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Incongruências curatoriais na Bienal de Veneza

Ismael Nery, Figura Decomposta, 1927
Ismael Nery, Figura Decomposta, 1927
por Maykson Cardoso
Pesquisador de arte baseado em Berlim
Doutorando em Artes Visuais na Escola de Belas Artes da UFRJ

Fabio Cypriano é um dos últimos bastiões da crítica de arte corajosa no Brasil. Li sua crítica à atual edição da Bienal de Veneza, “Stranieri Ovunque”, curada por Adriano Pedrosa, e me sinto contemplado por ver, ali, como foram abordados alguns dos problemas curatoriais. Escrevo este texto em diálogo com esta crítica de Cypriano, abrindo outras questões a partir de um dos pontos que ele sublinha: um certo esforço curatorial para enquadrar acriticamente a produção de artistas do sul-global em uma categoria que parte de e converge com uma visão da história da arte ocidental/colonial.

Desde o anúncio do time de artistas brasileires que integrariam a mostra, já se podia antecipar algumas incongruências curatoriais. Não pela qualidade individual desses artistas, mas porque, pelo conjunto, já se podia ver que a ala [“ítalo-”]brasileira não colocaria em questão, desde perguntas atuais e urgentes, os clichês e problemas da nossa complexa “identidade nacional”, tal como parecia sugerir o título da mostra “Estrangeiros em todo lugar”. O que, de antemão, já nos colocava diante de dois furos curatoriais: primeiro, porque uma curadoria coletiva se faz valer pelo conjunto de suas obras; segundo, pelo quanto este conjunto de algum modo ressoa o conceito-geral a partir da singularidade destas.

Neste sentido, Cypriano aponta, por exemplo, que

“Os selecionados em todas essas seções não estariam criando alternativas à chamada história oficial, mas suas inserções em gêneros e movimentos definidos pelos padrões ocidentais, acabam se tornando apenas uma lista de pinturas com vontade de participar do clube oficial. É caso dos brasileiros Tarsila do Amaral, Ismael Nery, Candido Portinari e Di Cavalcanti, para citar apenas quatro. As obras escolhidas, respectivamente Estudo (1923), Figura Decomposta (1927), Cabeça de Mulato (1934) e Três Mulatas (1922) trazem pouca fricção à narrativa corrente”.

É a partir desta incongruência que Cypriano conclui — e nisto reside o grande mérito de seu texto — que o discurso curatorial quer encaixar a produção de artistas do sul-global “na narrativa modernista, como se a inserção nesta história fosse de fato uma conquista significativa”. Quanto a isto, vale acompanhar as discussões de Rafael Cardoso, que em sua pesquisa mais recente mostra as origens populares do modernismo brasileiro, colocando em xeque a narrativa oficial vigente que atribui o modernismo apenas aos figurões da elite paulistana.

Sem dúvida, esta premissa curatorial é o primeiro ponto [propositadamente?] cego da proposta de Pedrosa… Ao olhar para os modernismos periféricos, especialmente no caso brasileiro, sua simpatia, para falar com Walter Benjamin, é imediatamente com os vencedores! Na contramão da exigência [est]ética de nosso tempo, de ler a história COLONIAL da arte a contrapelo, o que Pedrosa faz é assentar os pelos eriçados pelo que há de melhor na nossa produção artística contemporânea, finalizando o penteado com um bocado de emplastro para garantir que não voltem a se eriçar outra vez.

Mas a ineficácia de seu discurso curatorial não para neste primeiro ponto… Já no título generalista da mostra, “Estrangeiros em todo lugar”, parece haver certa “disposição” para um debate político. No entanto, examinado criticamente, o que se vê e o que aí se expressa é justamente o contrário: se somos todos estrangeiros, NINGUÉM é estrangeiro. E assim caímos, mais uma vez, no inferno do sempre-igual: se todos somos estrangeiros, são tão estrangeiros, como nós, que temos o privilégio de portar um passaporte, os refugiados de guerra ou do clima? Se todos somos estrangeiros, são tão estrangeiros, como nós, os que fogem da miséria? Os que buscam asilo devido à perseguição política em seus próprios países?

Uma afirmação desta ordem faz lembrar a reflexão de Susan Buck-Morss em “Hegel e o Haiti”, sobretudo quando a autora se refere ao lema da revolução francesa “liberdade, igualdade, fraternidade”. Ao fazer uso do mesmo lema que servira aos propósitos da revolução na França, os haitianos receberam as tropas de Napoleão para dar termo à sua revolta. Para o revolucionário Napoleão, o lema que se pretendia “universal”, só servia à França, não se estendia aos haitianos que lutavam contra a sua própria escravidão. Isto é: um título que diz “somos todos estrangeiros” se arroga um princípio semelhante de universalidade, quando nós, os periféricos do sul-global, sabemos bem quem são os vencedores de sempre.

Adriano Pedrosa não falha, portanto, pela qualidade de artistas que apresenta ao público, mas pelo discurso curatorial sem qualquer profundidade e, portanto, sem eficácia, sem força para levar o público a se interrogar sobre a injustiça embutida na própria ideia de fronteira. Seu título é um slogan, ou seja — para apontar, como Cypriano o faz —: não passa de uma estratégia de marketing. Um modus operandi cujo resultado não é outro senão o de arrefecer as contradições, os conflitos. Não nos tira, minimamente, da comodidade e do inferno do sempre-igual. Há ali, para lembrar um termo cunhado, certa vez, por Miwon Kwon, apenas a “performance de uma criticalidade”.

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E, para não dizerem que não falei das flores, em termos de montagem, tomada em comparação com a edição anterior, “O Leite dos Sonhos”, curada por Cecilia Almani, Pedrosa traz a Veneza um bom traço da nossa arquitetura modernista brasileira: consegue criar espaços de respiração diante de um excesso barroco, sem, contudo, aplacar o que, esteticamente, deve se apresentar como esse “excesso”.

E por falar em barroco, La Chola, para mim, é o maior destaque da mostra. Como poucas, a artista consegue criar um diálogo que atualiza — ela sim, criticamente! — o discurso da história da arte Latino-Americana. La Chola se apropria da estética do barroco andino, criando alegorias complexas (e extremamente bem executadas!) que denunciam a violência da norma colonial fundante de nossa ideia de  nação, ao mesmo tempo em que a subverte, tomando para si os elementos da estética colonial para celebrar a força e a resistência daqueles que se insurgem contra a sua vigência em nossos dias — como, aliás, se pode ver no discurso curatorial de Pedrosa.

Bienal de Veneza - Estrangeiros em Todo Lugar. Obra de La Chola Poblete
La Chola Poblete

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Tudo isto nos mostra que é chegado o tempo de diferenciar curadores comprometidos não só com a causa, mas com o próprio campo da arte, da história da arte, do pensamento, em detrimento daqueles que atuam como meros produtores de conteúdo raso para redes sociais ou CEOs de grandes instituições. Precisamos, merecemos mais, muito mais do que isso!

Ana Magalhães faz balanço da gestão no MAC USP, um museu entre a universidade e a sociedade

MAC USP - entrevista com Ana Magalhães
Foto de Elaine Maziero

Quando Ana Gonçalves Magalhães e Marta Bogéa assumiram a direção do Museu da Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP), em julho de 2020, o mundo vivia uma crise humanitária sem precedentes com a pandemia de Covid-19. A vacina ainda estava longe de se tornar uma realidade, assim como era impossível prever quando voltaríamos a sair do isolamento social. 

Para o museu, a solução encontrada naquele momento foram as atividades virtuais, através das quais o MAC USP seguiu ativo e, mais do que isso, se destacou. Chamaram atenção, por exemplo, uma intervenção criativa do artista Gustavo Von Há no Instagram da instituição, que chegou a levantar dúvidas se o perfil havia sido hackeado, além de webinários e ciclos de debate realizados em parceria com museus como a Pinacoteca de São Paulo e o Instituto Moreira Salles. Estas, inclusive, já faziam jus à proposta da gestão de aproximar o MAC USP de outras instituições culturais da cidade.

Com a volta das atividades presenciais e a relativa normalização da vida, as diretoras puderam desenvolver de modo mais efetivo as diretrizes de seu plano inicial: criar um “museu-laboratório”, fomentando a produção educativa e acadêmica – “somos um museu da universidade, muita gente esquece disso” – e ativar o vasto acervo de mais de 10 mil obras modernas e contemporâneas a partir de variadas narrativas, com um olhar mais atento às questões raciais e migratórias, por exemplo. Com este trabalho, o MAC USP ganhou, em 2023, o prêmio da ABCA dedicado à Coleção/Acervo/Conservação/Documentação histórica.

A ex-diretora, que é professora-titular do MAC USP e segue no conselho da instituição, acaba de passar o bastão para José Lira (diretor) e Esther Hamburguer (vice-diretora), que assumiram em julho o museu localizado no Ibirapuera, em prédio de Oscar Niemeyer, e que possui 73 funcionários ao todo. A arte!brasileiros publica em outubro uma entrevista com os novos diretores para falar de seus planos para uma gestão que, como destacam, não pretende romper com o trabalho que estava sendo feito.

Sobre os destaques do período em que comandou o MAC USP, Magalhães aponta a ampliação das atividades de docência e extensão; o fortalecimento do trabalho coletivo, não só nas parcerias entre instituições, mas também nos processos internos do museu (como na mostra de longa duração Tempos Fraturados, que teve seis curadores); o foco multidisciplinar nas atividades; o diálogo com os artistas contemporâneos e as novas doações para o acervo. Ressalta ainda que o museu conseguiu não só retomar o número de visitação anterior à pandemia, de 370 mil em 2019, mas superá-lo, com aproximadamente 410 mil visitantes em 2023.

Leia abaixo a íntegra da entrevista, na qual Magalhães faz um balanço da gestão:

Ana Magalhães
Ana Magalhães. Foto: Martin Brausewetter
arte!brasileiros – Podemos começar em 2020, quando você e a Marta assumem a diretoria, ainda durante a pandemia. Dos quatro anos em que estiveram à frente do MAC USP, aproximadamente a metade decorreu em período de isolamento social. Pode falar um pouco de como foi esse desafio inicial e quais as estratégias de trabalho que vocês adotaram?

De fato, naquele momento imaginávamos que passaríamos seis meses em casa e que depois tudo estaria resolvido. Mas não foi assim. Então foi bem difícil lidar com essa situação. Mas eu acho também que em certo aspecto o museu ganhou, no sentido de pensar em outras estratégias de comunicação com o público. Nós fizemos uma programação e um conjunto de ações para testar estratégias como, por exemplo, uma série de conversas online sobre as exposições que deveriam ter entrado em cartaz – e entraram mais para a frente –, reunindo os curadores e artistas envolvidos e já adiantando algo para o público, mostrando que o museu continuava a trabalhar. Nós fizemos também um primeiro webinário de processos curatoriais que a gente chamou de Rede São Paulo, no qual conversamos com colegas de várias instituições dentro e fora da USP ao longo de quase dois meses de programação. 

E aí eu chamaria a atenção para duas ações que foram bem destacadas para o museu nesse período. Uma foi ter convidado o artista Gustavo von Ha para fazer uma intervenção no Instagram do MAC USP, o que já era parte dos processos da proposta dele para exposição Lugar Comum, que depois entrou em cartaz. Isso resultou na doação da primeira obra NFT para o museu, o que traz uma discussão bem importante justamente sobre a paralisação dessa bitcoin, da inserção dessa criptomoeda dentro do acervo de um museu. E o Gustavo é, do nosso ponto de vista, um artista que soube muito bem lidar com as questões das redes sociais. Ele levou as experiências que fazia com perfil dele no Instagram para o perfil do MAC USP, o que foi um ganho para o museu. Da noite para o dia nós explodimos e tivemos um alcance para pessoas que jamais teriam começado a nos seguir não fosse isso. Para o público foi uma surpresa, mas foi uma coisa muito alinhada com a instituição e com a comunicação do museu. 

E eu acho que a outra coisa que deu uma certa projeção para o MAC USP foi o fato de termos nos unido à Pinacoteca e ao IMS e organizado, ao longo de todo o ano de 2021, um ciclo de encontros virtuais sobre 1922 e a semana de arte moderna, o que resultou em 1922: Modernismos em Debate, que hoje está disponível na plataforma do YouTube das três instituições. É um material precioso, que foi bastante acessado, que foi importante para nós pela possibilidade de reavaliar 1922. E trazer, assim, um conjunto importante de conversas e temas que tinham atravessamentos bem interessantes. No fim, o ciclo foi premiado pela revista Select em 2022, o que foi super bacana.

Aos poucos a vida foi normalizada, digamos assim, com a volta das exposições, das atividades presenciais, das aulas na USP. Então pensando em um balanço mais geral da gestão, quais foram os principais eixos de atuação e os principais avanços que você considera que foram alcançados?

Acho que a primeiríssima coisa é a gente se reconhecer como um museu universitário, de fato. Nós somos uma interface importante da USP para fora dos muros da universidade, mas desde o começo tínhamos bastante consciência de que a função acadêmica do museu é aquela que norteia, digamos, todas as atividades do museu e todo o seu programa curatorial. O museu tem que produzir um documento como unidade de ensino, pesquisa e extensão da Universidade de São Paulo, que chamamos de projeto acadêmico. Inclusive ele agora está sendo reformulado, acabamos de submeter o novo projeto acadêmico com uma série de diretrizes para os próximos quatro anos, que entendemos ser um desdobramento do que já fizemos até agora. E eu acho que a principal informação, o principal aspecto que para nós era muito importante, era de marcar esse lugar do MAC USP, que é um lugar excepcional na cidade de São Paulo, de entender que nós somos um museu-escola, um museu-laboratório, um espaço de formação em todos os níveis. Pensando não só a mediação dos públicos gerais, dos públicos que não são necessariamente especializados, mas a formação de profissionais e a formação de pesquisadores que atuam no museu, justamente fazendo essa mediação com os públicos do MAC USP. Quer dizer, nós somos um museu da Universidade de São Paulo. Muita gente esquece isso…

Talvez por ele não estar dentro da cidade universitária?

Sim, mas o Museu do Ipiranga também não está, por exemplo. Eu acho que tem a ver com o fato dele ser um museu de arte. E que nasce da transferência de uma coleção que veio de fora da universidade para dentro dela. Bom, a partir dessa ideia de que somos esse museu-escola, laboratório, o MAC USP ampliou muito a participação de alunos de graduação em várias atividades. Nós já tínhamos um contingente razoável de bolsistas que atuavam no educativo e em projetos de pesquisa, mas isso se ampliou consideravelmente nos últimos anos. Neste último ano nós tínhamos 56 bolsistas estagiários trabalhando em vários setores que eram as atividades-fim do museu. Ligados à curadoria, à produção de exposições, à comunicação, à educação, à pesquisa, junto ao acervo do museu, ao laboratório de conservação, à seção de catalogação. E tentamos dar mais visibilidade para isso. 

Outro aspecto importante, que também se agrega ao ímpeto e à atitude que nós tivemos em relação à crise humanitária que estávamos vivendo – aliás, nós estamos vivendo ainda –, foi justamente o trabalho em colaboração com outras instituições. Isso nós fizemos com o ciclo 1922: Modernismos em Debate, como eu disse; em relação à nossa participação na mostra da Regina Silveira junto à 34ª Bienal de São Paulo; e com iniciativas que tivemos com o MAM-SP, que nós já tínhamos tido uma colaboração em 2018, quando o MAM comemorou 70 anos. Tivemos um desdobramento nisso na exposição Zona da Mata, que acontecia nos dois espaços e, agora, não é à toa que receberemos o 38º Panorama da Arte Brasileira (a partir de 5/10). Tudo isso vem desse raciocínio, desse trabalho colaborativo, e isso nos ajuda também a reavaliar a nossa relação com essas instituições irmãs, que são mesmo uma família de instituições.

Então é fundamental explicitar que o programa curatorial, sobretudo o trabalho de curadoria do museu, é um trabalho coletivo. Acho que essa foi outra marca bem importante da gestão. E não só por essas iniciativas de parcerias com outras instituições, mas também pensando, por exemplo, que a nova exposição de longa duração do museu – que é onde a cada cinco anos revemos a apresentação das nossas coleções para o grande público – foi feita em um processo ainda mais coletivo do que já era antes. Dessa vez atuaram seis curadores com um comitê consultivo curatorial e com suas especialidades para nos ajudar a reavaliar o acervo. E esse modo de trabalhar termina, por exemplo, com as equipes do museu, sobretudo de produção, conservação, documentação, educação e comunicação, atuando sob a coordenação da Marta na exposição Acervo Aberto, que abriu logo após o final da nossa gestão, mas que foi toda pensada ao longo do último período dela.

Por fim, penso que outro projeto que teve muita visibilidade foi o que curamos para o espaço da Clareira, que conseguimos organizar sempre nos segundos semestres, entre 2021 e 2023, e que envolvia a ocupação daquele vão mais alto, de pé direito duplo, no térreo do museu. Primeiro com uma instalação de artes visuais, com a exposição dos trabalhos do Angelo Venosa, que foi a última individual que ele fez antes de falecer. E com um conjunto de ações que aconteciam toda semana ao longo do semestre e que convidava escritores, dramaturgos, cineastas, bailarinos, performers e atores para apresentar alguma coisa naquele contexto. Isso foi bem interessante porque já havia um desejo muito grande do museu de ter espaço para outras formas de manifestação artística e isso só tinha acontecido muito timidamente, com um programa de música para o museu. E isso naquele lugar da Clareira – o que é devido integralmente ao raciocínio de arquiteta da Marta –, nessa porosidade do espaço, no térreo, na entrada, no espaço de acolhimento do museu, em que todas essas formas de manifestação artística se encontrassem. Enfim, foi um desafio para nós, porque isso era novo no museu, mas foi muito bem sucedido, no sentido de trazer essas outras vozes para o MAC USP e também de nos ajudar a reavaliar o programa curatorial do museu, a rever a coleção e entender também a relação do museu com o chão da cidade, a relação dele com o parque.

No ano passado o MAC USP recebeu da Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA) o Prêmio Emanuel Araújo, destinado ao reconhecimento de coleção, acervo, conservação e documentação histórica. O prêmio ressalta o tamanho e importância do acervo do museu e o trabalho que é feito com ele. A partir disso, gostaria que você falasse um pouco sobre esse trabalho constante de salvaguarda e ativação de um dos mais importantes acervos de arte moderna e contemporânea do Brasil. Como foi esse trabalho na gestão de vocês? 

Em nome do MAC USP, nós ficamos de fato muito sensibilizados com o prêmio. Porque é lógico que o acervo já é conhecido como um grande acervo brasileiro, mas a premiação reconhece, mais do que isso, o trabalho feito pelas equipes do museu com este acervo. Porque os acervos não falam sozinhos. Eles precisam de gente, de projetos de pesquisa, de colaborações, de pesquisadores, de cabeças pensantes para ativá-los. Então eu acho que existe aí um reconhecimento da produção acadêmica do museu na difusão do seu acervo. 

E isso se dá por ferramentas como, por exemplo, as duas grandes parcerias internacionais que fizemos. Uma com a Getty Foundation (EUA), em um projeto chamado Connecting Art Histories, que em 2021 resultou em um webinário de pesquisa com estudantes de pós-graduação, do qual saiu uma primeira revisão do acervo do MAC USP. No contexto daquele seminário convidamos três curadores – o Igor Simões, a Diane Lima e o Claudinei Roberto – para visitar o acervo do museu e reavaliá-lo, digamos assim. Eles foram puxando listas de leituras possíveis, por exemplo, dentro de um contexto de questões afro-diaspóricas, de racialidade, que a gente até então não tinha propriamente uma especialidade para ver. E, para além disso, a colaboração do Igor e do Claudinei foi longeva com o museu. 

E o outro projeto internacional importante, que são na verdade dois projetos combinados, foi o com a Terra Foundation for American Art, com quem nós já tínhamos tido uma parceria para a realização de uma exposição em 2019. Dessa vez foi uma parceria de apoio a uma disciplina de pós-graduação em Estética e História da Arte, em que questões da diáspora africana, da arte indígena e das migrações são tratadas num estudo comparativo entre Brasil e Estados Unidos – mas que se amplia para o mundo, pois estamos falando das Américas em relação ao Atlântico, à África e à Europa. E trouxemos colegas do mundo inteiro para dar aulas – só no último semestre tivemos 11 convidados internacionais. E há outro projeto com a Terra que é o do Collection-in-Residence, que é a coleção da Terra em residência no MAC USP. E a seleção nasce justamente das trocas com esses pesquisadores, dentro da coleção da Terra, que vai ficar dois anos em cartaz no museu, sendo mobilizada através de cursos de extensão, disciplinas de graduação e de pós-graduação. E que, ao mesmo tempo, nos leva a pensar em ter outras coleções residentes no museu. 

Pensando ainda no acervo, há uma nova exposição abrindo agora, Experimentações Gráficas, que é feita a partir da doação de uma nova coleção para o museu. Isso acontece com regularidade? Como tem funcionado esse aspecto das doações, aquisições, ou seja, da incorporação de novas obras ao acervo do MAC USP?

Historicamente, o MAC USP é um museu que foi feito de grandes doações, sendo os artistas os principais atores nessa história. Porque eu acho que o MAC USP tem essa reputação de ser um museu dos artistas e um museu da memória dos artistas. A mostra Experimentações Gráficas nasce da doação de um conjunto de 82 objetos, que são publicações, livros, revistas ilustradas, que foram selecionadas a partir do trabalho de uma pós-doutoranda minha, a Renata Rocco, que é uma das curadoras da mostra, que fez essa seleção dentro da coleção Ivani e Jorge Yunes. E a coleção doou essas obras para o museu no ano passado. Isso é fruto de um trabalho que não nasceu ontem, porque a Renata fazia parte de um grupo de pesquisa no qual, desde 2018, com a presença de outra pós-doutoranda, a Patrícia Freitas, nos dedicamos a entender a arte nesse campo expandido das artes aplicadas.

Nessa chave organizamos três mostras. A primeira foi Projetos para um cotidiano moderno no Brasil, 1920-1960, que era só acervo do MAC USP com alguns empréstimos pontuais para iluminá-lo. E dessa exposição nasce nossa retomada de conversa e negociação com o casal Leirner para a doação da coleção de art déco, que aconteceu em 2020 e resultou em uma importante exposição em 2022/2023. E isso para o museu foi uma coisa inédita, quer dizer, receber o mobiliário da Casa Modernista do Warchavchik, ter as poucas peças têxteis da Regina Gomide Graz que estão em acervo público no Brasil… acho que só nós temos peças fundamentais. Por exemplo, Mulher com Galgo, que é, como diz minha colega Ana Paula Simioni, uma das grandes obras do modernismo brasileiro dos anos 20. Então, isso é superimportante. E Experimentações Gráficas também vem nessa chave. 

Então eu diria que uma preocupação do museu foi de tentar, primeiro, entender outras perspectivas de colecionismo. Então, todo o debate em torno das diásporas africanas, que veio desde o projeto do Getty, em 2021, resultou também em doações importantes de artistas negros brasileiros para a coleção, como o Sidney Amaral e o Sérgio Adriano. Houve também a doação que aconteceu em 2023 de uma obra do Denilson Baniwa. E nós entendemos também que a chegada da Fernanda Pitta como professora do museu, em 2022, vai trazer outras possibilidades de doação nessa chave.

É interessante falarmos destes artistas mais contemporâneos porque, por vezes, quando se pensa em acervo de museus se imagina uma coisa de obras antigas. Então eu gostaria de te perguntar como foi esse diálogo, seja em exposições, editais ou aquisições, com os artistas mais jovens, ou enfim, que surgiram mais recentemente na cena artística. Houve também essa preocupação durante estes anos?

Eu acho que sim. Isso estava explícito no programa da Clareira; era muito claro também nos processos da mostra Lugar comum; e isso está agora no programa de exposições temporárias que o museu recebe, que são propostas externas que o MAC USP seleciona para exibir. E é também muito evidente em um edital para jovens artistas que nós temos desde 2020, e que está agora na terceira edição. Com ele selecionamos exposições, três propostas de artistas que não tiveram a oportunidade de fazer, nos últimos anos, nenhuma exposição individual em um museu de São Paulo. 

Para finalizar, queria saber como foi a transição da gestão, agora com o José Lira e a Esther Hamburger. É um projeto de continuidade, não de rompimento. Pode falar um pouco desta transição e de quais você acha que são os principais desafios que ficam para eles nesse momento?

Quando eles apresentaram o programa, eles mesmos o fizeram como uma carta de intenções respeitando o projeto acadêmico do museu. O que é muito importante para nós porque, como unidade de ensino, pesquisa e extensão da USP, nós somos um instituto como qualquer outra unidade da universidade. Então nós temos que ter uma vida, enfim, em continuidade. Nós recebemos alunos, temos programas de pós e assim por diante. E acho que a chegada do José Lira e da Esther Hamburger vem só a somar com as questões que o museu vem colocando. Na carta de intenções, que apresentaram na candidatura, falam de um colégio das artes. Eu imagino que o professor José Lira vai discorrer melhor sobre isso com você.

E na nossa leitura isso tem uma ressonância com uma intenção do museu de ser esse espaço de um debate interdisciplinar sobre várias questões. Então, por exemplo, uma das coisas que eles vão certamente nos apoiar muito é num grande projeto que nós temos em vigor agora, um projeto grande que nós ganhamos da FAPESP no ano passado, que é para a instalação de um laboratório de ciência do patrimônio. Para isso, estamos com Márcia Rizzutto, uma colega da física nuclear, que contribui conosco há mais de 15 anos em projetos de pesquisa, como professora em vinculação com o museu para montagem desse laboratório e isso nos coloca em rede com outras sete unidades da USP (como Poli FAU, FFLCH e os museus Paulista e de Arqueologia e Etnologia) para debater questões da conservação em uma perspectiva interdisciplinar. Montar esse laboratório que, quando estiver estruturado, vai poder prestar serviços a outros museus de São Paulo, e isso é uma estrutura única, não existe um outro laboratório assim no Brasil.

E a ideia do Colégio da Artes, que virá com a gestão do Lira e da Esther, é justamente de trazer para perto diferentes departamentos da USP e até projetos de fora dela, ou seja, está diretamente ligada a este foco no trabalho interdisciplinar… 

Sim, o Colégio das Artes pode realizar ainda mais uma coisa que para nós era bem importante, que era dar visibilidade a estas conexões, estas relações que o museu tem com o campo da pesquisa em várias áreas de conhecimento. Isso atravessa, por exemplo, seminários e projetos que tivemos e temos com profissionais de várias áreas, inclusive com botânicos, físicos ou matemáticos.  

Jornal do Mundo

R. Trompaz

A galeria Martins&Montero, situada na rua Jamaica 50, reuniu, entre 10 de agosto e 14 de setembro, 28 obras de Trompaz, um artista/ativista das questões sociais que dá voz a traços carregados de gestualidade. Nascido no Capão Redondo, bairro do extremo sul da capital paulista, ele cruza a cidade seguidamente a pé ou de skate. Sua obra acumula desde gestos de matrizes africanas a signos próprios das grandes metrópoles desenvolvidos, em sua maioria, com pigmento em pó e verniz acrílico sobre papel ou com guache e nanquim. Criar é um ato cotidiano e contínuo que se desdobra em grafismos aparentemente desconectados, mas unidos por uma gramática enigmática e pessoal. “Essas obras abordam um tema que venho explorando há muito tempo, o SSGE – Segregação Social Geograficamente Escancarada. A exposição, que tem a curadoria de André Pitol, leva o nome Jornal do Mundo devido à apropriação que fiz de um livro, que comprei em um sebo, e que tinha esse título”. Trompaz sentiu uma forte conexão entre o conceito da publicação e a proposta do seu trabalho, que busca abordar questões sociais”. 

Com montagem impecável, o conjunto de obras destaca duas pinturas de grandes dimensões que se desdobram em grafismos que deslizam sobre persianas, geralmente usadas em janelas. Esse recurso dialoga diretamente com a ideia do que enxergamos através da janela, remetendo-se às questões sociais. “As persianas têm um papel simbólico importante nesse contexto, representando o que se revela – ou se oculta – no dia a dia das casas”. As pinturas em papel kraft seguem a mesma linha técnica, apresentando um aspecto de negativo. “Esse negativo tem um propósito claro: através da técnica de lavagem, revelo o que estava encoberto, aquilo que se esconde debaixo do tapete”.

Trompaz se movimenta pela cidade, com alguns papeis ou obras dentro da mochila que leva nas costas.  “Essa forma de me soltar por São Paulo me acompanha desde sempre. Todas as minhas pinturas contêm diversos símbolos e elementos que falam da relação que desenvolvi com a cidade, onde vivo por 35 anos”. Ele entende a metrópole como a mais rica do Brasil e, ao mesmo tempo, a mais desigual, onde convivem bairros extremamente ricos e outros em condições de extrema pobreza. “Esse contraste é o que busco transmitir em todos meus trabalhos, mesmo que, para o espectador, o resultado seja abstrato. Minha intenção é a de lutar contra as desigualdades sociais”.

Trompaz e a Trienal de Tijuana (México)

Para o artista, participar da segunda edição da Trienal de Tijuana, que vai até fevereiro de 2025, tem sido uma experiência transformadora. “Estar lá com artistas de 14 países é algo que ainda estou vivenciando, e tem sido verdadeiramente mágico.” Esta foi a sua primeira viagem de avião e, também, a primeira viagem internacional com o propósito de levar sua obra para fora. “Me sinto feliz por conhecer não apenas a expressão artística dos mexicanos, mas também a de todos os participantes da Trienal, muitos dos quais compartilham a mesma temática de isolamento social que permeia meu trabalho.” O fato de viver no Capão Redondo, área que sofre com fronteiras sociais evidentes entre o bairro e o restante da cidade, Trompaz diz que se identificou com várias propostas expostas na Trienal. “Tijuana reforçou a relevância do tema e a universalidade dessas questões que, infelizmente, ultrapassam fronteiras geográficas”.

Leonor Amarante é a curadora – geral da Trienal de Tijuana: 2. Internacional Pictórica

Com aumento de visitação, chega ao fim a segunda edição do Programa Público do Museu Paranaense

O espetáculo 'POPEROPERA TRANSATLÂNTICA', com o Grupo MEXA. Foto: Mar Aberto Produtora/Vitor Dias
O espetáculo 'POPEROPERA TRANSATLÂNTICA', com o Grupo MEXA. Foto: Mar Aberto Produtora/Vitor Dias

Entre as diversas ações implementadas pelo Museu Paranaense a partir da entrada de sua nova equipe de gestão, em 2019, o seu Programa Público é uma das iniciativas que melhor sintetizam as suas propostas: um projeto bienal, gratuito, com o objetivo de convidar a comunidade a se aproximar, refletir e se envolver com um assunto, de forma estendida e interdisciplinar. Não à toa, entre a primeira edição, realizada em 2022, e a segunda, que aconteceu entre maio e agosto, a visitação teve um aumento de quase 30%, com o público pulando de 20.088 para 27.520 pessoas.

O encerramento do Programa Público deste ano, intitulado Corpos ― Indícios, Matrizes ― Espécies, aconteceu entre os dias 23/8 e 24/8, respectivamente com uma oficina e uma apresentação do Grupo MEXA, de São Paulo. Criado em 2015, o MEXA explora e debate as distâncias e proximidades entre a rua e o museu, a vida e a arte, política e estética, por meio de improviso, teatro documental e criação coletiva, entre outros. Em Curitiba, o grupo apresentou a performance Poperópera Transatlântica, um espetáculo que combina elementos de ópera e da cultura noturna dos anos 1990 para narrar histórias inspiradas na Odisseia de Homero.

Diretora do MUPA, Gabriela Bettega ressalta que, entre os projetos de caráter continuativo da instituição, o Programa Público é o que melhor traduz “essa nossa vontade de fazer do museu um espaço de relações, onde se pode negociar as diferenças, onde se pode expor pontos de vista distintos sobre diversos assuntos, sem quaisquer amarras”, argumenta.

Para Gabriela, a diversidade do público que comparece ao Programa acaba por criar uma interconexão com temporalidades diferentes, um processo muito rico. “Você está discorrendo sobre um tema específico, refletindo sobre o passado, questionando ou indagando sobre o presente e tentando achar caminhos para um futuro possível. Nesse sentido, é um projeto muito especial”, pondera.

Para conceber cada edição do Programa Público, o MUPA reúne todos os coordenadores dos departamentos científicos da instituição para inicialmente discutir o tema do projeto e, depois, determinar como será a grade de programação, buscando um equilíbrio entre mesas de conversa, performances, apresentações teatrais e pequenas exposições. Em 2022, foram realizados entre 40 e 50 eventos; neste ano, 60.

Algumas das atividades provocaram surpresas no público que frequentou o MUPA. Um exemplo foi a participação da brasileira radicada na Alemanha Stefanie Egedy, que em julho apresentou a instalação sonora BODIES AND SUBWOOFES (B.A.S.). Segundo Gabriela, Stefanie criou uma composição que virou uma instalação com ondas sonoras de baixa frequência que a cada hora, por 10 minutos, “balançava o museu inteiro” com sons bastante graves, diz.

“Houve então uma preocupação enorme com o acervo, não se sabia ao certo como essa  vibração iria impactar até as instalações, a infraestrutura. A gente chamou alguém para fazer uma análise, e se conclui que a instalação não estava interferindo no estado de conservação”, lembra. “Então superamos este possível obstáculo e o público adorou a experiência”.

O Programa Público deixa também um importante legado para o MUPA: todos os encontros, as performances, as apresentações são registradas e são incorporados ao acervo documental, ao banco de dados do museu. Estão disponíveis nas redes sociais e no YouTube.

Gabriela salienta que foram quatro meses de muitos encontros, com pessoas provenientes de lugares diferentes do Brasil, para além das fronteiras do MUPA. “Motivados pelo tema do corpo, nesses encontros emocionantes que o Programa Público fomentou, tratamos da arte ao esporte, de saberes ancestrais à ciência”, pontua.

“A importância desse projeto reside na possibilidade de proporcionar ao visitante do Museu Paranaense uma programação múltipla em formato e dialógica nos diferentes campos do saber. É um projeto que prioriza exposições com foco em cultura imaterial e no papel do museu como espaço de relações”.

Vale ressaltar que as atividades do Programa Público são marcadas pela interdisciplinaridade e uma variação expressiva de tipos de evento. Alguns deles mobilizam a comunidade por ocorrerem no exterior do museu, a exemplo da performance ADAPTAT, que aconteceu nesta edição; e da performance de Uýra, apresentada em 2022. Ambos ocorreram na Praça João Cândido, em frente ao MUPA. Também é importante salientar que o MUPA realiza dezenas de ações educativas para crianças e adolescentes, desenvolvidas em conexão com o Programa Público.

Há também ações que aproximam detentores de saberes tradicionais com pesquisadores da universidade, questionando a própria concepção de ciência, caso da mesa Plantas, paisagens e conservação da vida promovidas pelos povos indígenas, realizada em 2022, com o arqueólogo Eduardo Góes Neves, a bióloga Ariane Oliveira e a pesquisadora indígena Sirlei Kaingang. Neste ano, um exemplo foi a mesa Culturas corporais das masculinidades, com os antropólogos Osmundo Pinho e Waldemir Rosa, o historiador Fernando Botton, e o dançarino e coreógrafo Khalifa IDD, que fez uma demonstração da dança Passinho.

Numa chave mais prática, o Programa Público convida o público a lidar com os assuntos de cada edição por meio, por exemplo, de oficinas. Em 2022, por exemplo, o MUPA abrigou oficina de taipa de pilão, em que os participantes construíram uma parede com terra, que foi incorporada ao jardim do museu. Neste ano, houve a oficina Corpo-máquina: um paralelo entre a robótica e a anatomia humana, em que os participantes foram introduzidos à robótica.

O Programa Público também abriga espetáculos de dança, que por sua vez pautam os assuntos escolhidos para cada edição, mas tocam as sensibilidades do público de outras formas, caso de Jardim Noturno, do Laboratório Siameses, apresentada na primeira edição; e de Hagoromo – o manto de plumas, com a dançarina de butoh Emilie Sugai, montada em 2024.

A PRIMEIRA EDIÇÃO 

A edição de 2022 teve como título Se enfiasse os pés na terra: relações entre humanos e plantas. Ao longo de 115 dias, o Programa se debruçou sobre práticas tradicionais, artísticas e de pesquisa acerca das plantas e humanidades. Alguns verbos ajudaram a nortear a programação: cuidar, habitar, transformar, saber, nutrir, regenerar e compartilhar. Tendo-os em mente, a equipe do MUPA buscou elencar quais atividades entre seres vegetais e humanos gostaria de ressaltar.

Daí resultaram, por exemplo, as participações do povo Huni Kuin, cujos cantos xamânicos embalaram a noite de pintura e performance do coletivo MAHKU; e a pintura de grafismos Mebegokre-Kayapó feitos por Kokodjy Kayapó, Moxare Kayapó e Bekwynhtokti Kayapó com jenipapo. A edição inaugural do Programa Público teve ainda uma mesa redonda sobre investigações científicas e artísticas sobre plantas com a antropóloga Karen Shiratori, os artistas Santídio Pereira e Alex Červený, e da curadora da Fondation Cartier pour l’Art Contemporain, Marie Perennès, por meio de vídeo.

Em agosto, foi lançado o catálogo da edição inaugural do Programa Público, uma publicação de mais de 400 páginas, que compila as ações realizadas: há transcrições de falas de artistas e pesquisadores, receitas, listas de plantas, relatos e ensaios e demais textos inéditos de participantes e equipe, além de um amplo conjunto de fotografias. Além da versão física, já está disponível a versão online no site do MUPA.

OUTROS DESTAQUES DE 2024

Na segunda edição de seu Programa Público, o MUPA também recebeu a apresentação da obra audiovisual O Peixe, de Jonathas de Andrade, que participou ainda de uma mesa redonda. Em entrevista à arte!brasileiros, Andrade afirma que O Peixe fala sobretudo das relações interespécies, e de como nos como nós, seres dominantes neste planeta, fazemos uso da natureza de forma irresponsável e despudorada.

“Como se não houvesse amanhã. Esse xeque-mate vem se intensificando mais e mais nos últimos anos, em tantos e tantos sinais como as chuvas torrenciais, o aquecimento global etc. Esses desastres tem relação direta com as politicas que afrouxam a proteção às florestas e a seus povos, e liberam o desmatamento e criação de pastos sem fim”, diz.

Andrade ressalta que eventos como estes do MUPA são oportunidades fundamentais de cultivar conversas em torno da arte, promover encontros entre artistas e com o público. “Eu não vinha a Curitiba há muitos anos e acho que esse tipo de intercâmbio fora do eixo SP e Rio é crucial para que tenhamos uma rede nacional mais diversificada e descentralizada”, afirma. “Aprendo muito com trocas como essa, com os comentários e perguntas da plateia. Sem dúvida me levam a maturar meus próximos passos e projetos.”

Outro destaque do projeto nesta segunda edição foi a exposição Lenora de Barros: Fogo no Olho. No dia da inauguração, houve também uma mesa redonda com Lenora, Pollyana Quintella (online) e mediação de Bruna Grinsztejn. Em entrevista à arte!brasileiros, Lenora afirma que foi “uma surpresa maravilhosa”, que ficou “encantada” com o MUPA e o trabalho que a instituição vem realizando por meio do diálogo entre o acervo do museu e a arte contemporânea.

“Pena que foram só dias, tenho planos de voltar logo”, afirma. “Fiquei surpresa, no melhor dos sentidos, com a participação das pessoas, muito interessadas, fazendo perguntas estimulantes. Também me chamou a atenção o grande número de atividades e as publicações muito bonitas. Enfim, tudo impecável”.

 

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Exposição “Lia D Castro: em todo e nenhum lugar”

“Todo e nenhum lugar” é a primeira individual de Lia D Castro em um museu. Em cartaz no MASP até 17 de novembro de 2024, a mostra reúne 36 obras produzidas entre 2013 e 2024, assim como registros de seu processo de trabalho.

A exposição integra a programação anual do MASP dedicada às Histórias da diversidade LGBTQIA+ e é curada por Glaucea Helena de Britto, curadora assistente, e Isabella Rjeille, curadora, MASP.

Ancestralidade e contexto no Prêmio PIPA

PIPA 2024
Nara Guichon, Aline Motta, enorê, Aislan Pankararu: Abertura das exposições PIPA 2024, Foto: Fabio Souza

Os artistas vencedores do Prêmio PIPA 2024 são Aislan Pankararu, Aline Motta, enorê e Nara Guichon. Eles fazem parte de exposição no Terreiro do Paço Imperial, no centro do Rio de Janeiro, que ficará em cartaz até 20 de outubro. Na sala ao lado, uma mostra relembra os 15 anos do PIPA com obras de parte dos artistas premiados em outros anos, como Berna Reale, Paulo Nazareth, Renata Lucas, Arjan Martins, Éder Oliveira e Denilson Baniwa.

O Instituto Pipa foi criado por Lucrécia e Roberto Vinháes, ela com background de arquiteta de interiores e produtora de exposições, ele um investidor, além de patronos das artes. O curador do instituto é Luiz Camillo Osório, ex-curador do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, professor e atual diretor do departamento de filosofia da PUC Rio. Os premiados são escolhidos por um júri do instituto depois de passarem por indicação de um comitê de profissionais, renovado a cada ano. O prêmio serve também para orientar a formação da coleção de arte do instituto, com negociações de aquisição que podem acontecer no processo. 

A cada ano, quatro artistas têm sido escolhidos pelo PIPA e recebem os holofotes. Este ano, ganham R$ 15 mil em doação cada um, verba que ajuda a custear obra e transporte para sua participação em exposição coletiva. Se o valor monetário parece pequeno, é bom lembrar a dificuldade de sustentação e financiamento que os artistas visuais enfrentam num país como o Brasil, que mantém na miséria suas instituições educacionais e culturais, inclusive seus museus, enquanto a indústria de apostas (bets, no anglicismo habitual) fatura R$ 68,2 bilhões em doze meses. 

Sobre os premiados deste ano, é preciso mencionar ancestralidades e contextos pois são eles que alimentam a sua criação artística.

Aislan Pankararu é um indígena do sertão semi-árido pernambucano, nascido em Petrolândia em 1990. Sua aldeia mãe é o Brejo dos Padres. Durante o processo de colonização e aculturação, seu povo perdeu a língua original, mas manteve a espiritualidade, o culto aos encantados, a pintura corporal em argila branca e certos rituais. Esse povo carrega a história do deslocamento forçado às margens do rio São Francisco, do alagamento para  construção de hidrelétrica e da destruição da cachoeira onde se relacionava com os ancestrais.

Aos 17 anos Aislan saiu da casa dos pais, fez vestibular e foi estudar medicina em Brasília. Em seus depoimentos, conta que ali percebeu o racismo estrutural nos questionamentos sobre ser indígena, o lugar do indígena como objeto de estudo na universidade, mas nem sempre bem-vindo como presença. Sentiu falta do bioma da caatinga. Na república em que vivia, começou a aliviar as dores e nostalgias de forma ritualística, pintando com escova de dente e guache em papel kraft. Uma forma de se reconectar com seu povo, cultura e geografia.

Seu trabalho, diz ele, é exaltar o índio sertanejo, de alta estatura, que se pinta com um elemento sagrado que é a argila branca retirada de local específico. Em suas pinturas aparecem elementos da cosmogonia pankararu, seus praiás (máscaras rituais), as entidades, os mensageiros entre a Terra e o céu, os ritos festivos, o mandacaru, o flechamento do umbu, a caatinga, assim como aparecem referências ao mundo da biologia e da genética, as células vivas e que respiram. 

Enorê nasceu na cidade do Rio de Janeiro em 1992, é graduado em pintura pela Escola de Belas Artes da UFRJ mas vive e trabalha em Londres. Ele transita entre mídias digitais e processos físicos. Faz impressão cerâmica 3D mas considera seu trabalho interdisciplinar, envolvendo desenho e pintura, às vezes vídeo e projeção, além de scanner e da impressora de onde saem cabeças, rostos e mãos. 

Em seu depoimento para o PIPA ele fala sobre desafiar ou cruzar diferentes temporalidades, das coisas que não se dissolvem, não se destróem, “ficam nessa recursividade da existência”. Como funcionariam esses fantasmas digitais, sair da tela e voltar, serem construídos, dissolver de novo e serem construídos novamente. Embora esteja falando do próprio trabalho, o artista parece falar também da vida na era digital.

Suas obras recentes trazem títulos como Glitch 3 (rosto destruído); frio ao toque; ao perder seu corpo; dissolução; são todos você (aparição); Tudo que consigo segurar (fragmentos). Ele escreve muitos títulos com letra minúscula, e é também assim que grafa seu nome. 

A gaúcha Nara Guichon, nascida em Santa Maria, em 1955, mora no sul da ilha em Florianópolis desde os anos 1980, e fez uma vida dedicada ao tricô, crochê, bordado e tecelagem. Recebeu prêmios de design de instituições como o Museu da Casa Brasileira. Nara também é uma conhecida ambientalista, atuou na recuperação da Mata Atlântica e se dedica à coleta e ao reuso de redes de pesca de poliamida (petróleo) abandonadas no mar. Essas redes respondem por metade da poluição mundial dos oceanos.

Seu impressionante trabalho artístico tem sido desenvolvido, em suas palavras, com “o material que está aí à deriva”. Ela reutiliza as redes de pesca com novas oxidações e pigmentações naturais, as tricota, articula com arames, sacos plásticos e tecidos industriais refugados. Sua obra escultórica tem formas orgânicas que evocam a natureza do planeta, a vida vegetal, animal e mais especificamente a paisagem do fundo do mar. 

“Minha necessidade é trabalhar pedindo socorro pelo planeta. A minha arte é portentosa porque o lixo oceânico é portentoso”, explica.

Aline Motta nasceu em Niterói em 1974, estudou cinema e trabalhou como continuísta até abraçar a carreira artística e se mudar para São Paulo. Ela vem de uma família inter-racial e se dedica a extensas pesquisas iconográficas e documentais antes de criar suas obras. Encontrou indícios de que uma tataravó nasceu por volta de 1855 numa fazenda em Vassouras, epicentro do escravismo brasileiro naquela época. 

Assim como Aislan Pankararu, Aline traz sua ancestralidade à obra. “Muito do meu trabalho é sobre minha própria família, especialmente sobre a minha avó”, gosta de dizer. Para ela, “linhagem é linguagem”. 

Na exposição do PIPA, Aline Motta mostra Corpo Celeste III, de 2020, uma instalação em que são projetados no chão desenhos e provérbios das línguas africanas kikongo e umbundu, trazidas ao Brasil e outros países americanos com os escravizados vindos da região do Congo e de Angola.

A principal referência dessa obra é o chamado cosmograma bakongo e os diagramas conhecidos como pontos riscados, usados na umbanda para invocar entidades espirituais. Bakongo significa literalmente “povos kongo”. Sua língua é o kikongo. O cosmograma bakongo é uma espécie de mandala também conhecida como “diekenga”, que representa simbolicamente os grandes ciclos do sol, da vida, do universo e do tempo. Uma cruz divide o círculo em quatro etapas ou tempos. Uma linha horizontal, também chamada kalunga, representa o mar ou a separação dos mundos dos vivos e dos mortos.

Na animação de Aline Motta, aparecem o sol, a lua, estrelas, cruzes, caramujo, cobra coral, jabuti, tatu, embarcação e provérbios. Entre os provérbios estão: “O fogo não é mais forte que a água, a panela é que põe barreira”; “Princípios antigos, para compreender os novos”: “Luar claro não é sol”. A obra foi criada em colaboração com o percussionista Rafael Galante e pertence à Coleção Pinacoteca de São Paulo.

É curioso que essa exposição esteja sendo exibida no Terreiro do Paço, sala dos empregados do edifício inaugurado em 1743 como Casa dos Governadores, transformado em casa de despacho do Vice-Reino do Brasil em 1763, quando a sede do Vice-Reino foi transferida de Salvador para o Rio de Janeiro, e promovido a Paço Real em 1808, com a chegada da família real portuguesa. Durante o reinado de Pedro II o terreiro dos empregados foi transformado em oficinas artísticas para o alemão Ferdinand Pettrich e o francês François-Auguste Biard, respectivamente o autor da primeira estátua em mármore feita no Brasil (Imperador em trajes majestáticos) e o pintor de vários retratos da família imperial.

O edifício foi sendo ressignificado ao longo dos anos, sediando a Casa da Moeda, o Real Armazém, registrando fatos históricos como coroações, o Dia do Fico, a Abolição da Escravidão e a Proclamação da Independência do Brasil, até ser tombado pelo Patrimônio Histórico em 1938 e se tornar um centro cultural em 1985 vinculado ao IPHAN. Chegou o dia em que não é mais a história dos poderosos a passar-se ali, mas sim a imaginação e as visadas contemporâneas de artistas, eventualmente a revisitar fatos do passado, agruras do presente e a escancarar a diversidade cultural que o processo de dominação e exploração procurou e ainda procura apagar e massacrar. 

Maior museu de arte sacra do país, em Salvador, é fechado

Museu de Arte Sacra da Bahia Foto: Wellington Da Costa Gomez

Museu de Arte Sacra da Bahia (MAS), cuja sede fica num antigo convento de Salvador, tem problemas estruturais e o acervo corre sérios riscos, adverte universidade

Depositário da maior coleção de arte sacra barroca da América Latina, o Museu de Arte Sacra (MAS) da Bahia vive dias de angústia em Salvador. Fechado preventivamente no último dia 10 de agosto pela reitoria da Universidade Federal da Bahia (UFBA), sua gestora, por problemas estruturais, a instituição vive sob uma ameaça que já se torna frequente no cenário da museologia nacional.

O reitor Paulo Miguez explica que o fechamento do Museu se tornou imprescindível como forma de prevenção de uma catástrofe semelhante à do incêndio no Museu Nacional, vinculado à UFRJ, que ocasionou perdas imensuráveis e irreparáveis ao patrimônio histórico do país.

A decisão foi chancelada pelo Conselho de Ensino Superior em 30 de julho deste ano. “Em um cenário de perdas orçamentárias às Instituições de Ensino Superior, que se acumulam ao longo dos anos, não há verba para o custeio da recuperação do Museu”, informou a nota divulgada pela UFBA.

A nota evidencia quão delicado é o caso do Museu de Arte Sacra (e seu acervo), e o quanto precisa de uma intervenção urgente. O museu é tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico Artístico Nacional (Iphan) desde 1938. Em 1985, foi declarado Patrimônio da Humanidade pela Unesco. A coleção do Museu é composta por pinturas, azulejarias, ourivesaria, mobiliários, imaginárias religiosas, peças de prata pura e outros objetos que não tem similares em outras instituições. As obras do acervo permanente abrangem peças dos séculos 16, 17 e 18 e parte do século 19.

O Museu Nacional do Rio de Janeiro, também vinculado a uma universidade federal, foi destruído por um incêndio em 2018 (reconstruído, vai ser reaberto ao público em 2026).

Como se trata também de uma instituição ligada a uma universidade federal, portanto dependente de repasses de recursos federais, a reportagem de arte!brasileiros procurou o Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), órgão ligado ao Ministério da Cultura, para saber como o governo acompanha o caso do MAS. “Esclarecemos que Instituto Brasileiro de Museus – Ibram – não tem gerência administrativa sobre o Museu de Arte Sacra de Salvador, nem informações sobre os motivos que levaram ao seu fechamento ou sobre o estado de preservação do acervo do museu”, informou a assessoria de Comunicação do Ibram, que também asseverou que o instituto “irá verificar,junto à UFBA, qual a atual situação do acervo do Museu e avaliar que medidas serão necessárias”. Recentemente, houve um corte de R$ 1,28 bilhão do orçamento da Educação pelo governo federal, e as dotações orçamentárias anuais das universidades federais consequentemente caíram, o que não projeta bons presságios para o MAS.

A diretora do MAS, Maria Herminia Olivera Hernández, garantiu que não há riscos ao acervo e informou que o edifício que abriga o museu (cuja área total é de 5.261 metros quadrados) já está sendo objeto de obras emergenciais empreendidas pela universidade, e busca os apoios da prefeitura e do governo estadual para prosseguir com os trabalhos. “Esperamos que outras instituições públicas e privadas se somem ao esforço de restaurar este valioso patrimônio cultural”, disse ela à publicação Metro1. O museu, localizado na Rua do Sodré, próximo à Praça Castro Alves, no antigo Convento de Santa Teresa D´Ávila, e possui uma igreja em seu interior, com altar-mor de prata, proveniente da antiga Sé, demolida em 1933. Há também sacristia, coro, capela interior, refeitório e biblioteca com cerca de cinco mil títulos, disponíveis para consulta. O conjunto dispõe de 16 salões, 12 salas, 10 celas, corredores e galerias e duas escadarias de pedra com painéis de azulejos do século 17 nas paredes. Aberto, recebia cerca de 300 pessoas por mês.


Tour virtual pelo Museu de Arte Sacra da Bahia:

Créditos:
Projeto: TOUR VIRTUAL MAS 360
Curadoria e Coordenação: Museóloga Edjane Silva
Fotografia 360°: Henrique Muccini
Edição, Produção e Montagem: Bahia View360°
Fotografia Aérea: JP Drone e Vídeo

Exposição “Línguas africanas que fazem o Brasil” 🔒

A exposição “Línguas africanas que fazem o Brasil”, em cartaz no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, destaca a influência das línguas iorubá, eve-fom e bantu no português falado no Brasil.

Com curadoria do músico e filósofo Tiganá Santana, a mostra apresenta desde palavras de origem africana até obras de artistas contemporâneos.

Entre os destaques estão peças de J. Cunha, trabalhos de Rebeca Carapiá e videoinstalações de Aline Motta, além de registros de manifestações culturais afro-brasileiras.

Diretor do Museu Afro Brasil, Hélio Menezes defende ‘tratar do racismo sem reencená-lo’

Frequentador e pesquisador no Museu Afro Brasil há cerca de 12 anos, o curador, gestor cultural e doutorando em Antropologia Hélio Menezes, 37, assumiu a direção artística do “mais brasileiro dos museus” – como afirma –, há cerca de cinco meses, após ser um dos curadores da 35ª Bienal de São Paulo (2023), curador de Arte Contemporânea do Centro Cultural São Paulo (2019-2021) e cocurador da destacada mostra Histórias Afro-Atlânticas (2018), no MASP e Instituto Tomie Ohtake, entre outras. Quase dois anos após a morte de Emanoel Araujo (1940-1922), criador e diretor desde o início do Museu Afro Brasil (que agora leva também seu nome), Menezes chega à instituição no ano em que ela completa 20 anos, com uma série de planos para intensificar a conexão com a produção contemporânea – tanto artística quanto intelectual – e criar canais mais intensos e efetivos de diálogo com o público e a sociedade.

Para Menezes, o Museu Afro Brasil foi um grande “berçário”, “muito capaz de gerar uma geração de profissionais”, mas não foi capaz de mantê-la por perto ao longo do tempo. Criou e fomentou um campo de debate sobre a riqueza da produção afro diaspórica, sobre o racismo e decolonialismo, mas perdeu algum protagonismo no debate. Com uma coleção vasta e extremamente rica, de cerca de 10 mil obras de arte e mais milhares de livros e documentos, o museu já passou por algumas mudanças expográficas desde a entrada de Menezes, mas sempre respeitando o legado e os conceitos desenvolvidos por Emanoel. Entre elas, “arejou” o espaço com a retirada de alguns objetos, especialmente àqueles ligados a violência mais explicita da escravidão – como peças de tortura, por exemplo. “Para abrir literalmente espaço para mais narrativas, que não tentem subsumir a história afro brasileira ou afro diaspórica à escravidão. Não se trata de negá-la, mas de enfrentá-la a partir de estratégias que não busquem reencenar a dor.”

Vinculado à Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo, com um repasse anual de R$ 13 milhões, e visitação de 150 mil pessoas em 2023 (e 100 mil este ano, até o momento), o museu apresenta atualmente, além de um pequeno espaço de tributo a Emanoel, quatro mostras temporárias: “Entre linhas: Aurelino dos Santos e Rommulo Vieira Conceição”, “As vidas da Natureza-Morta”, com curadoria de Claudinei Roberto da Silva, “Artistas contemporâneos do Benin”, a partir do acervo da instituição, e “Wagner Celestino: caminhos do samba”.

A arte!brasileiros esteve no museu para entrevistar Hélio Menezes, que falou sobre estes e outros assuntos, entre eles a localização de um “museu disruptivo” em meio a uma das regiões mais ricas da cidade e os planos para a celebração dos 20 anos. Ao longo de um ano, a partir de outubro, a instituição organizará uma série de encontros, debates e mostras, relacionados à sua história. Entre elas, “A história do poder na África”, com curadoria de Vanicléia Silva-Santos, e uma grande mostra a partir do acervo de “arte popular” do museu – chamada também arte naif, arte bruta ou arte do inconsciente. “São expressões que serão debatidas, porque sempre colocam uma adjetivação à palavra arte, quase como uma maneira de negá-la”, afirma ele. O fato é que muitas exposições relembrarão mostras passadas, que ajudaram a constituir o acervo do museu, enquanto outras pretendem apontar caminhos para seu futuro.

Por fim, ao falar da potência crescente de uma produção intelectual e artística negra no país – “não se consegue mais falar com propriedade sobre a produção artística contemporânea se não se passa pela produção brasileira” – Menezes também não se ilude quanto ao papel da arte, por si só, como solução para problemas estruturais da sociedade. “Essa dívida que é social, que é econômica e também cultural, ela não se resolverá apenas a partir do campo da arte e da cultura, embora esse campo seja fundamental para a elaboração de novas visões, de uma elaboração mais crítica a partir dos sentidos”, conclui.

Leia a entrevista completa abaixo.

ARTE!✱ – Hélio, você assumiu a diretoria do Museu Afro Brasil há quase cinco meses. Queria começar perguntando como tem sido o trabalho, um pequeno panorama. O que já foi possível entender, fazer e planejar?

Hélio Menezes – Talvez seja importante voltar um pouquinho no tempo. Eu comecei a minha pesquisa sobre o museu há cerca de 12 anos, a partir sobretudo de investigações de cunho acadêmico. Então, dediquei meus anos de graduação, iniciação científica, mestrado e doutoramento ao próprio museu – à curadoria do Emanoel e ao Museu Afro Brasil. A minha pesquisa inicial se deu sobretudo a partir das exposições curadas e organizadas pelo Emanoel que culminaram no Museu Afro Brasil, 15, 20 anos antes de sua abertura. Não necessariamente ele tinha isso em mente, esse objetivo predeterminado de que elas criariam o museu. E pesquisar essas exposições me levou à conclusão de que elas construíram o acervo da instituição. Então, o museu é uma espécie de reunião dessas experiências curatoriais e pesquisas que lhes antecederam. Ou seja, de alguma maneira, eu já conhecia com profundidade as histórias da composição de boa parte deste acervo.

Então isso acabou sendo uma um ponto facilitador para mim, porque se trata de um museu bastante complexo, cujas histórias remontam a décadas antes da sua própria fundação, à formação da coleção pessoal do Emanoel, à formação institucional do museu. É uma instituição bastante desafiadora para quem não a conhece, pelo seu tamanho, pela sua complexidade, por abordar uma série de temas e de artistas que não figuravam – e muitos ainda não figuram – nos principais manuais, livros ou cursos de história da arte do Brasil. É um museu disruptivo. A sua coleção é disruptiva e, por isso, necessariamente demanda do frequentador, do interessado, da interessada, um engajamento, inclusive emocional, mais intenso, mais denso.

E nesses cinco meses eu me concentrei especialmente, em primeiro lugar, em ouvir os funcionários do museu, das diferentes áreas. Foram semanas de muita escuta, leitura dos relatórios e dos organogramas. Isso me permitiu criar um diagnóstico dos desafios mais urgentes e daqueles desafios que precisam ser enfrentados com o tempo. E que diagnóstico é esse? Eu diria que o museu tem a necessidade mesmo de uma série de modificações que são de ordem operacional, de ordem interna, que diz respeito à criação de fluxos de trabalho, protocolos, de redesenho de um organograma de modo a ser um museu mais funcional. Há uma série também de pesquisas, sobretudo de documentação, de história das exposições, história das obras, trajetória da formação do acervo, que precisam ser tornados públicos, que precisam estar disponíveis à consulta e a pesquisadores. Então, há toda uma dimensão pouco visível ao público que me tomou boa parte do tempo e que certamente tomará os próximos anos.

Mas há uma outra dimensão que demandou a minha atenção ao longo dos cinco meses iniciais, que aí já é mais um trabalho visível ao público, que diz respeito a uma remodelação da exposição de longa duração; diz respeito a organizar um programa curatorial e cultural para o museu; e também de repensar conceitualmente. Eu acho que esse é o maior desafio: como repensar conceitualmente o propósito, a missão do museu, o seu acervo, os seus modos de exibição.

ARTE!✱ – Você teve essa experiência recente de ser um dos curadores da 35ª Bienal de São Paulo? Claro que uma bienal tem uma duração específica, um recorte curatorial específico e grandes holofotes sobre ela, é muito diferente da rotina de dirigir um museu, seu dia a dia. Ainda assim, queria saber se você acha que traz, aqui para o Museu Afro Brasil, aprendizados específicos do que viveu ali, coisas que podem ser valorosas e úteis no trabalho no museu?

Eu diria que não só a Bienal, mas toda minha trajetória anterior de alguma maneira pavimentou essa minha chegada aqui, ainda que não fosse de modo programático. Então é claro que a Bienal tem uma dinâmica diferente da rotina de museu, mas em algum sentido bastante aproximado. O museu é muito mais desafiador, mas de alguma maneira essas duas experiências profissionais se aproximam, na medida em que numa bienal você quase constrói uma instituição inteira, por três meses. Tem que pensar em todos os aspectos. E na 35ª edição a gente se preocupou especificamente com isso, não somente da exposição stricto sensu, mas de todo o programa educacional e público; da comedoria etc., dentro de uma preocupação curatorial. Então, de alguma maneira, fazer uma bienal é quase construir uma instituição.

ARTE!✱ – Um museu temporário…

Sim, um museu temporário, por assim dizer. Agora, é claro que o museu exige outras especialidades para o seu funcionamento. Há um cuidado, por exemplo, de salvaguarda, um cuidado de conservação de obras, sobretudo pensando em conservação preventiva, diante de um espaço como o nosso, com 12 mil metros quadrados, dentro de um parque. Quer dizer, então tem outras atribuições muito mais complexas. Mas, por exemplo, eu acho que eu trago mais até uma experiência em termos de gestão em aparelho público pelo tempo que eu passei no Centro Cultural São Paulo, por exemplo, do que propriamente a Bienal.

ARTE!✱ – Quando você assumiu o museu, uma das coisas que disse é que pretendia trazer um olhar mais contemporâneo para a programação e para o acervo. Queria que falasse um pouco mais sobre isso, o que seria esse olhar contemporâneo?

Eu penso que ao longo dos 20 anos do museu ele foi uma espécie de berçário, de celeiro, dos mais importantes profissionais da arte e da cultura. Sobretudo profissionais negros da arte, da cultura e da pesquisa tiveram suas trajetórias marcadas pelo Museu Afro Brasil. Seja como pesquisadores externos, como pesquisadores da casa, funcionários, pessoas contratadas para atividades de maior ou menor duração… alguns dos nomes mais importantes da curadoria, da pesquisa, de artistas e de gestores de instituições da minha geração passaram pelo museu. O que me chama a atenção é que a instituição foi muito capaz de gerar essa geração de profissionais, mas não foi capaz de mantê-los. Esses profissionais estão hoje nas mais importantes instituições do Brasil e do mundo, mas quase nunca aqui.

Então, trazer uma maior contemporaneidade ao museu significa aproximar estes profissionais, que queremos que estejam cada vez mais envolvidos, mas é também algo sobre a composição do próprio acervo.  Ao longo desses últimos 20 anos, o Museu Afro Brasil foi uma das mais importantes instituições para fomentar um debate sobre decolonialidade, sobre produção negra contemporânea. Foi, e segue sendo, um museu que exerce uma decolonialidade muito antes desse termo estar em voga, mas a coleção, embora tenha sido alimentada e ampliada ao longo desses 20 anos, apresenta uma lacuna sobretudo dessa produção brasileira contemporânea, de autoria negra, que hoje está nas mais importantes coleções de instituições do mundo, mas não aqui.

Então trazer mais a contemporaneidade ao museu diz respeito a trazer os pensamentos mais contemporâneos sobre expografia, sobre curadoria, sobre produção artística, sobre historiografia brasileira. Esse é também um museu muito preocupado com a história e nesses 20 anos houve um florescimento da intelectualidade negra, um aumento expressivo das pesquisas historiográficas de Brasil, que precisam estar manifestas também no museu.

ARTE!✱ – Sobre o acervo, existe então um foco em aquisições neste momento?

Sim… no Museu Afro Brasil, quando falo em acervo, estou falando de três acervos que compõem a nossa coleção como um todo: um acervo museológico, um acervo documental e um acervo bibliográfico. Então, é nessas três dimensões que a contemporaneidade deve se expressar. Isso passa certamente por aquisições de novas obras. Ou seja, por estratégias para aquisição de novas obras, um diálogo mais aproximado com os artistas; uma abertura maior da nossa biblioteca, que é uma biblioteca extraordinária, mas que deve voltar a ocupar um lugar de maior interlocução com autores, com editoras, ou seja, uma frente muito ampla de expansão e revisão do acervo. E há todo um material que precisa ser continuamente renovado em termos de informações, de legendas e informações técnicas. São obras tanto documentais, quanto museológicas, quanto bibliográficas, que precisam ser continuamente alimentadas com informações sobre suas origens de doação, origem de chegada ao museu e assim por diante. Dizem respeito às características da coleção, retraçar essa história é uma missão continuada do museu, com um acúmulo de 20 anos para ser feito também.

ARTE!✱ – Tem uma citação sua muito interessante em entrevista recente à Veja: “Este é o Museu Afro Brasil e não o Museu da escravidão. Estamos buscando estratégias para falar da violência sem reencená-la. A denúncia continua a fazer parte, mas não é mais protagonista”. Isso tem a ver com o olhar contemporâneo que você quer focar? Pode falar um pouco mais…

Sim, todas essas questões fazem parte de uma visão mais ampla sobre o museu. Eu acho que quando digo que em 20 anos a historiografia, os debates curatoriais e artísticos se desenvolveram exponencialmente, muitas dessas reflexões, muitos desses debates miram o Museu Afro Brasil, naturalmente, nos demandando o que fazer diante das novas reflexões. Uma delas, de fundamental importância, diz respeito a essas imagens de controle, instrumentos de tortura, uma série de elementos que muitos museus, sobretudo os museus que têm uma certa preocupação com acervos negros ou que se denominam museus negros, muitas vezes têm as suas coleções em número expressivo. Eu acho que, embora esses objetos e imagens de controle colonial, de reencenação da violência, estejam muito presentes no nosso cotidiano como brasileiros – em grandes monumentos públicos, aqui mesmo próximos do museu, por exemplo; ou em cafeterias no centro de São Paulo é muito comum você observar reproduções de escravizados em situação de extrema violência colhendo café –, quer dizer, embora exista uma normalização dessa violência racial, não me parece que o museu seja um lugar para a reencenação disso. Acho que é um lugar para a desconstrução da naturalização da violência racial.

E, portanto, quando eu afirmo que este não é um museu da escravidão, com isso eu quero afirmar que a história afro brasileira ou afro diaspórica, de maneira mais ampla, não começa na escravidão – tem toda uma história que lhe é anterior –, não termina com o fim da escravidão e tampouco se resume a ela. É fundamental que outros aspectos da vida negra, que outros aspectos da cultura brasileira, da produção estética e artística afro brasileiras, encontrem espaço no museu para além de uma narrativa sobre a escravidão. A retirada do espaço expositivo, por exemplo, de alguns objetos de tortura, de alguns objetos de violência racial, abre espaço para uma discussão, para um debate. Esses objetos seguem disponíveis para consulta, tanto virtual quanto presencial, para quem quiser. Mas eles estão no momento retirados da exposição permanente e essa foi das primeiras modificações que fizemos nesses primeiros meses de trabalho na exposição de longa duração. Para abrir literalmente espaço para mais narrativas, que não tentem subsumir a história afro brasileira ou afro diaspórica à escravidão. Não se trata de negá-la, se trata de enfrentá-la a partir de estratégias que não busquem reencenar a dor, mas falar dela.

ARTE!✱ – Vivemos, de alguns anos para cá, um contexto em que pautas ligadas às questões identitárias, decoloniais e antirracistas ganharam grande destaque no mundo das artes e da cultura. Seja nos debates, pesquisas, na programação de instituições e até mesmo no mercado de arte. É curioso pensar, no entanto, que em meio a isso o Museu Afro Brasil – que exerce há 20 anos um trabalho intenso e que possui este acervo grandioso – não parece ter tido o protagonismo que merecia, ou poderia, ter. Já falamos sobre o distanciamento de pessoas “criadas” no museu, por exemplo. Mas eu gostaria que você falasse um pouco mais do assunto. Enfim, você concorda com este diagnóstico e, se sim, o que é possível fazer?

Essa é uma pergunta intrigante. Há mesmo algo paradoxal nesse lugar, que é de entender como que o museu foi proponente muito antes do tempo desses debates que hoje são centrais e incontornáveis em todo o mundo, mas não assumiu o protagonismo dentro deles posteriormente. E me parece que só é possível tatear uma resposta a esse paradoxo à maneira em que a gente observa que o museu, por uma série de questões, não se abriu aos canais de comunicação mais amplamente com a sociedade. Então me parece que só se enfrenta esse paradoxo aumentando esta comunicação com a sociedade e com essa nova historiografia, novos pensamentos curatoriais, com essas abordagens antirracistas e decoloniais. Quem são os atores? Quem são os pensadores? Quem são os artistas que estão nesse campo?

Quando você cita Histórias Afro-Atlânticas, que eu fiz parte, você me fez lembrar que, meses antecedendo a abertura dessa exposição, eu estava visitando aqui o museu e o Emanoel Araujo perguntou: “Hélio, por que você está fazendo essa exposição no MASP e não aqui?”. E eu respondi para ele: “Por que é que eu estou fazendo a exposição no MASP e não aqui?” Eu repeti a pergunta como resposta. Demos risada e não havia resposta possível a ser colocada naquele momento. Mas eu acho, agora, seis anos depois, que é por essa dificuldade que o museu durante alguns anos enfrentou nos seus canais de comunicação justamente com esses atores todos que ele próprio ajudou a fomentar, o que não o colocou como um protagonista natural neste momento. E é esse lugar de protagonismo que estamos recuperando.

ARTE!✱ – Agora, para além desse canal de comunicação com artistas, pesquisadores, curadores etc., penso no próprio público. Sabemos que a participação, a interação e as dimensões educativas de modo geral são cada vez mais relevantes nos museus, que há tempos deixaram de ser apenas espaços de fruição. Neste sentido, como aproximar o público e trazer mais gente para cá?

Neste aspecto, uma coisa é importante destacar. O Museu Afro Brasil tem um público extraordinário, bastante expressivo. Então, mesmo com esse paradoxo do qual falamos, ele nunca deixou de despertar interesse, procura e demanda das pessoas. O que me parece um objetivo é aumentar a variabilidade desse público e, também, trazer mais pessoas, claro. Nós temos um público bastante frequente sobretudo de pesquisadores e estudantes, uma quantidade de frequentadores do Parque Ibirapuera e um certo público também estrangeiro. Isso é muito interessante, você ouve outras línguas sendo praticadas neste museu diariamente. Muita gente vem ao Brasil e quando é perguntada sobre qual museu quer conhecer, é o Museu Afro Brasil. Porque é o mais brasileiro dos museus. Agora, esse público pode ser ainda ampliado e, sobretudo, não só na dimensão de frequentador, mas de interlocutor. Para que estas pessoas, estes diletantes, visitantes, pesquisadores ou simplesmente interessados por alguma exposição ou pela história do Brasil e pela arte brasileira, também possam se comunicar ao museu. Então não é só uma dimensão de expansão de público, mas de uma qualificação da instituição, para que a gente possa ter uma escuta ainda mais cuidadosa, ainda mais acolhedora.

Por exemplo, este ano completam-se 13 anos de um programa chamado Singular Plural, que é um programa de acessibilidade do museu. Além da dimensão da acessibilidade ser um ponto hoje central, o fato de ser um programa longevo tem trazido uma enorme, uma significativa expansão de um público com necessidades especiais – sejam cognitivas, físicas, motoras, sejam pela idade. Para mim é uma alegria ver o museu ampliando a participação desse público. Então quando eu falo de abrir canais de comunicação com a sociedade, isso diz respeito a uma ampliação de público, sem dúvidas, mas diz respeito também a uma melhor qualificação dos canais do museu para a escuta desse público, para relacionar-se com esse público.

ARTE!✱ – Isso passa também pelas redes sociais?

Sim. Isso passa pela comunicação do museu, que tem que ser reestruturada. Passa pelo site, pelas redes sociais, por uma comunicação que tem que ser mais estratégica, mas também por uma comunicação que possa servir melhor à produção de conhecimento. Nós estamos diante de um acervo que é tão extraordinariamente rico, com peças que, mesmo em exibição, quando destacadas, são iluminadas por informações valiosas. Então isso também tem que ser melhor extrovertido. Museus são espaços importantes de produção de conhecimento. Este daqui, em sendo, repito, o mais brasileiro dos museus, com um acervo museológico de entre oito e 10 mil peças, mas, contando os acervos documentais e bibliográficos chegamos a mais de 20 mil obras, há um pedaço literal do Brasil aqui. E há muita produção de conhecimento que se realiza internamente, que precisa ser melhor divulgada, melhor extrovertida.

ARTE!✱ – Agora, pensando no espaço físico do museu, ele está em um lugar muito especial da cidade, num edifício do Niemeyer, no parque mais importante de São Paulo, mas ao mesmo tempo um tanto afastado da vida urbana mais central – ao contrário de museus como MASP, IMS, Pinacoteca etc. Não há uma estação de metrô que sai no parque, por exemplo. Além disso, ele está cercado de bairros extremamente elitizados. Como lidar com isso e tentar trazer um público diverso?

Essa pergunta é excelente, porque a localização do museu já é uma de suas obras mais importantes. Ela já começa a afetar, digamos, já tem efeitos no museu por si só. Estamos falando de um museu negro, o Museu Afro Brasil, dentro de um conjunto de bairros onde se concentra a maior parte da riqueza da cidade, e de uma riqueza racializada, que é uma riqueza sobretudo branca. Para termos um comparativo, o bairro de Moema, que é um bairro contíguo ao museu, tem a menor população relativa negra entre todos os bairros de São Paulo. Em torno de 5%. E, no entanto, ainda assim, o museu é espaço dentro dessa zona, entre aspas, nobre, onde as negritudes, as periferias, encontram casa, encontram um local de acolhida e de expressão.

 Então a localização do museu no parque carrega mesmo certa ambiguidade. De um lado é um local extremamente nobre, um parque bonito, com um prédio histórico, de um arquiteto histórico, por outro lado, não há transporte público e facilidade para chegada ao parque, as linhas tanto de ônibus quanto de metrô não são suficientes e geram algum tipo de empecilho – também em termos de acessibilidade isso é uma dificuldade. O que podemos fazer e estamos fazendo, e isso acontece desde antes da minha chegada, é ir aumentando a capacidade de conversa com os gestores, tanto públicos quanto privados. Hoje, o acesso ao Parque Ibirapuera é controlado por uma organização privada, então o museu negocia, conversa – assim como os demais museus que estão situados no parque –, mas não temos hoje uma capacidade autônoma de alteração desses fluxos em relação a transporte, a acesso.

E, nesse meio tempo, buscamos desenvolver estratégias, sobretudo de programação cultural, de ações educativas e de programações culturais que dialoguem com os anseios mais diversos presentes na sociedade, inclusive daqueles que não moram nos bairros em que o museu está interligado. Então, eu acredito que uma programação curatorial, educativa e cultural robusta, interessante, tem efeitos positivos nesse sentido. E temos colhido resultados, como ver as nossas exposições cheias tanto na abertura quanto nas semanas subsequentes. Abrimos a exposição do Entrelinhas com o Rommulo Vieira Conceição e o Aurelino dos Santos, abrimos a exposição Caminhos do Samba, com as fotografias do Wagner Celestino, As vidas da Natureza-Morta, que é uma exposição curada pelo Claudinei Roberto, e a exposição dos artistas contemporâneos do Benin, que foi feita a partir do acervo do próprio museu e vemos um público significativo.

ARTE!✱ – O Museu Afro Brasil passou a se chamar Museu Afro Brasil Emanoel Araujo após a morte do Emanoel. Queria aproveitar pra pedir pra você falar um pouco da importância dele. Nesse caso, menos como artista, que já sabemos, mas como criador, curador e gestor desse museu, um grande promotor da arte afro no país…

Emanoel é uma figura fundamental na história da arte brasileira, na história das instituições museais do Brasil, com passagens pelo Museu de Arte da Bahia e pela Pinacoteca – isso antes da criação do Museu Afro Brasil. Eu acredito, tenho certeza, de que a relevância do Emanoel está muito bem documentada e sedimentada, seja ele como artista, seja ele como responsável pela criação de um espaço como este museu ou pelo tempo de gestão dele em outras instituições pelas quais ele também passou. Penso que o Museu Afro Brasil, quando adota muito orgulhosamente o nome do seu fundador como parte do seu nome é uma um reforço desta homenagem e desta relevância do Emanoel no cenário nacional e também internacional. O único ponto que eu adicionaria a esse coro, ao qual me filio, de entender e respeitar a relevância fundamental do Emanoel, é de que o Museu Afro Brasil é, sim, resultado de um empenho pessoal dele, o que é inquestionável, mas eu o vejo como uma espécie de capitão, digamos assim, alguém que capitaneou uma luta que é também coletiva e histórica. Quer dizer, esse museu é resultado de uma luta negra.

Eu me dediquei, por exemplo, a entender quais foram as iniciativas de institucionalização e criação de museus de arte afro brasileira e, claro, podemos retroceder à criação do Museu de Arte Negra, pelo Abdias Nascimento, nos anos 50; podemos voltar ao Museu Afro-Brasileiro, em Salvador, cuja fundação remonta aos anos 70; a gente pode pensar em experiências museais como o Museu de Laranjeiras, em Sergipe, o Museu do Negro, no Rio de Janeiro… quer dizer, há uma série de iniciativas de diferentes portes, com diferentes fôlegos, de musealizar a arte negra ou a história brasileira a partir da perspectiva negra. O Museu Afro Brasil é, sem dúvida, o maior logro dessa luta, mas eu acho que é importante localizar o museu nesse histórico amplo de lutas negras que encontrou em Emanoel essa figura de proa, essa figura capaz de concatenar, num certo momento histórico, a criação do espaço como esse que fica de legado para todos nós.

ARTE!✱ – E 2024 marca os 20 anos do museu. Vocês pensam em fazer algum tipo de celebração, alguma exposição… Algo para marcar a data?

Sim, 20 anos não são 20 dias… e por isso pedem da gente um momento de reflexão desta caminhada da instituição, mas também, complementarmente, nossa visão quanto ao futuro, quanto aos próximos 20, 40, 200 anos do museu. E, portanto, o que a gente está preparando não será uma comemoração pontual, mas aproveitaremos todo o ano para homenagear as duas décadas e, ao mesmo tempo, apontar algumas direções daqui para frente. Então, estamos organizando uma série de exposições, mas também de seminários e de publicações que vão sempre lidar com essa dobradiça: como olhar para trás para mirar para frente. Isso inclui, por exemplo, um seminário de reflexão sobre o museu; o convite a uma série de pesquisadores das diferentes áreas que compõem a exposição de longa duração do museu, para que possamos repensar, juntos, essa reelaboração, essa reapresentação da nossa própria exposição de longa duração e por aí vamos.

ARTE!✱ – Para finalizar, uma pergunta um pouco mais geral, mas que obviamente repercute no que se pensa e se faz aqui no museu. Ao mesmo tempo que temos este destaque maior dado às pautas das quais falamos, sobre decolonialidade e antirracismo, parece haver também um aumento de ataques, no Brasil, à aspectos da cultura afro, como as matrizes religiosas, por exemplo. Há também uma extrema direita racista que parece ter saído do armário e se mostra muito poderosa. Te parece paradoxal isso? Ou justamente uma coisa pode ser uma resposta à outra…. Como você vê esse momento?

Eu me lembro que nós fechamos o último dia de exibição de Histórias Afro-Atlânticas no dia da eleição de Jair Bolsonaro. E para mim já foi uma sensação bastante curiosa a de visitar o último dia da exposição com uma grande manifestação pró-Bolsonaro na Avenida Paulista. Essa situação que você descreve que é de, ao mesmo tempo, um crescimento do interesse e mesmo de uma produção mais volumosa, mais robusta, de maior qualidade e   diversidade de autorias negras, encontra, no mesmo tempo e espaço em que vivemos, uma contemporaneidade com um recrudescimento de uma violência racial. Ou de uma “dívida impagável”, para usar os termos da Denise Ferreira da Silva. Eu acho que essa dívida que é social, que é econômica e também cultural, ela não se resolverá apenas a partir do campo da arte e da cultura, embora esse campo seja fundamental para a elaboração de novas visões, de uma elaboração mais crítica a partir dos sentidos.

A arte nos possibilita redimensionar uma série de questões que rebatem no mundo social e abordá-las a partir de um outro prisma, a partir de uma outra sensibilidade. Mas acho que devemos cobrar das políticas públicas o que diz respeito a políticas públicas. Devemos cobrar de uma engrenagem socioeconômica uma maior responsividade, responsabilidade, equidade e justiça, e não pedir que o campo das artes resolva o que lhe escapa de possibilidade de resolução. E eu acho que é nessa situação que a relevância do Museu Afro Brasil se torna ainda mais exponencial. A relevância dele num contexto de recrudescimento de violência racial, num contexto de aumento – ou pelo menos de uma maior discussão e uma maior visibilidade – de casos de racismo no Brasil e no mundo, torna ainda mais importante o contraponto que este museu exerce há 20 anos.

Agora, não me parece necessariamente uma contradição que esse cenário aconteça. Porque não é à toa que muitas vezes nos momentos de maior violência é onde nós visualizamos uma maior resistência e uma exigência de maior criatividade, de criação de estratégias para fazer frente a esses avanços autoritários, conservadores, racistas, classistas. Então, o que me parece é que há uma movimentação artística no Brasil que foi ainda mais incentivada diante das adversidades. Isso não é um elogio às adversidades. Eu acho que se com pouco o Brasil já é capaz de fazer o que faz na produção de arte contemporânea, de modo a hoje pautar os debates de arte em todo o mundo, se com um pouco, com restrição de verbas, com restrição orçamentária e um cenário político desfavorável, ainda assim o Brasil se coloca como protagonista – e o Brasil negro, em especial –, imaginemos o que pode vir a ser um país que elogia a sua produção artística. Um país que apoia os artistas e as instituições de arte ao invés de persegui-las, censurá-los ou inibi-las.