Público interage com obra na abertura da exposição.

Por Dereck Marouço, em Berlim*

 

A exposição Amor e Etnologia: A Dialética Colonial da Sensibilidade (segundo Hubert Fichte) foi realizada em homenagem à série de 19 livros do autor alemão que, juntos, formam um significativo corpo de trabalho sobre suas experiências de viagem, envoltas entre sexo e espiritualidade. A importância de sua narrativa está, além do caráter documental e em prosa, na força autobiográfica. O projeto contou com o apoio do Instituto Goethe e ocorre após edições prévias em Lisboa, Salvador, Rio de Janeiro, Santiago e Dakar. Em Berlim, o projeto tem curadoria assinada por Diedrich Diederichsen e Anselm Franke, que mesclaram obras exibidas nas exposições anteriores com novas adições.

Hubert Fichte (1935 – 1986) viveu de forma radical em uma época crucial da história recente alemã. Filho de pai judeu, quando criança teve que se esconder em um abrigo antibombas para escapar da ameaça nazista. Ele esteve no Brasil três vezes, entre 1969 e 1972, tendo vivenciado nesse período as práticas espirituais afro-brasileiras, além de muitas relações homossexuais, mesmo vivendo com uma mulher, a fotógrafa Leonore Mau. É neste contexto que ele começa a constituir a sua História da Sensibilidade, baseada na viagem como método investigativo, quando experiências e impressões são chave para um conhecimento aprofundado de outras culturas. Fichte era um marginal à medida em que ser gay ainda era crime na Alemanha dos anos 1960. Porém, ao viajar para países com regimes ditatoriais, na década de 1970, como o Brasil, Portugal e Chile, ele percebe o real antagonista de sua História da Sensibilidade: a tortura e a negligência dos direitos humanos.

Vista da exposição na ocasião de sua abertura em outubro passado.

Para a mostra em Berlim, mais de 170 trabalhos foram agrupados de maneira densa, dentre os quais encontram-se desde pintores como André Pierre (Port-Au-Prince) e Canute Caliste (Trinidad) e artistas representativos do Harlem Renaissance como Camille Billops, Owen Dodson & James Van Der Zee à artistas alemães de mídias contemporâneas como Michael Buthe. Conta-se ainda um bom número de artistas brasileiros na exposição: Virgínia de Medeiros, Ayrson Heráclito, Miguel Rio Branco, Alair Gomes e o Coletivo Bonobando, expostos de forma agrupada, tendo ao fundo obras de artistas americanos como Alvin Baltropp e Tione Nekkia McClodden. Essas duas partes são permeadas tanto por entrevistas e publicações de Fichte e outros escritores em parceria com fotógrafos como Pierre Verger e a companheira Leonore Mau. Outra sessão é dedicada às influências literárias de Fichte, com livros de Jean Genet, Isabelle Eberhardt, James Baldwin, Pier Paolo Pasolini e William S. Borrough, roteiro literário que constitui uma genealogia queer.

A abertura da exposição contou com a performance Preta Jardim / Omindarewa (2017) do grupo Bonobando, apresentada por Lívia Laso, Vanessa Rocha e Adriana Schneider. Nela, uma mulher negra cria uma narrativa a partir do ponto de vista da Casa das Minas do São Luís do Maranhão sobre o embate entre religiões e culturas, ao mesmo tempo em que manuseia um fantoche de homem branco. A obra subverte a dinâmica eurocêntrica que se impõe sobre outras vertentes culturais, em especial as afro-americanas.

Já Tione Nekkia McClodden expõem o trabalho an offering | six years | a conjecture (2017), sobre a realização de um ritual pessoal para Xangô, intercalado por um vídeo que evidencia a má percepção das massas das religiões afro-americanas.

Amor e o sexo, temas recorrentes em Fichte, são retratados de forma branda na exposição. As fotos de Alair Gomes, Alvin Baltrop e Isaac Julien explicitam a sensualidade e o desejo proscrito, mas nestes três casos as fotos selecionadas guardam sempre uma distância entre câmara e objeto de apreciação e não fazem alusão a um estudo íntimo quando se leva em consideração o nome da exposição.

As únicas obras que retratam o sexo de maneira próxima são Nada Levarei Quando Morrer, de Miguel Rio Branco (1980/1985) e Peep Show I-III (2017) também do Coletivo Bonobando, que narra as aventuras sexuais de Jäcki (personagem biográfica de Fichte) no Brasil com imagens fílmicas acessadas através de orifícios de borracha. Em meio ao grande número de obras, as únicas que fazem menção direta a complexidade social comum aos pontos do globo mencionados na exposição além da de Rio Branco é Baia de Todas as Santas (2017) de Ayrson Heráclito. Enquanto Rio Branco exibe os corpos marcados por cicatrizes do Pelourinho, Heráclito traz as sinistras ruas da maravilhosa Bahia durante a noite.

GRUPO BONOBANDO, Performance Preta Jardim / Omindarewa, 2017.

Amor e Etnologia: A História da Sensibilidade utiliza o corpo de obra composta pelo escritor alemão e critica o olhar europeu sobre as culturas pouco representadas com um esforço interessante de curadorias compartilhadas. No entanto, a exposição não investiga tanto o termo “etnologia” para além do sentido cultural religioso, que também é dissociado do seu contexto atual, no qual, muitas vezes, práticas espirituais são perseguidas.

Mesmo apresentando um conjunto significativo de obras, falta no projeto o sentido social que foi experienciado por Fichte em suas diversas viagens e que é indissociável tanto do desenvolvimento da cultura negra, quanto da cultura queer. A exposição não se aproveita das vivências do seu homenageado para se aprofundar nos tópicos eleitos e deixa uma impressão de que o mundo foi simplificado.


* Dereck Marouço é pesquisador de arte, graduado em Arte: História, Crítica e Curadoria pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Integrou como assistente as equipes de curadoria da Pinacoteca do Estado de São Paulo e do Museu de Arte de São Paulo, auxiliando em diversas exposições e pesquisas. Vive e trabalha em Berlim.

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