Desde o início da pandemia e da necessidade de isolamento social, o mundo como um todo se viu obrigado a criar estratégias de comunicação no universo virtual, online, lançando mão de variadas ferramentas. Plataformas de reuniões, contas de Instagram, sites, Facebook e newsletters implodiram as redes, tornando até mais lentos os canais de rede. A maioria dos setores não estava preparada para esta reviravolta, e muito menos seus investimentos em equipamentos ou profissionais da área.
Na cultura, começaram a ser produzidas transmissões ao vivo de shows e espetáculos, além de debates, palestras e cursos. Um dos formatos a que se recorreu de forma massiva foram justamente essas lives, encontros ao vivo transmitidos pelo Instagram ou Youtube, com especialistas ou comentaristas de diversas áreas. Em uma noite qualquer, um usuário do Instagram entraria em sua conta e encontraria dezenas de ofertas de transmissões ocorrendo simultaneamente, tornando difícil inclusive selecionar o que valeria ou não à pena ser assistido. Para cada apresentação interessante – por mais subjetiva que seja essa avaliação – pareciam pipocar milhares de outras mal planejadas, com conteúdos aleatórios ou mesmo com falhas técnicas (de áudio, imagem ou conexão). O importante era não ficar parado.
No campo das artes visuais, mais especificamente, museus, instituições culturais, galerias, curadores e artistas promoveram centenas de apresentações, debates e os chamados webnários sobre os mais diversos temas. Além disso, intensificaram as postagens em suas redes sociais, com vídeos, imagens e textos, em um esforço para não se afastar totalmente do público no momento em que todos – ao menos boa parte do público de artes visuais – estavam fechados em suas casas. Houve também a alternativa dos viewing rooms, exposições montadas especialmente para o universo virtual, e as feiras precisaram se readaptar ao meio digital.
Como era de se esperar, não demorou para surgirem críticas justamente ao modo como foi feita esta migração para o virtual, especialmente ao excesso de lives de todos os tipos. Já em abril do ano passado, a artista e pesquisadora Giselle Beiguelman escreveu em artigo na Folha de S.Paulo: “O coronavírus ressuscitou a internet dos anos 1990. Entre videochamadas, lives e visitas virtuais, descobrimos o que já sabíamos – viver no universo paralelo é muito chato. (…) E descobrimos outra coisa – museus, galerias de arte e instituições culturais estão na idade da pedra da internet. Atropelados pela pandemia e sem conteúdo artístico e cultural criado para a web, aderiram aos únicos campos da vida online que conhecem, as redes sociais, e-commerce e saídas de emergência apontadas para o Google Arts & Culture”.
Ainda assim, gravações em vídeo ou entrevistas de boa qualidade também se sobressaíram com o passar do tempo e atraíram milhares de visualizações e interações. Em entrevistas realizadas pela arte!brasileiros ao longo do ano, diversos gestores, apesar de concordarem que o virtual jamais substituirá a experiência presencial, destacaram como ponto positivo a possibilidade de dialogar ao vivo com pessoas de todos os cantos do mundo, o que não ocorria em uma palestra na sala de um museu ou galeria. Diretores e galeristas se disseram também satisfeitos com a velocidade com que conseguiram melhorar sua atuação virtual.
Dentre algumas destas lives e apresentações, nossos colaboradores escolheram aqui iniciativas que trouxeram valor agregado e, no meio de uma situação tão dramática, conseguiram encontrar soluções diferenciadas. Leia a seguir.
A importância do contexto
Em live no Festival ZUM, no final do ano passado, o artista chileno Alfredo Jaar tratou da política da imagem
Por Fabio Cypriano
Desde que vi a performance de Alfredo Jaar na Trienal de San Juan, em 2015, e no ano seguinte no Seminário Internacional da arte!brasileiros, em São Paulo, sempre busco acompanhar as sensacionais falas do artista chileno. Em 2020, como as lives substituíram boa parte dos eventos presenciais, Jaar participou do Festival ZUM, por ocasião do lançamento da 19ª edição, em uma fala notável. Alguns destes eventos continuaram disponíveis online.
Destaco três trechos de sua fala de uma hora e meia que considero muito significativos no contexto atual da arte. O primeiro é quando Jaar revela como se dá sua metodologia de criação, o que inclui a leitura diária de jornais de diversos países, já que ele se exilou no Estados Unidos nos anos 1970 e lá reside até hoje: “Eu só posso me dedicar a falar do mundo se conseguir compreendê-lo”.
Pode parecer uma frase óbvia, mas são poucos os artistas que dão conta de transformar questões diárias do cotidiano, seja individual seja coletivo, em trabalhos artísticos potentes como os que ele apresenta ao longo da fala, naquilo que Hal Foster chama de “brilho utópico da ficção”, parafraseando Ben Lerner.
O segundo trecho é a constatação de que “o mundo da arte é o único que tem ainda um espaço de liberdade”, algo muito semelhante ao que defendeu Grada Kilomba há dois anos, na Pinacoteca do Estado, quando contou porque preferiu deixar a carreira acadêmica para seguir a produção artística. De fato, não por acaso, artistas vêm sendo perseguidos de forma veemente pelos governos de extrema direita, como o que se instalou por aqui.
Finalmente, o terceiro trecho, diretamente voltado ao tema de sua mesa, se divide em duas partes. A primeira quando ele trata da banalização das cenas violentas, seja nas redes, seja nos veículos de comunicação: “A imagem de dor se perde porque é descontextualizada em um mar de consumo”. E isso se completa com: “E a falta de contexto se junta à falta de uma alfabetização visual”. Aí para mim se sintetiza um dos dramas cruciais do momento atual, isto é, a necessidade urgente de fazer com que fatos ou imagens sejam vistos de forma ampla, em toda complexidade que estão imbricados e não apenas na superfície.
Assista a “A política da imagem” – Alfredo Jaar – Festival ZUM 2020 clicando aqui.
Mundo em disputa
A artista Rosana Paulino e o ambientalista e líder indígena Ailton Krenak discutiram os limites profundos da visão de mundo vinculada a um suposto projeto civilizatório, que só aceita os iguais e que relega o “outro” à margem
Por Maria Hirszman
Ailton Krenak e Rosana Paulino estão entre os pensadores de maior destaque na cena brasileira, sobretudo nestes tempos pandêmicos de tantos encontros virtuais. Se isoladamente suas contribuições já são fundamentais acerca dos imensos desafios enfrentados pelas comunidades indígena e afro-brasileira, quando abordam em conjunto aspectos fundamentais da vida contemporânea, como a preservação ambiental, a desigualdade social e a permanente exclusão a que vem sendo submetidos há séculos, adquirem ainda maior densidade e agudez quando somadas num diálogo fértil de ideias.
“No planeta, 80% ou 90% são excluídos, estão disputando uma outra narrativa sobre o mundo”, afirmou Krenak no encontro promovido entre eles em junho do ano passado pela Organização Ashoka. São dados que explicitam a perversidade de uma via cada vez mais excludente, de radicalização da lógica neoliberal que vem se impondo sobre o mundo e, em particular, sobre o Brasil, onde o chefe de Estado reage às milhares de mortes com um lamentável “e daí?!”. A desumanidade contida nessa reação serve de síntese para as análises de ambos, tornando evidentes as constatações tanto de Krenak como de Paulino sobre os limites profundos da visão de mundo vinculada a um suposto projeto civilizatório, que só aceita os iguais e que relega o “outro” à margem.
Há anos debruçando-se sobre a intersecção entre arte e ciência, trabalhando em cima das construções promovidas pelo racismo científico, Rosana Paulino deixa evidente – tanto no discurso como eu seu trabalho artístico – como esse modelo de ordenação das cidades, da natureza, do conhecimento é destrutivo e excludente. É preciso incorporar novos saberes: “os grupos que ficaram à margem têm tecnologias que não foram reconhecidas por essa ordenação de mundo”, denuncia, revelando a urgente necessidade de rever essa lógica supostamente humanista. “Quando alguém afirma o princípio de urbanidade, de colonização de mundo, ele destrói meu mundo. Não me inclui. Só me integro não sendo mais eu mesmo”, reitera Krenak, mostrando de forma cristalina os limites de discursos que no fundo oferecem apenas soluções ilusórias e estéreis, como as paliativas ideias de superação, integração, empreendimento, aculturação e mérito, sempre baseadas na figura do indivíduo e que atendem aos desejos de manutenção do status quo para poucos.
Remando contra essa postura conformista, Krenak e Paulino pregam a necessidade real e urgente de entender os campos de disputa e de persistir no esforço de imaginar e construir novos mundos possíveis, sem se render à tendência globalizante do capital financeiro. Não há tempo a perder nem espaço para a acomodação. “Não posso acreditar que não há mais o que fazer. Meus ancestrais chegaram num porão de navio”, rebate Rosana.
Pontes históricas
Jota Mombaça, Ana Adamović, Nina Beier e Vincent Meessen falam sobre seus trabalhos que reforçam o foco da 34ª Bienal nas persistências históricas
Por Maria Hirszman
Em seu terceiro encontro da série “As vozes dos artistas”, a 34ª edição da Bienal de São Paulo aprofundou as relações entre as obras de quatro dos convidados a participarem da mostra com um objeto impregnado de significados metafóricos e simbólicos: o sino de Ouro Preto. Instalado desde o século XVIII na Capela do Padre Faria, na então cidade de Vila Rica, esse instrumento condensa em si uma série de histórias. Está imbuído de vivências e significados que estabelecem uma relação direta com a proposta mais geral da mostra, Faz escuro mas eu canto, e torna-se um de seus principais enunciados, ao estabelecer pontes entre dois momentos históricos distintos, de grande intensidade na história do país. O primeiro deles é a noite em que Tiradentes foi executado, em 1792. Num gesto de rebeldia e resistência, o sino foi tocado na madrugada, apesar da proibição real. Esse desafio é ressignificado séculos depois quando o instrumento é levado de Minas Gerais para Brasília com o intuito de consagrar com seu som a nova capital, inaugurada em 1960 e num momento de reafirmação de Tiradentes como herói nacional, no mesmo 21 de abril. “Ele funciona como uma espécie de diapasão que nos ajuda a afinar um instrumento”, explica o curador Jacopo Crivelli Visconti na introdução da live.
A persistência histórica, as repetições, reiterações e questionamentos de momentos potentes do passado em releituras do presente estão entre as linhas de maior força dentro do projeto da Bienal e está presente no trabalho de vários dos artistas selecionados, dentre os quais se destacam Jota Mombaça, Ana Adamović, Nina Beier e Vincent Meessen, todos presentes na apresentação online realizada no último dia 25 de fevereiro e que será disponibilizada no canal do Youtube da instituição. Mombaça serviu como uma espécie de fio condutor do programa, comentando aspectos centrais de sua reflexão como o papel fundamental da imaginação como forma de nos levar “para além do realismo dentro do qual estamos confinados”, o desejo de romper com a representação, de extrapolar, rasurar as imagens de forma a permitir experiências mais radicais com a realidade. Esta questão, segundo ela, é central no trabalho 2021, que deve apresentar em parceria com Musa Michelle Mattiuzzi na 34ª Bienal.
Os outros artistas presentes na live, por meio de vídeos gravados antecipadamente, também se debruçam, com intensidades e abordagens diferentes, porém complementares, sobre questões como apagamento histórico, manipulação de imagens e símbolos, revisitando pontos nevrálgicos da história que podem inicialmente ser mais restritos a uma determinada cultura ou momento, mas que acabam por reverberar com grande intensidade e brilho. É interessante notar também que a maioria desses trabalhos não se atém ao universo restrito das artes visuais, mas lida de forma intensa com a performance, o vídeo e a música. Dois Corais, da sérvia Ana Adamović, parte de uma fotografia antiga, presente em um álbum dedicado a Tito (líder da ex-Iugoslávia), na qual se vêem crianças surdas cantando. Algo paradoxal, que remete à violência ou desejo de forçar a vocalização em busca de uma certa normalidade, que Adamović problematiza ao recriar a cena, desta vez pedindo aos participantes do coro que cantem por meio de linguagem de sinais. Surpreende a musicalidade e diversidade no gesto desses voluntários.