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Parceria da FAMA, Galeria Estação e ARTE!Brasileiros leva cerca de 400 pessoas à Itu

Público no seminário 'A arte como construção de mundos' (2019), realizado em parceria com a FAMA. Foto: Daniela Noronha

O seminário internacional A Arte Como Construção de Mundos, realizado pela Fábrica de Arte Marcos Amaro, com apoio da Galeria Estação e organização da ARTE!Brasileiros aconteceu no último dia 7 de setembro na sede da FAMA, em Itu. Quatro especialistas de diferentes áreas que trabalham a Art Brut (ou Outsider Art) expuseram em suas falas experiências à frente de instituições, representação de artista e também a partir de uma visão da Psicologia e da Filosofia, considerando o trabalho produzido por artistas com sofrimento psíquico.

Com introdução de Marcos Amaro e Raquel Fayad, respectivamente presidente e diretora da Fundação Marcos Amaro, o seminário contou com mediação de Ricardo Resende, curador da Fundação e do Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea. As palestrantes convidadas foram Elisabeth Telsnig, representante da obra do artista Josef Hofer e curadora de sua individual em cartaz na Galeria Estação; Tania Rivera, psicanalista e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro; Solange de Oliveira, pós-doutoranda no Depto. de Filosofia da USP, onde estuda artista Judith Scott e outros artistas outsiders; e Raquel Fernandes, médica psiquiatra e diretora do Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea.

Público assista à apresentação de Solange de Oliveira. FOTO: Daniela Noronha

Passaram pelo seminário cerca de 400 pessoas. Entre os presentes estavam galeristas, artistas, representantes de instituições, arte-educadores, professores e estudantes. A crítica de arte Aracy Amaral, a artista Nazareth Pacheco e o artista Gilberto Salvador foram alguns dos nomes que acompanharam as palestras. O público foi composto de pessoas vindas da capital paulista, de Itu, do Rio de Janeiro e também de cidades vizinhas, como Sorocaba e Indaiatuba.

Ao final das falas, todos puderam desfrutar de um dia na Fábrica de Arte Marcos Amaro, onde no momento sete exposições estão em cartaz, entre elas mostras de Bispo do Rosário, Nazareth Pacheco, de Louise Borgeois, de Samuel de Saboia e Pola Fernandez.

Meio século bem registrado

Foto de Carlos Moreira no Guarujá, 1981

A retrospectiva Carlos Moreira – Wrong so Well ocupa três andares no Espaço Cultural Porto Seguro, em um caudaloso apanhado da obra do artista que também foi professor de fotografia. Como tal participou da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP) de 1971 a 1974 e, de novo, em 1979 até 1990.

Ainda 1990, ele criou a Escola de Fotografia M2 Studio, junto com Regina Martins, que hoje integra o time de curadores da exposição.

O título, Wrong so Well, vem de uma anotação feita pelo artista entre suas fotos digitais: “I like when you do it right. But I like much more when you do it wrong so well” (Eu gosto quando você acerta. Mas gosto muito mais quando você erra tão bem).

Moreira dedica-se à fotografia autoral, à fotografia de rua e à fotografia de viagens. Suas fotos são registradas com muito cuidado, sensibilidade e prazer.

O prédio da Porto Seguro no bairro dos Campos Eliseos, que abriga a obra, já se tornou um dos centros importantes da arte em São Paulo e a mostra de Carlos Moreira é a mais recente das 16 exposições lá apresentadas, série que começou com Grandes Mestres Leonardo, Michelangelo e Rafael, que inaugurou o espaço no começo de 2016.

Nesta retrospectiva são cerca de 400 fotos, escolhidas pelos curadores Fábio Furtado, Regina Martins e Rodrigo Villela — que é diretor executivo e artístico do Espaço Cultural —, em um trabalho de curadoria que começou em janeiro e mergulhou nos arquivos de mais de 50 anos do trabalho do fotógrafo.

Para os curadores, a “exposição nasceu diante de alguns desafios consideráveis ainda que maravilhosos… Foram inventariados mais de 150 mil fotogramas coloridos – imagens inéditas que agora podem ser vistas pelo público pela primeira vez. A parte em preto e branco, embora já catalogada e organizada previamente, representa outros 80 mil fotogramas, aproximadamente. Se juntarmos a isso sua produção digital, desde o começo dos anos 2000 até agora, o volume, no mínimo, duplica. Sem falar no delicioso risco de se ter uma nova e extraordinária sequência de imagens feita por Carlos a cada dia, no decorrer do processo”.

Nascido em São Paulo em 1936, Carlos Moreira começou a fotografar no começo dos anos 60, quando encantou-se com Cartier-Bresson, de quem a influencia mais tarde se afastou. Atualmente o fotógrafo reconhece “uma certa ‘dureza’ em Cartier-Bresson” que hoje o incomoda, “mas foi importante na minha formação”.

Moreira formou-se pela Universidade Mackenzie, em Economia, e optou pela fotografia em 1964, abandonando a nem mal iniciada economia.

Conhecido por suas fotos analógicas em preto e branco, produzidas em cidades por onde passou, nas paredes do Espaço Cultural Porto Seguro também estão expostas 250 fotos inéditas de suas fases cor e digital. Dividida em núcleos, a exposição reúne desde as fotos do começo da carreira até imagens digitais recentes. Carlos Moreira já expôs em Paris (1983), Washington (1986) e Nova York (1988). Suas fotos estão em acervos importantes, como o do Pompidou.

Também são interessantes suas escolhas técnicas neste momento onde a vertiginosa transição tecnológica que nos assola há décadas, além do dito progresso, provoca também discussões onde nem os ícones são poupados. Recentemente, Sebastião Salgado provocou burburinho nas redes sociais ao disparar que, para ele, as “imagens de celular não são fotografia”.

A obra de Carlos Moreira vem à luz através de câmeras e técnicas escolhidas de maneira saudavelmente eclética.

Ele fotografa com Leicas, analógicas e digitais, com as práticas Canon Powershot e também com os, ainda menos complexos, aparelhos celulares. Suas fotos são impressas em preto e branco, em cores e em vários suportes que incluem até cadernos, tipo Cícero e Moleskine.

E, a respeito disto, é importante a frase incluída na expografia da mostra: “… fica claro que para ele o cerne da fotografia não está no dispositivo em si, mas naquilo que ele proporciona ao artista em sua relação com o mundo”.

Carlos Moreira – Wrong so Well
Espaço Cultural Porto Seguro
Até 27 de outubro
Entrada gratuita

 

 

Sérgio Sister e suas armas de resistência

Sérgio Sister, Esticados
Sérgio Sister, Esticados, 1967, tinta acrílica sobre tela 97 x 130 cm

Oportuna a mostra que Sérgio Sister realiza na Galeria Nara Roesler, em São Paulo (até 5 de outubro), apresentando pinturas que realizou no final da década de 1960 e desenhos produzidos na prisão, entre 1970 e 1971. Oportuna por dois motivos, pelo menos: em primeiro lugar porque, nesses dias em que tentam negar os desmandos cometidos pela última ditadura civil-militar brasileira (sendo que alguns buscam negar que ela tenha de fato ocorrido), é didático colocar o público frente a testemunhos de vítimas daquele período que jamais será apagado da história do país; um segundo motivo para a relevância da mostra é que ela apresenta os dois primeiros momentos da trajetória de um artista então muito jovem (Sister nasceu em 1945) e que, com o passar dos anos, viria a ser reconhecido como uma das principais referências da pintura no Brasil.

Visitando Imagens de uma juventude Pop: pinturas políticas e desenhos da cadeia, o que de início chama a atenção são as diferenças de abordagens plásticas usadas por Sister nas pinturas e nos desenhos.

No primeiro grupo é espantosa a vivacidade que emana daquelas pinturas que, atentas ao burburinho da metrópole, aos flagelos da sociedade de massa e aos perigos da ditadura, (que aos poucos mostrava sua cara), demonstram a crença no fazer pictórico, acreditam no que denunciam e em como denunciam. Nelas é notável como Sister – a exemplo de alguns colegas de geração – conseguia filtrar e torná-los seus, os códigos das vertentes então mais em voga (a Pop, a Nova Figuração etc.), tudo crivado por um tipo de arquitetura do campo plástico que – passível de ser associada à estrutura das paginas de histórias em quadrinho –, nada me tira da cabeça que poderia ser debitada igualmente à experiência concreta, ainda forte em São Paulo à época (talvez o mesmo débito de Claudio Tozzi, em suas primeiras produções).

Essa concepção forte, no entanto, como que se liquefaz nos desenhos produzidos por Sister no período em que passou no antigo Presídio Tiradentes, em São Paulo, de triste memória. Se nas pinturas imediatamente anteriores havia como que uma afirmação do discurso, um voluntarismo juvenil repleto de vivacidade e ironia, nos desenhos agudos realizados na prisão, a arquitetura das cenas tende a se esvair, escoando pelos cantos (neste sentido, um desenho em especial, que mostra a bandeira do Brasil em processo de diluição, me parece emblemático). O plano do papel recebe inúmeras situações, como que registradas à socapa. São várias cenas produzidas à maneira de colagens, em que o artista atesta o cinismo, a barbárie, a tortura – cenas trágicas e – pasmem! – repletas de um quase humor ferino e triste.

Apesar de graves e importantes como testemunhos instransponíveis da atuação do estado sobre o cidadão comum, esses desenhos são mais do que isso, e não se encaixam como emblemas solenes daquela situação em que o artista foi uma vítima entre tantas. São documentos de um crime, é certo, mas também sua própria superação. Atuam como a melhor resposta ao arbítrio porque o ridiculariza ao mesmo tempo em que questionam a si mesmos. Esses desenhos se recusam a significar meros documentos sobre a barbárie sofrida, para atuarem como reelaborações críticas das maldades que apontam, não se deixando abater por elas. São armas de resistência.

***

Como mencionado, passadas cinco décadas, a obra de Sérgio Sister é apontada como uma das principais referências da pintura brasileira atual e, aparentemente, não possui nenhuma referência daquelas produções de início de carreira: nem o denuncismo de suas primeiras pinturas, nem o teor crítico de seus desenhos. Será?

Nos últimos anos, a produção de Sister tem se caracterizado como uma afirmação de certos elementos constitutivos da pintura, reverenciados na modernidade, como estratégias para a delimitação de seu próprio campo: a reiteração da bidimensionalidade, a ênfase no ato de pintar e o uso planejado do monocromático a enfatizar todas essas peculiaridades. Nenhuma representação – a pintura não representa o real, ela se apresenta como um novo dado –; nenhuma cor mais estridente – os tons mais baixos tendem a reforçar a dimensão planar da pintura e a realçar os índices da ação do pintor sobre a superfície.

Porém, a distância entre os dois momentos da produção de Sister tende a encurtar-se quando se analisa a estruturação que o artista fazia de suas pinturas no início de carreira. Ali, talvez os ensinamentos das correntes construtivas brasileiras informassem a maneira como o artista arquitetava o campo pictórico, dividindo-o num tipo de gradeado que ressoava as estruturas daquelas vertentes, dividindo o campo do suporte em áreas comunicantes, porém autônomas. Agora, observando suas pinturas recentes, parece que Sister foca sua atenção e trabalha em cada uma dessas áreas em particular, destacando-as do corpo geral da grade, fazendo com que alcancem seu protagonismo.

Difícil sustentar esse liame proposto para os dois momentos do artista? Pode ser, uma vez que se trata aqui de uma questão aparentemente de puro interesse formal, como que para justificar a suposta falta de engajamento atual de Sister frente à situação política e social.

Engano. As pinturas austeras e rigorosas que hoje Sister produz guardam, das pinturas e sobretudo dos desenhos do seu período inicial, o mesmo papel de armas de resistência. Ao afirmar as especificidades da linguagem pictórica – tão caras à modernidade – a produção mais recente do artista parece se colocar numa distância crítica em relação à cooptação que sofre a prática da pintura nas últimas décadas, quase sempre fácil presa do processo de alienação a que vem sendo submetida – índice mais do que plausível do processo de alienação e embrutecimento que nossa sociedade sofre na atualidade.

 

 

Adriana Varejão: por uma retórica canibal

Adriana Varejão, Proposta para uma Catequese - Parte I - Díptico Morte e Esquartejamento (1993) [Foto por Eduardo Ortega]

A exposição Adriana Varejão – por uma retórica canibal reacende as indagações sobre o barroco e a colonização brasileira sob o olhar aguçado da artista carioca. Exposta no Mamam – Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães, no Recife, a mostra reúne 25 trabalhos produzidos entre 1992 e 2018 e faz emergir pontos obscuros da história brasileira.

O interesse suscitado por estas obras, já conhecidas do eixo Rio/São Paulo, ocorre agora da combinação acertada do recorte da curadora Luisa Duarte, com obras pontuais inseridas no Nordeste, território fortemente influenciado pelo barroco. Acima de tudo, local privilegiado para pensar a colonização que fez uso forçado da mão de obra escrava, na exploração massiva da cana de açúcar. Basta lembrar que a Capitania de Pernambuco, em 1534, era a mais rica e poderosa entre as 14 criadas pelos portugueses. Experimentar esse confronto é fazer voltar à superfície impressões submersas de um vasto passado ainda não digerido.                                                                

A exposição começa com o visitante sendo conduzido, naturalmente, à sala de projeção onde Transbarroco, videoinstalação de autoria e direção da artista e Adriano Pedrosa, é exibido em grande tela. Cenas escolhidas de quatro filmes, com projeções simultâneas, mostram fragmentos de igrejas do barroco brasileiro. A excitação visual das imagens funciona como organismo vivo, umas entrando nas outras, de tal maneira que o espectador não permanece em estado contemplativo. A trilha sonora mistura percussão do Oludum, acordes de órgão da Igreja de Mariana, toques de sinos, ritmos de samba. Quase como um sussurro, ouve-se a voz ao escritor angolano José Eduardo Agualusa falando trechos de Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre. Transbarroco é uma interpretação livre que coloca o visitante em meio à fotografia, cinema e instalação, reforçando Mário Pedrosa: “a arte é um exercício experimental da liberdade”.

ele Tatuada à Moda de Azulejaria, 1995. FOTO: Jaime Acioli

A arquitetura do Mamam, como plano espacial, suspende o tempo em devaneio poético e abraça a exposição sem interferências. Algumas obras, nascidas em temporalidades distintas, dialogam com o contemporâneo como a pintura Incisões a la fontana, 2000, que deixa exposta a matéria interna, carne humana viva, inspirada na famosa tela do artista ítalo-argentino Lucio Fontana. No percurso de uma revisita ao colonialismo, vale refletir sobre Proposta para uma catequese – Parte 1 diptico: Morte por esquartejamento, de 1993. Só esse trabalho dá conta do conceito de contracatequese, defendido por Varejão. Em um detalhe da obra, um homem é empalado, método de tortura e execução que consiste na inserção de estaca no corpo da vítima, até a sua morte. A transgressão da cena reposiciona os sentidos e abre um novo lugar para sentir e pensar a violência no Brasil atual e sua herança colonial.

Há uma forte marca autoral nas obras de Varejão inspiradas em azulejos, ícone da cultura portuguesa, pela sistematização do movimento de repetição e multiplicidade de formas geométricas, presentes tanto em trabalhos mais antigos quanto nos mais recentes. A série Ruínas de charque, de 2000, simula pedaços de arquitetura com pinturas desses azulejos, entremeadas pela representação da carne de charque. Ao longo de sua pesquisa Adriana colecionou mais de seis mil deles registrados por ela desde 1988, com imagens que a inspiram.

Consumir poéticas diversas, digerir e devolvê-las em uma obra autoral, faz parte do registro do real e da fantasia que povoa a produção de Varejão e quase toda arte brasileira. O marco inaugural do antropofagismo nacional pode ser o episódio em que o padre Don Pero Sardinha é devorado pelos índios Caetés, em 1556, em um ritual canibal no litoral do Nordeste. Isso ocorreu 372 anos antes do Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade ser lançado em 1928.

Azulejão (Neo-concreto), 2016. FOTO: Vicente de Mello

O interesse de Varejão pelo barroco vem do seu início nas artes, quando a conheci em 1988, na galeria Thomas Cohn no Rio de Janeiro. Ela fazia sua primeira individual aos 23 anos e dizia que as pinturas expostas eram resultado de uma viagem a Minas, onde se surpreendeu com o barroco das igrejas. Essa inspiração que persiste até hoje, a levou a estudar e pesquisar em Salvador e Cachoeirinha, (Bahia), Recife (Pernambuco), Mariana (Minas Gerais) e, posteriormente, em Portugal. Hal Forster, em seu texto O artista como etnógrafo, fala sobre o protagonismo que a antropologia como discurso exerce sobre a produção contemporânea, considerando como virada etnográfica o crescente interesse pelo Outro.

A mostra de Varejão foi inserida pelo Mamam no seu projeto Exposição Individual de Artistas Mulheres, sendo a terceira da série. A diretora Mabel Medeiros comenta que neste momento o museu está reestudando o acervo com atenção na produção feminina, ainda escassa na coleção. A exposição Adriana Varejão – por uma retórica canibal deve seguir até o final do ano para outros estados brasileiros fora do eixo Rio/São Paulo.

Nheë Nheë Nheë, Genealogia do Ócio Tropical

Nheë Nheë Nheë
Nhee 2, Pinturas em aquarela de imagens de pedras

Estou sem tempo! Não podemos perder tempo! Esqueça essas expressões antes de entrar na exposição Nheë Nheë Nheë, Genealogia do Ócio Tropical de Márcio Almeida, no Sesc Santo Amaro, no Recife. Tente mergulhar no ócio, relaxar e pensar que a vida é uma aventura existencial.

Se tiver vontade sente ou deite no espaço expositivo, afinal este pode ser seu momento de descobertas, gozo, prazer de se encontrar consigo mesmo. Estar no ócio é estar no sossego redesenhando a vida e mediando o lugar da transgressão criadora. A vadiagem experimental se nutre de um não fazer nada criativo. Em síntese é o que transmite essa mostra sutil, de limpeza formal marcante, e que reflete sobre as relações de trabalho, desde o período do Brasil colônia até os dias de hoje.  O conceito traz outros contornos e reafirma o pensamento de Antonio Negri, filósofo marxista italiano quando define:  “O trabalho é capacidade de produção, atividade social, dignidade, mas por outra parte é escravidão, comando, alienação”.

A exposição é alinhada com três trabalhos anteriores e o mais recente, Nheë Nheë Nheë, é fruto da residência de Márcio Almeida na Usina de Arte Santa Terezinha, na Zona da Mata, sul de Pernambuco. Por alguns dias ele experimentou momentos de ação e descanso. Produziu dentro de um tempo livre, que nos dias de hoje corre o risco de ser eliminado pelo governo. Não trabalhar formalmente é visto pelo sistema como vagabundagem, preguiça, ócio. Hanna Arendt, em A Condição Humana, nos lembra que todas as palavras europeias para trabalho significam também dor e esforço – em latim e inglês labor, em grego ponos, em francês travail, em alemão Arbeit.

O que se distingue nessa obra é a forma de combinar elementos que brotam no espaço expositivo, desde o título da mostra nascido nas origens de nossa língua indígena. Ñheé, segundo o antropólogo Adolfo Colombres, significa fala. Portanto, Nheë, Nheë, Nheë, pode ser uma tradução livre de tagarelice. Também se refere a uma forma de controle exercida pelos religiosos na tentativa de unificar as linguagens tribais para facilitar a catequese forçada.

No texto de apresentação, o curador Beano de Borba comenta o trabalho de Márcio Almeida como um ócio tradicional e um rito selvagem, sustentados por uma insurgência do tempo liberto. A intenção do artista é “realizar um paralelo entre a questão do trabalho ocidental e o ócio tropical”. Nesse contexto, ele tem como base a interferência das religiões e as estratégias dos colonizadores na catequização os indígenas. Ócio e liberdade é o binômio que atravessa todas as quatro instalações que compõem a mostra. “No processo de curadoria partimos do novo trabalho, Nheë Nheë Nheë, e incluímos outras obras, desdobramentos ligados à lógica ocidental de trabalho e que refletem as distorções praticadas pelo sistema”.

A instalação Nheë Nheë Nheë, que dá título à mostra, é um exercício delicado composto por treze peças criadas com galhos de oliveira, pás e ferro de cova que dão forma às ferramentas de trabalho. Apesar do espaço relativamente pequeno da galeria, as obras fluem. A parede envidraçada do chão ao teto não atrapalha, ao contrário, incorpora a paisagem externa, mimetizando a vegetação com os galhos secos.  Em outra instalação, Nosso Descanso é Carregar Pedras, o serialismo está presente no conjunto de cartões de ponto de hospitais sobre os quais o artista ilustra com aquarela imagens de pedras, elementos simbólicos da escravidão desde os tempos bíblicos. O relógio de ponto marca o tempo demandado pelo sistema que, segundo Foucault, se transforma em uma forma de controle trabalhista.

A mais abrangente delas, Waiting for Work é marcada pela fotografia, uma série de dez imagens que captam o momento de descanso de funcionários após o intervalo do almoço. O tempo de não fazer nada, de livre reflexão e comunicação entre os colegas. Essa realidade do espaço temporal diário é extensão animada de um campo de atração e repulsa, movido por forças poéticas e sociais. Fecha a mostra, Truck Sistem, que toca em um dos aspectos mais cruéis do trabalhismo brasileiro, a servidão por dívida. Com cerca de 30 papéis carbono, coletados e grafados, Márcio Almeida coloca em discussão a recorrente escravidão por débitos vivida pela classe trabalhadora da cidade e do campo. Esse procedimento de abuso vigente no Brasil, mostra que o trabalhador não consegue liquidar suas dívidas com o patrão, mesmo as da cantina, tornando-se escravo permanente do empregador.

Nos dias de hoje, com o homem subtraído do tempo a que tem direito, Genealogia do ócio tropical poderia ser um ponto de partida para a bula do remédio: Vida outro Modo de Usar? O artista acredita que sim. “Entendo a produção como algo ligado diretamente ao pensamento livre, sem compromissos, é exatamente nesses instantes de reflexão que somos mais produtivos”. Márcio Almeida prova desse remédio constantemente. Só começa a trabalhar uma obra, sem nenhum instrumento, pensando tranquilo deitado na rede, maquinando ideias, literalmente no ócio.


Márcio Almeida: Nheë Nheë Nheë,
Genealogia do Ócio Tropical
Até 28 de setembro, das 9h às 17h.
Sesc Santo Amaro, no Recife.
Rua 13 de Maio, 455, Santo Amaro – Recife
+55 (81) 3216-1728

Bienal de Berlim começa evocando Flávio de Carvalho

Flávio de Carvalho, 'Experiência n. 3', 1956 Photograph, b/w Source: Fundo Flávio de Carvalho/CEDAE-UNICAMP, Campinas © The Heirs of Flávio de Carvalho
“O peixe dentro do mar nada sabe do voo nupcial da abelha, nem das ideias de um comandante de navio, mas poderá um dia entrar em contato com os ossos de um homo sapiens e ponderar sobre os ossos.
Uma coleção de ossos é, portanto, mais importante a um observador do que os ossos do próprio observador. A luz sobre o passado é o único tipo de luz capaz de iluminar o presente, e de ajudar a derreter o véu da cegueira; o passado colecionado em museu apresenta mais sugestibilidade que o tumulto de uma geração, e é eminentemente capaz de concorrer ao desabrochar do indivíduo”.

 

O trecho acima é parte do livro Os ossos do mundo, publicado em 1936, portanto há mais de 80 anos, e escrito por Flávio de Carvalho, após seis meses de viagem na Europa, entre 1934 e 1935. Exp. 1: Os Ossos do Mundo é justamente o título da atividade que dá início à 11ª Bienal de Berlim, nesta sexta, dia 6 de setembro, com curadoria de María Berríos, Renata Cervetto, Lisette Lagnado e Agustín Pérez Rubio.

O arquiteto e artista transgressor Flávio de Carvalho (1899 – 1973), que em 1956 saiu de saias em São Paulo, foi um dos que inspiraram o projeto vencedor para a Bienal de Berlim, no ano passado, e suas propostas surgem agora como referência para o processo curatorial do time majoritariamente latino-americano, exceção do espanhol Rubio.

“Parece uma exposição, mas não é. É apenas uma abertura pública do processo curatorial enquanto experiência. Não encontramos uma palavra para traduzir “experiência”. Em alemão, nem “erfahrung”, nem “erlebnis”, nem “experiment”, conseguiu satisfazer o grupo mais a equipe da bienal”, escreveu Lagnado por e-mail, respondendo a duas perguntas sobre a mostra.

Experiência é um termo usado por Carvalho em várias de suas ações consideradas hoje precursoras da performance, como Experiência n. 2, em 1931, quando atravessou uma procissão de chapéu, no centro de São Paulo, para fúria de religiosos católicos. No mesmo ano, ele publicou um livro relatando o caso e fazendo uma longa análise de suas implicações com referências na psicanálise.

A Bienal de Berlim tem início agora ocupando o ExRotaprint, um edifício em um bairro periférico com alta população de imigrantes em Berlim, escolhido pelos curadores para iniciar um processo de vivências, encontros e reuniões com artistas em residência.

Lagnado observa o momento de escritura de Os Ossos do Mundo (disponível online em https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/2769), em 1934, “ano paradigmático para a ascensão do nacionalismo” em consonância com a situação atual: “Estamos chegando agora, trinta anos após a queda do Muro de Berlim, com nossas referências de casa na bagagem.”

Segundo a curadora, o espaço funciona como um laboratório, já que não tem condições museológicas. A exp.1, de fato, sequer terá obras propriamente ditas, “mas rastros de uma coleção de ideias amadurecidas nos últimos seis meses durante as conversas internas”.

A proposta reflete um pouco outra iniciativa de Flávio de Carvalho, o Clube dos Artistas Modernos – CAM, criado em 1932,  que, como aponta Lagnado,  “promoveu apresentações paradigmáticas de Osório César, como o mês das crianças e dos loucos, a conferência de Mário Pedrosa sobre Käthe Kollwitz, sem contar o Teatro da Experiência que acabou fechando o espaço”.

Bienais têm de fato se prolongado no tempo para além da mostra, e a própria Como Viver Junto, que teve à frente Lagnado, na 27ª Bienal de São Paulo, em 2006, começou antes com um extenso programa de seminários. A proposta agora é muito mais radical. O espaço será aberto ao público de quinta a sábado, em horários definidos, quando os curadores estarão lá trabalhando, recebendo quem quiser ir, com uma programação para escolas da vizinhança. “Importante deixar claro que essas experiências são nossas e não uma réplica do percurso do Flávio”, defende a curadora.

Outra inovação da Bienal de Berlim é evitar o sigilo em torno dos participantes da mostra. O convite de exp.1 já anuncia contribuições de cerca de 30 participantes, eles o próprio Flávio de Carvalho, além do Teatro da Vertigem e da artista Virgínia de Medeiros, ambos também do Brasil, Cecília Vicuña, do Chile, e o Mapa Teatro, da Colômbia.

“Coletivos, artistas, educadorxs, palestrantes, coreógrafxs, poetas, todxs são igualmente integrantes da 11th Berlin Biennale for Contemporary Art. Não há uma separação entre exposição e programa público, ou entre exposição e educativo”, escreveu ainda Lagnado.

 

 

Os ‘Planos-Pipa’ de Marcelo Jácome

Marcelo Jacome, Planos Pipa

Marcelo Jácome é carioca, nascido em 1980, e visita Curitiba pela primeira vez. Sua atuação como artista plástico é diretamente influenciada por sua formação em Arquitetura e Urbanismo. Seu trabalho com formatos escultóricos busca ativar espaços livres, como com as obras Pontos Suspensos, Multiedros Relacionais e, a mais conhecida, Planos-Pipa. É esta última que o artista ativou no átrio do Shopping Pátio Batel, na capital paranaense, onde poderá ser vista de 5 a 28 de setembro.

O trabalho com as pipas começa quando Jácome passa a trabalhar com colagens utilizando papel de seda, as quais intitulou não-lugares. Segundo ele, isso aparece em um momento de sua carreira no qual percebeu uma necessidade de trabalhar com uma paleta de cores mais industrial: “Eu enxergo o mundo a partir de massas cromáticas, relativizo essas massas… Então sempre foi algo muito corriqueiro estar fazendo um recorte do mundo através dessa prática”, ele conta. Nesse momento, as cores evidenciadas do material chamam a sua atenção.

Ao começar a visualizar outras formas de utilizar o material, o artista enxergou as espacialidades dentro das composições que surgiam com a sobreposição do papel de seda. “Por que não passar isso para um espaço?”, ele pensou naquele momento. Nessa época, com um grande ateliê na zona portuária do Rio, não teve dúvidas de que passaria o trabalho para um formato escultórico. “Eu entendi que eu precisava de uma estrutura para que a coisa se efetivasse de uma maneira pertinente”. E foi então que as pipas apareceram para Jácome como uma solução plástica, um sistema formal.

Por fim, essas instalações site-specific, sempre feitas de acordo com o que os lugares, oferecem na possibilidade arquitetônica, foram chamadas de Planos-Pipa. Com elas, o artista já ocupou locais como a Saatchi Gallery, em Londres, e a Art Basel, na Basileia. Porém, o trabalho no Pátio Batel é o mais desafiador até agora, Marcelo conta. Para ele, foi instigante poder pensar algo possível, considerando a técnica e a montagem, para uma área tão grande quanto a disponibilizada pelo centro de compras curitibano — a maior na qual já ativou a instalação.

Com uma ligação essencial com a arte, tendo ao longo de seus pisos uma mostra permanente de seu acervo de obras, o Shopping Pátio Batel executa desde o ano passado a ideia de convidar um artista para realizar alguma intervenção de impacto durante seu aniversário. “Sempre quisemos usar a arte como mais um item para tornar a visita ao shopping uma atividade gostosa. Isso sempre foi parte do nosso conceito”, comenta Mariane Kucinski Caponi, gerente de marketing e relacionamento do Pátio Batel.

Completando seis anos neste mês de setembro, a curadora responsável pelo projeto, Eneida Gouvêa Vieira, viu no trabalho de Jácome a alternativa ideal para preencher o extenso ambiente do átrio do shopping, ao qual Mariane se refere como “uma grande tela em branco”. A área do piso tem aproximadamente 400 m², com 25 metros de altura.

Planos-pipa é a segunda intervenção realizada nesse local. Em 2018, a estreia foi comandada pelo artista estadunidense Jason Hackenwerth, que criou uma escultura com 15 mil balões. Além da estrutura monumental necessária para ativar o espaço, também é fundamental que todas as pessoas pudessem desfrutar do trabalho: “É importante que fosse uma obra de arte que fosse de fácil leitura para todos os públicos”, conta Mariane: “O Marcelo casou muito com isso. Ele consegue ter uma obra grandiosa: simples na sua essência, mas incrível na sua forma”.

Para a lista de permitidos

Ai-5 50 ANOS: ainda não terminou de acabar, 588 Páginas, Instituto Tomie Ohtake, R$ 100 - Fotos: Coil Lopes

“Engana-te quem diz / teu futuro será o espelho dessa grandeza”. Os versos do poema, datado de 1976, de Anna Maria Maiolino que abre o livro AI-5 50 anos: ainda não terminou de acabar funcionam como uma epígrafe não apenas para a publicação, mas também para a situação na qual o Brasil se encontra hoje. Para Paulo Miyada, organizador do livro e curador da exposição que deu origem a ele, “o que se vive agora é um rescaldo ardente do quão profundo foi o dano deixado pelos anos do regime militar, agravado pelo caráter precário das instituições democráticas que não foram tão revistas e fortalecidas nas últimas três décadas quanto teria sido necessário”.

O trecho está presente no artigo Não terminou de acabar, que faz parte do livro e foi publicado originalmente na plataforma arte!brasileiros em novembro de 2018, sob o subtítulo As lacunas na memória brasileira e a extensão do AI-5.

Nessa conjuntura, reunir o material de uma das exposições mais importantes dos últimos anos em um livro é uma forma de não permitir que as lacunas existam, registrando a memória de forma física, com colaboração de mais de 80 artistas e autores em 600 páginas de artigos, textos sobre artistas, fac-símiles, imagens, dentre outros. Feita de forma colaborativa, por meio de doações, a arrecadação dos meios necessários para a produção e impressão da publicação foi feita com êxito. Isso mostra que muita gente não está disposta a esquecer.

*Em 2020, o livro recebeu o Prêmio Jabuti de melhor ensaio na categoria artes.


AI-5 50 ANOS: ainda não terminou de acabar
Instituto Tomie Ohtake 
R$ 60,00

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O prêmio e os acervos

Miguel Chikaoka Salvaterra, PA – 1994

Em Belém para ministrar um curso sobre curadoria, visitei o solene Museu do Estado do Pará (MEP) que, junto com o Museu de Arte da Universidade Federal (MUFPA), abrigam em 2019 a 10ª edição do Projeto Prêmio Diário Contemporâneo[1]. O Projeto, sob a coordenação de Mariano Klautau Filho, a cada ano transforma Belém num dos pontos principais do Brasil para quem deseja ver, refletir e discutir a arte contemporânea do país, tendo como eixo privilegiado a fotografia e a imagem fotográfica.

Nesta edição, os artistas que responderam ao edital da mostra foram selecionados pelo júri formado por Octavio Cardoso, Heldilene Reale e Isabel Gouvêa, que escolheu um grupo potente de obras de artistas das mais diversas regiões do país. Junto com algumas obras de artistas convidados, formaram a exposição em cartaz no MEP.

Não leve flores, de Rodrigo Pinheiro e Ton Zaranza, foi a peça que talvez mais tenha me impressionado. Composta por uma série de retratos fotográficos em formato 40 x 40 cm, registram pessoas as mais diversas. Ao lado de cada retrato – como se fosse a legenda –, um depoimento impresso da pessoa retratada, relatando quais foram seus sentimentos e ações durante 28 de outubro de 2018, para quem não lembra, dia em que foi confirmada a vitória do atual presidente da República. Não leve flores conseguiu atrelar à dimensão já hipercodificada do retrato uma delicadeza na pose, na iluminação e no fundo colorido das imagens que reforçam os depoimentos acoplados, relatos das apreensões que gravitavam durante aquele dia fatídico. O que igualmente me despertou o interesse foi o fato de que a obra, embora configurada como uma galeria de retratos/depoimentos de parte da comunidade LGBT+ do Rio de Janeiro, não se restringe àquela comunidade, pois expressa os temores de parte significativa da sociedade brasileira frente ao devir em que penetramos naquele dia.

Mas essa não foi a única obra que me chamou a atenção no MEP (cuja arquitetura, por si só, já vale uma vista). Ainda ali, um olhar mais detido na produção exposta me revelou o trabalho de outros artistas instigantes: Julia Milward, de São Paulo, e sua série, “Renomes”, foi uma delas. A artista atua sobre fotos apropriadas de colunas sociais dos anos 1950 e 1950, em que os nomes das mulheres retratadas foram substituídos pelas indicações das atividades profissionais e dos nomes dos respectivos maridos. Reforçando o apagamento dessas mulheres enquanto indivíduos, Milward transplanta as imagens para um suporte que emula o drapeado das vestes suntuosas da maioria das retratadas e, nesse processo, ao mesmo tempo em que reforça a associação de cada obra ao drapeado dos vestidos de soirée, faz com que esse arranjo suma com o rosto da retratada. Abaixo de cada fotografia, em metal cromado, a indicação do proprietário de cada uma das mulheres: “Sra. Embaixador Fulano de Tal”, “Sra. Conselheiro Beltrano” etc.

À margem desse viés ativista mais explícito (mas que não perde a delicadeza, jamais), a exposição apresenta outras manifestações de interesse: a série “Angelus”, da baiana Maria Baigur, por exemplo, ressignifica a documentação da paisagem urbana – quase toda, hoje em dia, subserviente a um gosto de derivação da escola alemã de fotografia – registrando em cada uma das imagens urbanas que exibe elementos que as humanizam, retirando-as do fosso comum da atual fotografia “de arte”, fria e distante. Além desse ensaio de Baigur, impossível permanecer imune às produções tão diversas e potentes, como aquelas de Mateus Sá, de Pernambuco, José Diniz, Rio e de Renan Teles, São Paulo, entre vários outras, produções que abalam as certezas enraizadas naquele edifício algumas vezes centenário.

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Se no segmento da exposição apresentada no MEP sobressaem, além da produção de alguns convidados, artistas que se inscreveram no edital deste ano, no Museu de Arte da Universidade Federal do Pará, devido às comemorações dos 10 anos do Prêmio, são apresentadas obras de artistas já presentes na Coleção Diário Contemporâneo e alguns convidados.

Essa exposição singulariza-se por apresentar praticamente apenas obras pertencentes à Coleção, franqueando ao público o contato com a produção de alguns dos artistas mais significativos da cena brasileira contemporânea e que, pelas mais diversas circunstâncias, residem ou residiram em Belém. A mostra como que produz uma antologia delicada de trabalhos de Miguel Chikaoka, por exemplo, um artista cuja importância não se reduz ao fato (grandioso em si mesmo, diga-se) de ter sido responsável pela formação de gerações de artistas de Belém. Chikaoka ali é apresentado como um artista cuja sensibilidade, na maneira como opera a câmera fotográfica, demonstra que a fotografia documental pode, sim, ir muito além do mero registro do real, quando operada por alguém que sabe nelas enxergar algo que transcende os fatos e as circunstâncias.

 

A mostra também é pródiga ao apresentar a produção de um dos artistas paraenses mais conhecidos para além das fronteiras do estado: Luiz Braga. Ali encontramos o artista com obras que decididamente o retiram do compromisso que lhe foi outorgado de representante da “visualidade amazônica”. Fora desse viés, Braga se revela o artista maior que já dava demonstração de ser, desde as fotos em preto e branco, produzidas nos anos 1970, exibidas no MUFPA. A participação de Braga na mostra ganha ainda maior destaque com a apresentação de algumas de suas fotografias em cor, produzidas em interiores residenciais e sem nenhum apelo regionalista mais evidente. Por último, a mostra também traz a público uma surpresa para aqueles que se interessam pela produção de Luiz Braga: um vídeo – peça raríssima (talvez única) dentro de sua obra – em que o registro de cunho antropológico é ampliado em seu significado pelas imagens produzidas pelo artista.

Artistas da significação de Claudia Leão, Dirceu Maués, Flavya Mutran, Geraldo Ramos, Janduari Simões, Jorane Castro e Walda Marques, completam o time de artistas que constituem, no MUPFA, talvez o cerne mais consistente da fotografia produzida há algumas décadas no Pará.

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Um dado já perceptível nos parágrafos acima, reveste o Programa Diário Contemporâneo de uma importância ímpar na cena brasileira: o fato de que, além de anualmente colocar Belém em contato com parte do que de mais estimulante ocorre no Brasil em termos de arte contemporânea, o Prêmio – a partir de acordos assinados com o Museu da Casa das Onze Janelas e com o Museu da Universidade Federal do Pará – levam para seus respectivos acervos, as obras premiadas pelo Projeto. Agindo dessa maneira, o Prêmio deixa de ser, então, apenas mais um dos eventos ligados à arte contemporânea em Belém, para se transformar em um fomentador importante dos acervos dos dois museus citados, ambos públicos (o primeiro estadual, o segundo, federal). Esse acordo entre a entidade promotora do evento – o Diário do Pará – e os dois museus, demonstra como é possível produzir projetos de excelência unindo a iniciativa privada e os museus públicos brasileiros, sempre carentes de verbas para ampliar seus respectivos acervos.

A cada edição do Prêmio, é preciso frisar, o corpo de jurados é mudado, garantindo, assim, a presença sempre diversificada de pontos de vistas de profissionais respeitados de todas as regiões do país. Neste tipo responsabilidade compartilhada, ganha o Diário do Pará, que associa sua marca a duas instituições públicas respeitáveis, ganham os dois museus e ganha o público paraense, que poderá continuar convivendo com as obras premiadas em cada edição.

Completados os dez primeiros anos do Prêmio, surgem possibilidades de que ele venha a ganhar ainda maior penetração e destaque, não apenas na cena paraense e brasileira, mas também internacional. São tempos novos que se aproximam nessa segunda década que se inicia. Que as três instituições envolvidas tenham a sabedoria de continuar mantendo e ampliando o escopo do Projeto, sem descuidar da necessidade de bem escolher, daqui para frente, quem pode e merece continuar oferecendo-lhe o devido suporte.

 

 

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[1] – Em todas suas edições, a mostra Prêmio Diário Contemporâneo realiza-se em duas instituições: o Museu Casa das Onze Janelas e o Museu de Arte da Universidade Federal do Pará. Excepcionalmente neste ano, uma das exposições do Prêmio realiza-se no Museu do Estado do Pará que, como a Casa das Onze Janelas, também pertence ao estado do Pará.

Lucia Koch apresenta individual na Galeria Nara Roesler

"Tumulto", obra de Lucia Koch. Foto: Divulgação

A nova exposição da artista Lucia Koch, apresentada na galeria Nara Roesler, em São Paulo, tem seu título composto pelos nomes de duas grandes instalações presentes na mostra: Tumulto e Turbilhão. No salão principal da galeria, Tumulto é um cruzamento de cortinas diagonais que recortam o espaço, gerando um acúmulo de camadas semitransparentes. Como explica o texto de divulgação da mostra, “parte destas cortinas-filtros parece atravessar as paredes, continuando para além das salas de exposição”.

Turbilhão, por sua vez, aparece como um tipo de contraponto à primeira obra. O trabalho apresenta-se como uma espécie de anti-vitrine, com a abertura da grande janela de vidro do espaço expositivo preenchida inteiramente por uma treliça vermelha. “Nela é instalado um grande círculo (recortado da mesma treliça) que se move vagarosamente com a ajuda de um motor, criando assim um efeito moiré, que pode ser visto tanto de dentro, como de fora da galeria”, diz o texto.

Em outros trabalhos expostos, a mostra levanta também discussões sobre o trabalho artístico feito em colaboração. Trabalho Noturno, criado coletivamente, ecoa a experiência de A Longa Noite, instaurada por Lucia Koch no Sesc Pompeia em 2018. Tramatura, apresentada na data de abertura da exposição, é uma performance criada pela Coletiva Balaiada Qualira, formada pelas artistas Eliara Lua, Flora Maria, Ana Musidora e Jo dos Santos. O grupo apresenta também a videoperformance Eclipse, feita junto com Aline Belfort.

Tumulto, Turbilhão
Galeria Nara Roesler – Avenida Europa, 655, Jardim Europa, São Paulo
Até 19 de outubro