Início Site Página 81

É hora de destruir os monumentos de exaltação aos bandeirantes?

Desenho do artista britânico Banksy. Foto: Divulgação

Na Inglaterra e na Bélgica, monumentos foram destruídos na esteira dos movimentos antirracistas desencadeados pelo assassinato brutal de George Floyd por um policial, nos EUA, há duas semanas, trazendo uma discussão muito necessária: esculturas públicas que exaltam líderes genocidas merecem ser mantidas?

No dia 7 de junho, em Bristol, manifestantes jogaram no rio Avon a estátua de Edward Colston, um traficante de pessoas escravizadas, responsável pelo tráfico de 80 mil africanos, sendo que 20 mil deles morreram no mar.

Já em Antuérpia, nesta terça, 9 de junho, a estátua de Leopoldo II, incendiada na última semana, foi retirada da praça pública para ser inserida em um museu. O monarca, que reinou entre 1865 e 1909, foi o responsável pela morte de 10 milhões de africanos, a maioria da República do Congo, que era uma possessão pessoal de Leopoldo II (1835–1909).

Por aqui, este debate não é novo, especialmente em São Paulo, com vários monumentos que exaltam os milicianos do período colonial brasileiro: os bandeirantes. Dentre eles, o mais famoso, o Monumento às Bandeiras, no Ibirapuera, é o que tem como autor um dos mais reconhecidos artistas modernistas, Victor Brecheret. Inaugurado em 1953, uma maquete da obra chegou a ser exposta na Semana de Arte Moderna de 1922, o que revela o caráter elitista do movimento. Afinal, as bandeiras, como explicam Lilia Schwarcz e Heloisa Starling em Brasil: uma biografia, “dizimaram populações locais”. Essas bandeiras “assumiram a forma militarizada de organização das expedições de caça e escravização dos índios ou de busca de metais preciosos”.

Já há sete anos, em 2013, o monumento de Brecheret foi alvo de um protesto, tendo sido manchado com tinta vermelha. “Ela deixou de ser pedra e sangrou. Deixou de ser um monumento em homenagem aos genocidas que dizimaram nosso povo e transformou-se em um monumento à nossa resistência”, escreveu na época Marcos Tupã, coordenador da Comissão Guarani Yvyrupá. O fato ocorreu quando se discutia a PEC 215 (Proposta de Emenda à Constituição) que transferia a competência da União na demarcação de terras indígenas para o Congresso Nacional e possibilitava a remarcação das terras indígenas.

As manifestações antirracistas vêm colocando em xeque o que se considera como “história universal”. Em geral, essa história é um relato de homens brancos, que ignoram todos os conflitos e resistências, impondo uma visão única. Está na hora, portanto, de descolonizar nossa história e nossos símbolos, ressignificando esses monumentos que exaltam lideranças genocidas.

Em sua conta no Instagram, o artista Banksy faz uma ótima proposta para Bristol: recolocar a estátua de Edward Colston no pedestal, acrescentando, contundo, outras estátuas representando pessoas tentando derrubá-la, tornando permanente, assim, o gesto de reescritura da história.

Não se deve, afinal, apagar a história, ou mesmo fingir de conta que ela não existiu, como se fez com o período da ditadura militar no Brasil. A transição para a democracia sem o enfrentamento com o passado violento é um dos motivos para o pesadelo atual.

É preciso, portanto, rever esses monumentos e recontextualizá-los de forma a que não se esqueça o passado violento que se abateu sobre os povos indígenas, para que ele não mais se repita.

A performance de longa duração e a pandemia em cada um de nós

"Café da Manhã", 2001. Foto: Monali Meher/ Divulgação

* Por Marco Paulo Rolla

Na busca de reconhecer sentimentos que emergiram durante os dias em que nos encontramos reclusos, reconheço que um deles é de ter no corpo a memória do tempo performático, a auto submissão às restrições para criar situações onde o público e o artista experimentam mudanças de estado no tempo presente, na matéria sólida e no espaço sinestésico.

O performer vai se submeter a todas as restrições coerentes com a proposta do trabalho e estou consciente de que, no caso da Covid-19, não é uma escolha e somos obrigados a viver este tempo presente, a encarar solidões, a auto percepção dos pensamentos, sentimentos bons da independência obtida nesta solidão e sentimentos ambíguos, isto para citar alguns dos sentimentos possíveis na privação do livre arbítrio de ir e vir.

O tempo parece correr apressado porque estamos nele em um ritmo próprio, muitas vezes ralentado o movimento no dia, mas com o correr das horas muito mais rápido para a percepção de quem o vive no cotidiano em que estávamos imersos outrora.

O relógio se distancia e o tempo é vivência constante. O conceito de Arte e Vida ganha força e é um espelho para ajudar na aceitação da vida como ela está! No presente mais que “perfeito”.

No início do século XX, os artistas compreenderam a noção de Arte e Vida. A rica troca de conhecimentos e realidades que esta fricção pode gerar permitiu, desde então, o uso de objetos cotidianos, história, antropologia, atitudes e uma infinidade de materiais, o que permitiu o reconhecimento do corpo como obra. Este conceito foi mais e mais incorporado para trazer uma relação direta entre vida e arte. Experimentos com a performance no mundo, desde as ações dadaístas até o grande movimento performático que invadiu as artes nos anos 50, 60, 70 e nos dias de hoje, explicitam esta relação.

Mas, o que mais me interessa aqui, é o elo que podemos fazer com o que as pessoas estão vivendo com a situação de confinamento e as regras de movimentação social. Estas estão desenvolvendo em nós o senso de mudanças do “estado do corpo” pelo qual estamos passando e percebendo. Muitas vezes, não queremos sentir, não estamos preparados, mas perdemos a oportunidade de acalmar e respirar o tempo sem pressa. O artista da performance usa o tempo como um construtor da imagem/paisagem/acontecimento sob o olhar ansioso do ser humano tecnológico e industrial; imprime na mente a experiência do corpo em movimento sobre este tempo ou, ao reverso, do tempo em movimento sobre o corpo paralisado.

Há alguma semelhança no tempo que a pandemia nos colocou com o tempo provocado por uma performance de longa duração, considerando que na performance, outro tempo é construído para surgir uma nova percepção. Isto está acontecendo com todos em seu espaço íntimo, no tempo presente e no limite da casa/corpo. Dentro deste limite existe o “risco”, que é um outro dado fundamental da performance e também nos ronda agora. O limite, na verdade, é o que nos da a liberdade de expansão porque sabemos onde extravasarmos e não deixar extrapolar este contorno sem consciência e presença.

Temos a oportunidade de nos reconectar com nosso sentido próprio de tempo em cada ação realizada neste novo sistema em que estamos aprendendo a estar no agora.

Como acontece em uma performance, vamos nos colocar no centro dela, sendo o corpo vivencial. Assim, muitas sensações do espectador ansioso serão diluídas ao vivenciar o novo espaço em que vivemos o agora, imponderável, pois é a situação em que nos encontramos.

O performer, além de se deslocar no tempo, se coloca em rituais que tencionam estes limites muitas vezes incompreendidos por quem esta de fora na observação e, por ironia do destino, muito similar com o que estamos vivendo. A pandemia nos colocou um novo tempo em que, seria totalmente possível em uma segunda-feira parar e respirar com calma, coisa inimaginável de se vivenciar antes. Podemos relativizar imposições da indústria como os horários de nos alimentar, acordar, dormir e muitos outros aspectos de nossa vida hoje foram levados a um total desregramento nos dando uma realidade aleatória como um material a ser remodelado no tempo, que de tão dilatado parece pequeno.

Agora, cada um de nós, pode sentir em si como o performer usa o seu corpo criando energia adquirida na restrição, reinventando o momento vivido no presente! Muitas vezes, é desconfortável, mas por passar por aquele momento, tendo se submetido a toda ordem de situações desejadas e de acasos possíveis, ele encontra o alivio através de um outro estado que é alcançado quando concentramos em nossa percepção. Perceberemos que, com o passar do tempo de confinamento, vamos começar a ganhar nova energia, adaptando o psicológico e o sentir do tempo.

A arte nos ensina que podemos nos libertar da lógica na vida cotidiana a que fomos condicionados e que chamamos realidade na ética social imposta, desta maneira podemos transmutar o momento em ações corporais, estéticas e ações sobre o tempo vivido como nas performances de longa duração.

Podemos citar aqui o artista taiwanês Tehching Hsieh em sua performance: ONE YEAR PERFORMANCE 1980–1981 (veja aqui). Ele se confinou em um quarto, durante um ano e, a cada hora registrava sua presença em foto e filme, dia e noite, por 24 horas, assim um ano resultou em 6 minutos de filme. De novo a percepção do tempo sobre o corpo. Nas palavras do artista: “esta performance pode ser vista como uma repetição continua, mas em minha percepção, cada hora vivida intensamente não se repetia, era nova, porque estamos em um processo. O mais difícil foi dormir e acordar a cada hora, mas na vida é o mesmo, estamos sempre esperando a próxima hora, e temos que nos manter calmos. Um ano é o tempo que a Terra leva para circular o Sol. A Vida é a condição da Vida. A Vida é o passar do Tempo. A vida é o pensamento livre”.

A submissão ao momento vivido, é a base fundamental de uma ação performática. Mas, no Brasil, temos muita resistência a nos submeter a algo, pois temos uma noção distorcida, militarizada e torturante da disciplina, resultantes de nossa vivência no regime militar. Disciplina e submissão são muito importantes para se alcançar evoluções em nosso ser. O sujeito quer liberdade, mas não há liberdade sem limites, pois sem sabermos de nosso contorno perdemos a forma no espaço.

Hoje, quem está nos dando este contorno é a natureza, criando um vírus que de maneira muito viva, com energia muito criativa, vai devolvendo ao homem a violência depositada nesta natureza da qual somos parte.

Para se criar uma performance de longa duração é necessário criar estratégias de reconhecimento deste contorno, repetições que se renovaram a cada momento, como em um jogo de improviso. Muitos podem pensar que improvisar e fazer sem saber, mas ao contrario disto, o improviso exige, a priori, o conhecimento de uma base da forma, e assim podemos expandir e correr riscos pois sabemos para onde voltar com segurança, assim como voltar para casa em nosso cotidiano. O acontecimento regular cria a forma reconhecível, uma base, para que o inconsciente e o acaso ocorram sem perder-se no delírio e no emocional.

Os improvisos corporais exigem a atenção no tempo, no espaço e como o outro. Desde que entendi que o movimento e o corpo eram um material importante na minha linguagem, submeto este corpo a distintos treinamentos como: natação, yoga, dança, meditação, etc.…tudo que pode elaborar mais minha atenção e me dar resistência para suportar, psíquica e corporalmente, um novo estado. O Improviso, treinado na musica e na dança, me deu a habilidade de lhe dar com acontecimentos inesperados como parte integrante e desejada da obra.

Quem sabe esta noção vivida por nós possa trazer uma compreensão e aproximação das pessoas sobre as premissas criadas em uma performance de longa duração, para expressar a vida com a experiência corporal vivida no tempo?

A oportunidade aqui é de se criar consciência de seus próprios limites e se expandir, lapidando o espírito e o funcionamento de todo o corpo etéreo, energético e sinestésico. O tempo está suspenso como em uma performance, mas quantas vezes suportamos ser o expectador de uma performance por 2 horas? Hoje podemos nos localizar dentro deste espaço atemporal e parar de ser quem assiste para assumir sua presença na vida, parando de se sentir aprisionado e dependente das telas planas, iluminadas a frio, para não se sentir isolado. Estas telas são instrumentos importantíssimos neste momento onde não podemos nos conectar materialmente ao outro. É o único sistema seguro de dialogo e contato com o material e as necessidades da Vida. Mas, podemos agora que as funções capitais que nos faz viver na correria ralentaram, descansar os olhos e olhar para dentro, aceitando o tempo de reflexão, introspecção e vivencia de si. Por mais que esta experiência pareça solitária, está sendo vivida por todos os humanos na Terra. Quem não se submeter a ela se desintegrará!

Antônio Pitanga volta a Cannes com filme que debate racismo

Antônio Pitanga em Casa de Antiguidades, selecionado pelo Festival de Cannes
Antônio Pitanga em Casa de Antiguidades. Foto: Carlos Eduardo Carvalho/ Divulgação.

Filme brasileiro com Antônio Pitanga, Casa de Antiguidades foi um dos 56 longas-metragens selecionados esse ano pelo Festival de Cinema de Cannes. A obra conta a história de Cristovam, um operário negro de uma fábrica de laticínios transferido para trabalhar em uma cidade fictícia de colonização austríaca no sul do Brasil. O filme – flertando com o folclórico e utilizando das memórias trazidas pela casa do título – toca em questões de ainda maior relevância na atualidade, como o racismo e o conservadorismo político; parte das cenas do longa foram gravadas em uma cidade catarinense que teve forte apoio do então candidato à presidência Jair Bolsonaro, por exemplo.

Antônio Pitanga em Casa de Antiguidades. Foto: Carlos Eduardo Carvalho/ Divulgação.

Sobre a obra, o diretor e roteirista João Paulo Miranda afirmou que “o filme tem o protagonismo de Antônio Pitanga, com seus mais de 80 anos, interpretando um homem que veio do interior de Goiás e que enfrentará violentamente um grupo ultra conservador no sul do Brasil. Isto o guiará num buraco negro profundo e complexo; que espelha um Brasil que está perdido no tempo, com cara dos anos 70”. E ele completa: “Para mim é necessário assumir o espirito vanguardista e usar todas minhas forças para uma linguagem digna aos grandes nomes do cinema”.

O Festival de Cannes, que seria realizado de 12 a 23 de maio com um júri presidido pelo diretor estadunidense Spike Lee, cancelou sua edição de 2020 por conta da pandemia de Covid-19. A não prorrogação vem de uma decisão da organização de respeitar a ocorrência de eventos cinematográficos mais próximos do final do ano, como Veneza e Toronto. Ainda assim, os 56 filmes selecionados têm o direito de ostentar o seu selo de aprovação oficial, mesmo que não tenham de fato concorrido aos prêmios como a Palma de Ouro.

O diretor artístico de Cannes, Thierry Frémaux, segundo a RFI, comentou sobre a situação do cinema no Brasil e expressou medo pelo futuro da Cinemateca, dizendo que “o Brasil vai mal, o cinema brasileiro está mal” e reiterando que “a Cinemateca está em grandes dificuldades”. A instituição cuida do acervo visual do país e corre perigo de parar de funcionar pela falta de recursos transmitidos. Uma petição, “Cinemateca Brasileira pede socorro”, foi criada em 15 de maio para reunir assinaturas que serão transmitidas ao governo federal através da Secretaria do Audiovisual, que tem à frente o roteirista Heber Trigueiro. Já assinaram a petição nomes importantes para a cultura brasileira como Walter Salles, Jean-Claude Bernardet, Ricardo Ohtake, Marcio Seligmann-Silva e Luis Peréz-Oramas.

O diretor Steve McQueen
O diretor Steve McQueen. Foto: BBC.

Além de uma maior presença feminina no festival e da inclusão de jovens diretores entre os selecionados, também é notável que não uma, mas duas obras, do premiado diretor britânico Steve McQueen tenham sido escolhidas. Lovers Rock e Mangrove integram Small Axe, sua antologia de cinco partes sobre a comunidade de West Indian, em Londres, no final dos anos 1960 até os anos 1980. O título vem de um provérbio de origem africana, que ressoa principalmente no Caribe: “Se você é a grande árvore, nós somos o pequeno machado”. O ditado foi popularizado em 1973 por Bob Marley.

Em comunicado à revista Variety, McQueen afirmou que os filmes foram dedicados a George Floyd e a “todos os outros negros que foram assassinados por causa de quem eles são, nos Estados Unidos, Reino Unido ou em qualquer outro lugar”. Vale lembrar que Small Axe foi uma comissão feita pela BBC, uma corporação pública da Inglaterra que emprega quase 19 mil pessoas e conta com contribuição de uma taxa de licença que é paga por todos os lares que possuem televisores.

Em ano de seu centenário, León Ferrari ganha retrospectiva pela Galeria Nara Roesler

León Ferrari. Sem título (1976). Foto: Divulgação.
León Ferrari. Sem título (1976). Foto: Divulgação.

A Galeria Nara Roesler comemora o centenário do artista argentino León Ferrari (1920-2013) com a exposição virtual León Ferrari em São Paulo, com curadoria de Luis Peréz-Oramas. A mostra acontece a partir desta quinta-feira, 4 de junho, no site da galeria e no Artsy. Foi também a Galeria Nara Roesler que fez, em 2013, a primeira mostra individual de envergadura após a morte do artista naquele ano, à época com curadoria de Lisette Lagnado e uma seleção de obras que abrangia o período entre 1962 e 2009.

Imagem ilustrativa da visitação virtual da Galeria Nara Roesler. Foto: Divulgação.
Imagem ilustrativa da visitação virtual da Galeria Nara Roesler. Foto: Divulgação.

Desta vez, a metrópole paulistana é ressaltada como elemento participante do trabalho de Ferrari, devido ao seu exílio em São Paulo de 1976 a 1991. O artista veio ao Brasil para proteger sua família da hostilidade criada em seu país natal pela ditadura iniciada em 1976 e findada em 1983, quando a última junta militar convocou eleições em outubro, resultando na eleição de Raúl Afonsín, da União Cívica Radical.

Nos primeiros anos do seu estabelecimento em São Paulo – ainda marcado pela prisão ilegal e assassinato de seu filho Ariel pelas forças militares argentinas – Ferrari revisita sua prática do desenho abstrato, dominada por ele no início dos anos 1960. Desta vez, o artista apresenta um traçado gestual completamente novo, uma tipologia abstrata que lembrava línguas de fogo, metáforas para o inferno, cuja noção judaico-cristã seria abolida por Ferrari mais tarde em sua vida.

León Ferrari. Juízo Final (1985). Foto: Divulgação.
León Ferrari. Detalhe da obra Juízo Final (1985). Foto: Divulgação.

Para Pérez-Oramas: “As crenças ou descrenças de Ferrari passaram a incluir uma visão de textos sagrados judaico-cristãos como perversos chamados à exclusão, à tortura e ao crime”. Através da apropriação de imagens de guerras, da história e da história da arte, Ferrari utiliza a colagem para sua releitura da Bíblia e, mais especificamente, do inferno. A exemplo disso está o Juizo Final de Michelangelo, que foi submetido à defecação por pássaros em uma das suas grandes composições performáticas.

Apesar da crítica sarcástica ao poder e a religião ter marcado parte de sua obra, percebe-se logo que a chave do “ativismo” é redutora para explicar sua produção. A exemplo disso, a Galeria Nara Roesler traz na nova exposição trabalhos de Ferrari que comunicam o absurdo da vida comum, a alienação das multidões e a influência da cidade avassaladora que é São Paulo. As obras da série Arquitetura da Loucura manifestam-se em desenhos, gravuras, zianótipos, xeroxes etc.

Da esquerda para a direita: "Maquete para homem" (1962); Sem título (1978); "Amores de um prisma" (1977). Foto: Divulgação.
Da esquerda para a direita: “Maquete para homem” (1962); Sem título (1978); “Amores de um prisma” (1977). Foto: Divulgação.

Sua prática escultórica também não fica de fora da exposição. Inclusive porque o ápice desta produção ocorreu enquanto Ferrari residia na capital paulistana. Utilizando arame de metal emaranhado, estruturas prismáticas semelhantes a gaiolas e volumes modulares similares a jaulas, parte de seus trabalhos feitos a partir deste meio tem escala monumental e são destinadas a eventos participativos, performáticos e sonoros.

Outras celebrações do centenário

Enquanto algumas exposições arquitetadas para comemorar o centenário de Ferrari puderam ser adaptadas para o ambiente virtual, duas retrospectivas em maior escala tiveram sua abertura física postergada. Uma na sua cidade natal, Buenos Aires, e outra na Espanha, em Madri.

Na Argentina, uma exposição antológica com objetos emblemáticos, desenhos, vídeos, esculturas e cerâmicas do artista tomará conta do Pavilhão de Exposições Temporárias do Museo de Bellas Artes. A mostra, sob curadoria de Andrés Duprat, diretor do Bellas Artes, e da historiadora Cecilia Rabossi, prevista para abrir no dia 13 de abril, foi cancelada e aguarda data de abertura. A exposição percorre todo o trajeto em vida do artista, reunindo obras pertencentes ao próprio museu, coleções privadas e públicas e trabalhos concedidos pela Fundación Augusto y León Ferrari Arte y Acervo, dirigida pela arquiteta Anna Ferrari e Julieta Zamorano netas de León. 

Para Duprat, a retrospectiva é uma forma de justiça poética para reparar uma omissão do museu à obra de Ferrari. Como Leonor Amarante escreveu para a arte!brasileiros: “Ferrari não é unanimidade. Ele e sua obra já bateram e apanharam muito, o que fez dele um corajoso testemunho da destruição da substância das relações humanas. Ao longo de 60 anos de arte, viveu no contrafluxo do sistema, sendo empurrado aos infernos para emergir ainda mais forte”. A exemplo disso está sua premiação, em 2007, com o Leão de Ouro na Bienal de Veneza, vinda pouco depois de um embate com a igreja católica que levou à retaliação de sua mostra no Centro Cultural Recoleta, organizada por Andrea Giunta. 

A exposição de suas obras no MNBA será precedida por uma seleção de fotografias e pinturas de Augusto César Ferrari, pai do artista, e continuada com a exibição do documentário Civilization, de Rubén Guzmán. Algo inédito serão os cadernos de León Ferrari, que não haviam sido expostos antes no Recoleta. Ao jornal argentino La Nación, Duprat comentou que Ferrari, nesse sentido, era como Leonardo: “Ele escreveu tudo. Eles são incríveis e mostram a gênese de suas investigações”. 

Como parte da homenagem, no Reina Sofía*, a mostra La Bondadosa Crueldad contará com uma importante doação da família do artista – cerca de 15 obras – e a exibição de trabalhos inéditos na Europa. Seu início, que estava marcado originalmente para o dia 28 de julho, ainda está em discussão. O museu destaca que não é possível ainda arriscar datas, dada a situação instável da pandemia em Europa. 

*Museo Reina Sofía e a pandemia

O museu madrilenho entrou, ainda em abril, em contato com credores e instituições, estudando possibilidades de novas datas para empréstimos. O museu destaca o caráter provisório das medidas tomadas no momento, visto que as ações da instituição dependem não somente da situação na Espanha como da Europa inteira e além, já que algumas das obras vêm de diferentes países. Tanto que obras pertencentes ao Reina Sofía e que estão fora do museu permanecerão, pelo tempo necessário, nas instituições em que estão localizadas independente do término das exposições.

Fachada do Museo Reina Sofía. Foto: Divulgação
Fachada do Museo Reina Sofía. Foto: Divulgação

Em abril, Manuel Borja-Villel, diretor do Reina Sofía, publicou uma carta no site Artnet abordando os desafios trazidos ao mundo da arte pela pandemia e a necessidade de pensar no porvir. O diretor destacou a importância do programa de assistência do governo espanhol para a manutenção da equipe do Reina Sofía, e que o museu está trabalhando neste momento para tornar uma maior quantidade de material disponível gratuitamente, já que a instituição já havia comprado os direitos para tal. 

Manuel Borja-Villel, diretor do Museo Reina Sofía. Foto: Europa Press News/ Getty Images.
Manuel Borja-Villel, diretor do Museo Reina Sofía. Foto: Europa Press News/ Getty Images.

Caminhando para o fim da sua declaração o diretor reforça a necessidade de não deixarmos os espaços públicos desaparecerem; “há um elemento de alegria, de aprendizado e de democracia em estar junto com outras pessoas”.

 

O Milagre de Christo

The Floating Piers, Lago Iseo, Itália, 2014-16 Foto: Wolfgang Volz © 2016 Christo

A vista aérea proporcionada pelo belvedere do monte sobre o lago Iseo transforma a instalação The Floating Piers naquela típica pincelada final que imprime num quadro a genialidade de um artista. O artista em questão é Christo, americano nascido na Bulgária, de onde fugiu do regime comunista em 1958. Hoje com 81 anos de idade, ele ficou conhecido nos anos 1970 por instalações monumentais em tecido, que realizava em parceria com a esposa, Jeanne-Claude (falecida em 2009), embora ela só tenha começado a ser creditada como autora a partir de 1994.  Omitir a parceria foi uma decisão conjunta do casal para evitar o preconceito contra artistas mulheres no mundo da arte. Juntos eles cobriram, por exemplo, o Reichstag, o parlamento alemão, em Berlim, em 1995, assim como a ponte Neuf, de Paris, dez anos antes, e a costa de Little Bay, nos arredores de Sidney, em 1969.

Um mergulhador conecta um cabo de polietileno de peso molecular ultra-alto (UHMWPE), coberto com uma camada protetora de poliéster com uma carga de ruptura de 20 toneladas, a uma das âncoras no leito do lago para manter o cais no lugar 2016

The Floating Piers criou uma ponte entre o lago Iseo – localizado no norte da Itália, aos pés dos Alpes – e o mundo.  Com três quilômetros de extensão de um lado e mais um e meio do outro, a passarela gigante conectou os povoados de Sulzano, na terra firme, à Montisola, na ilha à frente, unindo em menos de dois anos o que a natureza levou milênios para separar. Em cartaz por apenas duas semanas, a obra transformou o local em destino de viagem para quase um milhão de pessoas de todo o mundo, tornando o Iseu, pelo menos temporariamente, capital mundial da land art ou environmental art. Christo afirma que seu “trabalho é composto por muitos e diferentes elementos. A minha arte envolve arquitetura, paisagismo, urbanismo, pintura e escultura”.

The Floating Piers , Lago Iseo, Itália, 2014-16
Foto: Wolfgang Volz
© 2016 Christo

O nome bíblico do artista, nascido Christo Javacheff, remete à óbvia metáfora do episódio mitológico do evangelho (em que Cristo, o filho de Deus, caminha sobre a água), evocando arquétipos e atraindo um público distante da arte contemporânea, mas próximo da fé religiosa. Para além dessas representações, a ponte flutuante funciona como passarela que conduz o público a uma experiência real com os elementos da natureza – pássaros, homens e peixes compartilham o mesmo meio ambiente. Sem corrimão ou balaustradas, o caminhante se equilibra sozinho, sente a passagem das ondas sob os pés descalços, de preferência – com a segurança garantida  à distância por 25 botes, com mergulhadores prontos para qualquer emergência. “Este trabalho tem uma dimensão aberta. O visitante tem que caminhar dois quilômetros. É um projeto físico, real. Não é uma realidade virtual. Nada de ventos ou ondas ou fotografias virtuais, tudo nele é real. Sobre a passarela, o prazer é real, o medo é real”, afirma Christo.

The Floating Piers, (projeto para o Lago Iseo, Itália)
Desenho 2016 em duas partes
15 x 96 “e 42 x 96” (38 x 244 cm e 106,6 x 244 cm)
Lápis, carvão, pastel, lápis de cera, tinta esmalte, fotografias de Wolfgang Volz, mapa desenhado à mão e amostra de tecido
Foto: André Grossmann

Mas mais do que a ligação física, o artista criou uma ponte flutuante entre o passado e o presente,  entre o antes e o depois, pois a obra deve continuar ligando gerações a partir da memória de quem a viu e viveu pessoalmente, pelos 16 dias de sua existência. A instalação não é para sempre mas o seu legado desmaterializado, visual e artístico, sim. De matiz quase divina e onírica, a obra toca o inconsciente coletivo dos povos.

A realidade da produção do trabalho: Burocracia e financiamento

The Floating Piers é o resultado final de dois projetos naufragados na burocracia pública, ao longo de mais de quatro décadas. Em 1970, Christo e Jeanne-Claude tentaram sem sucesso realizar 2000 Metres Wrapped Inflated Pier, no rio da Prata, em Buenos Aires. O projeto foi repensado como The Odaiba Project, para o Odaiba Park, na baía de Tóquio, 26 anos depois, e novamente não conseguiu autorização. Christo revela que em quase 50 anos de trabalho a burocracia tem sido o maior desafio: “Dos 37 projetos para os quais pedimos permissão, temos apenas 22 projetos realizados. O The Floating Piers é o projeto número 37 e tínhamos perdido o interesse, pois achávamos que não conseguiríamos realizá-lo. “Mas, como dizia Jeanne-Claude, alguns projetos ficam no coração e na mente e sempre estão ali”, afirma o artista. A morte da companheira, em 2009, não cancelou o sonho do casal.

A obra efêmera se concretizaria em 18 de junho de 2016, com a abertura ao público, e duraria até o dia 3 de julho, à meia-noite. Dali em diante, começaria o desmantelamento de toda a estrutura, composta de correntes e fundações submarinas, 220 mil cubos de polietileno e 70 mil metros quadrados de tecido amarelo furtacor. Tudo vai ser desmontado e reciclado. Os dois anos de trabalho, um exército de mais de 500 pessoas e testes em lagos na Alemanha e no mar Negro, com milhares de horas e cálculos de engenheiros envolvidos na realização do projeto, vão se tornar memória. Depois disso, será  possível conferir a exposição Christo e Jeanne-Claude, Water Projects em cartaz no museu Santa Giulia, em Brescia, até 18 de setembro de 2016. Lá estão expostas as amostras dos materiais usados no lago de Iseo, e 150 quadros, fotografias, maquetes e vídeos de obras realizadas em diferentes continentes e oceanos, mares e lagos podem ser admirados, como prévias desta obra-prima chamada The Floating Piers.

As obras de grande escala têm também grande custo e Christo ganhou notoriedade pela forma alternativa de financiamento que desenvolveu. O custo total dos projetos – 15 milhões de euros no caso de The Floating Piers  – vai sendo amortizado a partir das vendas de quadros que retratam a visão da obra. Os desenhos preparatórios, limitados e exclusivos, que antecedem a execução da obra em si, são dados como garantia aos financiadores. Esse sistema capitalista inovador no campo da arte é reconhecido como um caso de estudo pela Universidade de Harvard, nos Estados Unidos. Depois da concretização da obra, Christo não a retrata novamente. Dessa forma, o artista cria um círculo virtuoso, no qual todos saem ganhando: os investidores, que lucram com a valorização dos quadros; as cidades, com a visita de milhares de turistas; o público, com a emoção que experimenta; e o artista, com a concretização do projeto.

Goethe-Institut promove Festival Latitude 2020 na web

Festival Latitude
Capa do Festival Latitude, promovido pelo Goethe Institut dos dias 4 a 6 de junho. Foto: Divulgação.

De quatro a seis de junho, o Goethe-Institut realiza o primeiro Festival Latitude em ambiente digital. Sob o mote Repensando relações de poder – por um mundo decolonizado e antirracista, o festival entrega uma programação totalmente gratuita centrada em como as estruturas coloniais surtem efeito até o presente e como elas podem ser superadas. O evento reúne referências internacionais da arte, ciência, cultura e política. Entre os participantes estão a politóloga Nanjira Sambuli (Quênia), a filósofa Denise Ferreira da Silva (Canadá), a performer Trixie Munyama (Namíbia), o historiador Ciraj Rassool (África do Sul) e o pesquisador de migração Mark Terkessidis (Alemanha).

O Latitude se divide em quatro complexos temáticos que abordam a perpetuação de estruturas coloniais, refletindo sobre: desigualdade econômica; identidade e memória; conduta frente a bens culturais; e desigualdade digital global. Ao lado de discussões, debates e entrevistas, serão exibidos filmes, performances, concertos e shows ao vivo através de streaming e por vídeos gravados. 

Como é um festival internacional, as falas serão feitas em inglês ou terão tradução simultânea para o inglês. A arte!brasileiros destaca algumas atividades que serão realizadas:

Mostra Vila Sul (mostra): Vila Sul é a residência artística do Goethe-Institut em Salvador, na Bahia, destinada a artistas, intelectuais e pesquisadores cujas frentes de trabalho tenham como tema principal o hemisfério sul. Devido à pandemia do Covid-19, os atuais “residentes” da Vila Sul – Thó Simões (Malanje), Koffi Mensah Akagbor (Ouagadougou), Émilie B. Guérette (Montreal) e Renata Martins (Bonn) – não conseguiram viajar para Salvador e estão concluindo sua residências digitalmente, o que também é uma nova experiência para a instituição. Dessa forma, os resultados iniciais de seus trabalhos serão apresentados virtualmente no festival Latitude.

Como parte do programa, o artista residente Koffi Mensah Akagbor participa da mostra Metal contra as nuvens; a crítica de arte Renata Martins é a responsável pelo conceito para a exposição TransAções – ambos podem ser acessados no portal do Goethe-Institut a partir do início de 4 de junho. Já no dia 5, Émilie B. Guérette participa de uma conversa sobre mulheres cineastas de diferentes origens, mas com um interesse comum: questionar a ordem colonial e patriarcal do mundo através de seu trabalho.

Latitude Festival
Espaço do Goethe-Institut em Salvador, na Bahia, onde é realizada a residência Vila Sul no Brasil. Foto: Divulgação.

Resistindo ao extrativismo (painel): Moderado pela teórica cultural Lotte Arndt, o painel reúne artistas que desenvolvem, em seus respectivos contextos, estratégias visuais para resistir ao extrativismo. A artista e curadora Rachel O’Reilly comentará seu documentário Infractions (2019), que aborda o futuro da extração de gás na Austrália, em especial através do processo de fraturamento hidráulico – o “fracking”. O documentário baseia-se em anos de pesquisa e entrevistas, e questiona a relação incomum da cultura contemporânea e das artes com o extrativismo. O fotógrafo congolês Sammy Baloji falará sobre seu trabalho focado nas consequências da mineração colonial na região de Lubumbashi, República Democrática do Congo. 

DIA 5

Memórias de uma câmera, para o esquecimento humano (exibição): Programa desenvolvido em conjunto com o Arsenal – Instituto de Cinema e Videoarte, sediado em Potsdamer. Seu título foi retirado do filme Forgetting Vietnam, de Trinh T Minh-ha, devido à exploração realizada pela cineasta vietnamita da reparação através da recontagem poética da história. Essa característica une os filmes do programa, além do seu interesse pela demonstração das estruturas desiguais de poder e o trabalho de perturbá-las. O resultado é uma coleção de obras subversivas dos artistas Lemohang Jeremiah Mosese, Ng’endo Mukii, Christa Joo Hyun D’Angelo, Wendelien van Oldenborgh, Jessica Lauren Elizabeth Taylor e Thirza Cuthand. 

Aprendendo uns com os outros – a restituição como desafio ético e jurídico (painel): Tendo como ponto de partida a publicação do relatório de restituição elaborado por Bénédicte Savoy e Felwine Sarr em novembro de 2018, o painel vai discutir a restituição de bens culturais, tema controverso e cada vez mais discutido. Os participantes – especialistas em teoria e prática jurídicas, antropológicas e da civilização – vão mergulhar na questão para saber suas possibilidades e limitações, indagando, por exemplo, se a restituição pode funcionar como uma negociação social.

Como os museus caminham para o futuro (painel): Neste painel, profissionais da cultura e pesquisadores refletem sobre a prática atual nos museus: quais desafios eles enfrentam? Quais oportunidades surgem para a criação de novos modelos de museus? Tal debate, acentuado pela pandemia, tem forçado instituições a continuar questionando onde se imaginam no futuro e se nesse cenário é possível ampliar a relevância social dos museus.

DIA 6

Enquanto esperamos – produção artística tanzaniana em tempos de corona (exibição e debate): A artista performática Vicensia Shule estrearia uma produção teatral na edição 2020 do festival Latitude, em Berlim. Com as barreiras impostas pela Covid-19, Shule não pôde se apresentar, ao invés disso, convidou outros artistas afetados de vários campos das artes – cinema, música, artes visuais e teatro – para se expressarem em entrevistas em vídeo. Nas gravações, Shule documenta o trabalho desses artistas e como eles lidam com a produção de suas obras na situação atual. Ela nota, no entanto, que algumas das questões levantadas nas entrevistas afetam os artistas tanzanianos desde antes da pandemia.

CONFIRA A PROGRAMAÇÃO COMPLETA NESTE LINK.

LEIA MAIS SOBRE DECOLONIZAÇÃO AQUI.

Decolonial, des-outrização: imaginando uma política pós-nacional e instituidora de novas subjetividades (1ª parte)

"DAS AVÓS", 2019, videoinstalação de Rosana Paulino. Foto: Videobrasil.
"DAS AVÓS", 2019, videoinstalação de Rosana Paulino. Foto: Videobrasil.

Bonaventure Soh Bejeng Ndikung propõe pensarmos um conceito de des-outrização como estratégia de crítica e desconstrução das geografias e narrativas que instituem poderes centrais em nossas sociedades. Seu texto para o catálogo da 21a Bienal de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil, que teve como equipe curatorial Gabriel Bogossian, Luisa Duarte, Miguel López e Solange Farkas, tem por título “Des-outrização como método” e leva como subtítulo uma frase em ngemba que, traduzindo, significa algo como “mantenha o seu que eu mantenho o meu”. O desafio do método da des-outrização é que outrizar, de certa forma, sempre foi nossa maneira de estar no mundo. Ao menos nossas auto-narrativas e epistemologias tendem a reproduzir binarismos que remontam quase sempre ao contraponto eu-outro. Na visão psicanalítica, o eu começa a tomar contornos com a diferenciação do outro, dada pelos limites do corpo, pelo desamparo e, finalmente, pelo aprender à jogar com o outro.

Angústia e medo na origem do conhecimento e da relação com o “outro”

Adorno e Horkheimer, em uma passagem conhecida do ensaio Dialética do Esclarecimento, descrevem a origem do conhecimento no grito do horror diante daquilo que desconhecemos. O conhecimento derivado desse encontro trágico com o “outro” seria eivado de medo e terror.[1] Seja na religiosidade, seja na filosofia, uma vez que “o esclarecimento é a radicalização da angústia mítica”, paira o projeto de submeter o outro de modo integral, já que “nada pode ficar de fora, porque a simples ideia do ‘fora’ é a verdadeira fonte da angústia.”[2] O projeto do esclarecimento, ou seja, a expansão da razão iluminista para todos os cantos da Terra, teve como resultado um processo de dominação do “outro” e da natureza que culmina agora com as imagens cada vez mais próximas e tangíveis do fim do nosso mundo. A razão que se ergueu como reação ao medo e se articulou a partir da angústia mítica torna-se uma arma violenta de redução do outro a meio, seja de conhecimento, seja de obtenção de lucro, uma vez que existe um vínculo perverso entre a razão iluminista e a lógica espoliadora e dominadora do capitalismo, sobretudo em sua vertente neoliberal. Se a razão não queria deixar “nada de fora”, o capital também deseja transformar tudo em meio para a riqueza: indivíduos são vistos como robôs-trabalhadores sem subjetividade e direitos, a terra é reduzida à categoria de commodity. Se existe algo que não pode ser transformado imediatamente em lucro, como árvores e populações originárias, elas devem ser aniquiladas. O outro é negado e esse outro é tudo o que se opõe ao império do capital. A comodificação do mundo implica necessariamente a sua própria morte. A geopolítica neoliberal recorta o mundo em função de sua exploração máxima. No campo político, Estados-nação se articulam em blocos globalizados, desdobrando a lógica do extrativismo, manufatura e conversão em lucro. Esse modelo é uma continuidade do sistema colonial e reproduz as hierarquias que redundaram da colonialidade, tanto nas relações entre os blocos nacionais como em termos de uma nova racialização ontologizante.

Colonizar e seus crimes: genocídio, etnocídio, ecocídio, memoricídio

Achille Mbembe com razão recorda um manual de colonização francês do século 19, de autoria de Paul Leroy-Beaulieu. A colonização, para esse autor, “é a força expansiva de um povo, é o seu poder de reprodução, é a sua expansão e a sua multiplicação através dos espaços; é a submissão do universo ou de uma vasta parte dele à sua língua, aos seus costumes, às suas ideias e às suas leis.” Vale lembrar que, em 2018, um candidato à eleição no Brasil falou que “quilombola não serve nem para procriar”, num gesto que ao mesmo tempo animalizou os afrodescendentes e negou a eles o direito à auto-reprodução e determinação.

Colonizar, precisa ainda Alexandre Mérignhac, no início do século 20, “é relacionarmo-nos com países novos, para aproveitar os recursos de toda a natureza desses países.”[3] Colonizar implica hierarquizar, dividir e dominar. Trata-se de uma necropolítica que destrói a natureza e populações inteiras. Destrói-se fisicamente e simbolicamente: genocídio, etnocídio e ecocídio andam de mãos dadas nessa era. Mas há uma quarta face dessa besta do apocalipse que não pode ser esquecida. Pois trata-se também aqui de um memoricídio planejado e sistematicamente reiterado. Não pode haver dominação sem violência física e simbólica. O caso do Brasil é paradigmático: país com uma das piores divisões sociais da riqueza no mundo, é também um campeão em termos de violência estatal e paraestatal, assim como em termos do apagamento das histórias e narrativas dessas violências.

É evidente que o sistema neocolonial/neoliberal foi duplamente oleado nas últimas décadas: primeiro com o fim do bloco de países liderados pela União Soviética, que permitiu uma expansão praticamente total do sistema neoliberal implantado já nos 1980 por Ronald Reagan e Margaret Thatcher; e, em segundo lugar, pelo 11 de setembro, com o desencadeamento da guerra aniquiladora contra o “outro”. Nunca a máquina de produção de narrativas da indústria cultural secretou tantos novos mitos e estabeleceu de modo tão claro as diferenças pretensamente insuperáveis entre o Eu defensor do Iluminismo e o Outro-bárbaro. Se da Ilíada a Hollywood a história dessas narrativas se repete, por outro lado o potencial genocida dessas narrativas nunca foi tão grande, tendo em vista as modernas tecnologias de guerra e cibernéticas.

No Brasil, onde agora essa explicitação do programa neoliberal se dá de modo trágico e patético, não por acaso o mote das políticas de segurança é “direitos humanos para humanos direitos”. Na medida em que os políticos no poder se arvoram a capacidade de estabelecer automaticamente, como nas modernas câmeras de reconhecimento facial, a distinção entre cidadão do “bem” e do “mal”, trata-se, portanto de um lema que caberia bem na porta de Auschwitz ou do DOI-CODI. Achille Mbembe também recordou as palavras do teórico francês da colonialidade do final do século 19, Jules Ferry, que já exalavam conceitos parecidos: “É preciso dizer francamente que de fato as raças superiores têm mais direitos que as raças inferiores […]. A Declaração dos Direitos do Homem não ‘foi escrita pelos Negros da África Equatorial.”[4]

Ou seja, a busca de uma política da des-outrização, defendida por Bonaventure assim como por outros artistas, curadores, antropólogos, atores e pensadores críticos, hoje, é uma resposta clara à virada fundamentalista que ocorreu com o triunfo do neoliberalismo, associado a uma nova onda de luta pela supremacia de um pensamento que podemos chamar de Esclarecimento, de Iluminismo ou simplesmente de eurocentrismo. Como escreveu Ta-Nehisi Coates, “os americanos [e não só eles, eu acrescento] acreditam na realidade da ‘raça’ como uma característica definida, indubitável, do mundo natural. […] a raça é filha do racismo, e não sua mãe.”[5] Ou, nas palavras de Achille Mbembe: “O grande nervo [do] projeto imperial é a diferença racial, que se incorpora em disciplinas como a Etnologia, a Geografia ou a Missionologia.”[6] As narrativas feitas em museus, nas literaturas, nas artes, na publicidade, nas exposições internacionais, apenas reforçam constantemente essas partilhas raciais, políticas e econômicas.

Nova ética da responsabilidade e o “todo” como um jogo

O método de des-outrização, no entanto, não é inocente e sabe que, aquém ou além de binarismos, nossas narrativas necessitam de um solo, mínimo que seja, de identidade para instituir a linguagem. Trata-se de pensar as diferenças como devires e não como mônadas sólidas, como a lógica haurida na base do medo da razão do Esclarecimento o faz. O subtítulo ardiloso de Bonaventure, “mantenha o seu e eu mantenho o meu”, não quer indicar, me parece, uma nova luta identitária, na qual simplesmente colocaríamos de ponta-cabeça as hierarquias norte-sul que operam política e economicamente no mundo hoje, mantendo intocada essa lógica binária metafísica. Antes, essa dualidade não deve ser pensada dentro de um binarismo estanque, mas sim a partir de uma nova ética da responsabilidade. Nessa relação do eu-mundo não necessariamente a outrização implica coisificação, objetificação ou dominação.

Saussure pensava o sistema linguístico como um jogo de diferenças, mas sabia que as peças desse jogo são móveis. Novalis, um século antes desse linguista, descreveu o todo de um modo divertido que pode iluminar o que quer dizer imaginar-se um jogo de diferenças aberto que sustenta a linguagem: “O todo consiste aproximadamente – como as pessoas jogando que, sem cadeiras, sentam-se num círculo uma no joelho da outra.”[7] Aqui vemos o todo sendo sustentado por um jogar ou brincar em comum. No catálogo da Bienal também lemos o precioso texto de Gladys Tzul Tzul, que afirma, a partir de sua experiência maia k’iche’ da Guatemala e de seus estudos de sociologia: “O trabalho comunal é a energia primordial a partir da qual se produz a riqueza concreta da vida comunal; ao mesmo tempo, possibilita um horizonte ético de existência e estratégias de inclusão que não são centradas em uma identidade essencial.”[8] As culturas tradicionais produzem as únicas comunidades e grupos autenticamente ricos, se pensarmos a riqueza em termos de bem-estar, como estado que nos livra da mencionada “angústia mítica” que se desdobra no nosso trabalho alienado e nas nossas relações coisificadas com o outro, com a natureza e com nossos desejos. Portanto, quando se afirma hoje que os “índios são pobres sobre terras ricas” isso só expressa a pobreza de caráter e a falta de inteligência de quem o disse. Os indígenas são as populações genuinamente ricas deste planeta. A vergonha, projetada neles, deve ser reconhecida na cultura hegemônica com sua lógica genocida.

A “segunda técnica” e o novo espaço lúdico de ação

Pensando na imagem de Novalis do jogo de sentar no colo um do outro para indicar o todo, lembro que também para Benjamin o jogo era visto como uma categoria aberta e não violenta de atuar no mundo. A relação lúdica com o mundo deve ser pensada como uma técnica de relacionamento não violento. Benjamin escreveu em seu conhecido ensaio A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica acerca de uma técnica emancipada, que seria para ele uma “segunda técnica”. A “primeira técnica” tinha o ser humano em seu centro e possuía como sua realização paroxística o sacrifício humano. Podemos dizer que essa técnica se irmana à razão do Esclarecimento e teve como realização os genocídios do século 20 e a destruição de boa parte do planeta. Já a “segunda técnica” tende a dispensar o ser humano do trabalho. Ela baseia-se na repetição lúdica e teria sua origem no jogo, visto por Benjamin como primeira modalidade de tomada de distância da natureza.

Lembremos também aqui da teoria freudiana do jogo: o fort-da (o brincar de desaparecer) do bebê como uma elaboração da separação/realidade.[9] Também para Benjamin o jogo é meio de empoderamento. Para ele a “segunda técnica” não visa a um domínio da natureza (como ocorria na “primeira técnica”), mas sim jogar com ela. O jogo aproxima, mas mantém a distância. A “primeira técnica” seria mais séria, e a segunda, lúdica: a obra de arte estaria no meio, oscilando entre elas. Mas o cinema e a fotografia, por serem artes eminentemente dependentes da técnica, estariam mais próximas dessa “segunda técnica”, e atuariam justamente no treino em direção à emancipação. Benjamin destaca a relação dessa segunda técnica com as revoluções e utopias. Ele apresenta, nesse contexto, o conceito fundamental de Spielraum, campo de ação, mas também, espaço de jogo. Cito: “Justamente porque essa segunda técnica pretende liberar progressivamente o ser humano do trabalho forçado, o indivíduo vê, de outro lado, seu campo de ação aumentar de uma vez para além de todas as proporções.”[10] Benjamin afirma também que, diante dessa segunda técnica, “as questões vitais do indivíduo – amor e morte – já exigem novas soluções”.[11] Essa ideia parece constar como mote para as obras de arte produzidas em nossa era. Hoje, uma parte significativa delas explora esses novos espaços de jogo e de liberdade que a técnica nos abre. São incursões sobre o novo sentido da vida – e da biopolítica – na era da síntese técnica da vida. Elas colocam questões a nós humanos, habitantes da era da crise das fronteiras (geográficas, biológicas e outras mais), da mobilidade incessante, da ansiedade, do fim do trabalho – esse definidor de nossa humanidade por tantos séculos.

Vale lembrar que Benjamin desenvolvera essa dicotomia entre dois tipos de técnica, ainda que de modo não tão explicito, e tratando da técnica como uma segunda natureza, em seu último fragmento de Rua de mão única, livro publicado em 1928. Nesse texto, denominado de “A caminho do planetário”, Benjamin trata do tema, caro a ele, do abandono, que teria ocorrido na modernidade, da percepção das afinidades eletivas, ou do mundo das semelhanças, que antes uniam a humanidade, o macro e o microcosmo. Ele escreve sobre a técnica destrutiva e sacrificial que culminou na Primeira Guerra e também sobre uma técnica que não seria mais dominação, que ele vê in nuce na força proletária:

Massas humanas, gases, forças elétricas foram lançadas ao campo aberto, correntes de alta frequência atravessaram a paisagem, novos astros ergueram-se no céu, espaço aéreo e profundezas marítimas ferveram de propulsores, e por toda parte cavaram-se poços sacrificiais na Mãe Terra. Essa grande corte feita ao cosmos cumpriu-se pela primeira vez em escala planetária, ou seja, no espírito da técnica. Mas, porque a avidez de lucro da classe dominante pensava resgatar nela sua vontade, a técnica traiu a humanidade e transformou o leito de núpcias em um mar de sangue. Dominação da Natureza, assim ensinam os imperialistas, é o sentido de toda técnica. […] [No entanto] a técnica não é dominação da Natureza: é dominação da relação entre Natureza e humanidade. Os homens como espécie estão, decerto, há milênios, no fim de sua evolução; mas a humanidade como espécie está no começo. Para ela organiza-se na técnica uma physis na qual seu contato com o cosmos se forma de modo novo e diferente do que em povos e famílias.[12]

Ou seja, através de novas técnicas, dessa “segunda técnica” derivada e inspirada na fotografia e no cinema, uma outra natureza se organiza. Nossa relação com essa outra natureza será lúdica, dialógica, e se dará para além das lógicas do capital, das nações e das famílias. Esse pensador apostou em uma incorporação dessa técnica pensada como arte, e não mais como aparato de domínio e destruição. Seu sonho era que pudéssemos frear o atual desenvolvimento catastrófico em nome do pretenso progresso, que só traz morte, e construir uma humanidade capaz de realizar as potencialidades utópicas dessa “segunda técnica”: “Fazer da monstruosa aparelhagem técnica de nossos tempos o objeto da enervação humana – é esta a tarefa histórica em cujo serviço o cinema tem seu verdadeiro sentido”.[13] No cinema e, acrescento, nas artes como dispositivos de construção de novas subjetividades e de inscrição da história da violência, a humanidade poderia também testar novas modalidades de convívio intrahumano e com a natureza e, dessa forma, ensaiar – ludicamente – seu futuro.

___________________________________________________________________

[1] Também Hans Jonas notou que o sonho da civilização, ou seja, de domesticação da natureza, nascera do medo dessa mesma natureza e da ideia de sua conquista como um ato heroico. Hoje as coisas estão invertidas. Nós somos o perigo para a natureza. As marés que nos destroem (de água ou de lama) são respostas dessa Natureza ferida. Como escreve Hans Jonas: “A euforia do sonho fáustico se dissipou e nós despertamos sob a luz diurna e fria do medo.” (Hans Jonas, Une éthique pour la nature, trad. S. Courtine-Denamy, Paris: Flammarion, 2017, p. 176) A resposta a esse medo, no entanto, não deve ser o pânico, mas, antes, a ativação de uma nova ética que inclui pela primeira vez a Natureza e não se limita a ser apenas intersubjetiva.

[2] Theodor W. Adorno, e Max Horkheimer, Dialética do Esclarecimento. Fragmentos filosóficos, trad. G. Almeida, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985, p. 29.

[3] Achille Mbembe, Crítica da Razão negra, tradução Marta Lança, Lisboa: Antígona Editores Refractários, 2a edição, 2017, p. 119.

[4] Achille Mbembe. op. cit., p. 135.

[5] Ta-Nehisi Coates. Entre o mundo e eu. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015. pp. 18-19.

[6] Achille Mbembe. op. cit. p. 114.

[7] Novalis. Werke. Tagebücher und Briefe Friedrich von Hardenbergs. Hans-Joachim Mähl; Richard Samuel (orgs.). Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1999. Vol. II. p. 152.

[8] Gladys Tzul Tzul. “Uma forma ética de existência: o comunal indígena como horizonte político”. in 21ª Bienal de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil: Comunidades imaginadas. São Paulo: Videobrasil; Edições Sesc, 2019. (Catálogo de exposição). p. 56.

[9] Sigmund Freud, Jenseits des Lutprinzips, in: Studienausgabe, vol. III, Frankfurt a.M.: Fischer, 1989, pp. 213-272, p. 225 e seguinte.

[10] Walter Benjamin. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Organização e apresentação M. Seligmann-Silva; trad. Gabriel Valladão Silva, Porto Alegre: L&PM, 2013, p. 63.

[11] Idem, ibd.

[12] Walter Benjamin. Obras Escolhidas II: Rua de Mão única, trad. R.R. Torres Filho e J. Barbosa, revisão técnica Márcio Seligmann-Silva, 6. ed. revista, São Paulo: Brasiliense, 2012, p. 70 e seguinte.

[13] Walter Benjamin, 2013, op. cit., p. 102.

Sesc Digital reúne conteúdos sobre arte, esporte, meio ambiente, saúde e cidadania

Neste período em que o isolamento social nos afasta dos eventos que costumamos experimentar nas múltiplas sedes do Sesc-SP, podemos vivenciar um outro tipo de experiencia acessando e descobrindo o Sesc Digital. A plataforma contém uma grande e variada quantidade de conteúdos – sobre esporte, meio ambiente, arte, saúde e cidadania, entre outros – adaptados para o ambiente online. Saiba mais no vídeo abaixo: 

 

Feira de arte virtual ‘Not Cancelled Brasil’ estreia com participação de 56 galerias

Anúncio da edição brasileira da feira online Not Cancelled, feito através de seu Instagram.

Reunindo 56 galerias de diferentes cidades brasileiras, a feira de arte Not cancelled Brasil realiza sua primeira edição entre os dias 10 de junho e 9 de julho de 2020. A feira, que funcionará apenas virtualmente, surge como alternativa de mercado no contexto da pandemia de Covid-19 e após o cancelamento das feiras presenciais no Brasil e no mundo.

No site do evento (www.notcancelled.art/brazil), que estará disponível durante o período da feira, o visitante poderá ver as obras dos artistas selecionadas por cada galeria – participam da feira 101 artistas -, além de acessar conteúdo diário ao vivo, como transmissões, entrevistas, palestras e visitas guiadas. Para dar maior dinamismo ao evento, o programa online será alterado semanalmente, variando artistas e galerias que estarão expostos.

“Not cancelled” (não cancelado) é um projeto desenvolvido pela agência TREAT, sediada em Viena, e foi inaugurado em abril de 2020 na esteira do fechamento de museus, galerias, feiras de arte e outros eventos culturais. Após seu lançamento com a feira de Viena, foi reproduzida com edições em Berlim, Paris, Varsóvia, Chicago, Dubai, leste e sul da Europa, sul dos EUA, entre outros. Todos eles com eventos de uma semana de duração. (saiba mais aqui)

A edição brasileira, organizada a partir da iniciativa de Karla Osorio Netto, galerista de Brasília, é a primeira com um mês de duração. Como explica o texto de apresentação do evento, trata-se de um projeto independente reunindo grande parte das principais galerias de arte contemporânea do país, incluindo casas de médio e pequeno porte. “É crucial que todas as galerias mantenham contato para ampliar sua visibilidade nacional e dentro de um contexto global. Devido ao fato de que a pandemia está paralisando todas as atividades globais no futuro imediato, essas galerias foram particularmente afetadas, pois também dependem da visibilidade fora de seus mercados locais.” 

Nesse sentido, o texto conclui: “Em vez de cada uma lutar sozinho ou em nível local por visibilidade, pensamos em celebrar as atividades artísticas do país como um todo, unindo forças, e obtivemos apoio de uma plataforma internacional já existente, quase sem custo para as galerias. Esta é a primeira feira online de nível internacional realizada no Brasil e conta com o apoio da ABACT – Associação Brasileira de Galerias Contemporâneas.”

As casas que participam desta primeira edição são: A Gentil Carioca; AM Galeria; Amparo 60; Anita Schwartz; Athena; Aura; Berenice Arvani; Bergamin & Gomide; Bianca Boeckel; Bolsa de Arte; C. Galeria; Carbono; Casa Triângulo; Casanova; Cavalo; Celma Albuquerque; Central Galeria; Dan Galeria; Eduardo Fernandes; Estação; Fortes d’Aloia e Gabriel; Gaby Indio do Brasil; Janaina Torres; Jaqueline Martins; Karla Osorio; Kogan Amaro; Leme Galeria; Luciana Brito; Luciana Caravello Arte Contemporânea; Luisa Strina; Lume; Mamute; Marcelo Guarnieri; Marilia Razuk; Mario Cohen; Mendes Wood DM; Millan; Multiplo Espaço Arte; Nara Roesler; OÁ Galeria; OMA Galeria; Periscópio; Pinakotheke; Portas Vilaseca; Raquel Arnaud; RV Cultura e Arte; Sé Galeria; Silvia Cintra + Box 4; Simões de Assis; Soma Galeria; Superfície; Vermelho; Verve; Ybakatu; Zipper e 55SP.

Conhecido por seu trabalho monumental, Christo morre aos 84 anos

Christo
Christo por Tim P. Whitby. Foto: Getty Images para as Serpentine Galleries.

Faleceu hoje, 31 de maio, aos 84 anos, o emblemático artista Christo. De acordo com um comunicado de imprensa divulgado pelo escritório do artista, Christo morreu por causas naturais.

Nascido na Bulgária como Christo Vladimirov Javacheff, ele conheceu sua parceira Jeanne-Claude em 1958, em Paris, depois de receber a encomenda de fazer um quadro da mãe de Jeanne-Claude. Juntos eles ajudaram a questionar percepções sobre a arte. O casal incluía, junto com suas esculturas de proporção maciça – muitas vezes invólucros de tecido ao redor de construções históricas -, as documentações relacionadas à burocracia necessária para a realização da obra; os relatórios de impacto ambiental; os desenhos e diagramas feitos nas etapas de planejamento desses trabalhos. Propunham, dessa forma, uma nova forma para a arte pública ser compreendida.

Entre suas empreitadas mais famosas estão os embrulhos da ponte Pont Neuf, em Paris, do Reichstag, em Berlim; as ilhas de tecido na Baía Biscayne, em Miami; a Mastaba colorida no Hyde Park, em Londres; e os Floating Piers, entre Sulzano, Monte Isola e a ilha de San Paolo, na Itália.

Em 1978, o processo de sua obra Running Fence foi documentado por Albert e David Maysles em um filme que mostra a longa luta do casal de artistas para construir uma cerca de 40 quilômetros de tecido branco sobre as colinas da Califórnia, desaparecendo no Pacífico. 

Christo
“Christo e Jeanne-Claude:
Running Fence, Sonoma e Marin Counties, California, 1972-76″. Foto: Cortesia do artista.

A cerca, como os outros projetos de Christo e Jeanne-Claude, acabaria sendo derrubada depois de um tempo pré-determinado, persistindo graças ao documentário dos irmãos Maysles. Uma cena chama atenção para o impacto de seu trabalho. Durante as audiências públicas para aprovar ou não o início do projeto (que enfrentava grave rejeição e empecilhos burocráticos) uma mulher identificada como Sra. George Michelson se aproxima do microfone, oferendo a seguinte visão: “Algumas das refeições que preparo não são muito… Às vezes eu trabalho bastante para preparar uma refeição que eu acho que é arte. É uma obra-prima. E o que acontece? É devorada e desaparece”. 

A fala da fazendeira mostra como – através de seus próprios quadros de referência – as pessoas conseguiam se relacionar com o processo do trabalho de Christo e Jeanne-Claude. Quando a cerca foi finalmente erguida, a comunidade se uniu em admiração pela beleza da obra. No comunicado emitido pelo escritório do artista isso é reafirmado: “As obras de arte de Christo e Jeanne-Claude reuniram pessoas em experiências compartilhadas em todo o mundo e seu trabalho continua em nossos corações e memórias”.

A notícia de sua morte chega quando Christo havia assumido um de seus projetos mais ambiciosos, uma escultura que veria o Arco do Triunfo, em Paris, envolto em 269.097 pés quadrados de tecido. A obra foi concebida pela primeira vez com Jeanne-Claude, em 1962. O projeto ainda deve ser executado em setembro de 2021.