A segunda mesa do seminário. Foto: Jéssica Mangaba/ Itaú Cultural

Realizado em São Paulo no último dia 21 de outubro, o seminário “Gestão Cultural: Desafios Contemporâneos”, organizado pela ARTE!Brasileiros e pelo Itaú Cultural, reuniu gestores, especialistas e artistas para discutir temas essenciais sobre gestão nos tempos atuais, em um contexto de crise econômica e política. Enquanto a primeira mesa contou com a participação de gestores de importantes instituições do país, a segunda mesa reuniu dois artistas, Gabriela Noujaim e Jonathas de Andrade, e duas especialistas em gestão cultural e soluções criativas, Ana Carla Fonseca e Kátia Araújo de Marco Scorzelli.

Após apresentação da diretora editorial da ARTE!Brasileiros, Patricia Rousseaux, a mesa teve início com a fala de Gabriela Noujaim. Graduada em gravura pela Escola de Belas Artes da UFRJ, a artista contou que teve grande parte de sua formação realizada em cursos gratuitos na EAV Parque Lage, com professores como Dionísio del Santo, Evany Cardoso, Anna Bella Geiger e Fernando Cocchiarale. “Foram cursos muito importantes na minha formação como artista e que se não fossem gratuitos eu não teria como fazer”, destacou.

Além de apresentar seu trabalho, que lida com corpo, memória e ancestralidade e levanta questões políticas sobre as causas indígenas e ambientais, Noujaim adentrou o tema da gestão cultural ao falar sobre sua experiência de dez anos com projetos patrocinados pelos centros culturais do Banco do Nordeste. Através da instituição, que tem sedes em Sousa (PB), Juazeiro do Norte (CE) e Fortaleza (CE), a artista realizou mais de uma dezena de projetos na região. “Foi fundamental para mim poder conhecer o interior do país, conhecer a nossa cultura”.

“Esses centros culturais do Banco do Nordeste, diretamente ligados ao governo federal, também têm alguns pontos de cultura que eles apoiam em cidades menores. E atualmente eles estão enfrentando muitas dificuldades, estão em risco”, contou. “E eu considero fundamental a permanência destes centros, porque nessas cidades são o único movimento cultural existente, que fornecem acesso à teatro, cinema, arte contemporânea e oficinas de arte gratuitas.”

Noujaim apresentou um de seus trabalhos realizados em Sousa, em parceria com um músico local, e falou também sobre sua pesquisa com os índios da aldeia Maracanã, no Rio, sobre sua mostra Maraca, com vídeos e instalações expostas na galeria Simone Cadinelli Arte Contemporânea, e sobre o trabalho que apresentou em sua participação na ArtRio deste ano – e que agora faz parte do acervo do MAR.

O segundo a falar foi o artista alagoano Jonathas de Andrade, que ressaltou a importância das bolsas, incentivos e residências em sua trajetória. “Eu tenho total clareza de que se eu estivesse começando nessa conjuntura atual, teria muito mais dificuldade em me desenvolver como artista”, afirmou, se referindo ao que chamou de um “processo de sucateamento e de desmonte cultural que vivemos hoje no Brasil”.

Artista multimídia, Jonathas participou da 7a Bienal do Mercosul, da 32a Bienal de São Paulo e fez residências na Jordânia, na Holanda e na Inglaterra. O artista contou sobre sua trajetória nas artes, que começou após a desistência em concluir a faculdade de Direito na UFSC e a escolha de realizar o curso de Comunicação Social na UFPE. Ao final da formação em Recife Jonathas apresentou sua primeira exposição, de fotografias, que foi montada na Fundação Joaquim Nabuco após um processo de seleção para jovens artistas. “E nesse momento, em que eu estava tentando me entender como artista, todos os incentivos, bolsas e possibilidades públicas foram fundamentais no desenrolar das coisas.”

Esse primeiro trabalho resultou também em uma publicação financiada pelo Funcultura, “um fundo do estado de Pernambuco que foi parceiro em vários momentos cruciais da minha carreira”. A primeira mostra em São Paulo, por sua vez, aconteceu no próprio Itaú Cultural. Em diferentes momentos, o artista contou ainda com apoios do Banco Real, da Funarte e de bienais, entre outros. “E isso me faz pensar que é urgente que tanto as instituições quanto as empresas que tenham condições desenvolvam programas voltados para as artes”.

“Nesse momento crítico, temos desastres ecológicos, genocídios e uma série de questões urgentíssimas. Mas, para pensar a cultura como um articulador disso tudo, para dar fôlego de verdade para esse país, eu acho que apoiar as artes também é urgente, porque estamos lidando com memórias que persistem”, concluiu Jonathas, que durante sua fala apresentou também trabalhos como Ressaca Tropical, O Peixe, Procurando Jesus e Caravana Museu do Homem e do Nordeste.

A apresentação seguinte foi de Ana Carla Fonseca, administradora pública pela FGV, mestre em administração e doutora em urbanismo pela USP, assessora para a ONU e o BID em economia criativa e cidades. Ela falou especialmente sobre seu trabalho com a Garimpo de Soluções, empresa que comanda ao lado de Alejandro Castañé e que é voltada para a economia criativa, cultura, negócios e desenvolvimento de cidades.

Fonseca apresentou cinco exemplos de projetos desenvolvidos ou que tiveram acompanhamento da empresa. O primeiro deles foi o trabalho feito pela neozelandesa Tui Te Hau, especialista em revolução digital, para o Museu Nacional da Nova Zelândia. Diretora do hub de inovação Mahuki, que incentiva negócios inovadores voltados para museus e patrimônio cultural, Tui Te Hau desenvolveu um projeto que transformou o museu em um lugar efervescente, aumentando a eficiência de gestão e criando novas fontes de receitas.

O segundo caso apresentado foi um projeto que exemplifica como é possível trabalhar com as tradições e com o patrimônio intangível de um lugar. Um concurso realizado para selecionar a identidade visual da sardinha (alimento tradicional e muito consumido em Portugal), “entendida como elemento de conexão com questões de revitalização e da identidade lisboeta”, repercutiu de diversos modos na economia local. Uma antiga empresa local de cerâmicas, por exemplo, passou a produzir louças estampadas com as sardinhas selecionadas no concurso, criando um novo e rentável ramo de mercado.

Fonseca falou ainda sobre o trabalho da empresa cubana Habaguanex, que por mais de 20 anos ajudou a revitalizar a região histórica de Habana Vieja a partir de um projeto cuidadoso de gestão patrimonial. “Porque a cidade é sempre uma grande plataforma de discussões, e uma grande desculpa também para se discutir economia”, afirmou. No caso de Havana, a empresa conseguiu restaurar mais de 300 edifícios, dando a eles destinações que vão de restaurantes e hotéis até habitação social.

Os dois últimos casos apresentados por ela foram o de uma pizzaria no México e de uma empresa de caixas de som no Chile. A primeira, criada por um jovem mexicano, é um exemplo de modelo híbrido de negócio, no qual a cada cinco pedaços de pizza vendidos a empresa destina um pedaço para moradores de rua que tenham um passado de problemas com drogas. No exemplo chileno, por sua vez, um projeto que lida simultaneamente com ancestralidade e tecnologia foi o responsável por criar as caixas de som da Mapuguaquén, feitas em estrutura de barro a partir de técnicas locais tradicionais.

Última participante a falar na segunda mesa do seminário, Kátia de Marco apresentou resumidamente o trabalho da Associação Brasileira de Gestão Cultural (ABGC), da qual é fundadora e presidente, antes de traçar um panorama sobre os desafios para a gestão cultural nos dias de hoje. Kátia, que é também coordenadora da pós-graduação em estudos culturais e sociais na Universidade Cândido Mendes e diretora do Museu Antonio Parreiras (Niterói), falou sobre o trabalho da ABGC tanto na área de ensino quanto na militância em causas culturais. “Hoje mesmo entramos com um pedido de impugnação do edital para a concessão do Museu do Amanhã, pois é um edital totalmente equivocado”, contou.

Sobre o panorama atual, a professora traçou um pequeno quadro da situação das politicas culturais nas duas primeiras décadas do século 21. “E essas décadas têm características muito distintas. Nós começamos o século de uma maneira muito promissora, com muitas esperanças, tendo esse binômio cultura e desenvolvimento de uma maneira muito aberta e muito livre”, afirmou. “A cultura surge nesse momento em sua dimensão ampliada, interagindo com diversas camadas do conhecimento, da vida instrumental, no intercâmbio com a economia, como suporte de políticas de desenvolvimento, como canal de comunicação entre diversos campos.”

No Brasil, segundo ela, isso foi refletido no trabalho do Ministério da Cultura, pautado em uma visão humanística e social. “Isso antes do apagão humanístico que estamos vivendo nessa segunda década.” A partir daí ela traçou um panorama de algumas ideias, conceitos e eventos que ilustraram esse período, num contexto de falência do modelo neoliberal no fim do século 20. Com a realização de diversos encontros e a concretização de acordos internacionais, emergiram conceitos que passam pelas ideias de sustentabilidade, tecnologia, gestão, cidadania, bem-estar e inclusão. Nesta transição aparece também uma necessidade de atuação e empoderamento da sociedade civil, como explicou a presidente da ABGC.

Ao mesmo tempo, considerando questões sociais, ambientais e políticas que percorreram essas duas décadas do século 21 e desembocaram no obscuro quadro atual, surgem fenômenos como a escassez dos recursos, o crescimento caótico das cidade, o terrorismo, os fluxos migratórios e a ascensão da extrema-direita. “E nesse cenário, para pensar o futuro do planeta é preciso criar saídas, alternativas, novas institucionalidades, novos modelos de negócio e novos conceitos”, afirmou a professora. As respostas, muitas vezes, partem dos artistas, “se pensarmos que a arte é como um radar, que antevê e ao mesmo tempo reflete o seu tempo”.

“Uma coisa que parecia impensável, e que estamos vivendo, é esse autoritarismo com apelo à censura na arte. E se formos pensar porque isso está impactando tanto o meio cultural, vamos ver que no Brasil cerca de 70% dos equipamentos culturais estão atrelados à gestão pública, aos governos. E aí a gente para para pensar que talvez seja hora de se desatrelar um pouco do Estado, criar mecanismos de uma autonomia nas instituições artísticas”, defendeu Kátia. Surgem soluções como os fundos patrimoniais, por exemplo, entre outras alternativas para “esse momento em que não temos mais aquela atmosfera da primeira década desse século, da cultura sendo expressa em políticas culturais inclusivas e de socialização”, concluiu.

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