Carlos Moreira (1936-2020) foi e é talvez a nossa melhor tradução do flâneur, descrita pelo poeta Charles Baudelaire e contada pelo filósofo Walter Benjamin. Um passeador. Seus passos e olhos sempre o levaram para percorrer as ruas das cidades, para registrar com sua câmera fotográfica e olhar atento o que acontecia ao seu redor.
Um bressoniano brasileiro. Admirador do fotógrafo francês Henri Cartier-Bresson (1908-2004), contava que foi com o francês que aprendeu a olhar a rua, o rigor do enquadramento, da espera para a foto perfeita e ao mesmo tempo de registar a espontaneidade da cena. Andar por aí era seu prazer, meditar outro. Gostava de mergulhar em seu interior para que pudesse, em suas fotografias, apresentar imagens ricas de emoções.
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Liberdade (1994) - Carlos Moreira. Foto: Divulgação
Guarujá (1981) - Carlos Moreira. Foto: Divulgação
Guarujá (1981) - Carlos Moreira. Foto: Divulgação
Estudou, verdade que só por um tempo – melhor seria dizer que passeou pelas faculdades de Engenharia, Psicologia, Sociologia e Filosofia entre os seus 22 e 28 anos. Mais tarde se formou em Economia. E isso lhe trouxe uma delicadeza que aflorava em suas fotografias. Foi mestre atencioso, ensinou a muitos a arte de olhar, de observar, sempre apoiado por uma delicadeza poética.
A fotografia foi a maneira que encontrou para se comunicar com as pessoas. Em uma entrevista que me concedeu em 2009, afirmou: “Gosto de fotografar e as pessoas gostam das minhas fotografias. Foi assim que me tornei fotógrafo. Me tornei alguém quando comecei a fotografar. Antes disso só flutuava pela vida”. Agora, Carlos Moreira se foi! Deixou inúmeros aprendizes, deixou inúmeros olhos que continuam procurando com a delicadeza que ele ensinou a ver o que não está aparentemente visível.
* Em 2019, na ocasião da retrospectiva de Carlos Moreira no Espaço Cultural Porto Seguro, o jornalista Hélio Campos Mello também escreveu sobra a obra de Moreira: “[A obra] vem à luz através de câmeras e técnicas escolhidas de maneira saudavelmente eclética”. Leia a matéria aqui.
Solange Frakas, fundadora e diretora da Associação Cultural Videobrasil. Foto: Ale Ruaro
Após o início do período de isolamento social por conta do novo coronavírus, em meados de março, enquanto a maioria das instituições culturais do país correu para as plataformas virtuais para manter suas atividades e seu vínculo com o público, a Associação Cultural Videobrasil se manteve praticamente ausente das redes sociais. “Essa parada obrigatória, para mim, em um primeiro momento foi uma coisa meio paralisante mesmo. Não apenas pela questão da pandemia, que é trágica, dramática, mas que é muito acentuada e piorada pela nossa condição política”, afirma a fundadora e diretora da associação, Solange Farkas. “Fiquei de fato tentando pensar sobre o que está nos acontecendo e como reagir a isso. Repensar inclusive o nosso modo de operar. Acho que têm questões tão sérias, tão profundas, que isso tudo nos faz repensar o papel da arte, o papel dessas estruturas e de como elas vinham funcionando”, completa.
Em linha semelhante ao que escreveu recentemente o líder indígena Ailton Krenak, Solange recusa a ideia de que, após a pandemia, devemos voltar à vida como era antes. “Não vamos tentar continuar numa normalidade que não existe. Eu acho que tudo isso que está nos acontecendo não é gratuito. Como o Krenak fala, essa é uma crise da humanidade, do ser humano. O problema não é o mundo, a natureza, os animais. Somos nós. Quem está doente somos nós.” Em entrevista à arte!brasileiros, a diretora do Videobrasil, associação que realiza ao lado do Sesc um dos mais importantes eventos no calendário das artes visuais do país, a Bienal Sesc_Videobrasil, confirma que a próxima edição da mostra, programada para 2021, será adiada, possivelmente para 2023. Com curadoria do carioca Raphael Fonseca e da senegalesa Renée M’boya, a 22a Bienal já estava sendo concebida, mas deverá ser repensada não só por conta da pandemia, mas também da situação política do país.
“É impossível planejar qualquer projeto diante de um governo que desrespeita a cultura, ataca a cultura, elimina a cultura. Na verdade, isso diz respeito à cultura, à imprensa e às instituições democráticas, nesse flerte claro com o totalitarismo”, afirma Farkas. Para ela, os tempos atuais remetem ao início do VideoBrasil, ainda nos anos 1980, quando o então festival precisava submeter à censura os vídeos que seriam exibidos. “Parece que eu estou revisitando, desgraçadamente, um momento que passamos lá atrás”. Neste sentido, completa, “acho que este momento nos obriga a resgatar um pouco o espírito marginal que permeava a criação artística antes dessa profissionalização toda”.
Enquanto associação que trabalha com a produção advinda do chamado Sul Global – termo que se refere à condição cultural, econômica e política de países e territórios à margem da modernização hegemônica e do capitalismo central -, o Videobrasil se reinventou ao longo das décadas, deixando de ser exclusivamente voltado para o vídeo, expandindo seu acervo e programa de pesquisa permanente e alterando o status de seu principal evento de festival para bienal. Tratou, ao longo dos anos, de temáticas que se apresentam cada vez mais urgentes no panorama global, das feridas do colonialismo e do racismo estrutural à violência do Estado e ao papel da memória na sociedade. Temáticas que, muitas vezes, não recebiam o mesmo destaque que agora ganham no mundo das artes. “Acho, sim, que deve-se olhar esse movimento com cautela. Pois não é exatamente a arte, mas é o mercado quem está olhando para esse lugar. E qualquer coisa chancelada pelo mercado, sobretudo esse mercado predador, eu não vejo com bons olhos, não acho saudável.”
Na entrevista, Farkas fala ainda sobre o acervo do Videobrasil, que deverá ganhar maior destaque no trabalho da instituição nos próximos tempos, e sobre as várias questões colocadas pela pandemia e pelas crises política e econômica no Brasil. Leia abaixo.
ARTE!✱ – Estamos passando por uma enorme crise, sem precedentes, por conta da pandemia do coronavírus. Então eu queria começar perguntando como vocês estão lidando com esse momento no Videobrasil? Quer dizer, o que é possível fazer ou planejar neste contexto?
Solange Farkas – Desde o dia 14 de março nós fechamos o escritório Videobrasil por conta do isolamento social. E desde lá estamos trabalhando de casa, usando as mídias de comunicação para poder pensar, ou repensar, o que fazer. E essa parada obrigatória, para mim, foi uma questão que bateu muito forte. Em um primeiro momento foi uma coisa meio paralisante. Acho que fiquei uns dois meses sem querer pensar em nada imediato, em nenhum projeto para o agora. Fiquei numa ansiedade um pouco paralisante mesmo. E uma coisa provocada por tudo, não apenas pela questão da pandemia, que é trágica, dramática, mas que é muito acentuada e piorada pela nossa condição política. Então são camadas e camadas de notícias terríveis vindas de todo o mundo – e as nossas, particularmente terríveis. Então diferentemente de outras instituições culturais que ficaram tentando manter sua audiência e seu diálogo com o público, criando projetos online, lives etc., eu não quis, nem consegui, lidar com isso. Fiquei de fato tentando pensar sobre o que está nos acontecendo e como reagir a isso. Tentando achar um sentido no modo como operávamos. Só depois desse tempo, então, eu resolvi reorganizar um pouco as coisas. O momento dessa parada também foi muito maluco, porque estávamos em pleno processo criativo da próxima bienal. Estávamos para anunciar o open call agora em junho, com os curadores játrabalhando, com artistas convidados. Então foi uma parada no meio do processo. E agora vamos comunicar o cancelamento da bienal do ano que vem.
Sim, eu tinha duas exposições para esse ano. Primeiro a itinerância, que ainda vai acontecer em Campinas quando o Sesc reabrir, porque teria inaugurado em abril, mas em Rio Preto, que seria em setembro, foi cancelada. E uma exposição que eu estou trabalhando há alguns anos, sobre a questão do Antropoceno, em parceria com o Ilmin Museum of Art, da Coreia do Sul. E este projeto previa um intercâmbio. Nós levamos para lá, em 2019, os artistas brasileiros. E aqui viriam os artistas coreanos em dezembro deste ano, no Sesc Bom Retiro. E a mostra foi cancelada também.
E a 22a Bienal de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil, que seria em outubro de 2021 no Sesc 24 de Maio, foi cancelada pelo Sesc e ainda estamos sem perspectiva de retomada. Enfim, estamos vivendo esse momento de incertezas de todas as ordens. Isso alterou o calendário mundial das artes, que vai ter que ser totalmente realinhado. Até porque eventos de arte, em geral, estão sempre tentando responder a questões do cotidiano, do hoje, às questões políticas. E com um abalo dessa ordem você fica muito inseguro com o que dizer ou como responder à questões tão profundas. Então precisa realmente de um tempo para repensar tudo. Repensar inclusive o nosso modo de operar. Eu acho que têm questões tão sérias, tão profundas, que isso tudo nos faz repensar o papel da arte, o papel dessas estruturas e como elas vinham funcionando. Eu começo a entender, agora, esse momento em que estamos como um novo ponto de partida mesmo, que pode nos oferecer uma oportunidade única. Claro, em uma situação privilegiada, no nosso caso, porque a gente pode se permitir isso, mas para pensar, por exemplo, como combater esse modo pelo qual o sistema neoliberal em que vivemos coloniza a nossa subjetividade. Tem tantas questões em jogo…
ARTE!✱ – Pensando nesses reflexos globais, o Videobrasil desde sempre priorizou este olhar para o Sul Global, este Sul geopolítico que incluí países e grupos à margem do capitalismo central. De que modo você enxerga esse mapa geopolítico neste momento de pandemia? O que está acontecendo no mundo escancara ainda mais esse desequilíbrio e desigualdade global? Ou talvez seja uma possibilidade para rearranjos nesse mapa?
Olha, acho que de fato escancara as diferenças, de todas as ordens. As diferenças sociais, econômicas, raciais. Sabemos que os países do Sul Global são atingidos mais duramente por uma crise como essa. As diferenças de fato são expostas. E somos o lado sempre mais frágil, fato que tem a ver com uma questão social e econômica. Mas ao mesmo tempo existe uma coisa interessante – se é que é possível falar de alguma coisa interessante nesse momento em que há tanto sofrimento, tantas pessoas padecendo -, que é que todas as grandes certezas, as diretrizes sempre colocadas de lá para cá, do Norte para o Sul, estão sendo postas em cheque. Elas foram um pouco por água abaixo. Nesse sentido, estamos um pouco parecidos. E com certeza, quando passar um pouco o ápice de tudo isso, talvez a gente esteja um pouco à frente em relação a algumas alternativas e saídas. A gente vive em crise permanente. E se essa situação da pandemia se coloca para todo o globo, nós que vivemos em países subdesenvolvidos, em condições subalternas à esse lugar do mundo onde o dinheiro circula, sempre tivemos que lidar com a precariedade e achar alternativas, sobretudo no campo da arte e da cultura, claro.
E particularmente no caso do Videobrasil é interessante pensar como o vídeo, nesse momento, ocupa um lugar central em todos os campos da cultura. O vídeo é o modo de comunicação, é a expressão possível nesse momento, é o que está nos conectando. Ele ocupa um lugar central nesse contexto. E para nós é interessante pensar sobre isso. Muita gente me pergunta por que o Videobrasil não está fazendo coisas online. Primeiro porque essa condição forçada me permitiu esse privilégio, de certa forma, de pensar mais profundamente sobre nossas ações, sobre o papel que ocupamos e sobre como lidar com isso tudo a partir de agora, mantendo um lugar de relevância para o cenário das artes nesse lugar do mundo – o Sul – onde somos uma janela importante.
E assim surgiu essa ideia de se voltar mais para esse lugar do vídeo, que temos no nosso DNA. Temos um acervo muito importante, de 35 anos, com a produção desse lugar do mundo. E essa crise toda, todo esse movimento, me fez pensar, principalmente agora com essa perspectiva, ou falta de perspectiva, sobre quando vamos voltar a ter a bienal, de que forma e com que suporte. Repensar como vamos atuar. E pensar em como o acervo pode ser esse novo lugar. Porque nesses anos todos o acervo tem para mim essa importância não apenas na questão da memória – dessa produção sensível desse lugar do mundo -, mas também como um lugar que alimenta e retroalimenta a própria atividade da associação.
ARTE!✱ – E de que modo se daria esse olhar mais intenso para o acervo?
Estamos desenvolvendo nossa nova plataforma, que é o Videobrasil online, para pensar em como agir no universo virtual. Continuar fazendo as curadorias, trazendo curadores da África, América Latina, América Central, como já fazemos, para colocar em destaque artistas importantes que estão neste acervo, fazer exposições individuais e coletivas, tudo isso no universo do Videobrasil online. Se era algo que já existia a possibilidade de ser trabalhado, me parece que esse é o momento. Então depois desse momento do impacto, da paralisia, de uma certa depressão, eu estou agora concentrando esforços e pensando, a partir do acervo, nessas ações, em como continuar contribuindo com essa plataforma do Videobrasil online para essa produção desse Sul Global.
ARTE!✱ – Tem uma coisa que me veio à mente, quando você falou dessa certa paralisia que te tomou, que tem a ver com algo que o Ailton Krenak escreveu recentemente, de que isso tudo que está acontecendo pode ser a obra de uma mãe amorosa, a Terra, que decidiu fazer seus filhos se calarem pelo menos por um instante, por querer lhes ensinar alguma coisa…
Claro. E vou dizer mais, esse livro do Krenak (O Amanhã Não Está à Venda), assim como o anterior (Ideias para Adiar o Fim do Mundo), caiu para mim como uma bomba, no melhor sentido. Ou seja, vamos prestar atenção. Não vamos tentar continuar numa normalidade que não existe. Eu acho que tudo isso que está nos acontecendo não é gratuito. Como o Krenak fala, essa é uma crise da humanidade, do ser humano. O problema não é o mundo, a natureza, os animais. Somos nós. Quem está doente somos nós. E nesse sentido eu acho que os povos originários têm muito, muito, a nos ensinar, a nos dizer. Precisamos prestar atenção nisso. E realmente para mim isso virou um oráculo.
ARTE!✱ – Agora, para além das desigualdades globais de que falamos, a pandemia tem escancarado também as enormes desigualdades internas dos países. Só para dar um exemplo, um boletim recente da prefeitura de São Paulo revelou que o risco de morte de negros por Covid-19 é 62% maior do que de brancos…
E isso diz muita coisa.
ARTE!✱ – E essas desigualdades vem sendo tratadas há muito tempo no Videobrasil. Na última edição, por exemplo, isso foi muito forte. As coisas que estão acontecendo revelam uma urgência ainda maior de tratar destes assuntos, seja nas artes ou na sociedade como um todo?
Acho que as coisas não estão descoladas. A arte é uma experiência humana, absolutamente necessária. Sabemos disso. Aliás, é a alma da coisa. Não vejo nunca como desconectar a arte da vida, da experiência humana, do cotidiano, da política. Então são coisas que estão juntas, e só fazem sentido juntas. Não dá para pensar a produção artística como um artefato para poucos. Não é perfumaria, é o alimento, digamos assim. Então, pensar todas essas questões que nós temos trazido insistentemente nas nossas ações, isso é como um programa mesmo do Videobrasil, tentar contribuir com esse pensamento, abordar essas questões que dizem respeito não apenas à produção do simbólico, mas à vida, às diferenças cada vez mais acentuadas que existem. E a última edição do Videobrasil parece que era premonitória, de certa forma, quando falávamos dos povos indígenas e trabalhávamos essa ideia das comunidades de afeto. A nação não como Estado, mas a nação como esse Estado que você escolhe, essas comunidades. Não necessariamente a que você nasceu, mas também aquela que você escolhe por afinidade, por afeto.
No Martins, #JÁBASTA!, 2019, acrílica sobre tecidos diversos. Foto: Divulgação.
ARTE!✱ – Falando dessa coisa premonitória, pensei agora na obra do No Martins na última bienal, com pinturas de rostos negros e o escrito “Já Basta”. Bom, nas últimas semanas assistimos, a partir dos assassinatos do americano George Floyd, e no Brasil do menino João Pedro, a explosão de manifestações e da discussão sobre o racismo estrutural que forma as sociedades americana, brasileira e muitas outras. Como você tem assistido esses fatos recentes e a eclosão desse debate sobre racismo?
Eu acho, claro, que a questão do isolamento social faz com que a gente perceba mais certas coisas. Porque quando você está numa situação de normalidade, as pessoas passam batido por isso, em geral. As pessoas não olham para o outro, não olham para essas questões. Mas essa questão da diferença social, essa questão do racismo, que é um racismo estrutural, o nível e o grau de violência contra a comunidade negra, assim como a indígena, isso sempre existiu. Foi preciso agora essa explosão nos EUA para as pessoas aqui entrarem nessa campanha. Às vezes até me deprime um pouco, porque eu vejo gente que não está nem aí, que não percebe o que está acontecendo, mas fica reproduzindo nas redes essa campanha. É um certo cinismo.
Então acho que esse é um lugar importante que o Videobrasil ocupa, de alertar, de fazer com que as pessoas olhem para esses lugares. E pensando no lugar de fala dessas comunidades. Não apenas a negra, mas os povos indígenas. Com os povos indígenas eu acho que é pior ainda, porque nem são considerados gente. É uma coisa muito louca, muito perversa. Então acho que a pandemia está ajudando também a olharmos essas nossas fragilidades enquanto sociedade. Acho que nunca foi tão evidenciado como agora essa personalidade brasileira tão racista, tão superficial. E talvez, a partir desse momento, alguma coisa pode de fato começar a acontecer. Acordar as pessoas para essa questão política, para o racismo escancarado, para essa desgraça, essa lástima que é esse atual governo, autoritário, fascista. Por que é que estamos passando por isso? De onde surgiram essas pessoas? O que é isso? Por que não reagimos? São questões que alguma hora iam explodir. E acho que a pandemia nos força a pensar nessas questões, a olhar para esse lugar.
ARTE!✱ – Falando sobre a produção artística das comunidades indígenas, de negros, periféricos, LGBTs, mulheres e outros grupos historicamente oprimidos, essa é uma produção que tradicionalmente pouco circula no sistema institucional e no mercado das artes. Mas parece que isso está mudando nos últimos anos e que tanto as grandes instituições quanto o mercado têm se voltado com muita força para essas produções. Queria saber como você enxerga esse movimento. E se ele é algo a se comemorar ou a se olhar com cautela.
Olha, eu acho delicado, desconfio um pouco disso. Acho sim que deve-se olhar com cautela. Claro, parece tão importante as artes olhando para a produção destes artistas negros, indígenas, e com essas questões políticas em pauta. Mas não é exatamente a arte, é o mercado que está olhando para esse lugar. E qualquer coisa chancelada pelo mercado, sobretudo esse mercado predador, eu não vejo com bons olhos, não acho saudável. Pelo contrário, acho muito nocivo. Tende a banalizar, é perverso.
ARTE!✱ – Não é um olhar genuíno?
Não. Acho que descobrem esses lugares, percebem que há uma produção potente e que há um momento favorável, em que esses trabalhos vendem. Mas não mexem um centímetro para mudar, por exemplo, as condições de produção para esses artistas. Porque essa pesquisa que nós do Videobrasil fazemos – e outras instituições do mundo também, que têm essa perspectiva mais política e ligada às questões sociais que envolvem a produção artística -, essa pesquisa demanda um tempo, recursos, deslocamento. Porque nesses lugares há uma produção absolutamente potente e extraordinária não apenas no sentido, mas na própria operação, no fazer. E há 30 anos temos feito esse trabalho de colocar um pouco um foco de luz em um lugar que está na sombra. Lugares imensos, no Brasil, na América Latina, na África principalmente.
Além disso eu acho que, no cenário das artes, há também um esgotamento nesses países do Norte. Por que é que, já há algum tempo, esse mundo da arte global – Europa, EUA etc. – começa a olhar para esses lugares chamados subdesenvolvidos? Por uma necessidade, porque é preciso, por um esgotamento deles. Então você vê curadores viajando para o Sul, indo atrás. E isso é algo recente, historicamente. E eu sempre achei que precisávamos estar preparados para esse momento, porque essa relação precisa ser equilibrada. Isso é muito importante. E é claro que eu vejo com muita precaução esse afã do mercado. Porque banaliza, cria rótulos. Temos que ir com cuidado. Mas, também, os artistas não são bobos. São potentes, são espertos. Muitos artistas, curadores e gestores destes lugares mais à margem são muito politizados, muito articulados. Então eles também ficam com um pé atrás com a gente, por razões óbvias. E eles têm uma consciência do lugar que eles ocupam no mundo. E acho que essa é uma grande diferença destes artistas que vêm destes lugares mais subjugados, que sofrem preconceitos, para esses artistas brancos, de classe média, que participam de todas as feiras etc. Tem uma diferença no discurso, na atitude, e isso está impresso também na produção. Por isso a potência do trabalho dessas pessoas, por isso a potência da produção indígena. É uma loucura pensar que os indígenas brasileiros, que são das comunidades originários do globo que vivem em situações mais subjugadas e precárias, tem uma produção tão extraordinária. Então por que é que nós no Videobrasil temos tanta força e energia, apesar de tudo? Porque a gente lida com essa produção tão potente, tão necessária, que pode ajudar tanto nessa reflexão sobre o mundo.
ARTE!✱ – Bom, falando um pouco mais especificamente da política nacional, independentemente da pandemia já existia no Brasil um quadro muito conturbado e ameaçador para a cultura nos últimos tempos. Existe um governo que parece ver as artes, a cultura, como inimigos. Como você vê esse quadro e como é possível trabalhar nesse momento?
A gente vem em um declínio desde o golpe que tirou a Dilma Rousseff. E agora com a cultura declarada como inimiga, que é uma prática típica do fascismo – historicamente nós sabemos disso. Agora, é claro que é impossível planejar qualquer projeto – como a bienal – diante de um governo que desrespeita a cultura, ataca a cultura, elimina a cultura. Na verdade, isso diz respeito à cultura, à imprensa, às instituições democráticas, nesse flerte claro com o totalitarismo. Então a situação é paralisante. Você não tem nenhuma mobilidade, porque você não tem nenhum mecanismo para produzir, nem minimamente.
ARTE!✱ – Financeiramente a situação se torna inviável?
Desde o governo Temer até agora, pensando em uma política pública para a cultura, não existe. Existe, na verdade, um ataque, um desmonte. Se não fosse o Sesc, que eu digo sempre que é a nossa política cultural – sobretudo o Sesc-SP, que tem essa figura extraordinária que é o Danilo Miranda, que é um humanista, um homem sensível e um gestor extraordinário -, a gente não teria feito a bienal desde 2016. Porque não há condições para fazer. Ou você tem que se reinventar, de fato, ou esperar esse terremoto passar. E nesse sentido a pandemia nos tira totalmente de uma zona de conforto. Recentemente me perguntaram sobre como a arte pode se manter, como pode reagir a tudo isso. Eu acho que este momento nos obriga a resgatar um pouco o espírito marginal que permeava a criação artística antes dessa profissionalização toda. Porque as estruturas, os tentáculos para manter uma produção, as instituições, o financiamento, o modo de exibição, acabam também afetando muito a produção em si. A produção acaba sendo muito moldada para atender essas demandas, que não deixam de ser demandas desse mundo neoliberal, onde o mercado está acima de tudo. Pensando do ponto de vista da criação, o artista precisa de todos esses aparatos para produzir? Claro que não. Claro que é importante, mas talvez agora tenhamos que ser um pouco mais livres, voltar lá para trás, em um tempo anterior a esse boom das artes.
ARTE!✱ – Falando em voltar lá para trás, o primeiro festival Videobrasil foi realizado em 1983, ainda no final do período da ditadura. Olhando para lá e pensando no momento atual, você enxerga paralelos?
É muito parecido. E isso é uma loucura. Parece que eu estou revisitando, desgraçadamente, um momento que passamos lá atrás. Quando começamos o festival, em 1983, era um momento de abertura política, e ainda existia um mecanismo de censura do Estado muito forte sobre a arte. Então nos primeiros cinco anos de Videobrasil eu submetia todas as obras, antes de exibir, para a censura. E a censura vetou vários trabalhos. Fui processada várias vezes por exibir trabalhos que tinham sido censuradas. Então a gente vem desse lugar e está voltando para esse lugar, do ponto de vista da política, muito triste.
ARTE!✱ – Inclusive a censura voltou a ser um assunto…
Sim, ela existe agora com outros mecanismos. Na medida em que você não pode produzir, não consegue falar o que pensa porque não tem condições para isso, é um modo de censura.
ARTE!✱ – Em entrevistas que fiz recentemente com gestores culturais de instituições brasileiras, o Danilo Miranda disse que em muitos aspectos este é um governo ainda pior para a cultura do que foi a ditadura militar, e o Ricardo Ohtake disse ver traços até do nazismo no atual governo…
Concordo com ambos. Na ditadura as coisas eram mais claras né? E quanto ao nazismo, é perceptível. Não sou eu ou o Ricardo que estamos dizendo, são eles mesmos que fazem manifestações nesse sentido. É uma caricatura do nazismo. Eles reproduzem gestos, tentam resgatar isso. Tristes de nós. E é doloroso pensar que esse cara foi eleito. Mesmo que a gente saiba sob quais condições, mas ainda assim. O que é esse Brasil? O que é esse pedaço do Brasil doente, que ainda hoje apoia esse cidadão? De onde veem essas pessoas tão sinistras que fazem parte desse governo? Então nós somos uma sociedade esquizofrênica, que precisa ser tratada coletivamente.
Para celebrar o lançamento virtual da publicação educativa da 34ª Bienal de São Paulo – Faz escuro mas eu canto,Primeiros ensaios–, a Bienal faz três encontros com temáticas relacionadas aos conteúdos contidos na sua publicação. Cada transmissão conta com a participação gravada de autores e artistas que colaboraram com a publicação e ao final é aberto um espaço para comentários e perguntas (para participar basta clicar aqui). Além disso, uma exposição virtual de Deana Lawson integra ações virtuais da instituição.
Folhas de capa e de rosto da publicação Primeiros Ensaios. Foto: Divulgação.
Primeiros Ensaios
O livro aposta no pensamento do filósofo e poeta martinicano Édouard Glissant ao reconhecer o esforço e a complexidade exigidos para não nos relacionarmos por um único ponto de vista com os conhecimentos que são assimilados e com as realidades que nos cercam. Em nota, o curador geral da 34ª Bienal, Jacopo Crivelli Visconti, afirmou que “nunca temos a ambição de explicar as coisas do começo ao fim, porque nossa visão é a mesma do Glissant, de que sempre há uma parte do outro, uma parte grande ou pequena, que você não vai entender. E o esforço que se faz é para que você tenha uma relação com esse outro, mesmo não entendendo”.
Em 10 de junho, a conversa será feita a partir do meteorito do Bendegó. Encontrado no sertão brasileiro, na Bahia, em 1784, o meteorito resistiu ao fogo do Museu Nacional no Rio de Janeiro em 2018. Esse também foi o maior siderito vindo do espaço que fora encontrado em solo brasileiro. No livro, o meteorito aparece como um enunciado para abordar noções de resistência, perenidade e resiliência. Para a conversa, a Bienal traz a curadora de meteorítica do Museu Nacional, Maria Elizabeth Zucolotto, e o artista indígena Gustavo Caboco.
No dia 11, a professora Christine Greiner e a artista Eleonora Fabião falam sobre o sino da capela do Padre Faria, datado de 1750 e localizado na cidade mineira de Ouro Preto, que foi tocado em duas ocasiões marcantes na história do Brasil: o dia da morte de Tiradentes e na inauguração de Brasília. No livro, o sino é utilizado em um ensaio prático, uma proposta de exercício artístico focado nas relações entre corpo, som, repetição e memória.
Já no dia 12, serão abordadas temáticas em torno dos retratos de Frederick Douglass. Hoje, Douglass é reconhecido pelo pioneirismo na compreensão da circulação da imagem fotográfica como instrumento político capaz de reiterar ou contrapor estereótipos de raça. Na publicação da Bienal sua figura mobiliza pesquisas relacionadas a essas questões e à autorrepresentação. Para contribuir com o debate foram chamados o jornalista Nabor Jr. e o artista Daniel de Paula, que irá abordar também o Teatro Experimental do Negro.
Com uma série inédita realizada em Salvador (BA), comissionada pela Fundação Bienal, a fotógrafa estadunidense Deana Lawson inaugura nova individual na Suíça. A exposição parte da pesquisa da fotógrafa sobre as diásporas africanas em vários lugares do mundo e estreia no Kunsthalle Basel, na Basileia, compondo uma das múltiplas ações expandidas da 34ª Bienal de São Paulo. Centropy apresenta imagens meticulosamente encenadas, mas profundamente íntimas, que exploram a endumentária, hábitos cotidianos e interiores domésticos de tais diásporas africanas. Mantendo um olhar atento aos estereótipos nos retratos ocidentais de africanos e afrodescendentes, Lawson captura construções inesquecíveis da vida negra contemporânea.
A versão online dos Primeiros ensaios já está disponível para download e leitura neste link.
Confira também os outros conteúdos disponibilizados no site da Bienal aqui.
Desenho do artista britânico Banksy. Foto: Divulgação
Na Inglaterra e na Bélgica, monumentos foram destruídos na esteira dos movimentos antirracistas desencadeados pelo assassinato brutal de George Floyd por um policial, nos EUA, há duas semanas, trazendo uma discussão muito necessária: esculturas públicas que exaltam líderes genocidas merecem ser mantidas?
No dia 7 de junho, em Bristol, manifestantes jogaram no rio Avon a estátua de Edward Colston, um traficante de pessoas escravizadas, responsável pelo tráfico de 80 mil africanos, sendo que 20 mil deles morreram no mar.
Já em Antuérpia, nesta terça, 9 de junho, a estátua de Leopoldo II, incendiada na última semana, foi retirada da praça pública para ser inserida em um museu. O monarca, que reinou entre 1865 e 1909, foi o responsável pela morte de 10 milhões de africanos, a maioria da República do Congo, que era uma possessão pessoal de Leopoldo II (1835–1909).
Por aqui, este debate não é novo, especialmente em São Paulo, com vários monumentos que exaltam os milicianos do período colonial brasileiro: os bandeirantes. Dentre eles, o mais famoso, o Monumento às Bandeiras, no Ibirapuera, é o que tem como autor um dos mais reconhecidos artistas modernistas, Victor Brecheret. Inaugurado em 1953, uma maquete da obra chegou a ser exposta na Semana de Arte Moderna de 1922, o que revela o caráter elitista do movimento. Afinal, as bandeiras, como explicam Lilia Schwarcz e Heloisa Starling em Brasil: uma biografia, “dizimaram populações locais”. Essas bandeiras “assumiram a forma militarizada de organização das expedições de caça e escravização dos índios ou de busca de metais preciosos”.
Já há sete anos, em 2013, o monumento de Brecheret foi alvo de um protesto, tendo sido manchado com tinta vermelha. “Ela deixou de ser pedra e sangrou. Deixou de ser um monumento em homenagem aos genocidas que dizimaram nosso povo e transformou-se em um monumento à nossa resistência”, escreveu na época Marcos Tupã, coordenador da Comissão Guarani Yvyrupá. O fato ocorreu quando se discutia a PEC 215 (Proposta de Emenda à Constituição) que transferia a competência da União na demarcação de terras indígenas para o Congresso Nacional e possibilitava a remarcação das terras indígenas.
As manifestações antirracistas vêm colocando em xeque o que se considera como “história universal”. Em geral, essa história é um relato de homens brancos, que ignoram todos os conflitos e resistências, impondo uma visão única. Está na hora, portanto, de descolonizar nossa história e nossos símbolos, ressignificando esses monumentos que exaltam lideranças genocidas.
Em sua conta no Instagram, o artista Banksy faz uma ótima proposta para Bristol: recolocar a estátua de Edward Colston no pedestal, acrescentando, contundo, outras estátuas representando pessoas tentando derrubá-la, tornando permanente, assim, o gesto de reescritura da história.
Não se deve, afinal, apagar a história, ou mesmo fingir de conta que ela não existiu, como se fez com o período da ditadura militar no Brasil. A transição para a democracia sem o enfrentamento com o passado violento é um dos motivos para o pesadelo atual.
É preciso, portanto, rever esses monumentos e recontextualizá-los de forma a que não se esqueça o passado violento que se abateu sobre os povos indígenas, para que ele não mais se repita.
"Café da Manhã", 2001. Foto: Monali Meher/ Divulgação
* Por Marco Paulo Rolla
Na busca de reconhecer sentimentos que emergiram durante os dias em que nos encontramos reclusos, reconheço que um deles é de ter no corpo a memória do tempo performático, a auto submissão às restrições para criar situações onde o público e o artista experimentam mudanças de estado no tempo presente, na matéria sólida e no espaço sinestésico.
O performer vai se submeter a todas as restrições coerentes com a proposta do trabalho e estou consciente de que, no caso da Covid-19, não é uma escolha e somos obrigados a viver este tempo presente, a encarar solidões, a auto percepção dos pensamentos, sentimentos bons da independência obtida nesta solidão e sentimentos ambíguos, isto para citar alguns dos sentimentos possíveis na privação do livre arbítrio de ir e vir.
O tempo parece correr apressado porque estamos nele em um ritmo próprio, muitas vezes ralentado o movimento no dia, mas com o correr das horas muito mais rápido para a percepção de quem o vive no cotidiano em que estávamos imersos outrora.
O relógio se distancia e o tempo é vivência constante. O conceito de Arte e Vida ganha força e é um espelho para ajudar na aceitação da vida como ela está! No presente mais que “perfeito”.
No início do século XX, os artistas compreenderam a noção de Arte e Vida. A rica troca de conhecimentos e realidades que esta fricção pode gerar permitiu, desde então, o uso de objetos cotidianos, história, antropologia, atitudes e uma infinidade de materiais, o que permitiu o reconhecimento do corpo como obra. Este conceito foi mais e mais incorporado para trazer uma relação direta entre vida e arte. Experimentos com a performance no mundo, desde as ações dadaístas até o grande movimento performático que invadiu as artes nos anos 50, 60, 70 e nos dias de hoje, explicitam esta relação.
Mas, o que mais me interessa aqui, é o elo que podemos fazer com o que as pessoas estão vivendo com a situação de confinamento e as regras de movimentação social. Estas estão desenvolvendo em nós o senso de mudanças do “estado do corpo” pelo qual estamos passando e percebendo. Muitas vezes, não queremos sentir, não estamos preparados, mas perdemos a oportunidade de acalmar e respirar o tempo sem pressa. O artista da performance usa o tempo como um construtor da imagem/paisagem/acontecimento sob o olhar ansioso do ser humano tecnológico e industrial; imprime na mente a experiência do corpo em movimento sobre este tempo ou, ao reverso, do tempo em movimento sobre o corpo paralisado.
Há alguma semelhança no tempo que a pandemia nos colocou com o tempo provocado por uma performance de longa duração, considerando que na performance, outro tempo é construído para surgir uma nova percepção. Isto está acontecendo com todos em seu espaço íntimo, no tempo presente e no limite da casa/corpo. Dentro deste limite existe o “risco”, que é um outro dado fundamental da performance e também nos ronda agora. O limite, na verdade, é o que nos da a liberdade de expansão porque sabemos onde extravasarmos e não deixar extrapolar este contorno sem consciência e presença.
Temos a oportunidade de nos reconectar com nosso sentido próprio de tempo em cada ação realizada neste novo sistema em que estamos aprendendo a estar no agora.
Como acontece em uma performance, vamos nos colocar no centro dela, sendo o corpo vivencial. Assim, muitas sensações do espectador ansioso serão diluídas ao vivenciar o novo espaço em que vivemos o agora, imponderável, pois é a situação em que nos encontramos.
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"Cama, mesa e escada", 2010. "Foto: Ignácio Ribeiro/ Divulgação
"Cama, mesa e escada", 2010. "Foto: Ignácio Ribeiro/ Divulgação
"Cama, mesa e escada", 2010. "Foto: Ignácio Ribeiro/ Divulgação
"Objetos do Desejo", 1999. Foto: Arquivo do artista/ Divulgação
O performer, além de se deslocar no tempo, se coloca em rituais que tencionam estes limites muitas vezes incompreendidos por quem esta de fora na observação e, por ironia do destino, muito similar com o que estamos vivendo. A pandemia nos colocou um novo tempo em que, seria totalmente possível em uma segunda-feira parar e respirar com calma, coisa inimaginável de se vivenciar antes. Podemos relativizar imposições da indústria como os horários de nos alimentar, acordar, dormir e muitos outros aspectos de nossa vida hoje foram levados a um total desregramento nos dando uma realidade aleatória como um material a ser remodelado no tempo, que de tão dilatado parece pequeno.
Agora, cada um de nós, pode sentir em si como o performer usa o seu corpo criando energia adquirida na restrição, reinventando o momento vivido no presente! Muitas vezes, é desconfortável, mas por passar por aquele momento, tendo se submetido a toda ordem de situações desejadas e de acasos possíveis, ele encontra o alivio através de um outro estado que é alcançado quando concentramos em nossa percepção. Perceberemos que, com o passar do tempo de confinamento, vamos começar a ganhar nova energia, adaptando o psicológico e o sentir do tempo.
A arte nos ensina que podemos nos libertar da lógica na vida cotidiana a que fomos condicionados e que chamamos realidade na ética social imposta, desta maneira podemos transmutar o momento em ações corporais, estéticas e ações sobre o tempo vivido como nas performances de longa duração.
Podemos citar aqui o artista taiwanês Tehching Hsieh em sua performance: ONE YEAR PERFORMANCE 1980–1981 (veja aqui). Ele se confinou em um quarto, durante um ano e, a cada hora registrava sua presença em foto e filme, dia e noite, por 24 horas, assim um ano resultou em 6 minutos de filme. De novo a percepção do tempo sobre o corpo. Nas palavras do artista: “esta performance pode ser vista como uma repetição continua, mas em minha percepção, cada hora vivida intensamente não se repetia, era nova, porque estamos em um processo. O mais difícil foi dormir e acordar a cada hora, mas na vida é o mesmo, estamos sempre esperando a próxima hora, e temos que nos manter calmos. Um ano é o tempo que a Terra leva para circular o Sol. A Vida é a condição da Vida. A Vida é o passar do Tempo. A vida é o pensamento livre”.
A submissão ao momento vivido, é a base fundamental de uma ação performática. Mas, no Brasil, temos muita resistência a nos submeter a algo, pois temos uma noção distorcida, militarizada e torturante da disciplina, resultantes de nossa vivência no regime militar. Disciplina e submissão são muito importantes para se alcançar evoluções em nosso ser. O sujeito quer liberdade, mas não há liberdade sem limites, pois sem sabermos de nosso contorno perdemos a forma no espaço.
Hoje, quem está nos dando este contorno é a natureza, criando um vírus que de maneira muito viva, com energia muito criativa, vai devolvendo ao homem a violência depositada nesta natureza da qual somos parte.
Para se criar uma performance de longa duração é necessário criar estratégias de reconhecimento deste contorno, repetições que se renovaram a cada momento, como em um jogo de improviso. Muitos podem pensar que improvisar e fazer sem saber, mas ao contrario disto, o improviso exige, a priori, o conhecimento de uma base da forma, e assim podemos expandir e correr riscos pois sabemos para onde voltar com segurança, assim como voltar para casa em nosso cotidiano. O acontecimento regular cria a forma reconhecível, uma base, para que o inconsciente e o acaso ocorram sem perder-se no delírio e no emocional.
Os improvisos corporais exigem a atenção no tempo, no espaço e como o outro. Desde que entendi que o movimento e o corpo eram um material importante na minha linguagem, submeto este corpo a distintos treinamentos como: natação, yoga, dança, meditação, etc.…tudo que pode elaborar mais minha atenção e me dar resistência para suportar, psíquica e corporalmente, um novo estado. O Improviso, treinado na musica e na dança, me deu a habilidade de lhe dar com acontecimentos inesperados como parte integrante e desejada da obra.
Quem sabe esta noção vivida por nós possa trazer uma compreensão e aproximação das pessoas sobre as premissas criadas em uma performance de longa duração, para expressar a vida com a experiência corporal vivida no tempo?
A oportunidade aqui é de se criar consciência de seus próprios limites e se expandir, lapidando o espírito e o funcionamento de todo o corpo etéreo, energético e sinestésico. O tempo está suspenso como em uma performance, mas quantas vezes suportamos ser o expectador de uma performance por 2 horas? Hoje podemos nos localizar dentro deste espaço atemporal e parar de ser quem assiste para assumir sua presença na vida, parando de se sentir aprisionado e dependente das telas planas, iluminadas a frio, para não se sentir isolado. Estas telas são instrumentos importantíssimos neste momento onde não podemos nos conectar materialmente ao outro. É o único sistema seguro de dialogo e contato com o material e as necessidades da Vida. Mas, podemos agora que as funções capitais que nos faz viver na correria ralentaram, descansar os olhos e olhar para dentro, aceitando o tempo de reflexão, introspecção e vivencia de si. Por mais que esta experiência pareça solitária, está sendo vivida por todos os humanos na Terra. Quem não se submeter a ela se desintegrará!
Antônio Pitanga em Casa de Antiguidades. Foto: Carlos Eduardo Carvalho/ Divulgação.
Filme brasileiro com Antônio Pitanga, Casa de Antiguidades foi um dos 56 longas-metragens selecionados esse ano pelo Festival de Cinema de Cannes. A obra conta a história de Cristovam, um operário negro de uma fábrica de laticínios transferido para trabalhar em uma cidade fictícia de colonização austríaca no sul do Brasil. O filme – flertando com o folclórico e utilizando das memórias trazidas pela casa do título – toca em questões de ainda maior relevância na atualidade, como o racismo e o conservadorismo político; parte das cenas do longa foram gravadas em uma cidade catarinense que teve forte apoio do então candidato à presidência Jair Bolsonaro, por exemplo.
Antônio Pitanga em Casa de Antiguidades. Foto: Carlos Eduardo Carvalho/ Divulgação.
Sobre a obra, o diretor e roteirista João Paulo Miranda afirmou que “o filme tem o protagonismo de Antônio Pitanga, com seus mais de 80 anos, interpretando um homem que veio do interior de Goiás e que enfrentará violentamente um grupo ultra conservador no sul do Brasil. Isto o guiará num buraco negro profundo e complexo; que espelha um Brasil que está perdido no tempo, com cara dos anos 70”. E ele completa: “Para mim é necessário assumir o espirito vanguardista e usar todas minhas forças para uma linguagem digna aos grandes nomes do cinema”.
O Festival de Cannes, que seria realizado de 12 a 23 de maio com um júri presidido pelo diretor estadunidense Spike Lee, cancelou sua edição de 2020 por conta da pandemia de Covid-19. A não prorrogação vem de uma decisão da organização de respeitar a ocorrência de eventos cinematográficos mais próximos do final do ano, como Veneza e Toronto. Ainda assim, os 56 filmes selecionados têm o direito de ostentar o seu selo de aprovação oficial, mesmo que não tenham de fato concorrido aos prêmios como a Palma de Ouro.
O diretor artístico de Cannes, Thierry Frémaux, segundo a RFI, comentou sobre a situação do cinema no Brasil e expressou medo pelo futuro da Cinemateca, dizendo que “o Brasil vai mal, o cinema brasileiro está mal” e reiterando que “a Cinemateca está em grandes dificuldades”. A instituição cuida do acervo visual do país e corre perigo de parar de funcionar pela falta de recursos transmitidos. Uma petição, “Cinemateca Brasileira pede socorro”, foi criada em 15 de maio para reunir assinaturas que serão transmitidas ao governo federal através da Secretaria do Audiovisual, que tem à frente o roteirista Heber Trigueiro. Já assinaram a petição nomes importantes para a cultura brasileira como Walter Salles, Jean-Claude Bernardet, Ricardo Ohtake, Marcio Seligmann-Silva e Luis Peréz-Oramas.
O diretor Steve McQueen. Foto: BBC.
Além de uma maior presença feminina no festival e da inclusão de jovens diretores entre os selecionados, também é notável que não uma, mas duas obras, do premiado diretor britânico Steve McQueen tenham sido escolhidas. Lovers Rock e Mangrove integram Small Axe, sua antologia de cinco partes sobre a comunidade de West Indian, em Londres, no final dos anos 1960 até os anos 1980. O título vem de um provérbio de origem africana, que ressoa principalmente no Caribe: “Se você é a grande árvore, nós somos o pequeno machado”. O ditado foi popularizado em 1973 por Bob Marley.
Em comunicado à revista Variety, McQueen afirmou que os filmes foram dedicados a George Floyd e a “todos os outros negros que foram assassinados por causa de quem eles são, nos Estados Unidos, Reino Unido ou em qualquer outro lugar”. Vale lembrar que Small Axe foi uma comissão feita pela BBC, uma corporação pública da Inglaterra que emprega quase 19 mil pessoas e conta com contribuição de uma taxa de licença que é paga por todos os lares que possuem televisores.
León Ferrari. Sem título (1976). Foto: Divulgação.
A Galeria Nara Roesler comemora o centenário do artista argentino León Ferrari (1920-2013) com a exposição virtual León Ferrari em São Paulo, com curadoria de Luis Peréz-Oramas. A mostra acontece a partir desta quinta-feira, 4 de junho, no site da galeria e no Artsy. Foi também a Galeria Nara Roesler que fez, em 2013, a primeira mostra individual de envergadura após a morte do artista naquele ano, à época com curadoria de Lisette Lagnado e uma seleção de obras que abrangia o período entre 1962 e 2009.
Imagem ilustrativa da visitação virtual da Galeria Nara Roesler. Foto: Divulgação.
Desta vez, a metrópole paulistana é ressaltada como elemento participante do trabalho de Ferrari, devido ao seu exílio em São Paulo de 1976 a 1991. O artista veio ao Brasil para proteger sua família da hostilidade criada em seu país natal pela ditadura iniciada em 1976 e findada em 1983, quando a última junta militar convocou eleições em outubro, resultando na eleição de Raúl Afonsín, da União Cívica Radical.
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León Ferrari. Sem título (1976). Foto: Divulgação.
León Ferrari. Código de sinais secretos (1979). Foto: Divulgação.
Nos primeiros anos do seu estabelecimento em São Paulo – ainda marcado pela prisão ilegal e assassinato de seu filho Ariel pelas forças militares argentinas – Ferrari revisita sua prática do desenho abstrato, dominada por ele no início dos anos 1960. Desta vez, o artista apresenta um traçado gestual completamente novo, uma tipologia abstrata que lembrava línguas de fogo, metáforas para o inferno, cuja noção judaico-cristã seria abolida por Ferrari mais tarde em sua vida.
León Ferrari. Detalhe da obra Juízo Final (1985). Foto: Divulgação.
Para Pérez-Oramas: “As crenças ou descrenças de Ferrari passaram a incluir uma visão de textos sagrados judaico-cristãos como perversos chamados à exclusão, à tortura e ao crime”. Através da apropriação de imagens de guerras, da história e da história da arte, Ferrari utiliza a colagem para sua releitura da Bíblia e, mais especificamente, do inferno. A exemplo disso está o Juizo Final de Michelangelo, que foi submetido à defecação por pássaros em uma das suas grandes composições performáticas.
Apesar da crítica sarcástica ao poder e a religião ter marcado parte de sua obra, percebe-se logo que a chave do “ativismo” é redutora para explicar sua produção. A exemplo disso, a Galeria Nara Roesler traz na nova exposição trabalhos de Ferrari que comunicam o absurdo da vida comum, a alienação das multidões e a influência da cidade avassaladora que é São Paulo. As obras da série Arquitetura da Loucura manifestam-se em desenhos, gravuras, zianótipos, xeroxes etc.
Da esquerda para a direita: “Maquete para homem” (1962); Sem título (1978); “Amores de um prisma” (1977). Foto: Divulgação.
Sua prática escultórica também não fica de fora da exposição. Inclusive porque o ápice desta produção ocorreu enquanto Ferrari residia na capital paulistana. Utilizando arame de metal emaranhado, estruturas prismáticas semelhantes a gaiolas e volumes modulares similares a jaulas, parte de seus trabalhos feitos a partir deste meio tem escala monumental e são destinadas a eventos participativos, performáticos e sonoros.
Outras celebrações do centenário
Enquanto algumas exposições arquitetadas para comemorar o centenário de Ferrari puderam ser adaptadas para o ambiente virtual, duas retrospectivas em maior escala tiveram sua abertura física postergada. Uma na sua cidade natal, Buenos Aires, e outra na Espanha, em Madri.
Na Argentina, uma exposição antológica com objetos emblemáticos, desenhos, vídeos, esculturas e cerâmicas do artista tomará conta do Pavilhão de Exposições Temporárias do Museo de Bellas Artes. A mostra, sob curadoria de Andrés Duprat, diretor do Bellas Artes, e da historiadora Cecilia Rabossi, prevista para abrir no dia 13 de abril, foi cancelada e aguarda data de abertura. A exposição percorre todo o trajeto em vida do artista, reunindo obras pertencentes ao próprio museu, coleções privadas e públicas e trabalhos concedidos pela Fundación Augusto y León Ferrari Arte y Acervo, dirigida pela arquiteta Anna Ferrari e Julieta Zamorano netas de León.
Para Duprat, a retrospectiva é uma forma de justiça poética para reparar uma omissão do museu à obra de Ferrari. Como Leonor Amarante escreveu para a arte!brasileiros: “Ferrari não é unanimidade. Ele e sua obra já bateram e apanharam muito, o que fez dele um corajoso testemunho da destruição da substância das relações humanas. Ao longo de 60 anos de arte, viveu no contrafluxo do sistema, sendo empurrado aos infernos para emergir ainda mais forte”. A exemplo disso está sua premiação, em 2007, com o Leão de Ouro na Bienal de Veneza, vinda pouco depois de um embate com a igreja católica que levou à retaliação de sua mostra no Centro Cultural Recoleta, organizada por Andrea Giunta.
A exposição de suas obras no MNBA será precedida por uma seleção de fotografias e pinturas de Augusto César Ferrari, pai do artista, e continuada com a exibição do documentário Civilization, de Rubén Guzmán. Algo inédito serão os cadernos de León Ferrari, que não haviam sido expostos antes no Recoleta. Ao jornal argentino La Nación, Duprat comentou que Ferrari, nesse sentido, era como Leonardo: “Ele escreveu tudo. Eles são incríveis e mostram a gênese de suas investigações”.
Como parte da homenagem, no Reina Sofía*, a mostra La Bondadosa Crueldadcontará com uma importante doação da família do artista – cerca de 15 obras – e a exibição de trabalhos inéditos na Europa. Seu início, que estava marcado originalmente para o dia 28 de julho, ainda está em discussão. O museu destaca que não é possível ainda arriscar datas, dada a situação instável da pandemia em Europa.
*Museo Reina Sofía e a pandemia
O museu madrilenho entrou, ainda em abril, em contato com credores e instituições, estudando possibilidades de novas datas para empréstimos. O museu destaca o caráter provisório das medidas tomadas no momento, visto que as ações da instituição dependem não somente da situação na Espanha como da Europa inteira e além, já que algumas das obras vêm de diferentes países. Tanto que obras pertencentes ao Reina Sofía e que estão fora do museu permanecerão, pelo tempo necessário, nas instituições em que estão localizadas independente do término das exposições.
Fachada do Museo Reina Sofía. Foto: Divulgação
Em abril, Manuel Borja-Villel, diretor do Reina Sofía, publicou uma carta no site Artnet abordando os desafios trazidos ao mundo da arte pela pandemia e a necessidade de pensar no porvir. O diretor destacou a importância do programa de assistência do governo espanhol para a manutenção da equipe do Reina Sofía, e que o museu está trabalhando neste momento para tornar uma maior quantidade de material disponível gratuitamente, já que a instituição já havia comprado os direitos para tal.
Manuel Borja-Villel, diretor do Museo Reina Sofía. Foto: Europa Press News/ Getty Images.
Caminhando para o fim da sua declaração o diretor reforça a necessidade de não deixarmos os espaços públicos desaparecerem; “há um elemento de alegria, de aprendizado e de democracia em estar junto com outras pessoas”.
A vista aérea proporcionada pelo belvedere do monte sobre o lago Iseo transforma a instalação The Floating Piers naquela típica pincelada final que imprime num quadro a genialidade de um artista. O artista em questão é Christo, americano nascido na Bulgária, de onde fugiu do regime comunista em 1958. Hoje com 81 anos de idade, ele ficou conhecido nos anos 1970 por instalações monumentais em tecido, que realizava em parceria com a esposa, Jeanne-Claude (falecida em 2009), embora ela só tenha começado a ser creditada como autora a partir de 1994. Omitir a parceria foi uma decisão conjunta do casal para evitar o preconceito contra artistas mulheres no mundo da arte. Juntos eles cobriram, por exemplo, o Reichstag, o parlamento alemão, em Berlim, em 1995, assim como a ponte Neuf, de Paris, dez anos antes, e a costa de Little Bay, nos arredores de Sidney, em 1969.
Um mergulhador conecta um cabo de polietileno de peso molecular ultra-alto (UHMWPE), coberto com uma camada protetora de poliéster com uma carga de ruptura de 20 toneladas, a uma das âncoras no leito do lago para manter o cais no lugar 2016
The Floating Piers criou uma ponte entre o lago Iseo – localizado no norte da Itália, aos pés dos Alpes – e o mundo. Com três quilômetros de extensão de um lado e mais um e meio do outro, a passarela gigante conectou os povoados de Sulzano, na terra firme, à Montisola, na ilha à frente, unindo em menos de dois anos o que a natureza levou milênios para separar. Em cartaz por apenas duas semanas, a obra transformou o local em destino de viagem para quase um milhão de pessoas de todo o mundo, tornando o Iseu, pelo menos temporariamente, capital mundial da land art ou environmental art. Christo afirma que seu “trabalho é composto por muitos e diferentes elementos. A minha arte envolve arquitetura, paisagismo, urbanismo, pintura e escultura”.
O nome bíblico do artista, nascido Christo Javacheff, remete à óbvia metáfora do episódio mitológico do evangelho (em que Cristo, o filho de Deus, caminha sobre a água), evocando arquétipos e atraindo um público distante da arte contemporânea, mas próximo da fé religiosa. Para além dessas representações, a ponte flutuante funciona como passarela que conduz o público a uma experiência real com os elementos da natureza – pássaros, homens e peixes compartilham o mesmo meio ambiente. Sem corrimão ou balaustradas, o caminhante se equilibra sozinho, sente a passagem das ondas sob os pés descalços, de preferência – com a segurança garantida à distância por 25 botes, com mergulhadores prontos para qualquer emergência. “Este trabalho tem uma dimensão aberta. O visitante tem que caminhar dois quilômetros. É um projeto físico, real. Não é uma realidade virtual. Nada de ventos ou ondas ou fotografias virtuais, tudo nele é real. Sobre a passarela, o prazer é real, o medo é real”, afirma Christo.
The Floating Piers, (projeto para o Lago Iseo, Itália) Desenho 2016 em duas partes 15 x 96 “e 42 x 96” (38 x 244 cm e 106,6 x 244 cm) Lápis, carvão, pastel, lápis de cera, tinta esmalte, fotografias de Wolfgang Volz, mapa desenhado à mão e amostra de tecido Foto: André Grossmann
Mas mais do que a ligação física, o artista criou uma ponte flutuante entre o passado e o presente, entre o antes e o depois, pois a obra deve continuar ligando gerações a partir da memória de quem a viu e viveu pessoalmente, pelos 16 dias de sua existência. A instalação não é para sempre mas o seu legado desmaterializado, visual e artístico, sim. De matiz quase divina e onírica, a obra toca o inconsciente coletivo dos povos.
A realidade da produção do trabalho: Burocracia e financiamento
The Floating Piers é o resultado final de dois projetos naufragados na burocracia pública, ao longo de mais de quatro décadas. Em 1970, Christo e Jeanne-Claude tentaram sem sucesso realizar 2000 Metres Wrapped Inflated Pier, no rio da Prata, em Buenos Aires. O projeto foi repensado como The Odaiba Project, para o Odaiba Park, na baía de Tóquio, 26 anos depois, e novamente não conseguiu autorização. Christo revela que em quase 50 anos de trabalho a burocracia tem sido o maior desafio: “Dos 37 projetos para os quais pedimos permissão, temos apenas 22 projetos realizados. O The Floating Piers é o projeto número 37 e tínhamos perdido o interesse, pois achávamos que não conseguiríamos realizá-lo. “Mas, como dizia Jeanne-Claude, alguns projetos ficam no coração e na mente e sempre estão ali”, afirma o artista. A morte da companheira, em 2009, não cancelou o sonho do casal.
A obra efêmera se concretizaria em 18 de junho de 2016, com a abertura ao público, e duraria até o dia 3 de julho, à meia-noite. Dali em diante, começaria o desmantelamento de toda a estrutura, composta de correntes e fundações submarinas, 220 mil cubos de polietileno e 70 mil metros quadrados de tecido amarelo furtacor. Tudo vai ser desmontado e reciclado. Os dois anos de trabalho, um exército de mais de 500 pessoas e testes em lagos na Alemanha e no mar Negro, com milhares de horas e cálculos de engenheiros envolvidos na realização do projeto, vão se tornar memória. Depois disso, será possível conferir a exposição Christo e Jeanne-Claude, Water Projects em cartaz no museu Santa Giulia, em Brescia, até 18 de setembro de 2016. Lá estão expostas as amostras dos materiais usados no lago de Iseo, e 150 quadros, fotografias, maquetes e vídeos de obras realizadas em diferentes continentes e oceanos, mares e lagos podem ser admirados, como prévias desta obra-prima chamada The Floating Piers.
As obras de grande escala têm também grande custo e Christo ganhou notoriedade pela forma alternativa de financiamento que desenvolveu. O custo total dos projetos – 15 milhões de euros no caso de The Floating Piers – vai sendo amortizado a partir das vendas de quadros que retratam a visão da obra. Os desenhos preparatórios, limitados e exclusivos, que antecedem a execução da obra em si, são dados como garantia aos financiadores. Esse sistema capitalista inovador no campo da arte é reconhecido como um caso de estudo pela Universidade de Harvard, nos Estados Unidos. Depois da concretização da obra, Christo não a retrata novamente. Dessa forma, o artista cria um círculo virtuoso, no qual todos saem ganhando: os investidores, que lucram com a valorização dos quadros; as cidades, com a visita de milhares de turistas; o público, com a emoção que experimenta; e o artista, com a concretização do projeto.
Capa do Festival Latitude, promovido pelo Goethe Institut dos dias 4 a 6 de junho. Foto: Divulgação.
De quatro a seis de junho, o Goethe-Institut realiza o primeiro Festival Latitude em ambiente digital. Sob o mote Repensando relações de poder – por um mundo decolonizado e antirracista, o festival entrega uma programação totalmente gratuita centrada em como as estruturas coloniais surtem efeito até o presente e como elas podem ser superadas. O evento reúne referências internacionais da arte, ciência, cultura e política. Entre os participantes estão a politóloga Nanjira Sambuli (Quênia), a filósofa Denise Ferreira da Silva (Canadá), a performer Trixie Munyama (Namíbia), o historiador Ciraj Rassool (África do Sul) e o pesquisador de migração Mark Terkessidis (Alemanha).
O Latitude se divide em quatro complexos temáticos que abordam a perpetuação de estruturas coloniais, refletindo sobre: desigualdade econômica; identidade e memória; conduta frente a bens culturais; e desigualdade digital global. Ao lado de discussões, debates e entrevistas, serão exibidos filmes, performances, concertos e shows ao vivo através de streaming e por vídeos gravados.
Como é um festival internacional, as falas serão feitas em inglês ou terão tradução simultânea para o inglês. A arte!brasileiros destaca algumas atividades que serão realizadas:
Mostra Vila Sul (mostra): Vila Sul é a residência artística do Goethe-Institut em Salvador, na Bahia, destinada a artistas, intelectuais e pesquisadores cujas frentes de trabalho tenham como tema principal o hemisfério sul. Devido à pandemia do Covid-19, os atuais “residentes” da Vila Sul – Thó Simões (Malanje), Koffi Mensah Akagbor (Ouagadougou), Émilie B. Guérette (Montreal) e Renata Martins (Bonn) – não conseguiram viajar para Salvador e estão concluindo sua residências digitalmente, o que também é uma nova experiência para a instituição. Dessa forma, os resultados iniciais de seus trabalhos serão apresentados virtualmente no festival Latitude.
Como parte do programa, o artista residente Koffi Mensah Akagbor participa da mostra Metal contra as nuvens; a crítica de arte Renata Martins é a responsável pelo conceito para a exposição TransAções – ambos podem ser acessados no portal do Goethe-Institut a partir do início de 4 de junho. Já no dia 5, Émilie B. Guérette participa de uma conversa sobre mulheres cineastas de diferentes origens, mas com um interesse comum: questionar a ordem colonial e patriarcal do mundo através de seu trabalho.
Espaço do Goethe-Institut em Salvador, na Bahia, onde é realizada a residência Vila Sul no Brasil. Foto: Divulgação.
Resistindo ao extrativismo (painel): Moderado pela teórica cultural Lotte Arndt, o painel reúne artistas que desenvolvem, em seus respectivos contextos, estratégias visuais para resistir ao extrativismo. A artista e curadora Rachel O’Reilly comentará seu documentário Infractions (2019), que aborda o futuro da extração de gás na Austrália, em especial através do processo de fraturamento hidráulico – o “fracking”. O documentário baseia-se em anos de pesquisa e entrevistas, e questiona a relação incomum da cultura contemporânea e das artes com o extrativismo. O fotógrafo congolês Sammy Baloji falará sobre seu trabalho focado nas consequências da mineração colonial na região de Lubumbashi, República Democrática do Congo.
DIA 5
Memórias de uma câmera, para o esquecimento humano (exibição): Programa desenvolvido em conjunto com o Arsenal – Instituto de Cinema e Videoarte, sediado em Potsdamer. Seu título foi retirado do filme Forgetting Vietnam, de Trinh T Minh-ha, devido à exploração realizada pela cineasta vietnamita da reparação através da recontagem poética da história. Essa característica une os filmes do programa, além do seu interesse pela demonstração das estruturas desiguais de poder e o trabalho de perturbá-las. O resultado é uma coleção de obras subversivas dos artistas Lemohang Jeremiah Mosese, Ng’endo Mukii, Christa Joo Hyun D’Angelo, Wendelien van Oldenborgh, Jessica Lauren Elizabeth Taylor e Thirza Cuthand.
Aprendendo uns com os outros – a restituição como desafio ético e jurídico (painel): Tendo como ponto de partida a publicação do relatório de restituição elaborado por Bénédicte Savoy e Felwine Sarr em novembro de 2018, o painel vai discutir a restituição de bens culturais, tema controverso e cada vez mais discutido. Os participantes – especialistas em teoria e prática jurídicas, antropológicas e da civilização – vão mergulhar na questão para saber suas possibilidades e limitações, indagando, por exemplo, se a restituição pode funcionar como uma negociação social.
Como os museus caminham para o futuro (painel): Neste painel, profissionais da cultura e pesquisadores refletem sobre a prática atual nos museus: quais desafios eles enfrentam? Quais oportunidades surgem para a criação de novos modelos de museus? Tal debate, acentuado pela pandemia, tem forçado instituições a continuar questionando onde se imaginam no futuro e se nesse cenário é possível ampliar a relevância social dos museus.
DIA 6
Enquanto esperamos – produção artística tanzaniana em tempos de corona (exibição e debate): A artista performática Vicensia Shule estrearia uma produção teatral na edição 2020 do festival Latitude, em Berlim. Com as barreiras impostas pela Covid-19, Shule não pôde se apresentar, ao invés disso, convidou outros artistas afetados de vários campos das artes – cinema, música, artes visuais e teatro – para se expressarem em entrevistas em vídeo. Nas gravações, Shule documenta o trabalho desses artistas e como eles lidam com a produção de suas obras na situação atual. Ela nota, no entanto, que algumas das questões levantadas nas entrevistas afetam os artistas tanzanianos desde antes da pandemia.
"DAS AVÓS", 2019, videoinstalação de Rosana Paulino. Foto: Videobrasil.
Bonaventure Soh Bejeng Ndikung propõe pensarmos um conceito de des-outrização como estratégia de crítica e desconstrução das geografias e narrativas que instituem poderes centrais em nossas sociedades. Seu texto para o catálogo da 21a Bienal de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil, que teve como equipe curatorial Gabriel Bogossian, Luisa Duarte, Miguel López e Solange Farkas, tem por título “Des-outrização como método” e leva como subtítulo uma frase em ngemba que, traduzindo, significa algo como “mantenha o seu que eu mantenho o meu”. O desafio do método da des-outrização é que outrizar, de certa forma, sempre foi nossa maneira de estar no mundo. Ao menos nossas auto-narrativas e epistemologias tendem a reproduzir binarismos que remontam quase sempre ao contraponto eu-outro. Na visão psicanalítica, o eu começa a tomar contornos com a diferenciação do outro, dada pelos limites do corpo, pelo desamparo e, finalmente, pelo aprender à jogar com o outro.
Angústia e medo na origem do conhecimento e da relação com o “outro”
Adorno e Horkheimer, em uma passagem conhecida do ensaio Dialética do Esclarecimento, descrevem a origem do conhecimento no grito do horror diante daquilo que desconhecemos. O conhecimento derivado desse encontro trágico com o “outro” seria eivado de medo e terror.[1] Seja na religiosidade, seja na filosofia, uma vez que “o esclarecimento é a radicalização da angústia mítica”, paira o projeto de submeter o outro de modo integral, já que “nada pode ficar de fora, porque a simples ideia do ‘fora’ é a verdadeira fonte da angústia.”[2] O projeto do esclarecimento, ou seja, a expansão da razão iluminista para todos os cantos da Terra, teve como resultado um processo de dominação do “outro” e da natureza que culmina agora com as imagens cada vez mais próximas e tangíveis do fim do nosso mundo. A razão que se ergueu como reação ao medo e se articulou a partir da angústia mítica torna-se uma arma violenta de redução do outro a meio, seja de conhecimento, seja de obtenção de lucro, uma vez que existe um vínculo perverso entre a razão iluminista e a lógica espoliadora e dominadora do capitalismo, sobretudo em sua vertente neoliberal. Se a razão não queria deixar “nada de fora”, o capital também deseja transformar tudo em meio para a riqueza: indivíduos são vistos como robôs-trabalhadores sem subjetividade e direitos, a terra é reduzida à categoria de commodity. Se existe algo que não pode ser transformado imediatamente em lucro, como árvores e populações originárias, elas devem ser aniquiladas. O outro é negado e esse outro é tudo o que se opõe ao império do capital. A comodificação do mundo implica necessariamente a sua própria morte. A geopolítica neoliberal recorta o mundo em função de sua exploração máxima. No campo político, Estados-nação se articulam em blocos globalizados, desdobrando a lógica do extrativismo, manufatura e conversão em lucro. Esse modelo é uma continuidade do sistema colonial e reproduz as hierarquias que redundaram da colonialidade, tanto nas relações entre os blocos nacionais como em termos de uma nova racialização ontologizante.
Colonizar e seus crimes: genocídio, etnocídio, ecocídio, memoricídio
Achille Mbembe com razão recorda um manual de colonização francês do século 19, de autoria de Paul Leroy-Beaulieu. A colonização, para esse autor, “é a força expansiva de um povo, é o seu poder de reprodução, é a sua expansão e a sua multiplicação através dos espaços; é a submissão do universo ou de uma vasta parte dele à sua língua, aos seus costumes, às suas ideias e às suas leis.” Vale lembrar que, em 2018, um candidato à eleição no Brasil falou que “quilombola não serve nem para procriar”, num gesto que ao mesmo tempo animalizou os afrodescendentes e negou a eles o direito à auto-reprodução e determinação.
Colonizar, precisa ainda Alexandre Mérignhac, no início do século 20, “é relacionarmo-nos com países novos, para aproveitar os recursos de toda a natureza desses países.”[3] Colonizar implica hierarquizar, dividir e dominar. Trata-se de uma necropolítica que destrói a natureza e populações inteiras. Destrói-se fisicamente e simbolicamente: genocídio, etnocídio e ecocídio andam de mãos dadas nessa era. Mas há uma quarta face dessa besta do apocalipse que não pode ser esquecida. Pois trata-se também aqui de um memoricídio planejado e sistematicamente reiterado. Não pode haver dominação sem violência física e simbólica. O caso do Brasil é paradigmático: país com uma das piores divisões sociais da riqueza no mundo, é também um campeão em termos de violência estatal e paraestatal, assim como em termos do apagamento das histórias e narrativas dessas violências.
É evidente que o sistema neocolonial/neoliberal foi duplamente oleado nas últimas décadas: primeiro com o fim do bloco de países liderados pela União Soviética, que permitiu uma expansão praticamente total do sistema neoliberal implantado já nos 1980 por Ronald Reagan e Margaret Thatcher; e, em segundo lugar, pelo 11 de setembro, com o desencadeamento da guerra aniquiladora contra o “outro”. Nunca a máquina de produção de narrativas da indústria cultural secretou tantos novos mitos e estabeleceu de modo tão claro as diferenças pretensamente insuperáveis entre o Eu defensor do Iluminismo e o Outro-bárbaro. Se da Ilíada a Hollywood a história dessas narrativas se repete, por outro lado o potencial genocida dessas narrativas nunca foi tão grande, tendo em vista as modernas tecnologias de guerra e cibernéticas.
No Brasil, onde agora essa explicitação do programa neoliberal se dá de modo trágico e patético, não por acaso o mote das políticas de segurança é “direitos humanos para humanos direitos”. Na medida em que os políticos no poder se arvoram a capacidade de estabelecer automaticamente, como nas modernas câmeras de reconhecimento facial, a distinção entre cidadão do “bem” e do “mal”, trata-se, portanto de um lema que caberia bem na porta de Auschwitz ou do DOI-CODI. Achille Mbembe também recordou as palavras do teórico francês da colonialidade do final do século 19, Jules Ferry, que já exalavam conceitos parecidos: “É preciso dizer francamente que de fato as raças superiores têm mais direitos que as raças inferiores […]. A Declaração dos Direitos do Homem não ‘foi escrita pelos Negros da África Equatorial.”[4]
Ou seja, a busca de uma política da des-outrização, defendida por Bonaventure assim como por outros artistas, curadores, antropólogos, atores e pensadores críticos, hoje, é uma resposta clara à virada fundamentalista que ocorreu com o triunfo do neoliberalismo, associado a uma nova onda de luta pela supremacia de um pensamento que podemos chamar de Esclarecimento, de Iluminismo ou simplesmente de eurocentrismo. Como escreveu Ta-Nehisi Coates, “os americanos [e não só eles, eu acrescento] acreditam na realidade da ‘raça’ como uma característica definida, indubitável, do mundo natural. […] a raça é filha do racismo, e não sua mãe.”[5] Ou, nas palavras de Achille Mbembe: “O grande nervo [do] projeto imperial é a diferença racial, que se incorpora em disciplinas como a Etnologia, a Geografia ou a Missionologia.”[6] As narrativas feitas em museus, nas literaturas, nas artes, na publicidade, nas exposições internacionais, apenas reforçam constantemente essas partilhas raciais, políticas e econômicas.
Nova ética da responsabilidade e o “todo” como um jogo
O método de des-outrização, no entanto, não é inocente e sabe que, aquém ou além de binarismos, nossas narrativas necessitam de um solo, mínimo que seja, de identidade para instituir a linguagem. Trata-se de pensar as diferenças como devires e não como mônadas sólidas, como a lógica haurida na base do medo da razão do Esclarecimento o faz. O subtítulo ardiloso de Bonaventure, “mantenha o seu e eu mantenho o meu”, não quer indicar, me parece, uma nova luta identitária, na qual simplesmente colocaríamos de ponta-cabeça as hierarquias norte-sul que operam política e economicamente no mundo hoje, mantendo intocada essa lógica binária metafísica. Antes, essa dualidade não deve ser pensada dentro de um binarismo estanque, mas sim a partir de uma nova ética da responsabilidade. Nessa relação do eu-mundo não necessariamente a outrização implica coisificação, objetificação ou dominação.
Saussure pensava o sistema linguístico como um jogo de diferenças, mas sabia que as peças desse jogo são móveis. Novalis, um século antes desse linguista, descreveu o todo de um modo divertido que pode iluminar o que quer dizer imaginar-se um jogo de diferenças aberto que sustenta a linguagem: “O todo consiste aproximadamente – como as pessoas jogando que, sem cadeiras, sentam-se num círculo uma no joelho da outra.”[7] Aqui vemos o todo sendo sustentado por um jogar ou brincar em comum. No catálogo da Bienal também lemos o precioso texto de Gladys Tzul Tzul, que afirma, a partir de sua experiência maia k’iche’ da Guatemala e de seus estudos de sociologia: “O trabalho comunal é a energia primordial a partir da qual se produz a riqueza concreta da vida comunal; ao mesmo tempo, possibilita um horizonte ético de existência e estratégias de inclusão que não são centradas em uma identidade essencial.”[8] As culturas tradicionais produzem as únicas comunidades e grupos autenticamente ricos, se pensarmos a riqueza em termos de bem-estar, como estado que nos livra da mencionada “angústia mítica” que se desdobra no nosso trabalho alienado e nas nossas relações coisificadas com o outro, com a natureza e com nossos desejos. Portanto, quando se afirma hoje que os “índios são pobres sobre terras ricas” isso só expressa a pobreza de caráter e a falta de inteligência de quem o disse. Os indígenas são as populações genuinamente ricas deste planeta. A vergonha, projetada neles, deve ser reconhecida na cultura hegemônica com sua lógica genocida.
A “segunda técnica” e o novo espaço lúdico de ação
Pensando na imagem de Novalis do jogo de sentar no colo um do outro para indicar o todo, lembro que também para Benjamin o jogo era visto como uma categoria aberta e não violenta de atuar no mundo. A relação lúdica com o mundo deve ser pensada como uma técnica de relacionamento não violento. Benjamin escreveu em seu conhecido ensaio A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica acerca de uma técnica emancipada, que seria para ele uma “segunda técnica”. A “primeira técnica” tinha o ser humano em seu centro e possuía como sua realização paroxística o sacrifício humano. Podemos dizer que essa técnica se irmana à razão do Esclarecimento e teve como realização os genocídios do século 20 e a destruição de boa parte do planeta. Já a “segunda técnica” tende a dispensar o ser humano do trabalho. Ela baseia-se na repetição lúdica e teria sua origem no jogo, visto por Benjamin como primeira modalidade de tomada de distância da natureza.
Lembremos também aqui da teoria freudiana do jogo: o fort-da (o brincar de desaparecer) do bebê como uma elaboração da separação/realidade.[9] Também para Benjamin o jogo é meio de empoderamento. Para ele a “segunda técnica” não visa a um domínio da natureza (como ocorria na “primeira técnica”), mas sim jogar com ela. O jogo aproxima, mas mantém a distância. A “primeira técnica” seria mais séria, e a segunda, lúdica: a obra de arte estaria no meio, oscilando entre elas. Mas o cinema e a fotografia, por serem artes eminentemente dependentes da técnica, estariam mais próximas dessa “segunda técnica”, e atuariam justamente no treino em direção à emancipação. Benjamin destaca a relação dessa segunda técnica com as revoluções e utopias. Ele apresenta, nesse contexto, o conceito fundamental de Spielraum, campo de ação, mas também, espaço de jogo. Cito: “Justamente porque essa segunda técnica pretende liberar progressivamente o ser humano do trabalho forçado, o indivíduo vê, de outro lado, seu campo de ação aumentar de uma vez para além de todas as proporções.”[10] Benjamin afirma também que, diante dessa segunda técnica, “as questões vitais do indivíduo – amor e morte – já exigem novas soluções”.[11] Essa ideia parece constar como mote para as obras de arte produzidas em nossa era. Hoje, uma parte significativa delas explora esses novos espaços de jogo e de liberdade que a técnica nos abre. São incursões sobre o novo sentido da vida – e da biopolítica – na era da síntese técnica da vida. Elas colocam questões a nós humanos, habitantes da era da crise das fronteiras (geográficas, biológicas e outras mais), da mobilidade incessante, da ansiedade, do fim do trabalho – esse definidor de nossa humanidade por tantos séculos.
Vale lembrar que Benjamin desenvolvera essa dicotomia entre dois tipos de técnica, ainda que de modo não tão explicito, e tratando da técnica como uma segunda natureza, em seu último fragmento de Rua de mão única, livro publicado em 1928. Nesse texto, denominado de “A caminho do planetário”, Benjamin trata do tema, caro a ele, do abandono, que teria ocorrido na modernidade, da percepção das afinidades eletivas, ou do mundo das semelhanças, que antes uniam a humanidade, o macro e o microcosmo. Ele escreve sobre a técnica destrutiva e sacrificial que culminou na Primeira Guerra e também sobre uma técnica que não seria mais dominação, que ele vê in nuce na força proletária:
Massas humanas, gases, forças elétricas foram lançadas ao campo aberto, correntes de alta frequência atravessaram a paisagem, novos astros ergueram-se no céu, espaço aéreo e profundezas marítimas ferveram de propulsores, e por toda parte cavaram-se poços sacrificiais na Mãe Terra. Essa grande corte feita ao cosmos cumpriu-se pela primeira vez em escala planetária, ou seja, no espírito da técnica. Mas, porque a avidez de lucro da classe dominante pensava resgatar nela sua vontade, a técnica traiu a humanidade e transformou o leito de núpcias em um mar de sangue. Dominação da Natureza, assim ensinam os imperialistas, é o sentido de toda técnica. […] [No entanto] a técnica não é dominação da Natureza: é dominação da relação entre Natureza e humanidade. Os homens como espécie estão, decerto, há milênios, no fim de sua evolução; mas a humanidade como espécie está no começo. Para ela organiza-se na técnica uma physis na qual seu contato com o cosmos se forma de modo novo e diferente do que em povos e famílias.[12]
Ou seja, através de novas técnicas, dessa “segunda técnica” derivada e inspirada na fotografia e no cinema, uma outra natureza se organiza. Nossa relação com essa outra natureza será lúdica, dialógica, e se dará para além das lógicas do capital, das nações e das famílias. Esse pensador apostou em uma incorporação dessa técnica pensada como arte, e não mais como aparato de domínio e destruição. Seu sonho era que pudéssemos frear o atual desenvolvimento catastrófico em nome do pretenso progresso, que só traz morte, e construir uma humanidade capaz de realizar as potencialidades utópicas dessa “segunda técnica”: “Fazer da monstruosa aparelhagem técnica de nossos tempos o objeto da enervação humana – é esta a tarefa histórica em cujo serviço o cinema tem seu verdadeiro sentido”.[13] No cinema e, acrescento, nas artes como dispositivos de construção de novas subjetividades e de inscrição da história da violência, a humanidade poderia também testar novas modalidades de convívio intrahumano e com a natureza e, dessa forma, ensaiar – ludicamente – seu futuro.
[1] Também Hans Jonas notou que o sonho da civilização, ou seja, de domesticação da natureza, nascera do medo dessa mesma natureza e da ideia de sua conquista como um ato heroico. Hoje as coisas estão invertidas. Nós somos o perigo para a natureza. As marés que nos destroem (de água ou de lama) são respostas dessa Natureza ferida. Como escreve Hans Jonas: “A euforia do sonho fáustico se dissipou e nós despertamos sob a luz diurna e fria do medo.” (Hans Jonas, Une éthique pour la nature, trad. S. Courtine-Denamy, Paris: Flammarion, 2017, p. 176) A resposta a esse medo, no entanto, não deve ser o pânico, mas, antes, a ativação de uma nova ética que inclui pela primeira vez a Natureza e não se limita a ser apenas intersubjetiva.
[2] Theodor W. Adorno, e Max Horkheimer, Dialética do Esclarecimento. Fragmentos filosóficos, trad. G. Almeida, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985, p. 29.
[3] Achille Mbembe, Crítica da Razão negra, tradução Marta Lança, Lisboa: Antígona Editores Refractários, 2a edição, 2017, p. 119.
[7] Novalis. Werke. Tagebücher und Briefe Friedrich von Hardenbergs. Hans-Joachim Mähl; Richard Samuel (orgs.). Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1999. Vol. II. p. 152.
[8] Gladys Tzul Tzul. “Uma forma ética de existência: o comunal indígena como horizonte político”. in 21ª Bienal de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil: Comunidades imaginadas. São Paulo: Videobrasil; Edições Sesc, 2019. (Catálogo de exposição). p. 56.
[9] Sigmund Freud, Jenseits des Lutprinzips, in: Studienausgabe, vol. III, Frankfurt a.M.: Fischer, 1989, pp. 213-272, p. 225 e seguinte.
[10] Walter Benjamin. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Organização e apresentação M. Seligmann-Silva; trad. Gabriel Valladão Silva, Porto Alegre: L&PM, 2013, p. 63.
[12] Walter Benjamin. Obras Escolhidas II: Rua de Mão única, trad. R.R. Torres Filho e J. Barbosa, revisão técnica Márcio Seligmann-Silva, 6. ed. revista, São Paulo: Brasiliense, 2012, p. 70 e seguinte.