria voltada a projetos com temática LGBTQ e à arte transgressora, a exposição reúne Liz Under, Bia Leite, Eduardo Mafea e Pedro Stephan, com trabalhos de pura militância.

A arte contemporânea desenvolveu uma estratégia de aproximação com o cotidiano. A narrativa de todos eles não separa a arte da vida, e a contrassenha para a sobrevivência é manter-se em estado de alerta permanente diante de uma sociedade violenta para gays, mulheres, negros, indígenas e pobres. Os trabalhos nascem espontaneamente, sem se preocupar com a fatura, e a maioria deles espelha situações vivenciadas. Liz Under, 24 anos, abre a exposição com fotos de uma performance com lençóis vermelhos com fendas vaginais, realizada em seu estúdio em Salvador, onde morava e trabalhava. O ensaio protagonizado por ela coloca o espectador como voyeur de uma imersão sensual. Liz vive em Araraquara e nos três anos que passou em Salvador estudou e começou na arte fazendo grafites pelas ruas e cartazes lambe-lambe. Foi lá que experimentou na pele o desafio de fazer uma arte transgressora. “Mesmo dentro do Museu de Arte Moderna, onde fiz curso de litografia, não escapei de uma sociedade opressora”. Sua aversão pelo mundo machista inspirou um desenho com a imagem de um gato com um pênis atravessado na boca, que irritou seus colegas de curso. “Começaram a me tratar mal, a chamar o gato de Miserável. A pressão era tal que eu chegava a me vestir de homem para conseguir me impor naquele ambiente machista e discriminatório”. Liz também sofreu com as gravuras de suas musas emparedadas. “Na história da arte os homens pintam mulheres nuas para deleite masculino e eu coloco minhas musas no papel na busca da construção do seu próprio prazer, do seu próprio afeto”. Quando Liz expôs esses trabalhos na 5ª Bienal de Gravura Lívio Abramo, em Araraquara, foi agredida moralmente por um jornalista local, conhecido pelo seu sobrenome, Madalena. “Revoltado, ele me ofendeu e classificou meu trabalho como ‘arte vadia’. Eu adorei o nome, nem precisei pensar em outro título, fiquei com o dele”. Ela lembra que hoje no Brasil temos a legitimação da violência que vem de quem está no poder. A artista fala de uma necropolítica instalada com poder social e político para decidir quem vive e quem morre. “Os alvos preferidos são os LGBTQ, pessoas negras e pobres”.

Bia Beite, série Naoparanao
Bia Beite, série Naoparanao

Assim como a obra de Liz é considerada inadequada socialmente por uma classe conservadora, o trabalho de Bia Leite também provoca insultos. Ela ganhou as páginas do noticiário quando sua pintura Criança Viada foi censurada na exposição Queermuseu no Centro Cultural Santander de Porto Alegre. Sob protestos de alguns visitantes a exposição foi fechada e ela perseguida e ameaçada de morte. A mostra só foi liberada depois de criado um programa de arrecadação promovido pelo Parque Lage, no Rio de Janeiro, onde a mostra foi exposta com filas homéricas. A pintura que horrorizou os gaúchos traz impressos vários xingamentos preconceituosos sofridos pelos homossexuais desde a infância. Bia foi descoberta e premiada pelo Edital Transarte LGBT, em 2015 e agora acaba de firmar um contrato de exclusividade com a galeria, onde expõe nesta mostra pinturas inspiradas em alienígenas e em um poster japonês de filme de terror, do diretor John Carpenter. Sua pintura lembra os traços neoexpressionistas da década de 80, com cores corrosivas e citações do universo pop.

Sob influência também expressionista, Eduardo Mafea defende seu trabalho como mergulho no dualismo do homem gay e a ligação compulsória ao universo machista do futebol, esporte apreciado pelas famílias como símbolo de virilidade. Com outras preocupações, Pedro Stephan, apaixonado pelo Rio de Janeiro, autor de tetos homoeróticas, mostra pela primeira vez o ensaio Lâmpadas de Mercúrio, que pode ser visto como uma fotonovela não narrativa tendo como cenário o Parque do Flamengo, local carioca onde vive desde a infância quando passeava por lá de bicicleta. As 30 imagens do ensaio mostram amigos de Stephan clicados em 2005 em cenas amorosas. “Tentei subverter o clichê provando que a pegação não é só sacanagem, pode ser também romance”.

A diretora da Transarte, Maria Helena Peres escreve em um de seus catálogos que precisamos estar atentos ao Brasil que vem propondo a cura gay, que fecha exposições, bate e mata travestis e cria monstros dentro dos integrantes do movimento LGBTQ.

Retrospectiva leva 50 obras de Fernanda Gomes à Pinacoteca de SP

Trabalho de Fernanda Gomes. Foto: Divulgação

As sete salas climatizadas da Pinacoteca do Estado, usualmente reservadas para mostras de caráter histórico, transformaram-se nas últimas três semanas em um espaço experimental potente, tomado em seu conjunto por uma série de intervenções da artista carioca Fernanda Gomes. O resultado é uma exposição que aponta simultaneamente para o passado e para o futuro: ao mesmo que resume uma trajetória bem-sucedida que se estende por mais de três décadas, aponta também para a persistência e radicalização de um caminho ousado, de investigação dos limites da ação artística, de incorporação e subversão de elementos e procedimentos mais próximos da vida cotidiana do que do universo hermético da arte. “A arte existe antes que se possa nomear arte”, defende ela.

Assemelhando-se a um quebra-cabeças composto por diferentes peças reunidas ao longo do tempo (o trabalho mais antigo data de 1973, quando Fernanda tinha apenas 12 anos) que se articulam por meio de um pensamento semelhante, a exposição desafia o olhar do público. E o incita a descobrir relações pouco prováveis, diferenças sutis, conexões raras entre elementos na maioria das vezes banais.

Algumas características são marcantes em sua produção: a escala, normalmente diminuta ou reduzida a um tamanho confortável, íntimo; o uso exclusivo do branco, em suas mais variadas tonalidades, e das cores naturais da madeira; a reapropriação e reconfiguração de elementos de descarte; uma tendência quase obsessiva de procurar configurações geométricas, equilíbrios instáveis ou associações improváveis entre esses componentes; e uma tendência permanente ao enxugamento, à redução, a um tipo de articulação que valoriza o que há de mais singelo nas coisas. Há uma economia, uma resistência do precário e do sintético, em todos os sentidos.

A combinação desses elementos – ao qual se soma uma dose de bom humor e um meticuloso trabalho com a luz – acaba por abrir novos caminhos de pensamento visual, que assusta aquele espectador que procura uma chave racional para a compreensão do que têm diante dos olhos, ao mesmo tempo que fascina o público infantil. “Ficamos reféns da palavra como possibilidade de expressão”, explica ela. Além de resistir a uma exigência de uma lógica discursiva (não à toa nem o conjunto da exposição nem as obras individuais têm títulos), o trabalho de Fernanda Gomes possui a curiosa característica de não submeter-se à lógica do excesso da imagem, que parece dominar a produção contemporânea. Fotografá-lo é tarefa difícil para a própria autora, demonstrando a importância da relação direta entre público e obra.

Quando arte é resistência

Na modesta entrada da rua Álvaro de Carvalho, 427, no centro de São Paulo, é dona Irene Silva quem faz as honras da casa. Moradora de lá, é ela quem cuida da entrada, durante o dia, por onde cerca de 500 moradores de 120 famílias passam diariamente para entrar na Ocupação 9 de Julho, gerida pelo Movimento Sem Teto do Centro (MSTC).

Além da entrada, dona Irene também cuida do jardim e da horta da ocupação, “mãos ótimas que quando plantam tudo dá”, como escreveu o artista Lourival Cuquinha, ao responder minha mensagem solicitando o nome dela.

É dona Irene, com sorriso no rosto, que indica como chegar na galeria Reocupa, onde ocorre a mostra O Que Não é Floresta é Prisão Política, com cerca de cem artistas, entre eles o próprio Cuquina. Arte no vão central de um espaço de resistência. Eu me senti em Bacurau.

A mostra, em cartaz de quarta a domingo, das 14h às 20h, ocorre desde setembro com 74 artistas, sendo que outros 15 foram agregados em outubro e, agora em novembro, outro grupo será adicionado. Não se sabe exatamente até quando a mostra permanece, mas é seguro que segue até o fim do ano.

Artista é o termo adequado para denominar quem dela participa, mesmo que nem todos ali têm na arte sua principal atividade. Há desde figuras reconhecidas internacionalmente no circuito da arte, como Ernesto Neto e Renata Lucas, em meio a outros que vivem e produzem na própria Ocupação, enquanto outros se destacam em áreas próximas, como a fotojornalista Marlene Bergamo ou o filósofo Peter Pál Pelbart. No entanto, ali é o lugar mais adequado para por em prática a famosa expressão de Joseph Beuys, que “todo ser humano é um artista”.

Apesar dos 89 nomes indicados nos mapas que indicam a disposição das obras na mostra, ao menos outras duas dezenas também participam com intervenções ao longo de outros oito andares da ocupação – a galeria Reocupa é de fato no térreo do edifício, onde está a entrada para a avenida 9 de julho, que não se encontra em uso, e todo seu entorno.

Com 14 andares, o prédio foi construído como sede do INSS em São Paulo, inaugurado em 1943. Projetado por Jayme Fonseca Rodrigues, o edifício é um dos ícones da arquitetura paulistana durante a Era Vargas, presidente homenageado com busto na entrada, que desapareceu ao longo da história recente. Desde 1997, ocupações passaram a ocorrer ali, depois de 20 anos de abandono, e a atual, organizada pelo MSTC, teve início em 2016.

Nela, artistas vêm colaborando de forma orgânica desde o início. O Aparelhamento, por exemplo, que surgiu em 2016, quando a Funarte começou a ser desativada pelo governo Temer, ajudou a organizar a cozinha comunitária, que prepara almoços festivos uma vez por mês, e tem sido importante para a manutenção das condições do edifício.

Vista do espaço da galeria reocupa, que recebe a exposição “O que não é floresta é prisão política”.

Na galeria, quem fala das obras é Felipe Figueiredo, monitor e ativista que vive na Ocupação desde seus primeiros momentos, em 2016, e que sabe não só de cada trabalho, mas da própria história do movimento. Ele desenvolve sua narrativa contando desde a importância de levar colchões nas primeiras horas de uma ocupação a estimular o visitante a ouvir Serenata de Amor, de Georgia Miessa, uma compilação de canções machistas na música popular brasileira, desde 1920.

Vivendo na Ocupação, Felipe garante um vínculo estreito entre produção artística e seu contexto. Não que os trabalhos sejam colocados ali alheios ao espaço, como se ele fosse um cubo branco. Longe disso. Mas é justamente esse caráter vital desencadeado pela ocupação que dá particularidade e relevância, e a voz de Felipe é essencial. Mas entrar na Reocupa é também sentir o cheiro das comidas sendo preparadas nos andares acima, dos produtos de limpeza em uso, é ouvir as crianças brincando, é ver o tempo desgastando um edifício que já foi público e se encontrava abandonado. Tudo muito distante dos espaços tradicionais e higienizados da arte. Tudo muito mais potente.

Não só o ambiente é libertário, como as próprias estratégias de curadoria, a começar pela seleção do nome da mostra. Quando desce do primeiro andar para a Reocupa, pode-se ler a troca de mensagens no grupo de artistas que participam da mostra para a escolha do nome. “É a nossa vaza-jato”, explica Cuquinha, ao descrever o processo de transparência assumido, mesmo que os nomes estejam apagados. O importante é o processo, afinal.

A maioria dos artistas ali presentes tem colaborado na ocupação de forma atuante e sistemática, seja na cozinha, seja em outras funções. Mas não necessariamente. Quem inaugurou o espaço, aliás, foi o carioca Nelson Félix, no ano passado, paralelamente à sua presença na Bienal de São Paulo, a convite do Aparelhamento.

A atual mostra levou quatro meses para ser concebida e, como o nome indica, parte de duas questões bastante atuais: a floresta como espaço de sobrevivência frente às queimadas e ao genocídio indígena, e as atuais prisões políticas, que vão de Lula a outras lideranças populares, como Preta Ferreira, filha de Carmem Silva, do MSTC.

Não por acaso, obviamente, Lula, Carmem e Preta são lembradas neste cenário, presentes em diversos trabalhos, incluindo aí obras de Surpresinha de Uva, o nome dado para quando a autoria não é essencial e uma obra é criada coletivamente.

Mas o essencial realmente é perceber como essa exposição dá início a uma nova chave de posicionamento artístico, estimulado através de uma rede de colaboração fora do circuito institucional tradicional e longe do circuito comercial convencional de galerias e feiras, porque lá há obras vendidas para manutenção do espaço e auxílio à ocupação, apontando que é possível se repensar a relação de vendas na arte. Nesse sentido, a Galeria Reocupa se soma a outras estratégias envolvendo artistas, como a Casa Chama, em São Paulo e Lanchonete<>Lanchonete, no Rio de Janeiro. Se os tempos atuais parecem pesadelos constantes, O Que Não é Floresta é Prisão Política mostra que o sonho ainda tem espaço e pode ser viável. E dona Irene ainda se despede sorrindo com um convite: “Volte Sempre!”

Art Basel Miami Beach: estreia de grandes escalas

Artur Lescher, "Rio Máquina", 2010. FOTO: Fernando Laszlo

A edição de Miami Beach da tradicional feira Art Basel começou a aquecer o mercado desde que anunciou o setor Meridians, em outubro, no qual serão exibidas obras de grande escala. A galeria Nara Roesler é a única brasileira que participará dessa estreia, levando uma obra de Artur Lescher. São, ao todo, 34 trabalhos exibidos na seção, que tem curadoria de Magalí Arriola, crítica e curadora, atual diretora do Museo Tamayo, na Cidade do México. Todos os trabalhos poderão ser conferidos durante o período da feira, entre 5 e 8 de dezembro, no Miami Beach Convention Center. Meridians será montado no Grand Ballroom do espaço.

Além de Lescher, obras de artistas como a argentina Luciana Lamothe, os cubanos Flavio Garciandía e Ana Mendieta, o colombiano Antonio Suárez Londoño e os mexicanos Jose Dávila, Miguel Calderón, Pepe Mar e Tercerunquinto poderão ser vistas em Meridians. A curadoria não seguiu um tema específico para a escolha das obras apresentadas. “Dada a singularidade de cada projeto, o Meridians articula uma troca muito orgânica de ideias e posições, revelando sobreposições conceituais, temas e interesses que surgiram da forte seleção de projetos deste ano”, afirmou Arriola durante o anúncio do projeto.

Em entrevista ao site da Art Basel, a curadora disse que ” desafio era não me forçar a organizar um programa clássico com base em um argumento coerente. Em vez disso, eu queria criar uma paisagem que permitisse que os trabalhos dialogassem entre si”. Entre os destaques da exposição está a performance Pinwheel, da estadunidense Tina Girouard, que foi apresentada apenas uma vez em 1977 e será realizada novamente agora na feira.

Na parte de expositores, as galerias brasileiras aparecem como de costume. As casas Jaqueline Martins e Luciana Brito anunciaram que farão uma participação conjunta na feira, levando os artistas Robert Barry, Lydia Okumura, Augusto de Campos e Geraldo de Barros. É a primeira vez na história da feira que duas galerias estão dividindo um estande no espaço principal do evento, provocando diálogos entre artistas que representam: “O projeto conjunto busca criar um espaço onde tanto as intersecções quanto as diferenças entre suas produções possam ser percebidas pelo visitante”, diz o comunicado.

A carioca Anita Schwartz Galeria de Arte irá fazer um estande solo com obras do artista Paulo Vivacqua. As obras Babbling Forms e Corale funcionam como  poemas musicais, conta a galerista. “Eles lidam com o mesmo ponto de partida: os alto-falantes, que estabelecem uma contrapartida entre si”, explica. “Enquanto Corale enfatiza a forma, com uma composição de esculturas feitas a partir de alto-falantes coloridos em nuances de cor, o Babbling Forms está profundamente envolvido com a função da linguagem, onde sons ‘pré-verbais’ conversam”. A interação entre eles se concentra na investigação artística relacionada ao modo como as ideias preconcebidas da escultura desaparecem e mudam para direções inesperadas. O artista considera a transmissão do som e do silêncio como um estado musical que adquire concretude e presença em espaço — música como escultura.

Por sua vez, a Casa Triângulo levará alguns de seus artistas para a feira e aposta em  Ascânio MMM e Mariana Palma. De acordo com a diretora da galeria, Camila Siqueira, serão levadas esculturas de Ascânio produzidas entre as décadas de 60 e 70. “Para reforçar a importância histórica da produção dele nesse período”, afirma. Em 2020, Mariana Palma terá uma individual no Instituto Tomie Ohtake. Assim, a galeria também foca em suas pinturas que exploram uma exuberância de cores.

Nunca, Ai Lovi, 2019.

Nos arredores

A Galeria Kogan Amaro estreia na SCOPE, uma das principais feiras do circuito contemporâneo, que chega a sua 19ª edição em 2019. A diretora da galeria, Marlise Corsato, pesquisou outras feiras em Miami, em ocasião de suas visitas à Art Basel. Por ser uma feira internacional que está há bastante tempo no mercado, já estabelecida, mas com uma pegada mais jovem, leve e despojada, Marlise apostou na SCOPE para a estreia da galeria em uma feira fora do Brasil: “Senti que para nós seria interessante começar numa feira internacional nesse estilo”.

Daniel Mullen, Mundano, Nunca e Samuel de Saboia são os quatro artistas que estarão no estande da Kogan Amaro, a única brasileira a participar dessa feira. Mundano e Nunca ainda realizarão trabalhos ao ar livre em Miami. As ações foram promovidas em razão da participação na feira, incorporando os artistas, que trabalham a linguagem da street art, à cidade.

FAMA tem intensa programação no último final de semana de novembro

Marcia Pastore, detalhe de "Transposição". FOTO: Hugo Curti

Neste sábado, 30 de novembro, a Fábrica de Arte Marcos Amaro (FAMA) inaugura um novo espaço dedicado à land art. O FAMA Campo, situado na zona rural de Mairinque, interior do estado de São Paulo, terá inauguração com obra inédita de Marcia Pastore, intitulada Transposição. “Onde o céu encontra-se com o chão e o ar com a terra” é a frase que define a raiz desse novo projeto, que se propõe a abrigar intervenções de artistas na paisagem com esculturas efêmeras.

A Fundação Marcos Amaro, que gere a FAMA, a Galeria Kogan Amaro e, agora, a FAMA Campo oferecem transporte com saída de São Paulo, às 14h30, partindo da Galeria Kogan Amaro (Alameda Franca, 1054 – Jardim Paulista, São Paulo, SP). As vagas são limitadas. Inscreva-se clicando aqui.

Além da programação no novo espaço, a sede da FAMA em Itu realizará abertura de duas exposições coletivas, às 10h, intituladas Arte na Academia e Meios e Processos. Também haverá a abertura de uma individual de Gilberto Salvador, intitulada A Onda, a água e o mundo flutuante, a partir das 14h. O público ainda poderá conferir ativação de obra de Renata Lucas, às 12h, e performances ao longo do dia.

Quem for acompanhar as atividades em Itu poderá retirar senha para transporte que parte para Mairinque. Serão distribuídas a partir das 13h e a saída está marcada para as 15h.

Saiba mais no site da FAMA.

Mostra de Cássio Loredano inaugura espaço do Instituto José Resende em São Paulo

Machado de Assis por Cássio Loredano. Foto: Divulgação

Poucos meses após inaugurar sua sede na cidade de São José do Barreiro (SP), em maio deste ano, o Instituto José Resende (IJR) abre as portas de seu escritório paulistano, no bairro da Vila Nova Conceição, neste dia 30 de novembro. Ao abrir o novo espaço com uma mostra inédita do ilustrador e caricaturista Cássio Loredano, o instituto mostra sua vocação para, além de difundir a vasta obra do escultor José Resende, colocá-la em dialogo com a produção de outros artistas.

A exposição de Loredano – que estará aberta para visitação aos sábados e mediante agendamento nos outros dias – é ao mesmo tempo uma homenagem e um resgate. Com seus traços marcantes presentes por quase 50 anos na imprensa brasileira e internacional, o ilustrador apresenta uma série de caricaturas de Machado de Assis (1839-1908), dando sequência a uma pesquisa já antiga sobre o escritor.

Os trabalhos agora reunidos no IJR paulistano traçam uma espécie de percurso pela vida do escritor, partindo desde as imagens de sua juventude, até o final de sua vida. “Quero ver a alma do Machado. De vez em quando vejo que ele se entrega”, diz o desenhista no texto de divulgação da mostra.

Machado de Assis por Cássio Loredano. Foto: Divulgação

Além dos trabalhos de Loredano, a abertura do instituto terá expostas obras de Resende e outros trabalhos do acervo do marchand Paulo Fernandes – de Rodin a Miguel Rio Branco – que há décadas administra a obra do escultor e que já realizou exposições de Loredano no passado. “O diálogo entre a obra gráfica de Loredano e a elegância e coerência formal do trabalho escultórico de Resende sublinham a importância de pensar a arte de forma mais ampla, iluminando relações mais distantes do campo formal, porém próximas em termos de procedimento”, diz o texto de apresentação.

A mostra seguirá ainda para a sede do IJR em São José do Barreiro, no espaço de 1,2 mil m2 que passou por uma ligeira reconfiguração. O Instituto acaba de ganhar duas novas esculturas monumentais de Resende, uma instalada no km 260 da Rodovia dos Tropeiros – parte da antiga e histórica rota entre Rio e São Paulo –, que sinaliza o acesso ao centro, e outra peça semelhante incorporada ao jardim de esculturas do instituto, ampliando o número de peças exibidas aos visitantes.

Mostra de Cássio Loredano
Instituto José Resende – Rua Dr. Esdras Pacheco Ferreira, 37 – Vila Nova Conceição, São Paulo. Tel (21) 99964 4701
De 30 de novembro de 2019 a 13 de fevereiro de 2020

14ª Bienal de Curitiba e as urgências atuais

AES+F, Inverso Mundus, 2015
AES+F, Inverso Mundus, 2015

Os conflitos sociopolíticos contemporâneos emergem nesta Bienal de Curitiba, inaugurada em 21 de setembro. As obras vão desde a arte russa contemporânea e seus estilhaços no sistema até as que denunciam diásporas forçadas por conflitos, racismo, perseguições. Sob o tema Fronteiras em Aberto, a edição traz também interseções poéticas com sugestões e interesses puramente artísticos, mas chamam atenção as propostas engaja das na máxima: “criar é resistir”. O tema geral nasce inspirado pelas comemorações dos 30 anos da queda do muro de Berlim, que reconfigurou parte do mundo, em particular o Leste Europeu.

O volume de obras chega a 400, executadas por cerca de 100 artistas, e testemunha a mutação da arte contemporânea que transforma o espaço em um lugar de vestígios, indícios a serem decifrados. Desta vez a Bienal de Curitiba, cujo eixo central é o Museu Oscar Niemeyer, dilata suas bordas e chega a outras cidades e países.

A porosidade da arte é sensível às mudanças da sociedade e às questões contemporâneas de toda ordem. Tereza de Arruda, brasileira que vive na Alemanha, e o espanhol Adolfo Montejo Navas assinam a curadoria geral e entendem fronteira como elemento muito além do espaço geográfico. Um grupo de curadores estrangeiros se junta a eles: Massimo Scaringella (Itália/Argentina), Gabriela Urtiaga (Argentina), Ernestine White (África do Sul), Esebjia Bannan (Rússia) e Julie Dumont (Bélgica).

Sethembile Msezane, performance Hosue of Reflexão
Sethembile Msezane, performance “Hosue of Reflexão”

Mais de vinte anos depois do apartheid, a sul-africana Sethembile Msezane tornou-se uma militante por meio de suas performances denunciadoras da inviabilidade da mulher negra em seu país. Suas performances mesclam ritualismo, ativismo e costumam ocupar espaços públicos com muita audiência. Sentada no chão de sua tenda coberta por panos vermelhos transparentes, ela recebeu individualmente os visitantes da Bienal que quisessem pensar sobre o momento em que estamos vivendo. Certamente Sethembile ficou horrorizada com o que ouviu sobre o Brasil. Ao se tornar artista, ela passou a militar contra o racismo, opressão e a falta de oportunidade aos negros. “Tendo vivido na Cidade do Cabo por cerca de cinco anos, senti uma profunda sensação de deslocamento e invisibilidade”. Suas conversas com o público foram acompanhadas por um músico que executava canções típicas de sua região.

Arthur Omar, Série "A Origem do Rosto"
Arthur Omar, Série “A Origem do Rosto”

Imagine um olho inquieto que quer denunciar as mazelas do mundo por meio de cenas entrecortadas do ciberespaço. É assim que trabalha a retina de Hito Steyerl, cineasta, crítica cultural e ciberartista alemã, um dos nomes de destaque desta Bienal. O aspecto marcante de Factory of the Sun é o foco nos privilegiados do sistema, que ela chama de “pessoas do mundo” e nos seres humanos forçados à diáspora. O vídeo na verdade é um game temperado com denúncias e humor em que a personagem principal, Yulia, um tipo cyborg, faz a narração em que discute, entre outros temas, o exílio forçado de sua família judia para a Rússia. Um dos pontos fortes do discurso é a maneira como ela simula a infiltração e a influência do dinheiro no mundo da arte. Hito tornou-se conhecida por assumir uma posição política, sem medo de desafiar o poder do mercado. A artista tem exposto em vários países e representou a Alemanha na Bienal de Veneza de 2015.

Hito Steyerl, “Factory of the Sun”

A Rússia, Índia, China e África do Sul estão reunidas no segmento Brics, com curadoria de Ernestine White-Mifetu, Esenija Bannan, Lu Zhengyuan e Tereza de Arruda. Humor e crítica ao sistema movem o coletivo russo AES + F que provoca a intersecção de fotografia, vídeo e tecnologia digital. Com o trabalho multimídia Inverso Mundus, o grupo dramatiza críticas entre essas mídias, algumas nonsense, mergulhando na história da arte e nas questões sociais limites do mundo atual. AES + F ficou conhecido depois de representar o pavilhão russo na Bienal de Veneza de 2007, com o provocativo Last Riot.

Bienais são territórios heterogêneos com fragmentação nas maneiras de produzir. Nessas grandes mostras não há dimensões limites para se apresentar uma obra, nem escalas. Cruzeiro do Sul (1969/1970), a minúscula escultura de Cildo Meireles, um bloquinho de madeira que pode ser apreciado na ponta de um dedo indicador, cresce sob um holofote ao tomar o centro da sala. O artista demarca um território, em um sentido político, e faz conexão com os pontos da constelação de mesmo nome. Essa obra, desde a sua criação, já provocou inúmeras interpretações e continua em aberto. No segmento Entremundos, entre outros da mostra, apresentam-se vários brasileiros, entre eles Arthur Omar, com sete trabalhos da série A Origem do Rosto e um fragmento do vídeo Os Cavalos de Goya, feito com imagens de um jogo de hóquei em que a bola é uma carcaça de animal. Trabalhando limites, Regina Vater apresenta Bordas (2019) uma longa e delicada escultura que parece moldar os desenhos territoriais nascidos pelas fronteiras, instrumentos de regulação territorial.

Vista de parte da Bienal de Curitiba dedicada a artistas brasileiros.
No centro, em evidência, obra de Regina Vater, “Bordas”, 2019

Na terra nada é permanente. Os contornos territoriais se desmancham, se movem de acordo com conflitos, arranjos políticos, acidentes geográficos. A ideia de movimentação constante levou a 14ª Bienal de Curitiba a tomar carona em todos os ônibus municipais, onde até dia 1º de março projeta uma série de vídeos durante as viagens, presenteando um público novo, diferente dos que normalmente transitam pelas feiras e bienais.

O primeiro Leonilson

Leonilson
Sem título, 1981, lápis de cor, lápis metálico, guache e aquarela sobre, papel 32,5 x 36,5 cm

Foi no final dos anos 1970, que dois estudantes de artes plásticas, ao entrarem em uma galeria, se deram conta que arte não diz respeito apenas à criação. “O que mais chamou a nossa atenção foi o preço do trabalho. Era um negócio totalmente fora da realidade, da realidade do Brasil daquela época. Não é possível, não custa isso, deve estar errado!”, conta Luiz Zerbini, hoje ironicamente um dos mais caros artistas brasileiros, lembrando da visita com José Leonilson a uma mostra de Antonio Dias (1944-2018).

O depoimento, contudo, serve como um preambulo à amizade que acabaria se desenvolvendo entre Leonilson (1957-1993) e Dias, em Milão, logo em seguida. Foram laços tão fortes que levariam, décadas depois, o então artista valioso a comprar obras do amigo prematuramente falecido em decorrência da Aids, tornando possível, hoje, a mostra Leonilson por Antonio Dias — Perfil de uma coleção, que entre 11 de novembro e 14 de dezembro está em cartaz na Pinakotheke São Paulo (rua Ministro Nelson Hungria, 200), após ter passado pela sede carioca.

Se tudo começou com o choque dos altos valores, como narra Zerbini no catálogo da exposição, foi no outono de 1981 que Leonilson de fato encontraria Antonio Dias, em sua casa em Milão, por indicação de outro brasileiro, Arthur Luiz Piza (1928–2017), que vivia em Paris.

Em outro depoimento no catálogo da mostra, agora de Paola Chieregato, ela conta como Dias influenciou o então jovem artista recém-chegado à sua casa em Milão, que já estava pronto para voltar para Jericoacoara — Leonilson é cearense —, com uma pasta cheia de desenhos embaixo dos braços. “Foi aí, naquela casa de Milão na frente do castelo, que Leonilson foi impulsionado por seu mentor para que tomasse finalmente as rédeas de sua profissão de artista nas próprias mãos e, assim, com coragem e determinação, foi se apresentando na cena italiana”, conta Paola, viúva de Dias.

Foi ele, nesse contexto, quem indicou a galeria de Enzo Cannaviello para Leonilson, que comprou seus trabalhos e o inseriu em algumas mostras, além do pai da Transvanguarda, Achille Bonito Oliva. A amizade se fortaleceu e, mesmo Antonio Dias vivendo na Europa, ambos se encontravam regularmente. Uma carta de 3 de maio de 1993, enviada pouco antes da morte de Leonilson, mostra o apreço de Dias pelo amigo, ao falar de duas obras de Leonilson que havia trazido para sua residência permanente, em Colônia, na Alemanha: “Agora, penso em você todo dia. (…) gostaria muito de lhe rever e dizer novamente que eu gosto mesmo de lhe ter como amigo”.

Não deu tempo, mas após a morte de Leonilson, Dias passou a buscar adquirir seus trabalhos, especialmente os vendidos em Milão, com a ajuda de Paola, a “garimpeira”, como ele a chamava. A mostra na Pinakotheke reúne, assim, os 38 desenhos e pinturas da coleção de Antonio Dias, exposição que começou a ser planejada em 2015, quando Dias preparava sua individual na Galeria Multiarte, em Fortaleza. Quatro obras pertencentes a outras coleções particulares complementam a exposição.

Trata-se, portanto, de uma faceta um tanto desconhecida de Leonilson, tomando-se em conta as recentes mostras a ele dedicadas no Brasil, um recorte de seu início de carreira, com a maior parte das obras vindas dos anos 1981 e 1982. Há apenas um bordado dos anos 1990, por exemplo, técnica que dá a ele maior projeção e reconhecimento, especialmente pelo caráter autobiográfico que ele imprime aos seus últimos anos.

As obras na mostra são mais experimentais, como um políptico em papel colorido, que lembram mesmo certos trabalhos do próprio Antonio Dias. Por outro lado, a escultura Ponte, de 1982, traz já uma imagem que ficará recorrente em sua carreira.

Os trabalhos em exposição de fato apresentam uma alegria, que contrastam com a melancolia do final de carreira, em parte assim vistos pelo tom das fitas deixadas pelo artista. Nesse diário gravado, que gerou dois filmes, Leonilson projeta uma imagem contestada por Zerbini no catálogo, que o levava a planejar a destruição das fitas, junto com Antonio Dias: “Achávamos, e acho ainda, que elas propagam uma imagem que não corresponde à realidade. Leonilson foi uma das pessoas mais engraçadas, inteligentes e rápidas de raciocínio que conheci. Dono de um humor rasgante, cruel.” E Zerbini conclui defendendo que “o sofrimento que a doença causou não há de contaminar o seu trabalho, mas, para isso, não deveríamos repercutir, supervalorizar o momento em que ele aparece mais fragilizado”.

Travessias de Anna Bella Geiger

Vista e detalhes da instalação "Circa", de Anna Bella Geiger
Vista e detalhes da instalação "Circa", de Anna Bella Geiger, montada na Bienal de Istambul de 2019.
instalação "Circa",
Vista e detalhes da instalação “Circa”, de Anna Bella Geiger, montada na Bienal de Istambul de 2019. Foto: Gabriela de Laurentiis.

 

 

 

 

 

Por Gabriela de Laurentiis

“Todo mundo sabe que cidades foram feitas para serem destruídas”. Essas palavras grudaram em meus pensamentos sobre a obra Circa, montada pela artista Anna Bella Geiger na 16ª Bienal de Istambul. Circa traz significados semânticos e poéticos de um tempo incerto, algo ocorrido para o qual não há precisão de datas. Geiger produz uma instalação na qual se conjugam construções efêmeras – realizadas em areia, cimento seco, terra — e objetos pré-fabricados —, como uma pequena réplica de uma casa Bauhaus, um trenzinho e pedaços de vidro que formam uma piscininha. Há, ainda, um vídeo construído em conversação com a ópera Akhnaten de Philip Glass.

A primeira instalação da obra foi realizada como parte do Projeto Respiração (2006), na Casa Museu Fundação Eva Klabin, Rio de Janeiro, com curadoria de Marcio Doctors. A escolha dos materiais faz com que o trabalho ganhe, a cada montagem, características singulares. Entre as especificidades da montagem de Istambul estão as estradas de areia branca, inspiradas nas vistas áreas durante a vigem do Brasil para Turquia: “Eu notei essas estradas no meio do deserto. Esse traçado das estradas eu não tinha feito em nenhuma das instalações anteriores”, diz Anna Bella Geiger. 

Elaborações poéticas a partir de mapas, arquiteturas e espacialidades são marcantes na prática artística de Geiger. Em Circa, essas discussões ganham a forma de uma cidade fantástica/fantasmagórica com configurações temporais-espaciais descoladas de periodizações lineares. Para a pesquisadora e artista Ana Hortides, que realizou uma série de montagens da obra, incluindo a da Bienal de Istambul, “Circa apresenta uma espécie de cidade que mescla, à primeira vista, diferentes culturas e espaços temporais em situação de ruínas, ou aparentemente, próximas a ruir”.

Vista e detalhes da instalação “Circa”, de Anna Bella Geiger, montada na Bienal de Istambul de 2019. Foto: Gabriela de Laurentiis.

A fragilidade da matéria e as construções arquitetônicas em desmanche trazem uma sensação de destruição, de um território sendo devastado. Geiger lembra que a primeira construção de Circa estava envolta no imaginário da Ocupação do Iraque – que ocorria três anos antes – adensando, por meio das palavras, as sensações de devastação operadas pelas formas e as matérias da instalação.

Os sentidos da obra expandem-se na situação da Bienal de Istambul, que com curadoria de Nicolas Bourriaud leva o título O Sétimo Continente. A expressão se refere a uma área flutuante no Oceano Pacífico de três milhões e quatrocentos mil quilômetros quadrados composta por sete milhões de toneladas de plástico.

Entram em curso na Bienal de Istambul os impactos da ação humana em dimensões catastróficas no marco do Antropoceno — conceito dos pesquisadores Paul Crutzen e Eugene Stoermer para denominar a Era geológica efeito da atuação humana no globo — ou do Capitalocene — como proposto por Andreas Malm, dimensionando politicamente essas questões contemporâneas1. As guerras motivadas por interesses econômicos entrecruzados com problemas religiosos, os impactos nas infraestruturas de recursos básicos e nos modos de vida existentes em diversas regiões do planeta compõem a contemporaneidade. Circa traz essa dimensão.

A obra foi montada no prédio projetado por Emre Arolat, que a partir de 2020 abrigará o Museu de Pintura e Escultura de Istambul. Ali também foi exibido, entre outros trabalhos, o vídeo O Peixe (2016), do alagoano Jonathas de Andrade. Adentrando o prédio, é impossível desconsiderar as vistas das numerosas janelas. Da grande maioria delas o que se pode ver no exterior são trabalhadores, andaimes e estruturas inacabadas. Forma-se um canteiro de obras em meio às águas do Bósforo, prédios e mesquitas, que compõem a paisagem da região,  no momento passando por um grande projeto de reurbanização.

A arquiteta e artista Laura Nakel conta que “a transformação do antigo Armazém n˚5 na orla da região de Karaköy em Museu compartilha características com grandes empreendimentos recentes, como o Puerto Madero em Buenos Aires, o Porto Maravilha no Rio de Janeiro e o V&A Waterfront na Cidade do Cabo”.

Vista e detalhes da instalação “Circa”, de Anna Bella Geiger, montada na Bienal de Istambul de 2019. Foto: Gabriela de Laurentiis..

A produção de Circa nesse local tem como efeito um questionamento sobre as relações entre o dentre o fora do Museu. A cidade em ruínas de Geiger faz pensar nas construções de Istambul e vice-versa. Como lembra Geiger, Circa lida com “questões relativas à espiritualidade, memória, história e estórias, em uma dimensão de um espaço tempo que se estende”. Na cidade de Istambul, todas essas questões ressurgem na própria estruturação do espaço urbano, por vezes em dimensões catastróficas. Nakel lembra que na região do Museu ocorre “um processo que começa nos anos 1990, no qual galerias e coletivos de arte ocupam os antigos armazéns abandonados iniciando um processo de gentrificação da região, intensificado com a chegada dos grandes investidores privados”.

Na travessia entre continentes, entretanto, as construções de Circa ganham uma outra camada de possibilidade: de uma transformação esperançosa. Para Hortides, “a inclusão de uma terra molhada, viva e aparentemente fértil faz com que na montagem da Bienal de Istambul a passagem do tempo contenha um pouco mais de esperança no que está por vir, prenúncio de construção e transformação, apesar das catástrofes”. Anna Bella Geiger, com suas travessias por tempos incertos, faz imaginar espaços múltiplos e agonísticos, elaborando uma poética vibrante e viva.

 

¹ Bourriaud, N. “The Seteventh Continet: These Upon Art In The Age Of Global Warming”. In Seventh Continent. Catálogo da 16ª Bienal de Istambul. Istambul, 2019. P.47.


*Gabriela De Laurentiis é artista visual e pesquisadora. É autora do livro Louise Bourgeois e modos feministas de criar. É graduada em Ciências Sociais na PUC-SP e mestra pelo Departamento de História Cultural na UNICAMP. Atualmente é doutoranda na FAU-USP, com uma pesquisa sobre Anna Bella Geiger, sobre quem escreve para esta edição.

Bakun e a vida das coisas

Miguel Bakun, Caules, óleo sobre tela, 46 x 54 cm. FOTO: Rafael Dabul

Quem me apresentou a obra de Miguel Bakun foi Eliane Prolik. Em uma das inúmeras visitas que fiz a Curitiba no início dos anos 1990, a então jovem artista certo dia me ofereceu uma cerimônia especial de boas-vidas: após me buscar no aeroporto, me levou a uma exposição do artista numa das instituições da cidade (teria sido o Museu de Arte Contemporânea? Não me lembro mais ao certo). Diante de minha reação, na sequência me levou para visitar uma coleção particular em que outras obras do artista se destacavam.

Com esse encantamento perante as pinturas daquele Bakun, até então um completo desconhecido para mim, Eliane parecia confirmar o acerto de sua proposta: como era gratificante apresentar a um então jovem crítico de São Paulo a obra de um artista excepcional e praticamente desconhecido fora do Paraná, um filho de imigrantes ucranianos, nascido no interior do Estado em 1909 e que morrera tragicamente em 1963.

Mas só depois fiquei sabendo desses fatos. Meu encontro com Bakun, graças à sensibilidade de minha amiga, digamos, foi a frio. Sem biografia que sublinhasse traços românticos ou romantizados, fui levado direto à sua obra, que se revelou como uma verdade sobre a existência da pintura enquanto celebração da vida das coisas porque era – em cada um dos quadros por ele pintados –, uma celebração da própria pintura.

Daquele primeiro contato até hoje, Bakun ficou para mim como uma das principais referências sobre como determinados procedimentos nascidos durante o início da arte moderna internacional (impressionismo, pós-impressionismo etc.) podiam medrar em países periféricos como o Brasil, anos depois de seus respectivos nascimentos na Europa; como alguns artistas, anos depois, tinham a capacidade de torna-los de novo atuais e, de certa maneira, fundamentais para uma compreensão mais abrangente sobre cada um deles, sobre seus desvios e aprofundamentos. O encontro com a obra de Bakun, naquela manhã fria de Curitiba, me ajudou a entender que devia haver uma história dos reaparecimentos das vertentes modernas em localidades isoladas desse mundo de meu Deus, reaparições que desmentiam qualquer sentido de “ideia fora do lugar” ou do tempo. Foi como descobrir que o pós-impressionismo nas produções do paranaense ali reaparece porque, para se completar enquanto forma de enxergar o mundo, aquela vertente necessitava de Bakun.

(O primeiro resultado mais importante desse meu encontro com a obra de Miguel Bakun foi a inclusão de sua obra na mostra “Bienal Brasil Século XX (São Paulo, 1994) no segmento “Modernismo”, sob minha responsabilidade e de Annateresa Fabris).

Bakun se tornou Bakun porque, em certo período, teve um contato forte com outro artista brasileiro significativo como José Pancetti, mas Bakun se tornou ele mesmo porque também se impregnou da visualidade criada por Van Gogh escrutinado por meio de revistas e livros. Em certa medida (aliás, como Iberê Camargo em seus inícios), visualizar o artista holandês por meio de reproduções permitiu-lhe descobrir que a pintura não era apenas o assunto tratado, mas que ele (o assunto) só poderia existir pela construção da forma, que se dá pelo agenciamento da cor e do gesto sobre a matéria.

A obra que Bakun, retirando de si mesma a condição de mera repetidora de estilemas criados pelos mestres do passado moderno por meio da realização plena de pintura, no aqui e agora, tem o poder de propiciar ao espectador o prazer (intraduzível em palavras) de uma pintura que se manifesta em sua totalidade no próprio ato de visualiza-la.

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Estas lembranças e considerações surgiram a partir da visita à mostra “Miguel Bakun”, na Simões de Assim Galeria de Arte, em São Paulo, em cartaz até 14 de dezembro próximo. Uma exposição impecável que tomou como partido restringir a produção apresentada às obras que antecedem a última fase do artista, atitude perfeitamente compreensível dado, inclusive, às limitações do espaço. Porém, ao não apresentar exemplares da última fase do artista, a Galeria fica devendo ao público paulistano uma exposição em que contemple, justamente, os derradeiros anos de Bakun. Nesse período, me parece, sua visão animista (perceptível, de maneira sutil em algumas das obras apresentadas) ganhará uma força transgressora e desconcertante e que, sob determinados aspectos, consegue ir além de onde chegou a própria pintura Van Gogh.

Um autorretrato do artista Miguel Bakun. FOTO: Reprodução

Enquanto essa nova exposição não ocorre, sugiro ao leitor que assista ao documentário Autorretrato de Bakun (1984), de Sylvio Back, uma demonstração cabal do quanto um documentário sobre a obra de um determinado artista pode se transformar, ele mesmo, numa obra de arte. Back, em Autorretrato de Bakun, longe de assumir um tom historicista ou “crítico”, mergulha de cabeça na complexa subjetividade do artista, recriando-a enquanto arte. Assim, fica aqui a dica para este final de semana: Bakun e Back.