Instalação do coletivo Monster Chetwynd na ilha de Buyukuda na 16ª. Bienal de Istambul.

O que pode tornar relevante uma bienal? Ela não pode ser vista apenas como uma grande exposição e, especialmente pelos esforços e valores que costumam envolver, deve ir além disso. Entre as diferenças que uma bienal pode e deve fazer estão, e que tenho percebido como marcas que fazem a diferença: tratar de questões atuais de forma a ajudar a compreender o tempo presente; possuir uma relação com a cena local que provoque diálogos e aprofundamentos; envolver a cidade onde ela ocorre para além dos espaços convencionais; abarcar obras e debates que não se restrinjam à arte contemporânea e possibilitem tratar também da cultura em geral.

De certa forma, essas questões costumam estar presentes nas edições da Bienal de Istambul em maior ou menor grau, o que ocorre também em sua 16ª edição, a cargo do curador francês Nicolas Bourriaud.

No circuito da arte contemporânea, Bourriaud é das poucas vozes que assume um discurso mais denso, do ponto de vista conceitual, sendo responsável por textos e livros referenciais, como o dedicado à “estética relacional”, que pautou intenso debate no início do século 20. Tendo organizado várias outras bienais antes, como Lyon e Moscou — ambas em 2005 —, sua escolha representou pouco risco.

O Sétimo Continente, nome da edição em cartaz entre 14 de setembro e 10 de novembro desse ano, abordou uma temática que, em uma inteligente estratégia, escapou do difícil contexto político local para tratar de um problema universal: a imensa quantidade de lixo produzida pelo ser humano, tão grande que se transforma em uma área cinco vezes superior à Turquia, podendo ser considerada um novo continente.

O pano de fundo desse debate é justamente o conceito de Antropoceno, ou seja, a era que representa a transformação da natureza de forma tão drástica pela humanidade que sua ação passa a representar uma ameaça à sustentabilidade do próprio planeta.

Instalação de Gleen Ligon sobre o escritor norte-americano James Baldwin (1924–1987) na ilha de Buyukada, na 16ª Bienal de Istambul. FOTO: Sahir Ugur Eren

Para alívio de quem já vive um pesadelo, especialmente no país das queimadas, do óleo e das catástrofes das mineradoras, não se trata de uma bienal que olhe para o tema de forma ilustrativa ou militante, como se poderia imaginar. O onipresente O Peixe, de Jonathas de Andrade, que desde que participou da 32ª Bienal de São Paulo, em 2016, tem sido visto em dezenas de museus e espaços culturais pelo mundo e vista agora em Istambul, é um bom exemplo desse caráter metafórico do colapso da natureza. É só lembrar que o trabalho apresenta pescadores acariciando os peixes após pescá-los, um paradoxo que permite distintas leituras sobre a violência humana.

Jonathas está em exibição no Museu de Pintura e Escultura da Universidade de Belas Artes Mimar Sinan, uma das três sedes da 16ª Bienal de Istambul, escolhida, aliás, poucos meses antes da abertura, já que o espaço escolhido originalmente, o Estaleiro de Istambul, precisou ser descartado na última hora, após serem descobertos elementos tóxicos nele que inviabilizaram seu uso.

É lá que esteve também Circa (2006), da brasileira Anna Bella Geiger, uma instalação bastante complexa, que parte de um livro que mostra maquetes das pirâmides do Egito, que ela reconstrói no espaço com areia e tem no fundo uma projeção com imagens que abordam a ideia de representação.

O novo espaço, que antes da reforma serviu a outras edições da Bienal como Antrepo 5, agora é um museu com espaço expositivo de 11 mil m2, previsto para ser inaugurado em 2020, mas basicamente dividido em pequenas salas.

Esse caráter itinerante da Bienal de Istambul, onde a cada edição novos locais servem de sede, em uma cidade tão rica do ponto de vista histórico e arquitetônico, sempre foi um importante elemento em sua configuração. O novo museu, contudo, composto por essas pequenas salas, tirou parte do impacto da Bienal, que é o confronto entre obras, já que cada artista é visto individualmente. Para trabalhos como O peixe, foi a situação ideal, mas a falta de diálogo entre as obras tirou, definitivamente, a potência da mostra.

Por isso, as duas outras sedes, o Museu Pera e a ilha de Buyukada, ganharam relevância. O museu privado, que se dedica à história da cultura turca, tem três andares cedidos à Bienal, e boa parte do que é visto lá se dedica a refletir questões em torno da institucionalização da arte. Entre os destaques estão os desenhos do cientista alemão Ernst Haeckel (1834–1919), uma observação detalhada e microscópica da natureza, realizada no século 19, de impressionante sofisticação estética. É esse tipo de relação que torna uma bienal mais complexa, já que volta ao passado para apontar relações com o presente.

Outra obra nesse sentido é do educador norte-americano Norman Daly (1911–2008), que ao longo de décadas criou um museu ficcional de uma civilização denominada Llhuros a partir de materiais descartados como aparelhos de cozinha que, remontados de forma criativa, pareciam objetos pré-colombianos.

É no Pera que está também a pintura do brasileiro Glauco Rodrigues (1929-2004), Visão da Terra, de 1977, realizada durante a ditadura militar, que apresenta um homem branco como um líder populista.

Mas é em Buyukada que se revela outro dos pontos altos da mostra, por tratar de uma história real da cultura local, a presença do escritor negro gay norte-americano James Baldwin (1924–1987) na Turquia, em instalação de Gleen Ligon.

Sofrendo preconceitos em seu país, Baldwin saiu dos Estados Unidos no final dos anos 1940 e, na década de 1960, passou boa parte de seu tempo em Istambul, então um local acolhedor à diversidade cultural. Na instalação, Ligon exibe o filme From another place, de Sedat Pakay, realizado na Istambul, em 1970, com depoimentos de Baldwin, que pela primeira vez é visto lá com legendas em turco.

Em Buyukada estão outras quatro obras, entre elas a instalação do coletivo Monster Chetwynd, em um dos palacetes abandonados da ilha, que parece enfeite de Halloween, mas é um tanto adequando ao estilo decadente da ilha. Foi lá que Trotsky viveu exilado e sua casa, como tantas outras, parecem ruinas.

O Sétimo Continente não é a edição mais brilhante de Istambul, mas ao trazer um tema atual e importante, mantendo relações com a história local e ocupando espaços além dos tradicionais, segue mantendo-se como dos mais originais eventos do circuito.

 


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