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Para presidente da Japan House, instituição existe porque governo japonês percebe o valor da cultura, ao contrário do que acontece no Brasil

Eric Klug, presidente da Japan House. Foto: Alexandre Virgílio/ Divulgação

Após as passagens de Angela Hirata e Marcelo Araujo, Eric Klug é o terceiro nome a assumir a presidência da Japan House São Paulo (JHSP), instituição cultural criada pelo governo japonês e inaugurada em 2017 na avenida Paulista. Ao tomar posse em 1º de abril, já durante a pandemia de Covid-19 e com a Japan House de portas fechadas, Klug dedicou seu trabalho nesses primeiros meses a intensificar a atuação virtual da instituição, como conta em entrevista à arte!brasileiros. “Eu nem mesmo conheço o escritório. Então trabalhar dessa maneira virtual e conseguir continuar a missão da JHSP neste período foi um desafio e um aprendizado.”

Após passagem recente pelo IDBrasil – Organização Social (OS) responsável pela gestão do Museu da Língua Portuguesa e do Museu do Futebol – e, anteriormente, pelo British Council Brasil (de 2011 a 2017), Klug vê paralelos entre as atuações da instituição britânica e da japonesa. “Equipamentos como a Japan House e o British Council existem porque esses países perceberam o valor da cultura. Que não só vale a pena você investir dentro de casa, na formação cultural da sua população, mas vale a pena investir dinheiro no exterior para mostrar a sua cultura, porque ela é tão importante e é criadora de pontes que não são concebidas de outra maneira”, afirma. Para ele, é o oposto do que se vê atualmente no Brasil, com um governo federal que promove um desmonte na área cultural.

“Acho que existe uma dualidade neste sentido. A arte e a cultura são de uma força imensa, porque elas sobrevivem. Sobrevivem aos ataques, à pandemia. Então não há nenhum temor de que a poesia, a literatura ou o cinema acabem. Mas, por outro lado, há uma fragilidade, principalmente das instituições e dos indivíduos que a fazem. Então a arte não acaba, mas, sim, museus fecham, teatros fecham. E é muito perigoso quando você tem ações governamentais ou de descaso ou de aberta oposição à cultura”, completa.

A Japan House, que tem sedes também em Londres e Los Angeles, em apenas três anos recebeu mais de 2 milhões de visitantes no espaço paulistano, em seu imponente edifício projetado pelo japonês Kengo Kuma. O local reúne espaços expositivos, biblioteca, o restaurante Aizomê, café e uma loja – todos voltados para apresentar a cultura japonesa – e promove atividades artísticas e educativas diversas, além de projetos voltados a negócios, turismo, esporte e gastronomia. Para Klug, o trabalho da instituição ajuda também a desmistificar certos estereótipos sobre o Japão, mostrando sutilezas, nuances e a diversidade cultural do país, e combatendo uma certa visão que generaliza e simplifica a cultural oriental.

Klug afirma também que sua gestão será de continuidade em relação às anteriores, mas que tem em mente novos projetos e expansões da atuação da instituição. O aprendizado com a pandemia, por exemplo, acabou por apresentar a possibilidade de alcançar muito mais gente, de modo virtual, nos mais variados lugares do país e do mundo. “Nosso objetivo não é voltar ao que era, mas de uma maneira melhor”. Klug afirma que a Japan House está preparada para a reabertura presencial, com todos os cuidados e protocolos rigorosos, e aguarda autorização da prefeitura. Leia abaixo a íntegra da entrevista.        

ARTE! – Eric, pensando nas suas experiências mais recentes, na IDBrasil e no British Council, queria que falasse um pouco dessa carga que você traz e de como enxerga agora o desafio de assumir a Japan House.

É um prazer imenso assumir a presidência da Japan House, que é uma instituição com um sucesso enorme, que se colocou em apenas três anos no cenário cultural e artístico da cidade de maneira tão forte, tendo recebido 2 milhões de pessoas, estando em um lugar tão icônico, com uma arquitetura tão icônica e um projeto tão moderno. Então eu proponho uma continuidade de tudo isso que foi conseguido, não uma ruptura, com algumas expansões que nós queremos fazer. Entre elas atingir mais áreas do conhecimento, mais áreas da cultura japonesa, e mais áreas geográficas mesmo. É um crescimento a partir de um sucesso recente. Eu estava no IDBrasil, que administrava dois museus incríveis, do Futebol e da Língua Portuguesa, e acho que de lá eu trago, entre outras coisas, uma abertura para fazer parcerias, trabalhar com empresas de modo potente, que foi algo muito forte nesse período. Trabalhar com novos patrocinadores, com uma programação cultural muito intensa com o terceiro setor falando de racismo, questões de gênero etc. Tem alguns projetos que são icônicos. A gente fez exposições sobre a Copa de 1958 e sobre futebol feminino com o Itaú; fizemos uma expansão para quatro estados do Brasil com a Motorolla. Então é você pegar a missão do museu e alinhar com a missão de uma empresa e fazer uma coisa que agregue bastante para ambas.

No Museu da Língua, foi uma grande conquista ter finalizado a reconstrução desse equipamento após o incêndio de 2015. E você sabe como é difícil, como é raro a gente conseguir reconstruir um equipamento desses. E ter viajado com ele também foi algo muito importante. O Museu da Língua foi pra sete cidades no interior de SP, foi pra três países da África e foi pra Portugal nesse período de fechamento da sede. Então tem aí um grande pensamento que eu trago para a Japan House que é isso: a missão não se realiza somente dentro da sede. O Museu da Língua conseguiu realizar sua missão no exterior, online e com exposições temporárias mesmo quando sua sede estava fechada, o que tem um paralelo com o momento em que estamos. Bom, e antes disso eu era diretor do British Council, que fazia relações culturais do Reino Unido com o Brasil, então é uma organização que está desde 1945 no Brasil e faz com muita potência essa criação e fortalecimento de laços através da cultura, do esporte, da educação, da língua.

Fachada da Japan House. Foto: Divulgação

ARTE! – Parece haver um paralelo com o trabalho na Japan House, de diálogo e difusão da cultura de um outro país…

Exatamente. A atuação é muito parecida. O objetivo, que é fortalecer os laços, criar vínculos, criar uma relação de amizade e de atração, é o mesmo. Agora, muda o elemento, que é uma cultura completamente diferente. Eu vivi cinco anos no Reino Unido, trabalhei lá, então eu conhecia bastante a cultura britânica. No caso do Japão é diferente. Eu conheço as ferramentas, o modus operandi dessas relações culturais, mas estou aprendendo, com um interesse imenso, sobre a cultura japonesa em si.    

ARTE! – Você assumiu já em meio à pandemia, em um momento muito conturbado, inclusive em que a instituição está de portas fechadas. Como trabalhar neste contexto?

Sim, eu entrei no dia 1º de abril, já em meio a pandemia, com a sede fechada. Eu nem mesmo conheço o escritório. Então trabalhar dessa maneira virtual e conseguir continuar a missão da JHSP neste período foi um desafio e aprendizado dessa experiência mais recente. Eu assumi e logo a gente já lançou uma campanha online chamada JHSP online, que basicamente conecta o Japão contemporâneo ao Brasil. É uma miriade de eventos e iniciativas, com duas vertentes principais. Primeiro, é uma tradução do que era feito presencialmente para uma outra plataforma. Por exemplo, a gente tinha o Clube de Leitura, onde as pessoas leem um livro e se encontram para discutir com um especialista, com o autor ou com o tradutor do livro. Isso a gente mudou para o mundo online, mas o conceito é o mesmo. Claro que tem gente que gostaria de estar lá, sente falta do convívio, mas há um potencial também. Na última sessão que fizemos, sobre um livro chamado O Livro do Chá, escrito em 1906 por Kakuzo Okakura, quando eu fui entrar, estava um pouco atrasado, e o zoom não deixou, porque havia mais de 100 pessoas conectadas. E nós nunca teríamos, presencialmente, 100 pessoas neste encontro. Então tem esse lado positivo.

A gente tem também uma série de encontros com o Educativo, que às vezes tem durado até duas horas. E é muito interessante porque a cultura japonesa demanda esse tempo. Eu lembro de uma vez no British Council que tivemos uma sessão com tradutores e eles ficaram um dia todo falando sobre uma palavra. E eu fiquei muito impressionado. Agora, na Japan House, isso é muito comum. São horas dedicadas a um vocábulo. E o Educativo consegue, com as pessoas em casa, ter um conversa de duas horas sobre o vocábulo, e isso é de uma riqueza incrível.

E para além desse eventos que a gente traduziu para o virtual, tem uma segunda linha de eventos que são experiências realmente novas. Uma delas é uma ação em que a pessoa encomenda um kit – em uma ação feita junto com os nosso chamados negócios independentes, que são a loja, o café e o restaurante. E fizemos um que tinha sakê, mixer, vários elementos gastronômicos, e você recebia isso envolto num furoshiki, que é um embrulho de tecido, uma técnica que tem mais de mil anos. E aí todos desembrulhavam juntos, com umas 30 pessoas online, e socializavam enquanto abriam. E uma mixologista, usando conceitos japoneses, orientou mas pessoas a fazerem o seu drink com o sakê. O Aizomê forneceu os elementos gastronômicos que acompanhavam. E é uma experiencia absolutamente japonesa, contemporânea, familiar. E em meio à pandemia as pessoas participaram de uma experiencia comunal, o que é de uma riqueza muito grande. E isso a gente vai continuar.         

ARTE! – Então você acha que certas atividades virtuais vieram para ficar?

Certamente isso continuará, foi um aprendizado imenso, de uma riqueza imensa. Porque pudemos reunir, nessa experiência que acabei de contar, um senhor que está em Itaquera, uma mulher nos Jardins e assim por diante. Teve um visitante que está na Estonia e quer falar sobre arquitetura japonesa. Tem essas 100 pessoas que querem comentar o Livro do Chá. Então isso certamente continuará e tomará uma proporção maior do que a que tinha. Eu acho que em grande parte das instituições culturais, pequenas ou grandes, o digital era uma parte muito pequena das atividades, e em geral vinculado às atividades presenciais. Muitas vezes era quase só uma coisa para chamar as pessoas, divulgar. E agora descobrimos essa potência imensa e não podemos ceder a tentação de voltar ao que era. Se fala muito em resiliência, que é aguentar e depois voltar ao que era. Nosso objetivo não é esse, é voltar de uma outra maneira, melhor.        

ARTE! – De fato, muita gente considera que, tendo sido pegas de surpresa pela pandemia, as instituições culturais estavam muito despreparadas para atuar nas redes e que a quarentena explicitou essa fragilidade….

Sim, fomos pegos de surpresa. Mas o interessante é que houve uma resposta bastante rápida. E houve uma sede, uma demanda pelo nosso produto, e isso é essencial. As pessoas não pararam de consumir música, literatura, arte, informação, por causa da pandemia. E os museus e instituições culturais conseguiram responder. Isso é muito importante porque nós dizemos sempre que nós somos o setor da criatividade. Então a criatividade eu espero que venha daqui e não só da Uber, da Yellow etc. E acho que isso aconteceu de maneira bastante interessante.

Agora, sobre não estarmos preparados, eu acho que sempre tivemos, principalmente nos museus, uma fixação por passar através das portas. Então sempre a primeira coisa que se fala é sobre quantos visitantes tem um museu. E isso é importante, claro, mas é só isso? Se você não passa pela porta o museu não existe para você? Então nesse ponto a gente estava mesmo atrasado, porque o museu pode ser muito mais do que isso, do que algo só ligado ao espaço, à sede fixa. Então o aprendizado dos últimos tempos é importante e veio para ficar.

ARTE! – Falando nisso, vocês já começam a pensar em uma reabertura?

Estamos há meses já pensando nisso, nos planejando. Temos falado com o ministério das Relações Exteriores do Japão, temos sentado semanalmente com os secretários municipal e estadual de cultura, temos nosso protocolos já preparados, treinamento de equipe já feito. Então estamos bastante preparados, preocupados em garantir a segurança aos nossos visitantes, colaboradores e fornecedores, esperando a autorização da prefeitura.

ARTE! – E as exposições que estavam em cartaz serão reabertas?

Sim, as duas vão continuar. Uma é a Japão em Sonhos, que é de um coletivo francês, uma experiência em videomapping que está no térreo, que é uma coisa muito lúdica, que pode ser entendida em vários níveis, por pessoas de todas as idades. E em cima nós temos a exposição do Tadashi Kawamnata, que se chama Construção. É uma exposição site specific feita de hashis. São 180 mil hashis. E além disso, a Japan House não é só um espaço expositivo, nós temos também os negócios independentes que fazem parte da nossa missão. Então um entendimento da gastronomia japonesa é entregue pelo Aizomê. A loja também ensina sobre a cultura japonesa e assim por diante. Trabalhamos em parceria. Então a ideia é reabrirmos com toda nossa potencia, com essa experiencia japonesa.

Acho importante falar também, pensando nesse assunto das parcerias, que já havia uma associação artística, cultural, chamada Paulista Cultural, que são os sete grandes equipamentos da avenida Paulista, que já trabalhavam em eventos conjuntos. E nessa hora difícil nós estamos trabalhando também em protocolos, fazendo reuniões com os secretários conjuntamente, pensando em maneiras para que a gente consiga organizar os horários de visitas e agendamento de ingressos que seja coordenado, para facilitar a vida do nosso visitante. Então a parceria, a solidariedade e o trabalho em conjunto são essenciais nessa hora.

ARTE! – Vocês fizeram também essa parceria com o Instituto Tomie Ohtake, com correspondências sobre arquitetura. É parte desse objetivo de fortalecer vínculos com outras instituições culturais? 

Sem dúvida. Eu já nem sei mais trabalhar de maneira isolada. Acho que parcerias juntam missões diferentes e a gente consegue uma capilaridade maior, consegue recursos adicionais e uma riqueza no diálogo. Então se a JHSP se propõe a estreitar os laços entre o Brasil e o Japão, ela precisa falar com o Brasil de verdade. Essa série com o Tomie Ohtake foi uma ideia muito bacana para falar sobre arquitetura, no Brasil e no Japão. E isso engaja os públicos das duas instituições, é uma parceria em que ambos ganham. E tem a ver com uma coisa de solidariedade, de fazer junto. Não somos isolados, não somos uma ilha e temos que trabalhar em conjunto. 

O espaço do Restaurante Aizomê. Foto: Thiago Minoru/ Divulgação

ARTE! – Pensando no contexto político e social, nós temos no momento uma grande discussão mundial, e também no Brasil, sobre racismo, o racismo estrutural que moldou as sociedades ocidentais. E isso tem a ver com negros, com índios, mas parece que começa a haver alguma discussão também sobre um racismo com povos asiáticos, que também sofreram uma exclusão e preconceito no Brasil, com consequências que vem até hoje. Queria saber como você enxerga essa questão? E se há algum trabalho nesse sentido na Japan House?

Quando começaram as manifestações recentes a gente fez debates internos bastante interessantes e potentes sobre o Black Lives Matter. Porque o assunto era a questão do racismo e a negritude. E foi muito importante, foi muito valorizado pelos nossos colaboradores. E nós temos, o que é muito positivo, um percentual de pessoas pretas na nossa equipe muito maior do que grande parte das instituições culturais congêneres. Não é o bastante ainda, pensando na população brasileira, mas é bastante representativo. Então foi muito rico, muito solidário, ter essa discussão interna. E acho que nós não podemos nunca nos eximir das grandes questões da humanidade, sejam elas sobre imigração, racismo, questões de gênero, de violência. Então não é uma agenda da Japan House, mas como um importante centro de cultura, não podemos estar alheios a esta e a outras grandes pautas. Tem um movimento muito importante dos museus nos últimos anos que é do “museu social”, pensar o museu enquanto um gestor e um provocador de mudanças. Então eu vejo esses equipamentos culturais também como palcos onde essas discussões devem ser fomentadas. Eu tenho um certo ceticismo quanto a levantar bandeiras muito específicas, mas eu acho que essas discussões devem ser ativamente trazidas para estes espaços. Isso é parte da função social dos museus e instituições culturais.         

ARTE! – Quando fala da questão asiática, penso também em um artigo da pesquisadora Luciara Ribeiro que publicamos recentemente, em que ela diz: “É comum encontrarmos livros de arte brasileira que não citam nenhum artista negro, indígena e de ascendência asiática, nem mesmo os nipo-brasileiros, que possuem trajetória relevante na historiografia da arte brasileira”. Você percebe essa defasagem?

Essa é uma questão muito delicada e muito debatida. Há o “orientalismo”, que é uma simplificação de características asiáticas que é muito conveniente, foi muito conveniente e usado durante séculos. Que é uma simplificação e uma estereotipação. Então você fala “os orientais” são assim ou assado, como se fossem todos iguais. E é missão da Japan House, sim, desmistificar esses esteriótipos, dando sutilezas e traços para isso. E a questão racial é uma delas. Há uma percepção de que o Japão é homogêneo em termos étnicos, raciais. E não é. Há uma diversidade muito grande. Por exemplo, há populações no norte do Japão que têm uma fisionomia caucasiana, quase russa. É uma variedade bastante grande que passa invisível aos olhos ocidentais. Outra questão delicada, por exemplo, é que muitos traços da cultura japonesa vêm, sim, da cultura chinesa. São culturas muito diferentes, mas tem uma influência histórica de um beber do outro que é inegável e absurdamente potente. Então dar corpo, sutileza e substancia à essa discussão com certeza é função da Japan House. A gente tem, vamos dizer, um ponto muito positivo, que a população brasileira tem uma visão de longe muito mais positiva do que negativa da cultura japonesa, dos valores japoneses. Que seja da comida, dos valores éticos, do design, da arte – seja a arte tradicional, sejam os mangás e animes. Então existe um campo muito favorável para se trabalhar. Mas sim, é simplificado, é estereotipado. Então dar nuances para essa discussão é uma das funções da Japan House.

ARTE! – Por fim, falando um pouco mais do contexto político brasileiro, muitos gestores que entrevistei nos últimos tempos dizem perceber que o atual governo federal trata o campo da cultura e das artes quase como inimigos, que há um desmonte na área. Você concorda? Como percebe esse quadro e como trabalhar com essas dificuldades?

Acho que existe uma dualidade neste sentido. A arte, a cultura, é de uma força imensa, porque ela sobrevive. Sobrevive aos ataques, à pandemia. Então não há nenhum temor de que a poesia, a literatura ou o cinema acabem. Mas, por outro lado, há uma fragilidade, principalmente das instituições e dos indivíduos que a fazem. Então a arte não acaba, mas, sim, museus fecham, teatros fecham. E é muito perigoso quando você tem ações governamentais ou de descaso ou de aberta oposição à cultura. Realmente é muito delicada a posição em que a gente está. Como gestor de equipamentos públicos estaduais, que eu fui durante anos, eu diria que há em São Paulo uma seriedade muito grande com a cultura, foram honrados os compromissos e os contratos. Mas teve uma gradual e sensível perda de investimentos, perda de importância destes equipamentos. Cada vez eles eram menos relevantes em termos políticos no Estado. No âmbito federal, momentos em que não se fala de cultura parecem os melhores possíveis, porque quando se fala é para fazer cortes ou realizar ações altamente arbitrárias, que não valorizam a força do simbólico, a cultura como educação – que é uma briga que a gente sempre teve, de que a educação não é separada da cultura. É uma situação muito perigosa, de fragilidade. E acho que no governo atual a gente tem uma desestruturação, uma desmontagem desse setor que é tão fundamental.

ARTE! – A Cultura deixou de ser Ministério e foi rebaixada para Secretária. E depois já foram cinco secretários que passaram por lá em um ano e meio de governo…

Exatamente. E isso é de uma miopia muito grande, porque a arte, a cultura, ela domina. Então, inclusive, quem domina isso de maneira potente é quem ganha eleições, é quem ganha os olhos das pessoas. Equipamentos como a Japan House e o British Council existem porque esses países (Japão e Reino Unido) perceberam o valor da cultura. Que não só vale a pena você investir dentro de casa, na formação cultural da sua população, mas vale a pena você investir dinheiro no exterior para mostrar a sua cultura, porque ela é tão importante e é criadora de pontes que não são concebidas de outra maneira. A Japan House então existe em São Paulo, Londres e Los Angeles. E isso ajuda a tornar mais rica e positiva a imagem que se tem sobre o Japão.

Em “Cartografia do Olhar”, Ana Beatriz Almeida analisa obras de arte sob uma perspectiva não eurocêntrica

"Parede da Memória", de Rosana Paulino. Foto: Divulgação/SP-Arte

Nesta semana, entre 24 e 30 de agosto, acontece o SP-Arte Viewing Room – primeira versão online de uma das maiores feiras de arte da América Latina. Além das exposições, o evento conta com debates online, entrevistas e lives. Dentre elas, uma programação feita em parceria com a arte!brasileiros e o Iguatemi: a Cartografia do Olhar.

O projeto consiste em duas aulas, ministradas pela curadora e artista visual Ana Beatriz Almeida. “A perspectiva pela qual a gente olha a arte é eurocêntrica. A revolução racial que temos acompanhado ganhar o mundo tem outro cunho, busca fazer emergir essas narrativas que foram suprimidas por uma tendência hegemônica de mundo. A Cartografia do Olhar é um primeiro passo para o desenvolvimento de outras capacidades éticas e estéticas de apreciar experiências expressivas”, explica. 

No primeiro episódio, Cartografia do Olhar: Mar e Travesías, Ana Beatriz Almeida faz uma retomada histórica sobre o olhar e as vivências não brancas para então colocar Juliana dos Santos e Rosana Paulino em foco. A partir das obras Entre o Azul e o que não me Deixo/Deixam Esquecer e Parede da Memória, a curadora ministra uma aula sobre as artistas e suas visões e estéticas expressivas. Assista:

No segundo episódio, Cartografia do Olhar: Estadia e Permanência, Ana Beatriz se debruça sobre Aceita?, de Moisés Patrício, e Atos da Transfiguração: Desaparição ou Receita para Fazer um Santo, de Antônio Obá. Assista:

Ana Beatriz Almeida, ministrante das aulas, é co-fundadora da 01.01 Art Platform, curadora convidada da Bienal de Glasgow de 2020, mestranda em História e Estética da Arte pelo MAC-USP e doutoranda pela King’s College (UK). Em todos esses ambientes, a artista visual leva consigo uma cartografia decolonial do olhar, buscando novas ferramentas de leitura e crítica de arte pensando em éticas e estéticas não brancas.

Ana Beatriz Almeida. Foto: Divulgação/01.01 Art Platform

Isael Maxakali é o vencedor do Prêmio PIPA Online de 2020

O artista Isael Maxakali. Foto: Divulgação

Após 16 dias de votação e a contabilização de 33.038 votos, distribuídos entre os 56 participantes da categoria, o PIPA Online anunciou Isael Maxakali como vencedor de sua edição de 2020. O artista, morador da Aldeia Hãm Kutok, em Minas Gerais, recebeu 4.191 votos e será premiado com uma doação de R$ 15 mil. Ele deverá doar uma obra para o Instituto PIPA, a ser definida em comum acordo entre o artista e a coordenação.

“Meu nome é Isael Maxakali, moro na Aldeia Hãm Kutok, município de Ladainha – MG. Já fiz muitos filmes para as pessoas de todos os lugares assistirem e saberem que nós, os Tikmū’ūn, existimos. Eu também gosto muito de fazer desenhos dos bichos, dos peixes, dos espíritos yãmyxop e de outras coisas também. Eu penso que, com o meu trabalho, eu cresço e fortaleço os Tikmū’ūn. Se eu fico conhecido, eles ficam também. Se eu ganho um prêmio, eles ganham também!”, diz o texto de apresentação do artista no site do PIPA.

Assista aqui ao vídeo que fala um pouco mais sobre o trabalho de Isael Maxakali:

É a terceira vez que a categoria online do PIPA premia um artista de origem indígena e, segundo texto oficial, “cumpre o objetivo de dar visibilidade a artistas que estão menos presentes no eixo Rio-São Paulo”. Ainda segundo o PIPA, “é importante que artistas que ainda não são representados por galerias possam ser reconhecidos pelo PIPA Online. No site, todos os votantes têm acesso igual ao trabalho de todos os artistas, através das páginas que apresentam obras e trajetória de cada um”.

Desafios, alternativas e soluções nas feiras virtuais: o que as galerias pensam?

SP-Arte Feiras
"Partículas de Amor", de Luiz Zerbini (2020). O artista é representado pela Fortes D'aloia & Gabriel. Foto: Pat Kilgore. Cortesia Fortes D’Aloia & Gabriel, São Paulo/Rio de Janeiro.

*Por Giulia Garcia e Miguel Groisman

 

Cinco meses após o anúncio do cancelamento, devido à pandemia de Covid-19, da feira presencial que ocorreria na primeira semana de abril, a SP-Arte realiza sua volta ainda em 2020 com uma nova plataforma digital. O SP-Arte Viewing Room acontece entre os dias 24 e 30 de agosto e conta com mais de 130 expositores. “Este novo formato virtual tem funcionado muito bem para nós mesmo com um público ainda tímido em adquirir obras através da internet”, salienta Eduardo Mansini, diretor da Galeria Athena. Ele destaca que nos meses de julho e agosto o mercado voltou à ativa e que, dado o fato de não ter ocorrido a SP-Arte no início do ano, sua expectativa é grande para esta edição.

A adesão da SP-Arte ao virtual integra o paradigma observado ao redor do mundo decorrente das medidas de isolamento implementadas no globo; primeiro surgindo como soluções temporárias, depois como alternativas. Talvez presencial e online possam coexistir num futuro pós-pandêmico, e foi essa a questão posta pela arte!brasileiros a algumas das galerias mais relevantes no cenário nacional. Suas reflexões, abordando limitações e benefícios do formato digital, e até as funções da feira, podem ser conferidas a seguir:

À distância 

Para os galeristas entrevistados, as feiras são momentos de criação de vínculos e contatos, necessários ao mercado da arte. Como aponta Márcio Botner, fundador d’A Gentil Carioca, um galerista não é apenas um vendedor de obras de arte, “ele vende história, confiança e troca. Então, transcende a questão de uma simples compra”. Isso deve ser levado às feiras, quaisquer que sejam os formatos. “Como nas feiras presenciais, o mais importante é o desenvolvimento de relações com colecionadores, conhecer novos interessados e divulgar os artistas da galeria. E, na eventualidade de fazer negócios, melhor ainda”, diz Murilo Castro, diretor da galeria homônima. 

“Investimos muito, nos meses recentes, em exposições virtuais e plataformas digitais. No entanto, sabemos que a arte é uma experiência que merece ser vivida e isso o online não dá conta por si só”, aponta Alexandre Gabriel, diretor da Fortes D’Aloia e Gabriel. Para os expositores, o ambiente digital apresenta novos desafios em relação à aproximação com os colecionadores, apresentação das obras e envolvimento de novos clientes. “É claro que a questão online cria uma distância muito grande. Você não tem esse momento de encontro, essa oportunidade de um estar contagiando o outro culturalmente, de uma maneira mais sensível”, explica Botner.

“A gente sabe que a arte precisa de um desejo, precisa de um impulso, ninguém morre se não comprar arte”, diz Márcio Botner, fundador da galeria A Gentil Carioca


Novo[s] formato[s]

O diretor d’A Gentil Carioca acredita que para diminuir essa distância seria necessária a criação de uma “experiência” na plataforma virtual. “Sinto muita falta de algo que seja personalizado. Algo que te traga quase que o cheiro da galeria, que te faça sentir parte do evento. Ainda não vejo isso dentro desse formato da SP-Arte”. 

Entretanto, Eduardo Masini destaca que o SP-Arte Viewing Room é mais elaborado que outras plataformas trazidas por feiras de porte semelhante. “Ela possui diversos recursos que proporcionam a cada expositor montar o seu perfil e sua página de obras de diferentes maneiras. Assim, faz com que a experiência do público ao visitá-la se torne mais dinâmica e não tão cansativa como nas primeiras feiras online que surgiram no início deste ano”, afirma. Além da SP-Arte, a Athena participou da Not Cancelled, feira online brasileira que ocorreu em julho de 2020. Bem como a Galeria Marilia Razuk, que esteve também na Frieze Nova York. 

Razuk, por sua vez, concorda com Botner sobre a necessidade de se criar um espaço de experiência e troca no virtual. Já vê, porém, as funcionalidades do SP-ArteVR cumprindo parte desse papel e sendo um possível atrativo para os colecionadores. Para ela, os ambientes virtuais criados tornam o evento mais interessante para quem o frequenta e devolvem “um pouco daquele glamour que existia nas feiras presenciais” com a programação paralela. Além da exposição, o SP-ArteVR contará com debates online, entrevistas com artistas e curadores, apresentação de trabalhos, entre outras atividades gratuitas promovidas pela feira e pelos expositores.

Razuk supõe que as vantagens da SP-Arte sobre o novo formato se dão pelo momento em que o viewing room acontece. “Ela [Fernanda Feitosa] teve tempo para observar outras feiras e se organizar para o online”. Botner concorda e nota que as feiras estão se adaptando a esse novo formato e tendem a se aperfeiçoar com o passar do tempo. “As primeiras feiras de maior relevância (como Basel e Frieze Nova York) eram gratuitas. Agora, a SP-Arte e a Frieze Londres começam a cobrar um valor das galerias. Isso demonstra um desejo das feiras de conseguirem se adaptar a esse novo momento. Da mesma forma, as galerias, os colecionadores e os artistas também terão que se adaptar”, conta. 

Liberdade expositiva

A exibição das obras também é alterada pelo meio virtual. Enquanto em uma feira física cada galeria dá conta de um espaço no pavilhão da Bienal, na versão online as obras estão dispostas nas páginas virtuais de cada expositor e, também, individualmente com maior detalhamento da peça. 

Isso trouxe alterações na escolha das obras por parte de algumas galerias. “Para a feira online escolhemos um número maior de obras que normalmente não levaríamos para a feira física por causa das suas dimensões. Possivelmente levaríamos uma quantidade menor de esculturas”, conta Erica Schmatz, da Almeida e Dale. Thais Hilal, da OÁ Galeria, afirma que o evento online deu a oportunidade de apresentar um projeto desenvolvido para a ocasião, um solo do artista Hilal Sami Hilal, que “se fosse presencial não teria espaço físico correspondente ao espaço que trabalhamos, que é a própria galeria”.

Para Alexandre Gabriel, “as feiras online têm suas vantagens, como apresentar obras que estão fisicamente em diferentes lugares do mundo, sem precisar transportá-las. Ou até mesmo mostrar obras que não são possíveis de serem instaladas em um estande no pavilhão da Bienal, como a escultura do Ernesto Neto”. A estratégia de Márcio Botner, porém, foi na direção oposta. A Gentil Carioca leva à SP-Arte obras menores de seus melhores artistas. “Os colecionadores terão uma oportunidade de ver pequenas grandes jóias de cada um dos artistas da Gentil.”

Futuro híbrido

Na fala dos galeristas fica mais claro a visão de um futuro híbrido, fundindo aos formatos tradicionais a interação do mundo virtual. Não se trata de algo totalmente novo, embora ainda não tivesse sido adotado com tal escala: “Essas eram mudanças já anunciadas. Só que foi dado um enfoque muito maior pra esse tipo de ação, porque ela acabou sendo a principal nesse momento. Acredito que no futuro uniremos as duas formas, porque o presencial é muito importante, mas o virtual te leva aonde o presencial não consegue”, diz Marilia Razuk. E ela complementa: “Não podemos estar em todos os lugares do mundo para estar em todas as feiras. Então a forma virtual possibilita entrar em contato com o que está acontecendo sem ter que se deslocar”.

Indo ao encontro dessa fala, Marcos Amaro – um dos diretores da Galeria Kogan Amaro e presidente da FAMA – acredita que esse é um “processo irreversível”. Isso não significa, porém, o fim das edições presenciais, tendo em vista que há entre os galeristas “o desejo de voltar a circular, poder se encontrar, ir às instituições culturais”, como nota o diretor d’A Gentil Carioca.

“Quando tivermos as [feiras] presenciais, vai ser uma espécie de concorrência. Não vai ser muito fácil, mas ela pode ser um segundo módulo do evento presencial. As feiras podem ter os dois formatos, diz Marilia Razuk

Projetos artísticos levam representatividade não branca à SP-Arte

"Raiz e Patchuli". Fotografia da artista visual manauara Keila Serruya Sankofa. Foto: Divulgação/Nacional Trovoa

Transitando entre arte e design, o SP-Arte Viewing Room reúne 136 expositores entre os dias 24 e 30 de agosto. Essa é a primeira versão virtual de uma das mais conhecidas feiras de arte da América Latina e, pela primeira vez, ela recebe projetos artísticos independentes. Em meio às galerias nacionais e internacionais, Levante Nacional Trovoa e 01.01 Art Platform compõem a mostra com um outro olhar sobre a arte. 

“Desde 2019, vínhamos conversando com a SP-Arte sobre a falta de representatividade e a carência de diversidade racial no nível institucional do mercado das artes no Brasil”, explica Ana Beatriz Almeida, integrante da 01.01 Art Platform. É nesse sentido, trazendo produções artísticas e visões de mundo não brancas a partir de estéticas e éticas próprias, que os projetos colaboram com a feira dirigida por Fernanda Feitosa (leia nossa entrevista com a idealizadora da SP-Arte).  

Descentralizando o discurso artístico

Com curadoria africana e brasileira, e apoio de instituições do Reino Unido, Portugal e Ghana, a 01.01 foca na produção artística afro e afro-diaspórica. A plataforma busca ressignificar as antigas rotas comerciais da escravidão, transformando-as em um circuito de intercâmbio cultural que promove maneiras justas de coletar e consumir arte. “Pretendemos instruir o público em termos éticos e estéticos para produções não ocidentais”, explica Ana Beatriz Almeida.

Já o Levante Nacional Trovoa é um coletivo de interação em rede formado por mulheres e pessoas não binárias negras, asiáticas e indígenas. O projeto reivindica a urgência da discussão sobre o sistema de arte no Brasil, com especial atenção à visibilidade de artistas racializadas. “Já que o circuito hegemônico de arte não comporta nossos corpos e produções, a criação de uma rede torna-se importante, pois nos possibilita contar nossas narrativas em vários lugares, gerando visibilidade”, afirmam as artistas – que optaram por responder coletivamente à nossa entrevista. 

Com mais de 180 artistas pelo Brasil, o coletivo conta com quarenta articuladoras espalhadas pelas cinco regiões do país. “Assim, atuamos com intuito de diminuir as fronteiras regionais, revelando discursos presentes nas bordas e estimulando a descentralização da programação artístico-cultural, que está concentrada majoritariamente no eixo sul-sudeste do país”, explicam. 

Entre o físico e o virtual

A 01.01 já participaria da feira em sua versão física, mas não vê o formato online como um empecilho: “O digital nos dá chance de pular uma etapa e aproximar o público de nosso acervo conceitual, uma vez que nossa cultura é em grande parte imaterial”, conta Ana Beatriz Almeida. 

Para o Nacional Trovoa, o virtual foi um facilitador: “Certamente, se a feira fosse no formato físico, teríamos que buscar incentivo financeiro para realizar o transporte das obras, uma vez que a Trovoa não é uma galeria. Neste molde atual, cada artista será responsável por enviar seu próprio trabalho caso a venda se concretize”. Além disso, o coletivo acredita que o Viewing Room amplia as possibilidades de participação de artistas de outras cidades e atinge um público maior, que não poderia visitar a feira presencial. 

A SP-Arte é um evento internacional, que atrai colecionadores de diversos países e conta com a participação de inúmeros curadores, galeristas e diretores de instituições. As expectativas para esta edição não são diferentes e, como explica o Levante Nacional Trovoa, “a visibilidade para esses públicos é extremamente importante para as artistas do coletivo, que em sua maioria ainda estão fora do circuito de arte”.

A 01.01 Art Platform acredita que o contato com os projetos também seja importante para o próprio público, que pode se integrar com outras visões de mundo, que extrapolam a noção de que a arte se resume ao objeto artístico, entendendo-a como um universo mais amplo de práticas e experiências. 

A 01.01 promove a Death & Life art residency, uma residência internacional na qual colecionadores convivem com artistas e são introduzidos a hábitos e costumes que sustentam comunidades de matriz africana e permeiam os trabalhos artísticos da plataforma. Foto: Divulgação/ 01.01 Art Platform

Por outros olhos

É através da criação desses diálogos que ambos os coletivos pretendem levar representatividade e visões de mundo não brancas ao evento, como parte de uma “negociação constante com o circuito hegemônico de arte”, como explica o Nacional Trovoa.

Ao que Ana Beatriz Almeida, da 01.01, completa: “Compreendemos que a arte é o primeiro território do pensamento atingido pelos movimentos revolucionários. Estamos num momento de mudança profunda no mundo, e nossa função numa feira de arte é propor novas perspectivas da realidade através de uma abordagem ética e estética desconhecida no Ocidente. O desconhecimento destas outras camadas de sentido é fruto direto do racismo, e a nossa proposta é desconstruir esta estrutura a partir do colecionismo enquanto uma prática ativa de construção de realidades”.

Acervo Comentado Videobrasil: Moacir dos Anjos e Vincent Carelli

Still de "O Espírito da TV", de Vincent Carelli. Foto: Divulgação.

No novo episódio do Acervo Comentado Videobrasil, o curador e pesquisador Moacir dos Anjos [1] fala sobre O Espírito da TV, de Vincent Carelli, apresentado no 9º Festival Videobrasil, em 1990.

O documentário foi realizado pelo projeto Vídeo nas Aldeias e mostra reações do grupo indígena Waiãpi (contatado em 1973, durante a construção da rodovia Perimetral-Norte no Amapá) ao ver a própria imagem e a de índios Gavião, Nhambiquara, Krahô, Guarani e Kaiapó na TV.

Sem repórter ou narrador, o filme é realizado de modo a interferir o mínimo possível nos depoimentos. O título da obra refere-se à declaração do pajé que se sentiu afetado ao ver na tela imagens de um ritual de evocação de espíritos. O reconhecimento de tribos semelhantes; a imagem de sua tribo perante os brancos e garimpeiros que lhes ameaçam; e a conservação da imagem e da memória por meio do vídeo fascinam e preocupam os índios que reconhecem não apenas os efeitos e ameaças do vídeo, mas sobretudo a sua eficácia e o seu poder.

Acervo Comentado Videobrasil é uma nova parceria entre arte!brasileiros e a Associação Cultural Videobrasil. A cada 15 dias publicaremos, em nossa plataforma e em nossas redes sociais, uma parte de seu importante acervo de obras, reunido em mais de 30 anos de trajetória. 

A instituição foi criada em 1991, por Solange Farkas, fruto do desejo de acolher um acervo crescente de obras e publicações, que vem sendo reunido a partir da primeira edição do Festival de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil (ainda Festival Videobrasil, em 1983). Desde sua criação, a associação trabalha sistematicamente no sentido de ativar essa coleção, que reúne obras do chamado Sul geopolítico do mundo – América Latina, África, Leste Europeu, Ásia e Oriente Médio –, especialmente clássicos da videoarte, produções próprias e uma vasta coleção de publicações sobre arte.

O novo projeto contribui para “redescobrir e relacionar obras do acervo Videobrasil, e vertentes temáticas, na voz de críticos, curadores e pensadores iluminando questões contemporâneas urgentes”, afirma Farkas.


[1] Moacir dos Anjos é pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco desde 1990, onde coordena o projeto de exposições Política da Arte. Foi diretor geral do Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (MAMAM), em Recife entre 2001 e 2006. Foi curador da 29ª Bienal de São Paulo (2010). Atualmente é Conselheiro da Fundação Iberê Camargo. Em Um país esgotado – artigo publicado na edição #51 de arte!brasileiros -, o pesquisador fala sobre como, para aqueles que reconhecem e sentem em seus corpos a gravidade da crise vivida no Brasil, é cada vez mais frequente sentir-se esgotado.

Fernanda Feitosa fala sobre dificuldades recentes na SP-Arte e diz que versão virtual da feira veio para ficar

A idealizadora e diretora da SP-Arte, Fernanda Feitosa. Foto: Divulgação

A poucos dias da abertura do SP-Arte Viewing Room, versão virtual da maior feira de arte do país, a idealizadora e diretora do evento, Fernanda Feitosa, demonstra grande satisfação com a nova plataforma digital que estreia neste 24 de agosto e com as possibilidades que se abrem no universo digital. Afirma não só que o evento virtual veio para ficar – e deverá ocorrer conjuntamente com o presencial nas edições futuras -, como defende que outros viewing rooms poderão ser realizados pela marca ao longo do ano, com diferentes recortes curatoriais.     

Cinco meses após o anúncio do cancelamento, por conta da pandemia de Covid-19, da feira presencial que ocorreria na primeira semana de abril, ela afirma que prefere deixar para trás alguns desentendimentos recentes que envolveram a SP-Arte e um grupo de galerias do país: “Foi um momento de muita complexidade para todos, e isso exigiu um exercício de compreensão e de diálogo muito grande. A incerteza do futuro naquele momento foi também um fator agravante. Foi um momento complicado e reconheço que tivemos dificuldades de comunicação. Discutir questões comerciais em público é sempre difícil”.

Sobre reclamações mais recentes quanto aos valores cobrados para a participação das casas no evento online, ela completa: “O desenvolvimento de um projeto digital como o Viewing Room, com a qualidade e as ferramentas que incluímos, é bastante complexo, demanda tempo e requer vários investimentos em tecnologia. Além disso, o trabalho e equipe necessários para um evento online desta dimensão é quase o mesmo que para um evento presencial”.

O site ao qual ela se refere é a plataforma que abrigará, entre os dias 24 e 30, os espaços dos 136 expositores – entre galerias de arte, design e publicações – nacionais e estrangeiros. Cada um deles montará uma espécie de exposição e contará, para além de fotos e textos, com recursos de vídeo e áudio. Um diferencial em relação à outras feiras, segundo Feitosa, é a tentativa de aproximar ainda mais o evento da linguagem dinâmica e direta da internet, sem necessidade de cadastramento dos visitantes, com transparência nos preços das obras e facilidade no contato entre compradores e galerias.

Como já é usual no evento presencial, haverá também uma programação de visitas guiadas à exposições e ateliês, agora de modo virtual, além de debates e lives organizados pela feira e pelas galerias (veja aqui). Em conversa com a arte!brasileiros, Feitosa falou ainda sobre as dificuldades vividas com a crise, mas também sobre a resiliência do mercado de arte. Leia abaixo a íntegra.

ARTE! – Essa é a primeira edição online da SP-Arte, que segue uma tendência global das feiras de arte após a pandemia de Covid-19. Queria começar perguntando como você enxerga esse momento e como foi esse processo que culminou no lançamento do SP-Arte Viewing Room.

Acho que foi um movimento relativamente rápido, no mundo todo, em que o mercado de arte se reestruturou. E após o cancelamento da feira presencial nós rapidamente nos mobilizamos para fazer a versão online. E eu diria que isso já estava mais ou menos engatilhado, porque a gente já tinha entendido que ir para o digital era um movimento importantíssimo que a SP-Arte teria que fazer. Ou seja, que mesmo os eventos presenciais – SP-Arte e SP-Foto – teriam que estar interconectados com a atuação digital ao longo do ano.

ARTE! – O lançamento da plataforma SP-Arte 365, em 2019, já era um movimento nesse sentido?

Sim. Nós já temos um profissional de marketing digital trabalhando conosco desde o ano passado, ajudando com essa parte de inteligência, de comunicação com o público. No ano passado já havíamos também feito uma série de conversas com as galerias de São Paulo e de fora sobre esse cuidado e atenção com o digital. Já era uma coisa que a gente vinha prestando muita atenção, puxando as galerias para que embarcassem também nesse modo, abraçassem o digital como um reforço nas suas atividades. E quando fizemos a 365 já foi uma evolução do próprio site. E da 365 para o Viewing Room é um pulo. Digamos que não é um pulo fácil, já que há toda uma complexidade de tecnologia e programação. Mas já tínhamos também um web developer (desenvolvedor web) na equipe desde 2019 justamente para agilizar o nosso próprio processo de digitalização dinâmica. Porque é um exercício diário. Então essa transição para o Viewing Room foi natural. Agora, a 365 funciona como um catálogo online permanente das galerias expositoras da SP-Arte, mas que ainda não tinha nele uma curadoria, um projeto forte de comunicação com o público nesse sentido da feira. O Viewing Room, então, é de certa forma uma fusão da 365 com o nosso Editorial (parte do site dedicada à produção de conteúdo). Porque ele é também um projeto editorial, em que cada galeria é participante com uma exposição. Então foi trabalhoso, mas foi um processo natural.

ARTE! – E como vai funcionar?

Cada expositor é convidado a criar uma exposição, um projeto, em sua página. Não tentando copiar uma mostra presencial, mas estamos propondo que as galerias façam uso das ferramentas tecnológicas para se comunicar com o público da melhor forma possível, dentro de uma linguagem da internet. Então se na 365 só havia fotos das obras e os preços, agora o expositor pode ter também texto, áudio e vídeo associados a cada obra. E eu diria que acessibilidade é a palavra-chave do evento. A facilidade de conexão entre o visitante e o expositor foi algo que levamos muito a sério. Todo visitante que quiser contatar a galeria pode fazê-lo por e-mail, por chat ou por WhatsApp, que é uma ferramenta muito poderosa hoje. E a gente busca estar sintonizado com o modo usual de comunicação das pessoas. E o outro ponto é a transparência. Nós fizemos a proposta a todos os expositores para que coloquem no site o preço das obras, ou ao menos a faixa de preço. Porque o comportamento do usuário da internet é esse, buscar informações claras e diretas, ter uma comunicação fácil. E acho que isso melhora muito a qualidade do contato entre o possível comprador e a galeria. Se o visitante já sabe que o preço está dentro de suas possibilidades, seu contato é muito mais assertivo, tem muito mais chances de dar certo.

ARTE! – A SP-Arte acontece após a realização já de uma série de outras feiras virtuais no Brasil e no mundo. Esse tempo ajudou na construção de uma plataforma mais interessante, no desenvolvimento de ferramentas mais práticas de navegação e venda?

Claro. A gente tem sempre que fazer uso das experiências anteriores a seu favor, para aprender tanto com os acertos quanto com os erros dos que te precedem. E por isso vimos que era importante oferecer às galerias essa oportunidade de falar com o público utilizando texto, áudio e vídeo como recursos que são complementares. Além disso, a SP-Arte online é aberta ao público em geral, sem necessidade de cadastro, pré-senha, sem público VIP com acesso antecipado. Porque nós achamos que o ambiente online é, por natureza, acessível, democrático. E quanto mais fácil for o acesso, melhor. Essa é a linguagem da internet.

Trecho do vídeo de divulgação da feira, que simula como será a plataforma. Foto: Reprodução


ARTE!
 – Isso pode trazer também um público que não é comprador, mas apenas que quer ver arte, como acontecia na feira presencial?

Exatamente. Claro que o objetivo é que as pessoas comprem arte. Mas acho que é interessante construir o seu público, que inclusive pode não ser comprador agora, mas sim daqui a alguns anos. E na SP-Arte presencial a maior parte das pessoas não ia para comprar, mas para ver arte. Porque aquilo também é uma enorme exposição, sem dúvida.

ARTE! – Sobre a escolha de obras apresentadas, muitos galeristas tem comentado que é um momento bom para vender trabalhos de valores mais baixos ou intermediários, até por conta de um novo público que vem com a internet. Você acha que isso deve alterar o tipo de trabalho que será apresentado, em relação às feiras presenciais?

Eu acho que cada galeria tem o seu posicionamento e vai adotar uma estratégia compatível com o momento. E evidentemente não estamos vivendo um momento em que todos vão colocar suas obras mais caras. Considerando ainda que é um evento online, com potencial de um alcance de público muito maior do que o evento físico, acho que as galerias vão levar suas obras de maior qualidade, mas fazendo um mix de preços. Agora, é fato também que na SP-Arte do ano passado, e esse dado é interessante, 57% das obras vendidas estavam abaixo de R$ 50 mil. Então acho que talvez o comportamento não seja tão diferente.

ARTE! –  Mesmo que ainda não tenhamos os resultados do evento, queria saber como você imagina esse formato de feiras virtuais daqui para a frente. Acha que é algo que veio para ficar?

Eu vejo isso com muita positividade. Veja bem, na feira presencial nós temos cerca de 35 mil pessoas na SP-Arte e 15 mil pessoas na SP-Foto. Ou seja, 50 mil pessoas vão aos nossos eventos presenciais no ano. E são cerca de 40 mil visitas ao site por mês. Inclusive porque o online está disponível 24 horas por dia, 365 dias por ano, sem necessidade de deslocamento, enquanto uma feira acontece durante alguns dias, algumas horas por dia, em determinado local. Então olha o potencial que temos nas mãos, de ter um alcance maior e mais globalizado. Penso também que ainda que a SP-Arte seja um evento internacional, é impossível que uma feira de arte presencial no Brasil, México ou Argentina tenha o alcance e a performance de uma feira que está na Europa ou nos EUA. O número de visitantes do exterior é sempre menor, naturalmente. Porém, agora você tem o mundo inteiro podendo visitar a SP-Arte online sem ter que sair de casa.

ARTE! – Muitos galeristas falam de um esgotamento de um modelo que existia em que é preciso viajar incessantemente ao longo do ano para feiras no mundo todo. É caro, cansativo, algo que estava se tronando inviável.

Sim, é interessante ver, também, que quando eu comecei a SP-Arte, abril era um mês tranquilo, que não tinha nada, não competia com outras feiras. Nesses últimos anos a gente passa a ter, mais ou menos na mesma época, feiras em Nova York, em Hong Kong, sem contar dezenas de outras que surgiram ao longo do ano. Quer dizer, não dá nem para os galeristas nem para os colecionadores viajarem tanto. E a logística virou o grande gargalo. O custo do estande, mais o transporte de obras, de gente etc. Então eu acho que isso ia asfixiar os expositores alguma hora, não tinha jeito.

ARTE! – Voltando a falar um pouco do processo todo até chegar no SP-Arte Viewing Room, nos últimos meses surgiram duas polêmicas, ou desentendimentos, que envolveram a feira. Eu gostaria de perguntar qual a sua percepção sobre elas. Em primeiro lugar, em relação à devolução ou não da totalidade do valor que já havia sido pago pelas galerias à feira, quando ela foi cancelada…

Para todos nós, a decretação, ou o reconhecimento, de que estávamos diante de uma pandemia, e que isso punha em risco todo o mundo, isso é um susto grande. E, no nosso meio cultural, sem dúvida foi um susto para todos que empreendem, que têm um negócio. Todos nós tínhamos uma programação de um trabalho a ser feito, tínhamos um comprometimento de um trabalho a ser entregue, eventualmente com vendas efetuadas e pagamentos recebidos. Lidar com a complexidade que é simplesmente dar um cavalo de pau, puxar o freio de mão e parar tudo não é simples. Então como fazer com o que você tinha que pagar, já que você não recebe o que esperava receber? E o mundo todo ficou nessa situação, claro que em contextos diversos. Mas foi um momento de muita complexidade para todos, e isso exigiu um exercício de compreensão e de diálogo muito grande. A incerteza do futuro naquele momento foi também um fator agravante. Foi um momento complicado e reconheço que tivemos dificuldades de comunicação. Discutir questões comerciais em público é sempre difícil. Enfim, o fato é que nós fomos o único evento deste tipo que foi cancelado na véspera da realização. Fomos pegos no pior momento possível, porque eu alugo um espaço, contrato a produção, o montador e assim por diante. Há uma rede de fornecedores com quem a gente trabalha e tudo isso já havia sido pago, ou na totalidade ou parcialmente. Por sorte, com o prédio da Bienal nós conseguimos, por conta do contrato, deixar o valor que já estava pago como crédito para o ano que vem.

ARTE! – Mas no fim o dinheiro acabou sendo devolvido na íntegra às galerias.

Sim. Porque de qualquer modo são meus clientes e parceiros de muitos anos e acho que foi importante sinalizar que o nosso comprometimento é tamanho que coloca em risco a própria saúde financeira da SP-Arte. E a vida segue, estamos juntos novamente em mais um projeto importante para todos e vamos nos reerguer.

ARTE! – A outra questão que surgiu, mais recente, foi uma reclamação em relação aos custos de participação na feira e ao percentual cobrado nas vendas de obras. Galeristas disseram que isso não havia sido feito pelas outras feiras virtuais até o momento…

O desenvolvimento de um projeto digital como o Viewing Room, com a qualidade e as ferramentas que incluímos, é bastante complexo, demanda tempo e requer vários investimentos em tecnologia e desenvolvimento, como por exemplo “duplicar” o site em outro servidor, investir em aumento de capacidade e velocidade para sustentar picos de visitação, criar ferramentas de inteligência de dados e navegabilidade, design, apenas para citar alguns. Isso custa caro. Neste novo formato, o modelo de precificação comercial também acaba tendo que ser diferente do modelo tradicional de venda de espaço cobrado por m2. Além disso, o trabalho e equipe necessários para um evento online desta dimensão é quase o mesmo que para um evento presencial. Eu desconheço a estratégia comercial de outras feiras do exterior e por isso não gostaria de opinar, mas essa é a que adotamos na SP-Arte.

ARTE! – Ao fim, apesar dos desentendimentos, são 136 expositores que participam da feira. É um bom número?

Sim, temos 136 expositores participando, então acredito que esse estranhamento inicial foi superado. Porque acho que percebem também que há uma diferença muito grande entre plataformas digitais em que você paga 150 dólares e compra apenas uma página modelo, com um layout, onde coloca suas obras com um texto – o que é algo mais próximo a uma página de anúncio – e isso é muito diferente do que a SP-Arte está fazendo quando oferece o Viewing Room. Estamos oferecendo um evento digital que traz uma marca, uma plataforma sofisticada, um editorial comprometido, um mailing qualificado, uma rede de mais de 160 mil seguidores, uma força na imprensa, anúncios da feira na mídia e assim por diante. Isso tudo está a serviço do evento, das galerias.

ARTE! – Falando um pouco sobre o contexto político e econômico, vivemos um momento muito conturbado, com muitos negócios fechando, muita gente desempregada, com a economia muito fragilizada. Surpreendentemente o mercado de arte, após um baque inicial com a pandemia, parece ter se recuperado. Os galeristas dizem que seguem vendendo, algumas feiras tiveram bons resultados. A que você acha que se deve esse bom resultado?

Essa é uma crise de uma gravidade e de uma seriedade sem precedentes. Então não dá para achar que nenhuma área do mercado – mesmo de luxo ou de investimentos – vai passar imune a uma crise como essa. Mas o mercado de arte, na minha opinião, tem uma característica específica, porque ele é uma reserva de valor. Então numa situação de crise as pessoas que dispõem de recursos acabam buscando investi-los em ativos nos quais elas veem alguma estabilidade, uma possibilidade de preservação do valor. E a arte entra nessa categoria. Então comprar uma obra de um bom artista moderno ou contemporâneo pode significar estar relativamente protegido dessas crises. Um Volpi sempre será um Volpi, por exemplo. Sempre será um ativo ao qual você pode recorrer. E de modo geral o mercado de arte é muito resiliente. Historicamente costuma ser o último a ser afetado e, ao mesmo tempo, um dos primeiros a se recuperar. Mas não é imune, claro. E, além disso, acho que as galerias foram muito ativas, buscaram se comunicar com mais gente, surgiram parcerias entre as galerias, como o p.art.ilha. Vi também alguns tipos de promoções convidativas, por exemplo, então acho que as casas criaram essas dinâmicas que incentivaram as vendas. Na nossa página online da SP-Arte, por exemplo, o espaço era 70% editorial e 30% comercial. Depois da pandemia nós invertemos isso, também como uma forma de criar mais oportunidades de negócio. Do mesmo modo, intensificamos o envio de newsletters, que se tornaram também um pouco mais comerciais. E nelas tivemos um aumento de 126% de cliques em “contatar galerias”.

ARTE! – Por fim, você disse que a feira de 2021 já tem data confirmada, no mês de abril?

Sim, eu sou otimista de que no ano que vem nós vamos poder fazer a feira presencial em abril, funcionando dentro das normas de segurança, provavelmente com controle de público. Mas ela vai existir concomitantemente ao Viewing Room da SP-Arte. Ou seja, com uma exposição feita nas paredes, na Bienal, e uma exposição feita também no online para um público do mundo todo, para quem não vai visitar o pavilhão. E dando um passo adiante, acho que se abre para nós a possibilidade de fazer tantos viewing rooms quanto a gente achar necessário, em outras datas também, com novos recortes curatoriais, por exemplo. Acho que tem muitas possibilidades abertas. Quanto às palestras também, talvez a gente possa alcançar muito mais gente com o virtual.     

MAM Rio anuncia Keyna Eleison e Pablo Lafuente como novos diretores artísticos

Pablo Lafuente, Fabio Szwarcwald e Keyna Eleison na sede do MAM Rio. Foto: Divulgação.

Nesta terça-feira, dia 18, o MAM Rio anunciou Keyna Eleison e Pablo Lafuente como a dupla que irá assumir a diretoria artística da instituição. Eleison, de 41 anos, é carioca, mestre em História da Arte e especialista em História e Arquitetura pela PUC-Rio. Ela é curadora, escritora e pesquisadora e atualmente ensina na Escola de Artes Visuais do Parque Lage. Já o espanhol Lafuente, de 44 anos, foi co-curador da 31 ª Bienal de São Paulo, em 2014. Entre 2018 e este ano, ele coordenou o Programa CCBB Educativo no Centro Cultural Banco do Brasil do Rio. De 2008 até 2013 também foi curador associado do Office for Contemporary Art, na Noruega.

A escolha é resultado de um processo seletivo de quatro meses que atraiu mais de 100 candidaturas. A recente chamada marca a primeira vez que o MAM Rio faz um processo seletivo aberto para uma posição de destaque, e veio como uma celebração dos 72 anos do museu, completados no dia 3 de maio. Desde janeiro de 2020, o MAM Rio está sob liderança do diretor-executivo Fabio Szwarcwald e essa iniciativa faz parte de um reposicionamento da instituição, que conta com um dos mais importantes acervos de arte moderna e contemporânea da América Latina – com cerca de 15 mil obras.

MAM Rio Capacete
O prédio do MAM Rio. Foto: Fabio Souza.

Para escolher sua nova diretoria artística, o MAM Rio formou dois comitês, um interno e um técnico, este último com nove integrantes: Ayrson Heráclito; Benjamin Seroussi; Diane Lima; Eneida Braga; Jochen Volz; Manuela Moscoso; Mauricio Dias; Renata Bittencourt e Roberta Saraiva. Iniciados em maio, os processos de seleção executados pelos comitês foram afunilando as candidaturas até restarem cinco finalistas na etapa final do processo.

A escolha da dupla, segundo Szwarcwald, procura “voltar ao tripé, que foi a alma do MAM, que é arte, educação e cultura”. No anúncio da nova direção artística, ele afirmou: “Queremos um museu antenado com a modernidade, um museu cada vez mais social, que tenha um foco na sua cidade, nos projetos periféricos que acontecem nela”. Ao apresentar Eleison e Lafuente, ele complementou que o processo de transformação pelo qual o MAM Rio está passando procura torná-lo mais relevante na cena cultural da capital carioca. “Um museu mais cultural, com várias ações em várias outras áreas que não só nas artes visuais, como cinema, dança, teatro, música.”

A ideia é reverberada pelos novos diretores artísticos. Eleison conta que já no projeto submetido para a candidatura da dupla foi pensado o MAM como um museu de interseções: “dentro, fora, no parque, além, em nossas casas, no centro da cidade, nas periferias, no país e no mundo”. Um projeto artístico que pretende criar condições e atividades para incentivar e orquestrar que essa conexão se torne “um hábito e um museu vivo, um entendimento expandido de nossa cultura material e imaterial”.

Para Lafuente, a tarefa de criar uma relação mais orgânica com o museu passa por uma transformação de uma instituição visitada para uma habitada. “O MAM não é apenas o espaço demarcado pela sua arquitetura, é igualmente o parque que o acolhe, a passagem da Baía de Guanabara e as experiências daqueles que passam por esses locais. É necessário criar mecanismos que garantam a troca”. Tal intercâmbio, segundo ele, já se inicia pelo diálogo criado entre os dois diretores. Como afirmou o curador, as diretorias duplas trazem uma dinâmica específica que já carrega a diversidade de olhares levando em conta que “duas pessoas sempre vão olhar um pouco diferente, ao mesmo tempo que isso leva a uma dinâmica de negociação; são duas perspectivas que vão ter que negociar uma posição comum entre elas, e assim continuar essa dinâmica com o resto das equipes que fazem o museu, por sua vez muitas e muito diversas também”.

É necessário construir relações de engajamento e retorno nesses tempos que precisamos aprender a estar juntos de novo, afirma o curador espanhol.

A diversidade foi abordada pelos novos diretores também em relação às narrativas artísticas provocadas pelo acervo do MAM Rio. A dupla pretende trabalhar com as “presenças e ausências” do museu para contar histórias que não estão sendo mostradas. “A tarefa de reinvenção deve partir do MAM e seus acervos, eles são vocabulários que dispomos para criar narrativas e demandam atenção, estudo e divulgação. Estamos cientes porém, de que a história contada pelo MAM não é suficiente. Devido a acidentes, invisibilidades, seu vocabulário é limitado como, por exemplo, sua relação com a produção negra e indígena. Nosso programa artístico permite trabalhar tanto com o que está disponível quanto com as ausências”, afirma Eleison.

A pesquisadora complementa: “Para nós, encantamento é uma palavra fundamental para pensar o Museu de Arte Moderna. Para que o museu funcione, ele precisa ser compartilhado por todos nós e por isso os acervos, programações e equipe devem refletir a diversidade da sociedade, suas linguagens e histórias.” Completando o tripé mencionado por Szwarcwald vem o compromisso dos diretores com os processos de educação e programação do museu ao fortalecer a Cinemateca do MAM – cujo espaço novo será inaugurado – e ao trazer de volta o Bloco Escola.

 

Onde os grafites gritam: São Paulo nos 90 anos do Plano de Avenidas, de Prestes Maia

Folha de rosto. MAIA, Francisco Prestes. Plano de Avenidas para a cidade de São Paulo. Companhia Melhoramentos de São Paulo, 1930.

Neste 2020 deveriam ser comemorados os 90 anos de uma das principais publicações sobre urbanismo no Brasil, Introdução ao Estudo de um Plano de Avenidas para a Cidade de São Paulo[1], o que, parece, não irá ocorrer. Uma lástima porque, nesse livro, o engenheiro e futuro prefeito de São Paulo, por duas vezes (1938-1945 e 1961-1965), Francisco Prestes Maia, apresentou seu projeto para a transformação da capital paulista, reunindo documentos e propostas que nos ajudam a entender como São Paulo chegou ao que é hoje: uma metrópole que, podendo ter sido um “sonho feliz de cidade”, transformou-se no “avesso do avesso do avesso”, como chorou o poeta[2].

Mesmo um webnário sobre o legado deixado pelo Plano de Avenidas – suas propostas e consequências para a cidade – talvez já trouxesse encaminhamentos possíveis para mitigar, pelo menos em parte, seus efeitos sobre todos nós. Mas, como tal encontro, parece, não ocorrerá, este artigo atenta para algumas das características do Plano escrito por Prestes Maia. Um texto pretensamente objetivo, conectado com os debates internacionais sobre urbanismo, tudo dentro de um discurso que visa impregnar-se da “eficácia” que o engenheiro percebia naquele debate. Ao mesmo tempo chamarei a atenção para a presença, dentro do texto de Prestes Maia, de algumas obras gráficas por ele produzidas para o livro, imagens que significarão espécies de “desarranjos poéticos” dentro de sua escrita que, como dito, visava incorporar a suposta eficiência do urbanismo da época. A ideia é também ponderar sobre como todo esse projeto de modernização urbanística de São Paulo está ancorado numa visão mítica do passado da cidade – reverberando, então no alvorecer dos tenebrosos anos 1930, a importância cada vez maior no imaginário paulistano dos pioneiros paulistas e dos bandeirantes.

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Em 1930, Plano de Avenidas para a Cidade de São Paulo foi recebido com entusiasmo no IV Congresso Pan-Americano de Arquitetos do Rio de Janeiro, como uma contribuição brasileira ao debate sobre urbanismo nas Américas. Medindo 39x26cm, foi publicado com quase 360 páginas, capa dura forrada com tecido de luxo e papel sofisticado. Apresentava uma série de fotografias antigas e atuais de diversas regiões da cidade[3], gráficos com propostas de criação e/ou expansão de avenidas radiais e perimetrais em São Paulo e uma série de imagens de projetos, mapas e outras imagens – sobretudo de cidades europeias e norte-americanas –, para demonstrar que a visão de Prestes Maia para o futuro da capital paulista estava ancorada no que de mais atual era proposto para as cidades ocidentais. Essa iconografia, por sua vez, operava como suporte de um texto escrito com pretensões de objetividade, focado em seu objeto de interesse – São Paulo.

Impossível ler o livro de Maia sem recordar Roland Barthes, para quem determinados textos poderiam ser comparados a um tecido[4]. Plano de Avenidas para a Cidade de São Paulo constitui-se como tal, entrelaçando ao eixo principal inúmeras notas de rodapé, além de uma quantidade expressiva de citações no original (espanhol, francês, italiano, inglês e alemão) de documentos sobre questões urbanas europeias e norte-americanas[5]. Tal amálgama de informações das mais diversas origens e em várias línguas, tende a dificultar o entendimento do conjunto, retirando-lhe a objetividade e eficiência pretendida, dentro de uma escrita que se percebia, inegavelmente, como “científica”.

Integrando essa estrutura que organizava cada segmento do livro[6], sobressaíam diversos e primorosos desenhos e pranchas do próprio Prestes Maia, projetando ideias para monumentos escultóricos ou arquitetônicos que, no futuro – e quando seu projeto para grandes avenidas estivesse executado –, “coroariam” conexões entre dois ou mais eixos viários, ou embelezariam pontos privilegiados da cidade.

Esses projetos de monumentos exaltavam tanto a grandeza que a capital paulista alcançava quanto os pioneiros paulistas que desejava glorificar. Em pelo menos dois dos projetos concebidos pelo engenheiro, as figuras míticas dos paulistas do passado – o “pioneiro” e o “bandeirante” – surgiam como os pontos de apoio de onde a cidade poderia dar seu grande salto rumo ao futuro.

Nas duas vezes em que trabalhou como prefeito, Maia levará adiante parte de seu Plano de Avenidas, rasgando autopistas, num processo de criação de novos territórios urbanos, a partir da remodelação ou simples destruição de outros[7]. Nesses esforços, ele nunca complementou suas propostas, introduzindo aqueles monumentos que planejara[8]. Porém, o fato de nunca tê-los implantado não suprime a importância dos mesmos, se os entendermos como mais uma indicação da existência do desejo de transformar São Paulo em uma cidade ideal, uma metrópole consagrada ao futuro – com uma organização urbanística racional, “científica” – mas, ao mesmo tempo, com sinais de ser herdeira de um passado capaz de sustentar e justificar sua “vocação” para o futuro.

O culto a uma ascendência especificamente “paulista” (e não propriamente “brasileira”), embasando as ideias para a transformação de São Paulo, contidas no Plano de Avenidas, apresenta conexões com os desejos expressos por Adolfo A. Pinto, e já aqui discutidos[9]. Tanto as propostas de Pinto quanto as de Maia são manifestações de uma mesma compreensão do que São Paulo tinha se tornado no início do século XX e do que poderia se tornar no futuro, tendo seu “passado mítico” como o lastro para seu devir.

Aqui circunscreverei os comentários a dois monumentos concebidos por Prestes Maia. O primeiro, relativo ao Parque “das Cabeceiras do Ipiranga”[10], e o segundo, pensado para a Ponte das Bandeiras – comentado em artigo já publicado nesta coluna[11].

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Em Plano de Avenidas, no final de várias de suas partes (ver nota 6), foram publicadas imagens dos monumentos propostos (ou detalhes); quer esboços, quer pranchas com desenhos aquarelados, tais aparições na maioria dos casos não apresenta relação direta com os capítulos que finalizam. Se aqueles projetos de monumentos foram pensados para coroarem um ou outro entroncamento de avenidas projetados no Plano, suas representações publicadas nos finais dos capítulos do livro, ou no seu término (nos dois “Apêndices”), por sua vez, funcionam como coroamento do próprio livro.

Página de Plano de Avenidas para a cidade de São Paulo, 1930, de Prestes Maia.

Se no Plano de Avenidas prevalece o discurso da competência e da eficácia do urbanismo – uma disciplina pautada na lógica e na racionalidade – os desenhos com os projetos dos monumentos colocados no final de praticamente todos os capítulos, surgem como pequenos desarranjos, delicados índices de poesia, tanto para a cidade em devir, quanto para o próprio fluxo “objetivo” do texto.

Como mencionado, essa estrutura em que o poético ou o “artístico” aparece sobretudo no final de cada capítulo é repetida na macro estrutura do livro, uma vez em que será justamente nos seus “Apêndices” – ou seja, no final do tratado e, portanto, em seu arremate –, que o autor se dedicará às suas ideias para os monumentos.

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Projeto concebido para o Parque das “Cabeceiras do Ipiranga”, presente no primeiro dos dois “Apêndices” (aquele dedicado aos parques que Prestes Maia pensava para a cidade[12]), o Parque das “Cabeceiras” estava dentro de uma série de parques delineada para a cidade. Parques que, por sua vez, seriam ligados por parkways que correriam às margens dos rios que banhavam a cidade.

Está aqui o germe daquele empreendimento que, mais tarde, seria conhecido como as “marginais de São Paulo”. Porém, se hoje essas avenidas marginais estão restritas às margens dos rios Tietê e Pinheiros, na origem elas seriam mais abrangentes, formando um círculo ao redor de toda a cidade. Seria, portanto dentro desse grande conjunto de avenidas perimetrais intercaladas por parques, que se destacaria aquele que seria repleto de forte apelo simbólico, homenagem às “Cabeceiras do Ipiranga”[13], ou seja, às nascentes do rio que, em 1822, testemunharia a proclamação da independência do país.

O Parque seria contemplado com uma série de monumentos, a começar por um pórtico grandioso, concebido por dois pilones paralelos colocados na entrada principal. A representação de um único desses pilones aparece à página 12 do Plano de Avenidas arrematando a Introdução do texto. No desenho, os carros que circundam aquele elemento arquitetônico evidenciam sua estrutura colossal, dividida em três partes: um grande pedestal, (correspondendo mais ou menos a três andares de um edifício), funcionando como base para um pilar retangular, sendo que em cada uma de suas quatro arestas estaria coberta por esculturas representando nus masculinos, provavelmente indígenas. Esse pilar suportaria uma grande forma retangular horizontal que sustentaria a representação de uma pira.

Os quatro gigantes (na verdade 8, levando-se em conta que o desenho representa apenas um dos dois pilones da entrada) seriam os guardiões do Parque, gênios tutelares cuidando da entrada do território sagrado. Representados como figuras indígenas masculinas reforçam a dimensão mítica a ser conferida àquele espaço originário, berço das fontes da liberdade do país.

No desenho publicado à página 33, no final do capítulo “Desapropriações”, ficará nítido que a imagem comentada anteriormente era, de fato, um detalhe de um complexo escultórico/arquitetônico maior. Nele estão representados dois pilones, formando o imponente pórtico. Se na primeira imagem notava-se à esquerda, ao fundo, o esboço de um grande elemento arquitetônico, naquela da página 33, vislumbra-se o mesmo elemento, no fundo à direita. Se na primeira era sugerido um espaço estreito entre o pilone e o edifício, nesta última, uma grande avenida os separava.

Parque das Cabeceiras do Ipiranga – Pylones, Estudo. In: MAIA, F. P. Plano de Avenidas para a cidade de São Paulo, 1930, p. 33.

Na página 278, uma outra visão da entrada do Parque: os dois pilones gigantescos emoldurando outro complexo arquitetônico: uma fonte rodeando um grande obelisco, tendo atrás um elemento arquitetônico marcando o fundo. Tal proposta, porém, fica mais explícita na prancha XVI, entre as páginas 342 e 343 de Plano de Avenidas. Esse grande complexo compreendendo a fonte, o obelisco e o elemento arquitetônico foram definidos por Prestes Maia como “Motivo Central. Remate à Avenida Thereza Christina, principal acesso ao Parque, o que confirma o interesse sempre presente em Prestes Maia de fechar seus projetos de avenidas grandiosas com monumentos arquitetônicos e escultóricos que criassem perspectivas espetaculares para esses trechos da cidade.

Parque das Cabeceiras do Ipiranga – Motivo central, remate à Av. Teresa Cristina, Estudo. In: MAIA, F. P. Plano de Avenidas para a cidade de São Paulo, 1930, prancha XVI.

Quanto ao elemento arquitetônico que, ao fundo, arrematava aquele “motivo central”, o engenheiro parecia indeciso entre pensá-lo como um “monumento alegórico” ou como um “pavilhão de festas”. Porém, ao observarmos o desenho, nota-se que ele acabou por privilegiar a ideia do monumento – na verdade um grande painel alegórico. Com certeza, entre a possibilidade de marcar aquele final de avenida com um marco que homenageasse o mito do nascimento da liberdade da nação em território paulistano, ou de aproveitar o espaço para lhe conferir alguma utilidade mais mundana, Prestes Maia preferiu a primeira opção. E essa preferência fica clara em uma nota de rodapé em que, em grandes traços, o engenheiro define qual deveria ser a temática do friso: “O grande relevo desenrolará a história do acesso ao planalto. Os gigantes prostrados, os ‘filhos da terra’, recolhem as águas, que manam da nascente simbólica do Ipiranga”[14]. Ou seja, em meio à toda racionalidade reivindicada para o projeto de avenidas que prepararia São Paulo para assumir sua posição de liderança no Brasil e na América Latina, seu autor não se furta em conceber grandes obras escultóricas que tornassem palpáveis a mitologia do passado paulista que ele ajudava a criar, aqui formulando a ideia dos “filhos da terra”, os primeiros a beberem das águas libertárias do Ipiranga.

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Se o Parque das “Cabeceiras do Ipiranga” seria o sítio de homenagem aos indígenas de São Paulo – fator de união entre a natureza selvagem e o elemento português invasor –, caberia ainda a construção de outro espaço sagrado para homenagear o resultado maior daquela união, o bandeirante. Para pagar esse débito é que foi pensado a Ponte das Bandeiras, local importantíssimo dentro da série de transformações propostas por Prestes Maia para São Paulo, uma vez que, além de fazer parte da maior perimetral da capital, funcionaria também como base de um grande eixo radial ligando o norte ao sul da cidade. Assim se pronuncia sobre a Ponte das Bandeiras, uma publicação paulistana de 1942:

A função da grande Ponte consiste em ligar os dois trechos da Avenida Tiradentes, que de um lado se prolongará até ao sopé de Santana e do outro até ao Parque Anhangabaú, constituindo o grande eixo Norte-Sul da Cidade e o tronco do gigantesco Y de que são hastes a Avenida Nove de Julho, já aberta e a futura Avenida Itororó [hoje 23 de Maio].[15]

Ao lado da Ponte das Bandeiras seria construído um grande terminal ferroviário que reuniria todas as ferrovias que existiam na cidade, livrando São Paulo das passagens de níveis e outras inconveniências. Além desse terminal, seria ali construído um porto fluvial e, nos arredores, um aeroporto, o Campo de Marte. Para chegar a esse grande complexo, ou para dele sair e adentrar na cidade, o viajante passaria pela grande ponte a ser construída, dedicada às bandeiras paulistas.

Ponte Grande e Monumento dos Bandeirantes, Estudo (Ponte das Bandeiras). In: MAIA, F. P. Plano de Avenidas para a cidade de São Paulo, 1930.

Em outra oportunidade descrevi como seria concebida e ornamentada a Ponte das Bandeiras projetada por Prestes Maia, com dois enormes pilones decorados com esculturas e com um grande complexo escultórico monumental representando os bandeirantes em ação e voltados para o interior do estado – justamente o território que seria por eles tomados dos indígenas[16].

No artigo acima citado existe uma explicação para o fato do complexo escultórico da Ponte das Bandeiras não ter sido construído como era o intuito de Maia:

(…) tal como foi primitivamente concebida,, com o seu monumento que seria por certo um elevado tema de beleza, a ponte só por si custaria uns 18.000 contos; ulteriores modificações do plano, porém, e motivos de economia e sobriedade aconselharam a supressão da parte meramente ornamental, e tal como está sendo ultimada a obra não irá além dos 6.000 contos; com os restantes 12.000 levar-se-ão a cabo outros melhoramentos essenciais – e este é o critério de quem, não sacrificando o futuro, porque o monumento de um modo ou de outro pode erguer-se a qualquer tempo, cuida apenas de plasmar o arcabouço sobre o qual se elevará a grandeza de S. Paulo[17].

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Nem o Monumento às Bandeiras da Ponte homônima nem qualquer outro monumento anunciado por Prestes Maia em seu Plano de Avenidas foi erguido, quer em seus dois mandatos como prefeito, quer depois. Por mais desalentador que tal situação possa parecer hoje, é certo que ela já estava prevista ali mesmo, no livro de 1930. Como esclareci, esses projetos, desde o início, não pareciam organicamente conectados à concepção geral da transformação de São Paulo, proposta por Prestes Maia.

Página de Plano de Avenidas para a cidade de São Paulo, 1930, de Prestes Maia.

Desconectados com todos os segmentos onde apareciam, desconectados do próprio livro – por isso constituindo seus apêndices – eles estavam fadados a não ocorrerem porque não faziam parte das prioridades de Prestes Maia. Seus objetivos estavam voltados para a circulação de pessoas e de bens, e por isso a ênfase de seu Plano de Avenidas foi toda direcionada justamente às vias de acesso e de circulação do capital. Os monumentos por ele propostos, para o bem e para o mal, visavam se tornar espaços cívicos, espaços de cidadania, voltados, pelo menos em tese, para a população. Mas a população, ao que parece, era o que menos importava no Plano de Avenidas. E isso é possível perceber, tanto pela pouca importância que, no fundo, a arte possuía como elemento cidadão dentro de uma metrópole ainda em processo de crescimento (afinal, esses projetos de monumentos poderiam ser pensados apenas como “fantasias”, pertencentes ao universo do sonho, não da realidade), quanto na rarefação com que a questão social, ou da moradia para os setores de baixa renda, foi tratada no livro.

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Passados 90 anos do lançamento de Plano de Avenidas a certeza de todo paulistano é de que a proposta de se pensar São Paulo enquanto um entrelaçamento de avenidas venceu, o que nos remete a outro poeta que lamenta:

Não existe amor em SP

Um labirinto místico

Onde os grafites gritam

Não dá pra descrever[18]

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[1] – MAIA, Francisco Prestes. Estudo de um Plano de Avenidas para a cidade de São Paulo. São Paulo: Companhia Melhoramentos de São Paulo, 1930. O livro leva na lombada o seguinte título: Plano de Avenidas para a Cidade de São Paulo, que foi como a obra ficou conhecida.
[2] – “Sampa”, Caetano Veloso, 1978.
[3] – Prestes Maia não apenas se utilizou de fotografias avulsas produzidas por Militão Azevedo, como também de determinadas duplas de fotos, mostrando o “antes” e o “depois” de determinados locais de São Paulo, propostas por Militão em seu livro Álbum comparativo de Vistas da Cidade de São Paulo (1887). Prestes Maia também criou suas próprias duplas comparativas, mostrando que o fotógrafo fez escola em São Paulo.
[4] – Barthes, Roland. O rumor da língua. Lisboa: Edições 70, 1987.
[5] – Essa grande quantidade de citações, é preciso salientar, ao mesmo tempo em que enfatizava a suposta objetividade e contemporaneidade do debate em que o texto de Prestes Maia se inseria, não deixava de evidenciar, aqui e ali certa fragmentação das ideias do autor.
[6] – O livro foi assim dividido: Duas Palavras; I – Introdução; II Desapropriações; III Recursos financeiros; IV O Perímetro de Irradiação; V Radiais; VI Perimetrais. Tietê; VII Sistema de Transportes I Parte: Estradas de Ferro; VIII Sistema de transportes – Ii Parte: Metropolitano, Tramways, Ônibus etc.; IX Extensão; X Apêndice 1, Parques; 2, Ponte Grande.
[7] – Notadamente aqueles ocupados por grupos sociais de baixa renda, sobretudo a população negra da cidade, obrigada a deixar o centro de São Paulo em busca de alternativas para moradia.
[8] – A Prefeitura justificará a não realização dos monumentos alegando questões orçamentárias.
[9] – Me refiro aos seguintes artigos publicados nesta coluna: “O doutor e os monumentos” (18.12.2019); “O panteão dos imortais de São Paulo: delírio tropical no Pátio do Colégio” (24.06.2020) e “Bandeirantes em Movimento: entre disputas e conciliação” (09.07.2020).
[10] – Não foram encontrados documentos sobre esse Parque. No entanto, presumo que ele tenha vindo a se chamar Parque da Água Funda até 1969, quando teve seu nome mudado para Parque Estadual das Fontes do Ipiranga. As três denominações fazem referência às nascentes do Rio de Tietê, em São Paulo.
[11] – “Bandeirantes em movimento: entre disputas e conciliação” (09.07.2020). Tal circunscrição deve-se ao fato de que, mais do que as outras propostas do ex-prefeito, essas duas são marcadamente escultóricas, enquanto as demais possuem características arquitetônicas mais salientes.
[12] – Embora o aprofundamento de suas ideias sobre os monumentos para o Parque das “Cabeceiras do Ipiranga” ocorra justamente no Apêndice, é interessante observar que serão justamente desenhos referentes a esse parque que aparecerão dispersos pelo livro, sem nenhuma conexão com os trechos vizinhos.
[13] – A proposta original para as marginais de São Paulo, começando por aquela do Tietê, “sobe o curso do Pinheiros, da foz até o ribeirão do Matadouro (Cortume ou Sapateiro), pelo qual atinge a invernada do Ibirapuera. Continua pela avenida Aracy e depois por uma nova até o parque das cabeceiras do Ipiranga. Toma aproximadamente o caminho do Cursino, sobre o divisor do Ipiranga e do Tamanduateí; acompanha o córrego do Sacomã, transpõe os trilhos da Inglesa; aproveita-se de pequeno trecho da radial av. Wilson ou dos Estados; segue o córrego da Mooca, transpõe a coluna da Vila Prudente com curvas que o seu caráter de parkway admite, e desde o vale do Tatuapé até a confluência com o Tietê”. Segundo ainda o autor os parques que seriam servidos por essa reunião de marginais seriam: “parque da Ponte Grande, idem da Lapa, aeroporto, parque do Butantã, Parque do Ibirapuera, parque das cabeceiras do Ipiranga, lagoas do Sacoman, parque esportivo do Belenzinho, além doutros, grandes ou pequenos, a serem criados. in MAIA, Francisco P. op.cit. pág. 122,123.
[14] – MAIA, Francisco Prestes. Op. cit. Nota 3, pág. 342.
[15] – “Ponte das Bandeiras e Praça das Estações Reunidas” In São Paulo. Metrópole do Século XX. São Paulo. Empresa de Publicações Associadas, 1942, pag.46. Essa publicação parece ter sido idealizada para valorizar as ações de Francisco Prestes Maia como prefeito da cidade. Além de vários artigos não assinados sobre empreendimentos do prefeito, foram publicados textos dos seguintes autores: Nelson Mendes Caldeira (“Visão rápida das maiores cidades da América), Sergio Milliet (“São Paulo em 188”), Nuto Sant’Ana (“Os papéis antigos do Arquivo Municipal de São Paulo”) e José Armando Affonseca (“O prefeito Prestes Maia”).
[16] – Ver nota 10.
[17] – “Ponte das Bandeiras e Praça das Estações Reunidas” …, pág. 43.
[18] – Criolo. “Não existe amor em SP”, 2011.

Com foco na governança e sustentabilidade financeira, Mariana Berenguer completa um ano à frente do MAM-SP

Mariana Guarini Berenguer. Foto: Denise Andrade

Quando assumiu a presidência do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP), há pouco mais de de um ano, a advogada, administradora e colecionadora Mariana Guarini Berenguer substituia a gestão de 24 anos da empresária Milu Vilela à frente do museu. Seu foco principal, desde o início, foi a preocupação com a governança, em sentido amplo: sustentabilidade financeira; aproximação maior dos membros do conselho e da diretoria no dia a dia do museu; revisão do estatuto; e criação de um regimento interno bem definido.

Para Berenguer, “processos que em uma empresa são bem estabelecidos, nas instituições culturais em geral ficam muito abertos, pouco formalizados”. Com todas as linhas de atuação – que vão desde o trabalho curatorial e educativo até aquisições, contabilidade, vistoria e seguro de obras – bem definidas, “você fica também mais transparente, e isso se torna mais interessante para os patrocinadores”, completa ela.

Foi também em sua gestão, boa parte dela já durante a pandemia de Covid-19 e com o museu de portas fechadas, que o MAM realizou um processo de seleção do novo curador-chefe, Cauê Alves, que substitui Felipe Chaimovich no cargo. Segundo Berenguer, Alves traz uma série de propostas de grande interesse para a instituição, desde um olhar atento para o acervo e o educativo até preocupações em aumentar o diálogo com artistas e fortalecer as parcerias com outras instituições do parque, como o MAC-USP (agora sob gestão de Ana Magalhães e Marta Bogéa).

Neste ponto, sobre o fato de o MAM ter uma coleção – quase 5700 obras – mais contemporânea e o MAC mais moderna, Berenguer ressalta que esta complementariedade pode resultar em projetos conjuntos de grande valor. Em conversa com a arte!brasileiros, a presidente do museu falou ainda de um novo projeto de intervenções do MAM em espaços públicos da cidade; da busca por trazer uma diversidade de temas atuais nas exposições e cursos da instituição; e sobre a importância de o Brasil superar a polarização política, com uma sociedade mais unida onde a cultura tenha papel de destaque. Leia a seguir a íntegra.

ARTE! – Você assumiu a presidência do MAM há cerca de um ano, após 24 anos de gestão da Milu Vilela. Queria começar perguntando como tem sido o trabalho até o momento.

Nessa gestão temos quatro vertentes principais, que são voltadas também para fazer o museu ser sustentável do ponto de vista financeiro. Porque a questão da sustentabilidade, que é um desses motes, permeia praticamente todas as instituições culturais. E digo isso antes mesmo da pandemia. As instituições culturais tem uma sustentabilidade muito instável. Um outro mote dessa administração é a governança, no sentido de trazer o conselho deliberativo e a diretoria para perto. Somos um museu privado sem fins lucrativos, com associados que fazem parte de uma assembleia e também do conselho, temos uma diretoria pro bono, que também conseguimos consolidar agora, e depois vem a questão dos colaboradores. Então desde o início estamos trabalhando essa questão importante da solidificação desse ambiente de trabalho.

Aí também há um foco em institucionalizar o trabalho, porque percebo que muitos processos são muito pouco formalizados, em relação à aquisição, contabilidade, documentação, vistoria, seguro etc. Processos que em uma empresa são muito bem estabelecidos, nas instituições culturais ficam muito abertos. E fazendo isso você fica mais transparente, o que torna o museu mais interessante para os patrocinadores, que querem transparência. E também é bom para a prestação de contas dos recursos públicos usados através de leis de incentivo. Então é todo um processo que envolve muita responsabilidade. E acho que nisso estamos nos destacando, sendo diferentes de outras instituições. E de certa forma estamos conseguindo fazer este trabalho, que é enorme, mesmo durante a pandemia, cada um de suas casas. Com gente técnica, com o jurídico, para rever o estatuto todo, criar um regimento interno estabelecendo como são essas relações entre os diferentes órgãos.

ARTE! – Isso tem a ver também com sua formação e atuação ao longo da vida, em áreas jurídicas e empresariais…

Sim, sou formada na USP em Direito e na GV em Administração de Empresas. Fiz pós graduação também nas duas faculdades. E sempre fui executiva. E quando me trouxeram para o museu foi principalmente por essa questão de gestão. Eu também coleciono arte, tive uma empresa de design e joalheria nos últimos anos, o que já era uma mudança de vida grande. Mas aí comecei a me aproximar dos museus, primeiramente da Pinacoteca, depois do MASP – onde entrei como patrona -, e aí recebi o convite do MAM.

ARTE! – E nesse curto período de um ano, quase metade dele foi sob a pandemia de Covid-19. Como isso afetou o trabalho?

Tem uma coisa interessante, que eu tive que aprender, que em geral quando você usa lei incentivada, o patrocinador faz o aporte no final do ano. Isso faz com que o fluxo de caixa tenha de ser muito bem administrado. No ano passado o museu teve um orçamento de R$ 18 milhões, com despesas mensais em torno de R$ 1,1 milhão. Então o caixa vai sendo comido ao longo do ano. E no final de 2019 a gente teve sucesso em trazer um fluxo de caixa grande, até porque os patrocinadores perceberam esse profissionalismo. Mas aí começou a pandemia e a coisa se complicou. Porque agora os patrocinadores estão dizendo que precisam primeiro ver os seus resultados internos, seu desempenho, para depois ver se efetivamente vão continuar investindo no museu. Então a gente está esperando o final do ano, mas as nossas despesas continuam correndo. Por isso estamos super atentos ao caixa que já tínhamos conseguido. E começamos a fazer adaptações.

ARTE! – Houve demissões?

Começamos com as férias obrigatórias para os funcionários, depois veio a redução de jornada, pois que não tinha jeito. E tivemos que fazer algumas demissões. Foi super difícil, mas temos que voltar com um museu sustentável.

Fachada do MAM. Foto: Paulo Altafin

ARTE! – E pensando na relação com o público, uma questão muito levantada nestes últimos meses foi o quanto as instituições foram pegas de surpresa pela pandemia e não estavam preparadas virtualmente. 

Acho que sim. De modo geral as instituições não estavam preparadas. Você vê empresas que já estavam investindo nisso há muito tempo e estão com dificuldade, então imagina as instituições culturais, que não tem recursos. Estamos tirando leite de pedra.

ARTE! – Como tem sido no caso do MAM?

A gente já tinha trazido uma coordenadora nova para a comunicação, antes mesmo do Covid-19, e ela tinha começado várias iniciativas nas redes, como apresentar coisas sobre o histórico do museu, que é super complexo. Temos mais de 5600 obras e um grande legado, e isso não estava sendo explorado como poderia. Então contar essas histórias, falar das obras do acervo, fazer lives, começamos a ativar tudo isso. Tivemos lives com os coordenadores dos clubes de gravura e fotografia, que foram em ateliês de artistas, por exemplo. E nossos números nas redes subiram muito. E apresentamos também as exposições virtuais em parceria com o Google Arts and Culture, com recortes de mostras que estavam montadas no museu. Acho que conseguimos bastante coisa, bastante visibilidade, e vamos continuar.   

ARTE! – Esse trabalho virtual deve seguir mais intenso inclusive depois que for possível reabrir o museu?

Sim, isso é fundamental. Essa presença online vai ter que ser constante. Já estamos conversado com parceiros para desenvolver projetos digitais, porque com certeza isso vai ser um diferencial para aproximar o público, alcançar pessoas de outros estados, que não teriam acesso ao museu, trazer mais alunos e professores e, também, trazer recursos. E nesse ponto trouxemos também para os cursos online três temáticas novas, que achamos super importantes e estão permeando os trabalhos dos museus em geral, que são a arte indígena, as mulheres na arte, e da temática afro-descendente. Então tem esse trabalho forte com o educativo, inclusive de desenvolver a grade de cursos, e queremos que isso possa seguir digitalmente.

ARTE! – Já existe algum planejamento para reabertura?

Estamos trabalhando junto com a Secretaria da Cultura, que tem um protocolo para reabertura que prevê um possibilidade para setembro. Mas prevê também que cada museu tenha que verificar questões de saúde de seus colaboradores, pois eles teriam que voltar antes para montar as mostras, com uma série de cuidados. Então trouxemos um infectologista que primeiro vai avaliar todas as condições para depois a gente poder fazer a reabertura. Estamos seguindo o protocolo da secretaria, mas a gente primeiro vai verificar internamente se temos condições de retornar com segurança.

ARTE! – Voltando à atuação digital, foi feita uma intensa programação de celebração dos 72 anos do MAM desde julho, que segue este mês. Queria que você falasse um pouco sobre essa programação, como foram escolhidos esses temas, e um pouco dos resultados até agora.

É uma programação especial com cinco temas: homenagem à produção de mulheres artistas; a missão pedagógica do museu – para que cada vez mais haja uma transversalidade entre as exposições e o educativo, e para que as visitações (virtuais ou presenciais) tenham cada vez mais esse caráter pedagógico; a questão da cultura afro-brasileira, sempre ligada à obras do nosso acervo; a relação entre moderno e contemporâneo no museu; e por fim, as mostras online no Google and Arts. E ainda tivemos uma conversa entre o Felipe Chaimovich e o Cauê Alves, que está disponibilizada no Youtube, e outra entre o Cauê e o Eder Chiodetto, que é curador do Clube de Colecionadores de Fotografia do MAM-SP. Haverá também uma conversa com o artista Thiago Honório sobre sua instalação roçabarroca, no Projeto Parede.

Tem outra ação importante, em parceria com a agência África, que será a realização de grandes projeções em empenas cegas de prédios na região central da cidade. E outra ação será em mais de 60 pontos de ônibus e relógios digitais que nos foram disponibilizados, nos quais vamos apresentar imagens de obras do acervo, sempre com podcasts sobre elas. A ideia é levar o MAM para fora do Parque Ibirapuera, atingindo uma diversidade de público, e mostrar que o museu tem uma marca maior do que só o espaço físico que ele o ocupa. E como agora as pessoas não podem ir até o museu, a gente vai para a cidade. É uma possibilidade de democratizar o acesso.

ARTE! – Várias destas questões sobre as quais você está falando tem a ver com pautas muito atuais na sociedade e no meio artístico, como as temáticas indígenas, raciais, de gênero, meio ambiente, entre outras. Como trabalhar para que isso não seja apenas um modismo, uma onda passageira?    

Primeiramente, a gente sempre traz, e o educativo do museu é super sério com isso, profissionais específicos que trabalhem com essas áreas, com mestrado, doutorado. Por exemplo, nosso curso de arte indígena vai ser ministrado pelo Jaider Esbell, que é um artista indígena, e é curador. Para não virar um modismo é preciso trazer uma pessoa que efetivamente entende a questão, vive a questão, e tem experiência com arte. Na arte afro-brasileira também vamos trazer um profissional que seja negro, com mestrado e doutorado, que entenda as dificuldades. Então acho que temos que trazer sempre gente de grandiosidade de formação e de vivência. Agora, esses temas são parte da história do Brasil. E se as instituições estão querendo democratizar e trazer a diversidade para dentro do museu, elas têm que falar a linguagem desta diversidade. Então a gente tem que se adaptar, trazer todos para dentro, e fazer isso ter uma sequência. E cada museu vai ter que trabalhar isso muito seriamente, através do seu contexto, do seu educativo, de um ponto de vista mais estruturado.

ARTE! – Além desta entrevista com você, estamos publicando também uma conversa com o Cauê Alves, para ele falar das propostas de trabalho curatorial. De qualquer modo, queria te perguntar sobre como foi a escolha dele para ser o novo curador-chefe do museu.

Foi um processo inédito na história do museu, em que participaram três conselheiros, o Geraldo Carbone, o Fábio Magalhães e o Telmo Porto, e da diretoria participamos eu e o Eduardo Saron. Então fizemos um documento falando das missões e valores atuais do museu, e descrevemos o perfil necessário para o curador, que deve também atuar na gestão, no educativo, cuidar da biblioteca – que tem mais de 90 mil itens – e assim por diante. Recebemos vários currículos, depois chegamos em seis nomes que podiam cumprir os requisitos e pedimos para eles apresentaram alguns trabalhos relativos ao moderno, o contemporâneo e em relação ao Panorama, que é uma mostra muito importante no MAM. Então foi um processo super longo, com entrevistas, conversas, e ao fim chegamos no nome do Cauê, que inclusive já conhecia bem o museu. E ele trouxe temas que são muito interessantes para nós, desde a vontade de organização do acervo até o desejo de estabelecer parcerias com outras instituições do parque, preocupações com meio ambiente e sustentabilidade, cuidado com gestão, desejo de trazer de volta uma proximidade com os artistas, entre outras coisas.   

ARTE! – Para além da questão da pandemia, nós já vivíamos no Brasil um contexto político muito conturbado. Nos últimos meses entrevistamos alguns gestores culturais do país que afirmam que o governo federal enxerga a área cultural quase como inimiga. Queria que você falasse um pouco como enxerga a situação?

Eu acho que estamos vivendo três crises: uma de saúde, que ainda vai demorar um tempo para se resolver e que gera muita instabilidade; uma econômica, que afeta muito, inclusive pela insegurança sobre quando haverá alguma retomada; e uma crise política, que acho que agora ate está um pouco mais amainada. Mas eu acho que o importante é preservar a democracia. Acho que as instituições – executivo, legislativo e judiciário – têm que exercer seu papel, sem ficar uma interferindo tanto no papel do outro, o que é uma questão inclusive constitucional, e entender que eles estão trabalhando para os cidadãos, que somos todos nós. E esse tipo de crise, essa polarização, acho ruim. Porque acho que deveria haver mais solidariedade, humanidade, pensando o que é melhor para os cidadãos. Seria a hora de a sociedade estar fortalecida em todos os aspectos. As instituições governamentais, as culturais, as empresas e os próprios cidadãos se unirem para sairmos dessa crise da melhor forma possível. E até pela visão que o Brasil projeta para fora. Então acho que deveria ser uma época de união, com as instituições cada vez mais fortalecidas, porque acho que é na democracia que a gente consegue um diálogo verdadeiro.

E pensando neste momento de crise, acho que a cultura se insere também, porque o setor cultural tem uma vertente social. A cultura também é algo de primeira grandeza, afinal de contas é o que proporciona até um sonho, digamos assim, proporciona a manutenção de um legado – que aí não é sonho, é uma realidade. A gente é um país novo, mas sem trabalhar o nosso legado fica complicado, e isso se faz através da educação. E nisso as instituições culturais são bastiões, trabalhando em prol da sociedade, podendo desenvolver até políticas públicas.   

ARTE! – Agora, em um ano e meio de governo Bolsonaro tivemos o rebaixamento da Cultura de ministério para secretaria e chegamos agora ao quinto nome que assume a pasta, incluindo algumas passagens muito conturbadas. O que isso demonstra sobre o valor dado à cultura ?

Mostra que não é uma prioridade. Mas deveria ser, por conta disso que eu digo do legado histórico, da educação, da função social das instituições culturais. O MAM, por exemplo, é um museu privado, mas sem fins lucrativos. Então a gente cumpre uma função de levar a arte para a sociedade.