Rosana Paulino, "Parede da Memória", 1991-2015. Foto: Divulgação/Cortesia da artista

A leitura de A virada decolonial na arte brasileira (Editora Mireveja), de Alessandra Simões Paiva[1] –, trouxe várias questões que, embora digam respeito à cultura e à arte produzida no Brasil, são de naturezas distintas e necessitam, portanto, que sejam pensadas separadamente.

As primeiras estariam ligadas à produção de obras de arte que, antes da “virada decolonial”[2], já distanciavam-se de pressupostos artísticos e estéticos estabelecidos na Europa e nos Estados Unidos durante o modernismo. A própria autora atenta para este fato e, portanto, seria importante rememorar aqui algumas obras produzidas após o final da Segunda Grande Guerra no Brasil, pensando-as como “preparadoras” do campo decolonial.

Um segundo conjunto de questões também deve ser debatido: os posicionamentos teóricos contidos no livro de Alessandra Paiva, que propõem estratégias metodológicas para se pensar a recente arte produzida no Brasil, entendida pela autora como fruto de uma “virada decolonial”.

Por último – e antes de nos determos nos dois conjuntos de questões acima mencionados –, acredito ser importante refletirmos sobre a maneira subserviente como alguns intelectuais brasileiros encaravam a arte e a cultura locais, frente à Europa e aos Estados Unidos. A sobrevivência dessa submissão até os dias de hoje torna-se um complicador para pensarmos a questão do decolonial na arte estudada por Paiva.

Capa do livro "A virada na arte decolonial brasileira", de Alessandra Simões Paiva (Editora Mireveja; 240 págs.)
Capa do livro “A virada na arte decolonial brasileira”, de Alessandra Simões Paiva (Editora Mireveja; 240 págs.)

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Dou início a essas ponderações atentando para os posicionamentos sobre arte e cultura brasileiras defendidos por dois intelectuais aqui nascidos ainda no século 19. Meu objetivo é que elas esclareçam contra quem e contra o que surgiu entre nós a necessidade de se levar adiante a virada decolonial – o tema do livro de Paiva.

O primeiro deles, o escritor e crítico de arte Gonzaga Duque, a certa altura do seu romance Mocidade Morta – e por meio do personagem Camillo (seu alter ego) –, pondera sobre a impossibilidade de uma arte nacional e sobre como nós brasileiros deveríamos atuar como herdeiros da Europa:

[…]Nós outros, americanos, somos produtos de um amontoado de todas as raças, em que predomina mais esta do que aquela e, portanto, a nossa vida espiritual resulta da afinidade da raça predominante que, para nós brasileiros, é a latina, pelo ramo português […]

[…] A nossa preceptora espiritual… é a Europa. Dela recebemos as ideias coordenadas, etiquetadas, prontas para o consumo de seres mentais […][3].

O outro intelectual seria Menotti Del Picchia, atuante como romancista, jornalista e político. No dia 6 de abril de 1924, Del Picchia publica uma síntese do discurso proferido poucos dias antes por Washington Luís[4], por ocasião do banquete que a comunidade italiana de São Paulo lhe oferecera. A síntese produzida por Del Picchia traduziu o que um dos mais importantes políticos brasileiros da época pensava sobre o Brasil e os brasileiros, pensamentos em concordância com aqueles do intelectual:

Deu ele [Washington Luís em seu discurso] uma clara e concisa estrutura orgânica – definida na sua ossatura, especializada nas suas vértebras – a uma complexa série de ideias, cuja confusão trazia como consequência estéreis debates e improfícuos mal-entendidos.

“Somos um país de imigração”. Todo o plasma etnológico que constitui uma nacionalidade – tirante uns minguados extratos indígenas, não amalgamados ou absorvidos – e resultante da deslocação dos excessos de população de outros países. As bases da nossa raça, cuja coluna vertebral é lusa, compõem-se de um babélico complexo de tipos humanos, trazidos a bordo dos navios oriundos de outros céus e de outros climas. Não temos o preclaro orgulho dos gregos, que blasonavam perder-se a origem do seu povo nas brumas lendárias dos autóctones, saídos da Terra como os maravilhados ouvintes da lira orfeônica. Nossa civilização, puramente ocidental, foi de enxerto e veio no bojo das caravelas dos primeiros colonizadores e depois nos navios a vapor dos imigrados.

E a síntese continua:

“Vivemos com a imigração ocidental, nascemos dela, viveremos com ela”.

Se tal é uma verdade, dela decorrem consequências capitais para a apreciação dos fenômenos sociológicos brasileiros. A ausência de um elemento basilar étnico indígena, com longa história, com um caráter milenariamente típico, característicos morfológicos especiais – registrando-se apenas a preponderância latina – afasta a hipótese da aparição do meteco do “estrangeiro”, no sentido do transplantado. Fácil é, pois, no nosso ambiente, a adaptação do imigrado, o qual não pode sentir, de parte dos nativos, essa instintiva hostilidade natural, que se manifesta naqueles povos com um caráter racial típico, plasmado por uma longa elaboração histórica [5].

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Hoje em dia chega a ser constrangedor perceber como nos dois textos – apesar de todas as diferenças[6] – sobressaem o silêncio e o descaso pelos indígenas que aqui viviam, quando chegaram os colonizadores, e pelos africanos que para cá foram trazidos como escravizados. Para Gonzaga Duque e Del Picchia era como se esses dois contingentes simplesmente não existissem.

Para reforçar a importância do lançamento de A virada decolonial, é importante negar que tais preconceitos hoje em dia já tenham sido superados. A presença ainda rarefeita de pessoas negras e indígenas nas mais diversas áreas da sociedade aponta para a permanência de uma estrutura racista que dificulta a todos entenderem que o termo “brasileiro” deve abarcar mais grupos étnicos, do que apenas aqueles que para cá vieram “no bojo das caravelas dos primeiros colonizadores e depois nos navios a vapor dos emigrados”.

Ainda persiste no Brasil a subserviência que a elite branca sempre nutriu pela Europa. Desejosa de ser “herdeira” da civilização europeia, não consegue entender duas questões cruciais: mesmo sendo formada por “brancos e brancas” – e, portanto, euro-descendentes –, não somos europeus; por outro lado, essa elite não entende também que a arte e a cultura aqui produzidas não são – ou não deveriam ser – meras derivações do que foi produzido na Europa e, mais recentemente, nos Estados Unidos.

É por contribuir para o afastamento desta dimensão colonizada da sociedade que considero fundamental o lançamento de A virada decolonial na arte brasileira. O livro tem todas as condições para, pelo menos, diminuir uma lacuna significativa do debate local: se em diversas áreas das ciências humanas a questão decolonial nos últimos anos no Brasil já ganhou visibilidade incontornável, fazia falta entre nós uma publicação que enfrentasse essa questão no campo das artes visuais.

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A virada decolonial reune uma série de artigos publicados por Alessandra Paiva durante os últimos anos e é justamente esta característica que, a meu ver, empresta-lhe uma vivacidade e uma urgência pouco vistas em trabalhos realizados por acadêmicos[7].

O fato de ser uma coletânea de artigos para a imprensa traria uma ou outra reflexão mais superficial da autora? Sim, sem dúvida. Dirigidos a um público diversificado e certamente com limites de espaço etc., percebe-se que a autora nem sempre pôde aprofundar um ou outro argumento. Mas isso não retira o interesse do livro.

A meu ver, este é o preço que A virada decolonial paga por distanciar-se dos paradigmas do “bem escrever” da academia, optando pelo enfrentamento. Alessandra Paiva se vale de um discurso rápido, ativista e engajado na apresentação e valoração das transformações que percebe na cena brasileira. Nos vários textos que compõem a publicação, o objetivo é proclamar e enaltecer a virada decolonial nas artes do país.

A autora discute sobretudo a produção de artistas afro-descendentes, originários e LGBTQIA+ – fato que, como será visto, determina a condição decolonial – confrontando-a com o racismo estrutural e com aquela subserviência à Europa (e aos Estados Unidos), percebida em Gonzaga Duque e Del Picchia, mas que poderia ser encontrada em muitos textos de alguns intelectuais hoje atuantes.

É notório também que Paiva – apesar da urgência presente em todos os seus textos – opera premissas que nunca abandona e que conferem ao livro um interesse ainda maior. Exemplo: ela nota na produção que estuda que esta estaria menos presa às velhas prerrogativas e aos pressupostos estéticos que durante séculos encabeçaram a produção de arte nos países ocidentais. Assim, Paiva acaba atentando para um fato curioso: grande parte dos artistas que são vistos por ela como responsáveis pela “virada decolonial” no Brasil, além (ou por causa) dessa postura, tende a colocar em segundo plano – e, em alguns casos, até mesmo superar – produções ligadas às modalidades artísticas tradicionais (desenho, pintura etc.), optando por soluções distantes desses preceitos estéticos tradicionais.

Agindo de tal forma, esses artistas, em sua maioria, dariam continuidade a uma produção artística que emergiu com força após o término da Segunda Grande Guerra. Os artistas decoloniais lembrados por Paiva em seu livro, deveriam ser percebidos como formadores de novas gerações que, imbuídas de preocupações com explícito cunho político e ideológico, começam a sobrepor àquela produção oponente aos velhos cânones modernos, outras possibilidades de significação

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O protagonismo (talvez excessivo?) que Paiva concede ao circuito da arte não significa que a autora não reconheça que a “virada decolonial” tenha surgido da produção dos artistas[8]. No entanto, na prática, sua abordagem tenderá sempre a privilegiar os mecanismos institucionais que propiciaram ou que incentivaram o fenômeno:

Nos últimos anos, diversos acontecimentos têm confirmado o fenômeno da virada decolonial na arte brasileira: exposições com curadorias indígenas, como a Véxoa: nós sabemos, na Pinacoteca de São Paulo (2020), e a Moquém Surari: arte indígena contemporânea, no Museu de Arte Moderna de São Paulo (2021); o Pipa, principal prêmio da arte contemporânea, que vem contemplando majoritariamente artistas decoloniais; grandes projetos de intervenção urbana […], em São Paulo […] e […] em Belo Horizonte, com edições sequenciais contando com grande presença de artistas negros/as e indígenas; representação de artistas decoloniais por parte de importantes galerias; inúmeras publicações na imprensa especializada e livros; eventos em instituições de arte diversas, como museus e bienais […] [9]

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Só após a caracterização dessa “insurgência de artistas e teóricos/as […]”[10] – é que a autora irá se deter na definição do termo “decolonial”.  De início, ela explicará o porquê do uso “decolonizar” ao invés de “descolonizar”.

O termo “decolonial” teria sido concebido no âmbito de um grupo de estudos chamado Modernidade/Colonialidade/Decolonialidade (MCD), e formado por intelectuais nascidos na América Latina ou aqui residentes, e que – a partir do final dos anos 1990 – discutirá as relações de poder entre os países europeus (e os Estados Unidos) e o restante do mundo.

Para os integrantes do MCD, a “colonialidade” seria “um sistema que sobreviveu ao colonialismo histórico, mantendo-se ainda na contemporaneidade como matriz das relações assimétricas de poder perpetuadas nos últimos séculos”. Ainda segundo Paiva, a teórica norte-americana atuante na América Latina, Catherine Walsh, explica que, retirar o “s” da palavra “descolonialismo” seria introduzir uma diferença ao “des” castelhano:

Assim, a terminologia estaria mais adequada às diretrizes do grupo, que tem como proposta não apenas desarmar ou desfazer o colonial, mas compreendê-lo e combatê-lo como um fenômeno ainda atual. A autora [Walsh] explica que os termos pós-colonial e descolonial também denunciam as assimetrias de poder resultantes do projeto de domínio e opressão colonialista, porém essas nomenclaturas estão mais ligadas às matrizes teóricas surgidas no contexto da luta pela descolonização do período pós-Guerra Fria e relacionadas aos estudos asiáticos e africanos (de autores como Frantz Fanon, Albert Memmi, Aimé Césaire, Edward Said, Stuart Hall e Ranajit Guha) […]

[…] Enfim, o grupo MCD definiu o termo decolonial como o mais pertinente para se analisar a colonização como um evento permanente, mesmo que com determinadas rupturas.[11]

Continuando seu raciocínio, Paiva refletirá sobre o pensamento decolonial no Brasil afirmando que, apesar “da publicação de inúmeros textos sobre o decolonialismo em diversas áreas, há ainda significativa carência de abordagens que articulam de forma profunda, essa ótica no campo das artes.”[12]

Para preencher essa lacuna – criando assim uma direção possível para os estudos decoloniais sobre a arte no Brasil –, Paiva atentará para dois ensaios de Walter D. Mignolo,  estudioso argentino radicado nos Estados Unidos, e membro do MCD[13]. Para a autora esses textos seriam fundamentais para os interessados em entenderem o decolonial nas artes:

Publicados com um intervalo de quase dez anos, eles se articulam entre si para tecer importantes considerações sobre as artes visuais e sua relação com o pensamento decolonialista, seja a partir da análise de obras de alguns artistas, seja apoiado na reflexão sobre as possibilidades de uma crítica de arte decolonial […] seus dois artigos fornecem a maior contribuição científica para uma possível teoria decolonial nas artes.[14]

Concordo com Paiva quando ela estabelece os dois ensaios de Mignolo como referências possíveis para se pensar a “virada decolonial”. E tendo a ir além: a meu ver, retomar esses estudos do pesquisador argentino possibilitará refletirmos sobre aquela questão levantada logo acima: Mignolo nos instrumentaliza para entender que – antes da chegada do decolonial na arte –, já havia, sim, uma produção artística desvinculada da estética moderna tradicional, o que reforçaria a ideia de que o decolonial na arte contemporânea seria mais uma camada a se depositar sobre o debate artístico do pós-guerra, uma camada com forte potencial político, mas ainda assim uma camada nova para um todo anterior.

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O ponto que considero fulcral do primeiro ensaio de Mignolo – Aiesthesis decolonial – é a origem de aiesthesis, base do termo “estética” na cultura ocidental[15]. De origem grega, a palavra foi absorvida pelas línguas europeias significando, de início, “sensação”, “processo de percepção”, “sensação gustativa”, “sensação auditiva”[16]. No entanto, a partir do século 17, o conceito de aesthesis começa a se tornar mais restrito, passando a significar apenas a “sensação do belo”: “Nasce assim a estética como teoria e o conceito de arte como prática”[17].

Se aiesthesis é um fenômeno comum a todos os seres vivos – pois relaciona-se com o mundo a partir de todas as suas possibilidades cognitivas –, “estética” significaria uma teoria criada para pensar tão somente as sensações relacionadas à beleza. Ou seja: arbitrária e historicamente circunscrita, não existiria nenhuma lei universal que tornasse necessária a relação apenas entre aesthesis e beleza. Apesar disso, tal situação teria se fortalecido no contexto do século 18 na Europa, e depois se espalhado “naturalmente” pelo restante do planeta, tornando-se “universal”.

Segundo ainda Mignolo: “a mutação de aesthesis em estética assentou as bases para a construção de sua própria história, e para a desvalorização de toda experiência aesthesica que não tivesse sido conceituada nos termos em que a Europa conceitualizou sua própria e regional experiência sensorial”[18].

A partir da recuperação desse sentido primeiro da palavra aesthesis, Mignolo analisará os trabalhos de alguns artistas da cena norte-americana e europeia, cujas produções subvertem a noção de que a arte seria apenas uma demonstração, na prática, do que preconiza a teoria estética [19]; obras que não se conformariam aos preceitos estéticos da pintura ou da escultura, mas que – por meio da instalação de determinados objetos em espaços institucionais (museus históricos, de arte etc.) –, traziam outras possibilidades de interação com o público, levando-o a ampliar sua percepção cognitiva para além da “beleza”.

Um dado incontornável a ser sempre reforçado: seria a presença de temas raciais, étnicos e/ou de gênero acoplados a essas instalações, o que fundamentaria a prática artística decolonial, separando-a da produção modernista da primeira metade do século passado que, durante décadas, procurou banir o assunto da obra de arte, abrindo novos direcionamentos para a arte surgida após a Segunda Grande Guerra[20].

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Se nesse primeiro ensaio Mignolo rompe com os postulados que ligavam a arte à estética, em Reconstitución epistémica/estética: la aesthesis decolonial una década después o argumento volta a ser tratado, agora de maneira mais aprofundada. Para tanto, o estudioso recupera o conceito de gnosis a partir do novo sentido que lhe conferiu o filósofo norte-americano nascido na República do Congo, V.Y. Mudimbe, que o utilizava para “nomear a práxis do pensar na África” – mais ampla e inclusiva, relacionando-se a toda e qualquer forma de conhecimento. Um tipo de saber que teria sido recalcado pelo pensamento europeu colonizador.

Mignolo distinguirá gnoseologia de epistemologia, afirmando que, se a primeira se refere ao conhecimento em geral, a segunda remeteria apenas ao conhecimento científico. Assim, em contraposição à estética (restritiva) teríamos a aesthesis, e em contraposição à epistemologia (também restritiva), teríamos a gnoseologia.

Após fazer referência à produção do artista guatemalteco Benvenuto Chavajay, o estudioso argentino resume seu pensamento: “pensar decolonialmente é um constante desprendimento (deslinking) da epistemologia moderno/colonial e um constante fazer gnoseológico/aesthesico”[21].

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Essa síntese do pensamento de Mignolo é lacunar, sem dúvida, mas creio que ela estabelece uma base para que possamos acompanhar as demais reflexões de Alessandra S. Paiva em seu livro.

No texto em que a autora, a partir dos ensaios citados, debruça-se na constituição de uma visão decolonial das artes visuais no Brasil[22], além da enunciação e análise dos tópicos mais relevantes pensados pelo pesquisador argentino, explicita-se que o que Paiva mais admira nele é sua atitude como um estudioso e crítico atuante fora das amarras do pensamento europeu. A autora afirma: “Mignolo diz que seu próprio texto não é uma análise, mas um fazer decolonial; afinal, despregar-se da matriz colonial é começar pelo vocabulário”[23].

Esse “fazer decolonial”, esse “despregar-se” do passado colonial presente também no texto de Paiva é, de fato, o que lhe confere aquele caráter de urgência e engajamento já sublinhado. E é ele também quem leva a estudiosa a não se deter – ou a se deter pouco –, na produção que acaba por lhe servir apenas como cenário.

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Reiterando o pensamento do estudioso argentino, Paiva explicará que:

[…] Nas últimas décadas, proliferaram, nas ciências sociais e nas humanidades, diversos estudos que produziram críticas às matrizes do pensamento eurocêntrico, como a própria antropologia da arte, que mostra como o belo e o feio são categorias relativas e mutantes, e que se moldam a cada contexto e tempo histórico[24]

E, além das teorias: “[…] a prática artística fornece as chaves para a sua compreensão. Afinal, uma das grandes tarefas dos artistas […] é o questionamento das próprias linguagens”[25]. Se tais transformações já ocorrem há décadas, o que a questão decolonial teria trazido para o debate? Sobre isso, Paiva irá no mesmo sentido de Mignolo:

É a partir do quesito racial e em sua articulação interseccional com outras questões, tais como gênero e etnia, que o pensamento decolonial passou a questionar mais diretamente os cânones da historiografia artística eurocêntrica, refletidos também na historiografia brasileira […]

[…] é importante enfatizar que a corrente decolonialista não propõe, nas artes, a simples destruição do passado, mas o reconhecimento da heterogeneidade cultural e da pluralidade das formas de expressão artística de origem não eurocêntrica […][26]

Mais uma vez a questão racial em suas articulações com outras demandas presentes na contemporaneidade é que se tornarão o marco de distinção entre a produção decolonial e seus “antecedentes”.

Como será impossível nesta resenha dar conta de todos os inúmeros e interessantes aspectos tratados por Paiva em seu livro, caminho para a finalização desses comentários atentando para as conexões possíveis entre a arte decolonial no Brasil e aquela produção que, por antecedê-la em termos cronológicos, pode ter servido como base para o trabalho de seus autores.

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Se observarmos a cena brasileira a partir de 1960, será visto que uma série de artistas locais desenvolve produções em que os esquemas do modernismo tradicional e “internacionalizado” são superados. Artistas que rompem com a pintura, a escultura e outras modalidades tradicionais, em prol de um experimentalismo que busca um envolvimento mais totalizante e totalizador com público.

Os penetráveis de Hélio Oiticica, por exemplo, podem ser pensados como proposições ligadas a uma concepção mais aesthesica (nos moldes propostos por Mignolo) do que propriamente estética. Neles, o antigo espectador é levado a estabelecer uma relação de cunho totalizante com o ambiente, experimentando sensações ligadas não apenas ao interesse pelo belo. Nos penetráveis pode não haver nenhuma conotação política óbvia, mas é inegável o quanto sua proposta é revolucionária, na medida em que se coloca tão distante das premissas modernistas do início do século passado.

Embora explorem a dimensão sensorial do antigo espectador por meio de outros estímulos, também me parece inegável que a instalações como Desvio para o vermelho (1967/1984), de Cildo Meireles, assim como IN ABSENTIA MD, 1983, de Regina Silveira, provocam igualmente sensações aesthesicas no público. Mais recentemente, trabalhos como Doador (1999), de Elida Tessler e Parede Loos (2016/17) de Ana Maria Tavares também exploram uma relação não restrita apenas ao olhar e ao espaço, mas a uma experiência que se dá igualmente no tempo, envolvendo todos os sentidos do observador.

Por outro lado, é difícil não concordar que a dimensão política dessas obras também faz ressoar posicionamentos ideológicos claros que, se não podem ser acoplados diretamente à “virada decolonial”, assumem atitudes que discutem a suposta supremacia de arte ocidental entre nós: o trabalho citado de Regina Silveira, por exemplo, discute criticamente o excessivo “sombreamento” que a obra de Marcel Duchamp[27] exerce sobre a arte latino-americana. Por outro lado, é inegável a crítica ao racismo e ao proto-fascismo introjetado em determinados segmentos do modernismo europeu percebida em Parede Loos, Ana Maria Tavares.

Estou certo de que essas e outras proposições de artistas surgidos na cena brasileira antes dos anos 2000 formaram uma base para as instalações e intervenções que, nos últimos anos, fazem emergir a virada decolonial detectada por Alessandra Paiva. As propostas de Oiticica, Silveira e outros, como que “prepararam” a cena contemporânea brasileira para a chegada contundente de artistas como Denilson Baniwa, Glicéria Tupinambá, o Coletivo Coletores e tantos outros artistas ou grupos.

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Acima atentei para o fato de que nessa virada decolonial, muitos artistas teriam optado pela produção de instalações e intervenções, em detrimento de obras mais convencionais. O que não significa, portanto, que alguns deles não teriam produzidos obras aparentemente mais tradicionais, mas, nem por isso, menos questionadoras do status quo. O know-how relativo às várias modalidades artísticas possibilitou que obras aparentemente convencionais trouxessem um alto grau de subversão de cânones estratificados, passível de ser percebida pelo observador mais atento.

Essas considerações poderiam ser exemplificadas por algumas obras de Rosana Paulino. Com uma sofisticada formação no campo da gráfica (mas não apenas) – a artista estudou com Regina Silveira, Evandro Carlos Jardim, Claudio Mubarac e Marco Buti – Paulino, sobretudo em suas peças bidimensionais, desconstrói os códigos mais caros ao neoconcretismo brasileiro, acoplando antigas imagens fotográficas de pessoas escravizadas às estruturas dos meta-esquemas de Oiticica.

Essa ironia em relação às projeções utópicas percebidas na estética concreta e neoconcreta, também pode ser detectada na obra Experiência concreta #1, de Jaime Lauriano, que ressignifica uma performance de Lygia Clark – Diálogos das mãos, 1966 – acoplando uma imagem fotográfica do trabalho da artista a outras que documentam a situação desvalida de jovens pretos, atormentados pelo racismo vigente no país.

Clark e a estética neoconcreta também é semantizada com as peças tridimensionais concebidas por Lyz Parayzo que se comportam como armas de defesa/ataque pra a comunidade LGBTQIA+, sempre acossada pela homofobia.

Não se trata aqui de relativizar o impacto que significou e significa entre nós a virada decolonial na arte, associando-a ao passado recente da arte brasileira. Trata-se, isso sim, de chamar a atenção para a potência da arte contemporânea brasileira surgida a partir dos anos 1960 que não pode, não deve e que não é ignorada por muitos dos mais destacados artistas decoloniais.

A meu ver, não é gratuito que Paulino, Lauriano e Parayzo, por exemplo – todos ligados ao discurso decolonial – dirijam seus interesses na desconstrução, justamente, do concretismo e do neoconcretismo. Essas vertentes modernistas da arte local que receberam (e continuam recebendo) os créditos como supostamente as principais vertentes da arte contemporânea brasileira – assim como outras vertentes artísticas aqui introduzidas – possuem uma relação problemática com a realidade social e política do Brasil, podendo e devendo ser criticadas. Não é à toa que, a meu ver, é justamente a partir dessa crítica ao (melhor) passado da arte contemporânea, que se localizou até o presente, uma das partes  mais significativas da produção decolonial brasileira[28] .

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Finalizada a leitura de A virada decolonial, e tendo estabelecido aqui essas longas considerações, de Gonzaga Duque às produções de Lyz Parayzo e outros, gosto de pensar o seguinte:

Passados quatro anos de obscurantismo cotidiano, creio que tenha chegado finalmente o momento em que essas novas gerações de artistas e críticos poderão continuar dando vazão às suas poéticas, agora em um ambiente mais propício e acolhedor. Não que essa produção deva parar de apelar para o dissenso e mesmo para o confronto. Mas que o façam a partir de um desejável conhecimento do que foi feito antes e, sobretudo, de como foi feito. Afinal, mesmo com demandas políticas e sociais, quando nos referimos à arte decolonial, antes de qualquer coisa, estamos falando de arte. E nada irá retirar, dessa área tão abrangente do conhecimento, a peculiaridade de seu discurso.

Que a virada continue.

[1] – PAIVA, Alessandra Simões. A virada decolonial na arte brasileira. Bauru, SP: Editora Mireveja Ltda, 2022. Publicação lançada com o apoio da Universidade Federal do Sul da Bahia, onde Alessandra Paiva é docente.

[2] – Que, como será visto a seguir, teria ocorrido a partir da segunda metade dos anos 1990.

[3] – GONZAGA DUQUE, Luiz. Mocidade morta. Rio de Janeiro, Oficinas da Livraria Moderna, 1899, pp.41-42. Com o tempo, o crítico oscilará sobre o que pensava a respeito de uma arte nacional para o Brasil[3]. Porém, sobre a superioridade inconteste e sobre o papel matricial que a arte e cultura europeias exerciam na cena brasileira – em detrimento das outras culturas para aqui trazidas ou que aqui se processavam – nada jamais mudou.

[4] – Washington Luís, entre outros cargos políticos no estado de São Paulo, foi prefeito da capital (1914-1919), governador do estado (1920-1924) e presidente do país (1926-1930).

[5] – Menotti Del Picchia. “Ideias orgânicas de um discurso”. Correio paulistano. São Paulo, 6 de abril de 1924, p. 3.

[6] – O primeiro é um romance, o segundo, um artigo de jornal. Entre ambos, um espaço de tempo de quase 25 anos.

[7] – No livro não existem indicações sobre os locais e as datas em que os artigos foram publicados pela primeira vez.

[8] – Logo no início da apresentação do livro, Alessandra Paiva escreve: “Uma verdadeira revolução está em curso nas artes brasileiras. Trata-se da virada decolonial, fenômeno marcado pelo crescimento exponencial de poéticas que expressam questões como raça, etnia, classe, gênero e geopolítica articuladas de forma interseccional”. PAIVA, Alessandra S. op. cit. p.15.

[9] – PAIVA, Alessandra, Idem, p. 23. Seria o caso de nos perguntarmos aqui se foi a oferta de obras decoloniais que gerou esse interesse das instituições brasileiras ou o contrário. Mas não é objetivo deste texto adentrar nesta seara. Ficará para uma outra oportunidade.

[10] – PAIVA, Alessandra, Idem, p. 25.

[11] – PAIVA, Alessandra S. op. cit. p. 27.

[12] – PAIVA, Alessandra S. op. cit. p. 29.

[13] – Respectivamente os textos “Aiesthesis decolonial” (Calle 14. Revista de Investigación em el Campo del Arte, 2010). https://www.academia.edu/13524090/Aesthesis_decolonial e “Reconstitución epistémica/estética: la aeshesis decolonial uma década Después” (Calle 14. Revista de Investigación em el Campo del Arte, 2019) https://revistas.udistrital.edu.co/index.php/c14/article/view/14132

[14] – PAIVA, Alessandra S. Idem.

[15] – Atento para o fato de que em seu primeiro ensaio, o pesquisador grafará aiesthesis para se referir ao termo que dá origem à palavra “estética”. No segundo trabalho, Mignolo se valerá da grafia aesthesis. Esta resenha respeitará a atitude de Mignolo, grafando aiesthesis ou aesthesis conforme a escolha do autor.

[16] – Daqui viria o termo “sinestesia”, tão usado por vários artistas modernos.

[17] – MIGNOLO, Walter. “Aesthesis decolonial”, op. cit. p. 14.

[18] – Idem, p. 14.

[19] – O artista negro norte-americano Fred Wilson; Pedro Lasch, nascido no México e ativo nos Estados Unidos, e Tanja Ostojic, artista nascida na ex-Iugoslávia, residente na Alemanha.

[20] – Wilson apresenta instalações que discutem o passado escravocrata norte-americano; Lasch, o confronto entre a cultura imperialista espanhola e as culturas pré-colombianas; Ostojic discute a migração forçada de mulheres do leste europeu para países da Comunidade Europeia.

[21] – MIGNOLO, Walter. “Reconstitución epistémica/ estética…”. op. cit. p.20.

[22] – PAIVA, Alessandra S. “A visão decolonial nas artes a partir de dois artigos antológicos de Walter Mignolo” IN PAIVA, Alessandra S. A virada decolonialop. cit. p. 153 e segs.

[23] – Idem, p. 164.

[24] – PAIVA, Alessandra S. “A Virada decolonial na arte Brasileira”. IN PAIVA, Alessandra S. A virada… op. cit. págs. 35-36.

[25] – Idem. P. 36.

[26] – Idem, págs. 36-37.

[27] – E, portanto, toda a arte moderna, mesmo aquela mais “conceitual”.

[28] – Sobre o assunto, consultar um texto desta coluna, publicada em 02 de outubro de 2019, “Concreto, neoconcreto: a semantização continua”. https://artebrasileiros.com.br/opiniao/concreto-neoconcreto-a-semantizacao-continua/

 

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