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A gestão cultural no Brasil em tempos de pandemia e de ataque à cultura

Instituições
Da esquerda para a direita: Jochen Volz, Solange Farkas, Danilo Miranda, Eduardo Saron e Ricardo Ohtake.

Com as crises políticas e econômicas que se sucederam no Brasil nos últimos anos, tornaram-se  ainda mais profundas e notáveis as históricas dificuldades enfrentadas pelas instituições culturais do país. Museus, centros culturais e outras organizações, já acostumados a trabalhar com pouca folga em suas finanças, adentraram um período de crescente incerteza com cortes de verbas e, simultaneamente, ataques políticos contundentes ao campo da cultura. A situação se agravou drasticamente com a posse do atual governo federal, de Jair Bolsonaro, que além das restrições orçamentárias e do desmonte de mecanismos de atuação do setor, intensificou discursos e práticas de enfrentamento a artistas e instituições culturais do país.

Em um ano e meio de governo, a cultura foi rebaixada de ministério para secretaria – vinculada ao Turismo – e chega agora ao seu quinto titular na pasta. “Isso demonstra que para eles a cultura não tem a menor importância. Que é só uma burocracia, destituída de qualquer fato relevante que justifique sua presença num aparato de governo. Subordinar a Cultura ao Ministério do Turismo é de uma falta absoluta de visão, inclusive estratégica. É entender a cultura apenas como entretenimento ou elemento de atração turística para um país, uma sociedade”, afirma Danilo Santos de Miranda, diretor-geral do Sesc-SP, uma das instituições constantemente ameaçadas de corte em seu financiamento, vinculado ao Sistema S. Para Solange Farkas, diretora da Associação Cultural Videobrasil, a cultura foi declarada inimiga pelo governo, o que demonstra uma prática típica do fascismo. E ela vai além: “Temos um governo que desrespeita a cultura, ataca a cultura, elimina a cultura. Na verdade, isso diz respeito à cultura, à imprensa e às instituições democráticas, nesse flerte claro com o totalitarismo.”

O que já parecia um quadro extremamente conturbado e ameaçador ganhou contornos ainda mais dramáticos com a chegada da pandemia do novo coronavírus e a necessidade de isolamento social – no Brasil, desde março deste ano. Entre abril e junho, após o encerramento das atividades presenciais de museus, centros culturais, associações e galerias, a arte!brasileiros iniciou uma série de entrevistas com gestores de algumas das principais instituições do país. Além de Miranda e Farkas, conversamos com Jochen Volz (Pinacoteca do Estado de São Paulo), Eduardo Saron (Itaú Cultural) e Ricardo Ohtake (Instituto Tomie Ohtake). Nesta edição, ouvimos também Marcelo Araujo e João Fernandes (Instituto Moreira Salles) e a série de entrevistas segue em nosso site com diretores de instituições de outras regiões do país.

Vale destacar que quando foram realizadas as entrevistas o governo ainda não havia sancionado a Lei Aldir Blanc, medida que garante renda emergencial de R$ 600 reais a trabalhadores da cultura e de R$ 3.000 a R$ 10.000 a micro e pequenas empresas, associações e organizações da área. A lei, através da qual o governo deve liberar R$ 3 bilhões, foi resultado da pressão da classe artística, que apelou ao Congresso para driblar a inação da secretaria da Cultura. Até a publicação desta matéria ainda não havia informações claras sobre os destinatários do programa nem data definida para o início dos pagamentos, já que o presidente havia vetado o artigo que obrigava a liberação imediata das verbas.

Em conversas que transitaram por assuntos específicos de cada instituição e por temas mais gerais, os cinco entrevistados demonstraram grande preocupação com o contexto político e social do país, mas refletiram também sobre os possíveis caminhos de atuação neste momento. Falaram ainda sobre a intensificação da atuação virtual das instituições no período da pandemia, sobre o mercado de arte e sobre uma realidade global que precisa ser repensada após a passagem do coronavírus, entre outros temas. Leia a seguir os principais trechos das entrevistas. 

A atuação nos tempos de isolamento

“O museu é um lugar de diálogo, de construção participativa. Agora estamos em um momento de reflexão, aprendizado e experimentação para ver quais são as formas de manter esse mesmo espírito, mas de forma digital, à distância”, afirma Jochen Volz sobre o trabalho na Pinacoteca. Para ele, “nada substitui uma visita presencial, mas enquanto não for possível, o museu aproveita as possibilidades da internet”. Como resultado das várias atividades promovidas – como uma campanha sobre as obras do acervo, lives com curadores e artistas, um tour virtual pelo museu e a abertura de uma mostra exclusivamente virtual -, Volz destaca não só um considerável aumento nos números de seguidores nas redes, mas também novos modos de interação com o público.

Jochen Volz, diretor da Pinacoteca
Jochen Volz, diretor da Pinacoteca. Foto: Divulgação

O diretor da Pinacoteca percebe também que essa mudança na atuação durante a pandemia deverá deixar um legado para o período que se segue, mesmo quando as atividades presenciais voltarem. “Estamos discutindo de que forma vamos integrar mais as iniciativas online às atividades presenciais. É importante entender que o museu e o público estão aprendendo ainda como se relacionar de forma efetiva nos meios digitais. Mas tudo que realizamos neste período nos mostra que temos que ficar mais atentos a esses desdobramentos que vão além do espaço físico do museu.” 

Para falar sobre a intensa programação online do Sesc-SP nos últimos meses, Danilo Miranda ressalta inicialmente a tentativa de seguir trabalhando com a ideia de “bem-estar social e bem viver”, o que representa a missão da instituição. “A gente lida com cultura nesse sentido bastante amplo. Cultura, para mim, quando a gente considera em um sentido mais antropológico, não é um aspecto da vida, mas é o universo onde estamos inseridos. Diz respeito aos nossos hábitos, à nossa língua, nossa maneira de ser. E então nós trabalhamos questões de atividades físicas, de alimentação, de saúde e com o campo das artes”, explica. “Neste momento, o Sesc procura corresponder a essa expectativa usando as ferramentas que tem à sua disposição”, afirma, destacando as apresentações virtuais de música e teatro, a disponibilização de um vasto acervo digital audiovisual e a realização de conversas e debates sobre ética, questões sociais e artísticas, entre outros.

Para Miranda, no entanto, em discurso consonante ao de Volz, a atuação virtual nunca será suficiente. “Afinal, o ser humano tem a questão da relação pessoal, presencial, inerente à sua natureza. E o encontro mais cedo ou mais tarde vai voltar a acontecer, mas por enquanto o caminho é o isolamento, o afastamento. Então nesse momento não há como se envolver presencialmente, mas digitalmente existem recursos que têm sido aprimorados. A pandemia seria muito mais grave se não fossem essas ferramentas de aproximação virtual.”

Com uma série de depoimentos de artistas, curadores, filósofos, escritores e cineastas, o Instituto Tomie Ohtake, por sua vez, criou a série intitulada #juntosdistantes, tratando de temas variados, inclusive relacionados ao próprio isolamento social. Também se manteve ativo virtualmente com os cursos, podcasts e discussões sobre questões como racismo, negritude e lugar de fala. Ricardo Ohtake não nega, no entanto, a dificuldade em lidar com o momento. “Nós não sabemos quando é que vão acontecer as coisas, então você leva as ideias até certo ponto e a partir daí não consegue planejar mais nada, fica tudo meio no ar.”

Edurado Saron, diretor do Itaú Cultural
Edurado Saron, diretor do Itaú Cultural. Foto: Divulgação

“Confesso que o planejamento não é uma tarefa fácil”, concorda Eduardo Saron. “Como todos, tivemos de nos reinventar e reorganizar os recursos, não somente financeiros, como também organizacionais e humanos, uma vez que, mesmo com a situação diferenciada que o Itaú Cultural (IC) tem, fazemos parte deste ecossistema cultural e econômico, hoje, extremamente afetado”, diz ele. Ao intensificar sua atuação online, o IC se beneficiou também de um vasto acervo que já possuía, relativo aos mais variados campos artísticos. Saron relembra que o instituto nasceu, há mais de 30 anos, para ser uma base de dados de artes plásticas – hoje parte da Enciclopédia de Arte e Cultura Brasileira – e que, neste sentido, a organização está se reencontrando com sua origem.

Parte de um planejamento anterior ao isolamento, o IC também lançou em abril o Painel de Dados do Observatório Itaú Cultural, uma plataforma digital dedicada à análise de dados sobre cultura e economia criativa. Além disso, o instituto partiu da particularidade de ser uma instituição vinculada a um banco para criar editais de emergência em diferentes áreas artísticas. “A instituição se propõe a acolher parte dos artistas sujeitos a atuar isoladamente e sem remuneração neste período de supressão social”, afirma Saron. “Precisamos ajudar a oferecer liquidez para a economia da cultura nesse período crítico. Além de, naturalmente, oferecer oxigênio criativo afetivo para as pessoas que nos acompanham virtualmente nos nossos canais.”

Apesar da injeção financeira em um mercado fragilizado, a iniciativa não passou imune a críticas, de um lado por ter selecionado, entre centenas de beneficiados, alguns nomes já renomados; de outro, por ser vista como um estímulo à competição e à produtividade como única moeda de troca neste momento de crise. Sobre o assunto, Saron argumenta que o Itaú Cultural já possui uma forte tradição na realização de editais e que, ao perceber uma intensa difusão artística circulando nas redes, teve como intuito “oferecer mais dignidade para a produção e o pensamento artístico em um período como este, mesmo sabendo que, naturalmente, temos escalas limitadas para fazer esse tipo de apoio”.

O desequilíbrio global

Em uma direção distinta à das instituições que intensificaram sua atuação virtual, o Videobrasil se manteve praticamente ausente das redes sociais nos últimos meses. “Essa parada obrigatória foi para mim, em um primeiro momento, uma coisa meio paralisante mesmo. Não apenas pela questão da pandemia, que é trágica, dramática, mas porque ela é muito acentuada e piorada pela nossa condição política”, afirma Farkas. “Fiquei de fato tentando pensar sobre o que está nos acontecendo e como reagir a isso. Repensar inclusive o nosso modo de operar. Acho que há questões tão sérias, tão profundas, que isso tudo nos faz repensar o papel da arte, o papel dessas estruturas e de como elas vinham funcionando.”

Solange Farkas, diretora da Associação Cultural Videobrasil
Solange Farkas, diretora da Associação Cultural Videobrasil. Fotos: Ale Ruaro

Ao anunciar o adiamento da próxima Bienal Sesc_Videobrasil, programada inicialmente para 2021 e que deve ocorrer apenas em 2023, Farkas afirma também que a instituição pretende, a partir de agora, se dedicar com mais afinco a trabalhar com o vasto acervo (especialmente de vídeo) que construiu em mais de três décadas. O movimento está sendo planejado com a criação de uma nova plataforma, o Videobrasil online, que seguirá olhando para a produção do chamado Sul global – termo que se refere à condição cultural, econômica e política de países e territórios à margem da modernização hegemônica e do capitalismo central.

Ao falar sobre essas regiões menos abastadas do mundo, Farkas ressalta também que o atual contexto, com a pandemia de Covid-19, escancara ainda mais as diferenças sociais e econômicas entre os países. “Sabemos que o Sul global é atingido mais duramente por uma crise como essa. As diferenças de fato são expostas.” Por outro lado, diz ela, é possível pensar também que “quando passar um pouco o ápice de tudo isso, talvez a gente esteja um pouco à frente em relação a algumas alternativas e saídas. Pois se essa situação da pandemia se coloca para todo o globo, nós que vivemos em países subdesenvolvidos, em condições subalternas a esse lugar do mundo onde o dinheiro circula, sempre tivemos que lidar com a precariedade e achar alternativas, sobretudo no campo da arte e da cultura”.

O quadro geopolítico no contexto da pandemia foi tema também da conversa com Danilo Miranda, para quem “o que está acontecendo mostra o desequilíbrio e a falta de equidade social no mundo”. Para o diretor do Sesc-SP, “é muito mais grave o que está acontecendo no Brasil do que o que se passou na Europa. Lá foi grave, aqui vai ser gravíssimo. Porque aqui a desigualdade, a pobreza, a miséria e a falta de condições sanitárias são muito maiores”. Para piorar, “temos um presidente que nega absolutamente tudo isso e atua de uma maneira equivocada, totalmente errática, em todos os sentidos. É tão grave quanto um guerra.”

Para além das consequências, Miranda ressalta ainda que as causas que levaram ao quadro atual não estão desconectados do tratamento que o ser humano dá à natureza, ao planeta. “Então a exploração dos recursos naturais levada ao extremo, além de mexer com questões como o aquecimento global, que já é um fato real, tem consequências na vida biológica de um modo geral, na vida dos seres visíveis e invisíveis que estão sobre a terra”, afirma. Neste sentido, diz ele, a crise gerada pela pandemia do coronavírus demonstra a necessidade de um debate muito mais amplo do que pode aparentar: “Não é apenas um problema de saúde, mas diz respeito à economia, às relações humanas, à cultura, à educação e à vida como um todo”.

Em concordância com o diretor do Sesc, Farkas cita escritos recentes do líder indígena Ailton Krenak para defender que após a pandemia não será possível, nem desejável, voltar à vida como era antes. “Não vamos tentar continuar numa normalidade que não existe. Eu acho que tudo isso que está acontecendo não é gratuito. Como o Krenak fala, essa é uma crise da humanidade, do ser humano. O problema não é o mundo, a natureza, os animais. Somos nós. Quem está doente somos nós. E nesse sentido eu acho que os povos originários têm muito a nos ensinar, a nos dizer. ”

O pós-coronavirus

O tema do mundo que virá após tamanha crise para a humanidade perpassou também , de diferentes modos, as entrevistas de todos os gestores. Para Saron, “paradoxalmente, o pós-corona trará uma humanização da sociedade, o que, por sua vez, demandará o fortalecimento da ciência, o avanço da educação e a ampliação do fazer artístico. Nós, que estamos intimamente ligados ao mundo do conhecimento, precisaremos estar prontos para responder à altura este desejo”. Miranda, por sua vez, considera que o “novo normal” exigirá das pessoas que elas sejam mais solidárias umas com as outras. “Não quer dizer que elas serão mais solidárias, mas serão convidadas a isso. Primeiro porque uma ameaça como essa é para todo mundo. Depois, porque você depende totalmente do outro para poder se manter saudável. Então é quase que uma solidariedade obrigatória, indispensável”, explica.

De um ponto de vista das práticas diárias das instituições, para além da intensificação nas atividades virtuais, a realidade que virá deverá exigir alterações nos modos de atuação presencial. “Vamos ter que rever hábitos”, afirma Miranda. “E enquanto não tiver a vacina, como é que vamos juntar gente para ver um filme, um teatro ou um concerto? Então vai ser um desafio enorme do ponto de vista prático, arquitetônico. Como será o novo presencial?”, questiona ele.

Paradoxalmente, Solange Farkas considera que o trágico contexto da pandemia pode ter ajudado as pessoas a prestarem mais atenção a algumas questões e injustiças sociais latentes na sociedade. Perguntada sobre os casos recentes da morte do menino João Pedro, no Brasil, e do americano George Floyd, que desencadearam protestos e debates sobre o racismo estrutural nos dois países, Farkas diz que “o isolamento social fez com que a gente percebesse mais certas coisas. Porque quando você está numa situação de normalidade, as pessoas passam batido por isso, em geral. Não olham para o outro, não olham para essas questões. Mas essa questão da diferença social, do racismo estrutural, do nível e grau de violência contra a comunidade negra, assim como a indígena, isso sempre existiu”.

E por mais que lamente que tenha sido preciso uma explosão da discussão nos EUA para que muitos no Brasil passassem a falar em antirracismo, ela considera que a pandemia está ajudando a “olharmos essas nossas fragilidades enquanto sociedade”. “Acho que nunca foi tão evidenciada como agora essa personalidade brasileira tão racista, tão superficial. E talvez, a partir desse momento, alguma coisa pode de fato começar a acontecer. Acordar as pessoas para essa questão política, para o racismo escancarado, para essa desgraça, essa lástima que é esse atual governo, autoritário, fascista”, completa.

Ao falar sobre essas temáticas políticas historicamente tratadas no Videobrasil – através da produção de artistas negros, periféricos, indígenas e LGBTs, entre outros – Farkas ressalta também que enxerga com cautela um olhar crescente do mercado para o trabalho destes artistas. “Pois não é exatamente a arte, mas é o mercado quem está olhando para esse lugar. E qualquer coisa chancelada pelo mercado, sobretudo esse mercado predador, eu não vejo com bons olhos, não acho saudável”, afirma. “Descobrem  esses lugares, percebem que há uma produção potente e que há um momento favorável, em que esses trabalhos vendem, mas não mexem um centímetro para mudar, por exemplo, as condições de produção para esses artistas”. Um dos riscos, deste modo, é uma banalização desta produção, com a criação de rótulos, por exemplo. “Mas os artistas não são bobos. São potentes, são espertos. Muitos artistas, curadores e gestores destes lugares mais à margem são muito politizados, muito articulados. Então eles também ficam com um pé atrás com a gente, por razões óbvias. E eles têm uma consciência do lugar que eles ocupam no mundo.”

Ricardo Ohtake, por sua vez, não deixa de ver com bons olhos essa maior atenção dada pelo mundo da arte à uma produção mais política – incluindo aí o mercado, que tem “se voltado menos para uma arte muito formal e ‘bem feitinha’ e mais para uma arte política”, diz ele. “Porque eu acho que em tempos como os que estamos vivendo temos que mostrar esse tipo de produção, fugir de coisas mais conservadoras”, completa.

Ricardo Ohtake, diretor do Instituto Tomie Othake
Ricardo Ohtake, diretor do Instituto Tomie Othake. Foto: Divulgação.

Paralelos com um passado sombrio

Os “tempos que estamos vivendo”, no caso, se referem ao momento em que o país tem um “governo que não gosta de cultura e também não gosta das posições progressistas que a cultura costuma ter”, segundo Ohtake. Para ele, que desde jovem se envolveu na luta contra a ditadura militar (1964-1985), o atual governo possui paralelos não só com esse período da história brasileira, mas também com regimes como o fascismo e o nazismo que governaram países europeus na primeira metade do século passado. Isso fica nítido, entre outras coisas, no reaparecimento de tentativas de censura ao trabalho de artistas e instituições culturais.

Miranda, no mesmo sentido, considera “que existem muitas maneiras de fazer censura”, para além do modo de controle que era exercido pelo governo militar. “E uma delas é diminuir, ou eliminar, quem produz algo que possa ser censurado. Então naquela época os artistas produziam e eram censurados. Agora, a ideia é que os artistas não tenham nem como produzir direito, porque não têm incentivos e mecanismos.”

Farkas, que realizou o primeiro Festival Videobrasil em 1983, na última fase da ditadura, ressalta também que algumas experiências vividas naquela época parecem ressurgir, com outras roupagens, no contexto atual. “Parece que estou revisitando, desgraçadamente, um momento que passamos lá atrás. Quando começamos o festival ainda existia um mecanismo de censura do Estado muito forte. E eu fui processada várias vezes por exibir trabalhos que tinham sido censurados.” Já nos dias atuais, ela completa, há um outro tipo de censura, “na medida em que você não pode produzir e não consegue falar o que pensa porque não tem condições para isso”.

A escassez de recursos direcionados às instituições culturais não estariam, neste sentido, desvinculadas de um projeto de governo que exclui a cultura de seu planejamento. Para Farkas, esse processo de desmonte remete ao governo anterior, de Michel Temer. “Se não fosse o Sesc, que eu digo sempre que é a nossa política cultural, a gente não teria feito a bienal desde 2016, porque não há condições para isso”. E com o agravamento da situação por conta do isolamento social, “ou você tem que se reinventar, de fato, ou esperar esse terremoto passar. E nesse sentido a pandemia nos tira totalmente de uma zona de conforto. Eu acho que este momento nos obriga a resgatar um pouco o espírito marginal que permeava a criação artística antes dessa profissionalização toda”.

Segundo Ohtake, as captações no instituto, sem vínculo direto com o Estado, têm sido cada vez mais difíceis e, por isso, o número de mostras anuais deverá ser reduzido. “Porque nós também não temos um padrinho, um patrono, como a maioria das grandes instituições têm”, diz ele. “E o fato de ter um governo como esse atual exige que a gente invente as coisas para fazer. Precisamos ser mais inventivos. Nós temos que achar caminhos, procurar saídas para isso tudo, mas é muito difícil saber o que deve ser feito”, completa. No caso da Pinacoteca, um corte de verbas do Governo do Estado por conta da pandemia implicou na redução da jornada de trabalho e salários dos funcionários e na suspensão temporária de outros contratos. Por enquanto não houve demissões, mas o risco não está totalmente descartado.

Para o Sesc-SP, a ameaça de cortes no sistema S (formado por instituições como Sesc, Sesi, Senai e Sebrae) é uma constante desde o início da gestão Bolsonaro – uma Medida Provisória para a diminuição nos repasses de empresas para o sistema transita no Congresso no período de publicação desta reportagem. “Justamente no momento em que mais se necessita de instituições que lidam com essas questões do debate, da discussão, da informação, da educação e da cultura, para que possamos vencer tudo isso”, diz Miranda.

Saron, por sua vez, considera que a falta de uma política de Estado para a cultura não é algo recente. “Há sete anos que o Fundo Nacional da Cultura, um instrumento importantíssimo na constituição de uma política cultural consistente tem visto, sucessivamente, o seu orçamento ser reduzido, mesmo tendo uma fonte segura de recursos advinda das loterias”, diz. “Outro indicativo de vulnerabilidade nas políticas públicas é o fato de que em 30 anos de existência de um órgão dirigente de cultura tivemos, em média, um responsável a cada 10 meses, com exceção de Francisco Weffort, que permaneceu no cargo por oito anos, e de Gilberto Gil, por cinco anos e meio. Tudo isso sem contar a histórica fragilidade da Funarte, em tese a instituição pública que deveria ser a responsável por fomentar a arte no Brasil.”

Danilo Miranda, diretor-geral do Sesc-SP
Danilo Miranda, diretor-geral do Sesc-SP. Foto: Aduato Perin/ Sesc-SP

Tocando em frente

Mesmo com todos os empecilhos, dificuldades econômicas e políticas, em meio à pandemia de Covid-19, os cinco gestores entrevistados afirmam estar buscando os caminhos possíveis para manter vivas e atuantes as instituições que dirigem. “Então eu acho que cada um vai fazendo seu trabalho, algo que consiga responder a essa situação”, diz Ohtake. E em uma “escala macro”, completa, “nós temos que voltar a construir um projeto de país. E um projeto de país tem a ver com arte, com educação e cultura.” Jochen Volz, por sua vez, relembra a Bienal de São Paulo de 2016, Incerteza Viva, da qual foi curador, para dizer que é preciso “pensar em como abraçar este momento de incerteza. E em vez de se recolher no medo, pensar em como transformar esse momento em ação”. Para isso, a arte pode sempre servir de inspiração: “Acho que é um momento de olhar para as estratégias artísticas novamente e ver como os artistas tem, desde sempre, imaginado o inimaginável”.

Danilo Miranda, apesar de tudo, não deixa de se dizer esperançoso. “Porque cultura é muito amplo. É muito mais sério e mais importante do que qualquer governo possa imaginar. E ela vai existir independente da vontade dos governos, estejam eles favorecendo ou prejudicando. Porque ela é inerente à vida humana. Você vai em qualquer lugar deste país, ou do mundo, estão produzindo cultura. E não só a cultura que se transforma num produto – como uma música, uma literatura -, mas a cultura que é a expressão humana necessária na comunicação, na narrativa, no dia a dia, nas lembranças, na memória. Não existe memória sem cultura. Então não conseguirão destruir isso nunca, nunca. Por mais que tentem.” ✱

A roda que segue girando, agora pela internet

Mercado de arte quarentena
Trabalho da artista Fernanda Gomes apresentado no viewing room da Galeria Luisa Strina na Art Basel. Foto: Divulgação

Arcar com altos preços para ter um estande; pagar o transporte e o seguro das obras de arte; e desembolsar uma boa quantia em passagens de avião, hospedagem e alimentação da equipe. Isso tudo com o risco de não realizar vendas e voltar para casa no vermelho – sem contar o estresse físico e psicológico envolvido. “O custo total para participar de uma feira de arte é uma loucura. E é sempre muito cansativo”, afirma Luisa Strina, uma das mais experientes galeristas em atividade no mercado brasileiro. A opinião é compartilhada por outros cinco galeristas ouvidos pela arte!brasileiros, que enxergam um esgotamento no modelo em que as galerias gastam boa parte de seus recursos e tempo participando incessantemente de feiras ao redor do mundo. “É muito custoso em termos de dinheiro, mas também em termos físicos e psicológicos. No ano passado eu sai do Brasil em média duas vezes por mês. Não precisa ser assim”, diz Alexandre Gabriel, da Fortes D’Aloia & Gabriel. Para Karla Osório, “havia mesmo uma exaustão, mas infelizmente era visto como uma necessidade, uma regra de mercado”.

E a roda, que não podia parar, de repente parou. Com a pandemia de Covid-19 e a necessidade de isolamento social, feiras foram canceladas, viagens impossibilitadas e, assim como os mais variados setores da economia, o mercado de arte se viu retraído e sem respostas fáceis sobre como prosseguir. Ao contrário de outros campos, no entanto, justamente por estar vivendo um modelo que já demonstrava sinais de esgotamento, muitos galeristas de arte rapidamente perceberam que certas práticas podem – e devem – mudar, inclusive quando a pandemia passar. A busca de um “novo normal”, termo que em quatro meses de pandemia já soa repetitivo e por vezes apenas retórico, talvez seja de fato uma realidade no circuito mercadológico das artes, por demonstrar que outros modos de trabalho podem ser mais práticos e rentáveis. “Eu acho que essa parada também é um momento de reflexão. A gente estava naquele piloto automático, fazendo dez feiras por ano. Você entra numa rotina e nem percebe mais. Então acho sim que as pessoas vão ter que rever algumas coisas”, afirma Alexandre Roesler, da Galeria Nara Roesler.

A principal mudança para as galerias até o momento, para além da intensificação na atuação digital, da realização de lives, exposições virtuais e da criação de algumas iniciativas colaborativas com artistas – certamente os personagens mais frágeis na situação atual -, foi justamente a participação em feiras virtuais. O deslocamento deixou de ser para outra cidade ou país e passou a ser para a tela de computador ou celular mais próximos. A primeira a anunciar o cancelamento do evento presencial e a realização da versão online foi a Art Basel Hong Kong, em março, que contou com 231 galerias em suas viewing rooms (salas de visitação virtual), entre elas quatro brasileiras. Em abril foi a vez da Frieze Nova York, com 200 casas, sendo oito brasileiras; e em junho a Art Basel reuniu 282 galerias, entre elas cinco nacionais. Foi também em junho, na esteira de uma polêmica envolvendo o cancelamento da SP-Arte, que a inédita Not Cancelled Brazil foi realizada, com a participação de 57 galerias, todas brasileiras, e a duração estendida de um mês.

Paradoxalmente, com todas as mazelas causadas pela pandemia e uma consequente retração no mercado de arte, o novo formato das feiras explicitou para os galeristas que certas mudanças vieram para ficar, e que se as feiras presenciais não são totalmente substituíveis pelas virtuais, modelos híbridos devem se tornar mais frequentes. Mais do que isso, com uma expansão da atuação virtual, muito mais econômica, será possível selecionar melhor os eventos em que se considera realmente importante estar presente. “Talvez fazer presencialmente entre duas ou três boas feiras internacionais ao ano já seja o suficiente. Você reduz muito os custos de uma operação que é sempre de muito risco. Feira é roleta russa”, afirma a galerista Jaqueline Martins. “E no online o risco é menor, porque se vender menos a frustração é muito menor. Você trabalhou menos, não gastou. Sua condição financeira e seu tempo estão mais protegidos.”

Até o momento, as feiras realizadas virtualmente não cobraram das galerias o valor do estande (no caso, dos viewing rooms). Se isso seguirá assim ou se foi apenas uma medida de emergência por conta da crise, ainda não se sabe. “Provavelmente no futuro vai ter algum custo, mas não se compara ao de uma feira normal”, diz Strina. Desse modo, por mais que o número de vendas tenha sido mais baixo do que o de costume – o que é confirmado pelos galeristas -, a quantidade de transações necessárias para não sair do evento no vermelho é infinitamente menor, já que os custos se resumem à preparação de fotos, vídeos ou campanhas de divulgação. “Com bem menos vendas, eu diria que no saldo final nós tivemos resultados melhores na Frieze e na Basel esse ano do que no ano passado. Porque quando a despesa é zero, você vende uma obra e já está no lucro”, ressalta Gabriel.

Outras práticas, novos comportamentos

Os resultados alcançados pelas galerias são variados. Algumas passaram em branco em determinado evento, mas venderam bem em outro. Os galeristas percebem também que a rápida evolução nas plataformas disponibilizadas pelas feiras têm ajudado a aumentar as interações. Para Eliana Finkelstein, da galeria Vermelho, o número de visitações aos viewing rooms e os contatos com possíveis novos clientes de variados países surpreenderam positivamente a galeria, que até agora participou da Frieze e da Not Cancelled. Ela destaca, ainda, a necessidade de se compreender as novas formas de trabalhar no universo digital. “Eu acho que há obras que se adequam muito bem ao meio virtual, como uma fotografia por exemplo. Outras são mais difíceis.” Alexandre Roesler vai na mesma direção: “Talvez um quadro ou uma foto sejam mais fáceis de visualizar do que uma escultura, ou uma pequena peça de renda, por exemplo”.

Nesse sentido, o galerista vislumbra ainda outros caminhos de criação. “É possível conceber experiências digitais diferentes. Veja o que os programadores de games são capazes de fazer, por exemplo, com a realidade virtual”. Para as próximas feiras, portanto – incluindo a SP-Arte, que deve anunciar em breve sua versão online -, novas possibilidades passam a entrar na mira dos galeristas. Finkelstein ressalta que passa a não haver limites de peso ou espaço para apresentar uma obra; Strina considera que uma feira virtual funcionará melhor com obras mais alegres e coloridas; Gabriel destaca a vantagem de poder apresentar obras que estão fisicamente em diferentes lugares do mundo, sem precisar transportá-las; Jaqueline, por sua vez, relembra que a galeria londrina Rodeo apresentou em seu viewing room na Basel apenas obras sonoras. “Quando eles teriam coragem de fazer um investimento físico desse em uma feira caríssima como a Basel? Seria impensável correr esse risco presencialmente. Então acho que esse desprendimento que o online nos proporciona é também maravilhoso, e nós temos que explorar isso.”

Karla Osório, responsável pela realização da edição brasileira da Not Cancelled – uma feira criada originalmente pela agência austríaca Treat e que já teve versões em outros países – diz perceber também um novo perfil do público comprador, de faixa etária mais baixa. “Todos os novos clientes que eu tenho agora no período da pandemia, cerca de 20 pessoas, têm no máximo 45 anos”. Segundo artigo publicado recentemente pelo The New York Times, uma espécie de conflito de gerações estaria ocorrendo no mercado de arte durante a pandemia, considerando que colecionadores mais jovens se mostram mais dispostos a comprar virtualmente e os mais velhos (em geral com maior poder aquisitivo) são mais reticentes. Deste fato decorreria também uma escolha, por parte de muitas galeristas, de expor nas feiras obras “mais baratas”, mais suscetíveis de serem vendidas aos millennials – geração nascida nos anos 1980 e 1990. “Até um certo limite de preço você consegue trabalhar bem virtualmente”, diz Finkelstein.“Na Not Cancelled levamos só obras de até 16 mil reais.”

Almeida e Dale
“Quebra”, de Renata Lucas, apresenta pela Galeria Luisa Strina na Art Basel. Foto: Divulgação

A constatação de que os colecionadores experientes estão mais reticentes a comprar virtualmente, no entanto, não é compartilhada por todos os galeristas entrevistados. Segundo eles, a prática de vender obras a partir da troca de imagens – basicamente por Whatsapp – já é corrente muito antes da pandemia. “Eu diria que 50% das vendas da minha galeria, e posso dizer que de muitas outras também, já acontecia online, com essa troca de fotos”, ressalta Jaqueline. “Claro que isso é mais raro com novos clientes, mas para um cliente assíduo, que já confia em você e conhece o artista, isso é comum. Então eu acho também que o recuo do mercado não se deu só por esse fato das vendas online, mas porque entramos num caos de saúde, econômico e político.” Alexandre Roesler diz o mesmo: “A gente já vende obras por Whatsapp há vários anos. É raro hoje em dia o colecionador ir à galeria”. Para ele, isso se relaciona, inclusive, com o boom no número de feiras nas últimas décadas – eventos em que o comprador pode ver em um só lugar centenas de galerias.

Crise econômica    

O recuo de mercado destacado por Jaqueline foi citado também por todos os outros galeristas, especialmente no que se refere ao primeiro mês de isolamento social. Todos constatam, também, uma retomada gradual dos negócios nos meses seguintes. Neste sentido, dados recentes mostram um quadro que soa surpreendente no contexto político e econômico vivido pelo país. Uma pesquisa realizada em abril pela The Art Newspaper com 236 galerias ao redor do mundo mostrou que 34% delas imaginam que não sobreviverão à crise gerada pela pandemia. Os dados mostram também que as galerias, na média, calculavam uma queda de 72% em suas receitas anuais em 2020. Uma pesquisa semelhante realizada em maio no Brasil – por Tamara Brandt Perlman, da Parte Arte e Cultura – revelou um quadro bem menos dramático para as 47 casas nacionais entrevistadas. Com uma expectativa de redução de faturamento da ordem de 30%, apenas 4% das galerias imaginavam não sobreviver à crise, sendo que 23% das casas preveem crescimento no ano.

Vista geral de Cities in Dust, na Carpintaria
Vista geral de Cities in Dust, na Carpintaria (Fortes D’Aloia & Gabriel), exposição que teve que ser fechada e ganhou apresentação online

Segundo a pesquisa, são as galerias menores e com menos anos de atividade as que demonstram menor fôlego financeiro, caso a crise demore a passar. Neste sentido, Karla Osório destaca que as feiras online possuem um caráter de democratização importante, ao colocar todas as galerias no mesmo nível e com o mesmo espaço de apresentação. Ela não imagina, no entanto, que a Not Cancelled Brazil, realizada em caráter de urgência, passe a fazer parte do calendário de feiras, já que eventos tradicionais como SP-Arte e ArtRio voltarão a acontecer. “Mas elas também terão de repensar seu modus operandi, porque esse momento mostrou que é possível, com muito pouco gasto, ter uma presença digital forte”, afirma.

Modelos híbridos, em que presencial e virtual se complementem, parecem o caminho mais provável, segundo os entrevistados. “O formato online veio para ficar, mas não acho que veio para substituir”, diz Gabriel. “Provavelmente vai haver uma redução no número de feiras, mas as grandes, que tem uma robustez econômica maior, certamente vão continuar com os eventos físicos, mesmo que com atividades digitais paralelas”. Alexandre Roesler concorda: “Acho possível que elas continuem acontecendo como um complemento das feiras, até para ampliar o alcance de público. Mas a experiência de estar presencialmente numa feira é muito diferente. Não é só o fato de ver a obra ao vivo. É porque você encontra e reencontra gente, mantém contato com uma rede de colecionadores, conhece ao vivo alguns artistas. Aí tem a festa, e às vezes você vai para outras cidades do país… Quer dizer, é uma vivência que vai muito além de ver as obras ao vivo.”

Not Cancelled Brazil
Trabalhos de Pedro França e Victor Gerhard (ao centro) apresentados pela Galeria Jaqueline Martins na feira Not Cancelled Brazil

Por fim, Gabriel destaca um outro aspecto relevante dos eventos digitais: “O online tem muita transparência. Você sabe o preço antes de perguntar, sabe o que está vendido ou não, ou seja, tem uma coisa mais direta, mais reta”. Mas talvez seja essa objetividade digital, justamente, o que jamais poderá satisfazer totalmente o mercado de arte. “Uma vez, discutindo sobre esse esgotamento com o diretor de uma feira, ele me disse que as feiras nunca vão acabar porque as pessoas adoram eventos sociais. E é verdade”, conclui Jaqueline. “E não digo num sentido vulgar, mas é um lugar onde você vai encontrar pessoas, se comunicar, fazer contatos. E é difícil imaginar uma outra oportunidade para, em dois ou três dias, se misturar a tantas pessoas de lugares e culturas tão distintas.” Mas, sim, conclui Luisa Strina, “a feira virtual veio para ficar, e as pessoas precisam se acostumar” ✱

A arte em xeque: os desafios do virtual

A arte em xeque: os desafios do virtual
"Paragomonstro na Paulista", de Túlio Freitas Tavares, obra que está em “Pandemia”, revista virtual coletiva organizada pelo portal NaBorda, 2020. Foto: Cortesia NaBorda.

Seis meses depois dos primeiros alertas sobre o Covid-19, ainda circunscrito à região de Wuhan, na China, e três meses depois do vírus chegar de forma inquestionável ao Brasil – depois de passagens devastadoramente letais pela Europa e Estados Unidos, a situação ainda é de paralisia, angústia e desalento. A crise epidêmica é reforçada pelo colapso econômico e, no caso brasileiro, por uma tensão política sem precedentes. Em meio a tudo isso, como analisar as potencialidades da cultura, os efeitos desse cenário sobre artistas, instituições e consumidores de arte? Como avaliar as respostas dadas até o momento, em busca de paliativos digitais, e sopesar as opiniões que variam desde uma otimista visão de que sairemos melhor dessa situação, até uma ácida sensação de que uma era se encerra, mas não se sabe ainda o que virá depois dela?

O cenário de exceção, que provoca letargia e desespero, medo e esperança de transformação, também parece ter um efeito revelador, tornando as fragilidades mais palpáveis, os descasos mais evidentes e as falhas mais perceptíveis. É como se a excepcionalidade da situação, a suspensão da normalidade que perpetua os modelos repetidos muitas vezes de forma mecânica, tornasse mais evidente nossas enormes carências. Do dia para a noite, todos parecem ter descoberto como são fracas as estratégias de comunicação virtual de museus, galerias e outras instituições culturais e como são ainda débeis as ações de ampliação do público por meios digitais. Salvo raras exceções de iniciativas para dinamizar a divulgação dos acervos, discussão de conteúdo e ampliação do contato virtual com o público, tudo permaneceu igual.

Vivemos de repente, e de maneira intensa, a necessidade de acelerar fortemente os mecanismos virtuais de consumo, circulação e produção de arte

A reação ao óbvio veio carregada de perversidade típica dos nossos tempos. Ao invés de atrair novas e férteis contribuições neste campo, as instituições cortaram gastos exatamente onde faziam falta, enxugando os setores de educação e comunicação. Segundo pesquisa realizada pela seção brasileira do Comitê para a Educação e Ação Cultural do Conselho Internacional de Museus (CECA-BR/ICOM) e da Rede de Educadores em Museus do Brasil (REM-BR), 24% das 147 instituições consultadas (em 19 estados) demitiram funcionários com medo da dupla crise, econômica e sanitária. Além disso, 74% dos consultados estavam realizando trabalho à distância e relataram graves dificuldades como falta de equipe para realização de projetos virtuais e impossibilidade de acesso aos acervos das instituições (obras, documentos etc.).

Além de claras limitações materiais, a falta de intimidade com conteúdos digitais, a inexistência de bases de dados virtuais, a dificuldade em transpor uma relação entre público e arte, que demanda um contato físico, estão entre as principais dificuldades enfrentadas por aqueles que pretendem estabelecer novas formas de fruição, que permitam ao público iniciar ou dar continuidade a uma relação com o universo da arte. Vivemos de repente, e de maneira intensa, a necessidade de acelerar fortemente os mecanismos virtuais de consumo, circulação e produção de arte. Não se trata de substituir a relação entre obra e espectador, mas sim de desenvolver novas formas e critérios para isso, desafio que se coloca para museus, galerias, arquivos e instituições de arte em todo o mundo.

A arte em xeque: os desafios do virtual
“Novos Empreendimentos”, de Eduardo Verderame, também na revista “Pandemia”, 2020. Foto: Cortesia NaBorda.

Ferramentas vêm sendo criadas para isso e há uma série de projetos de formação e disseminação dessas estratégias, como o Abre-te Código, desenvolvido pelo Instituto Goethe em parceria com Coding da Vinci, Conselho Internacional de Museus no Brasil, Creative Commons BR, Wiki Movimento Brasil, Fundação Bienal de São Paulo, Instituto Moreira Salles e Itaú Cultural. O projeto, que teve início no mês de junho e terá três meses de duração, tem por objetivo realizar uma capacitação em rede, disponibilizando ao público uma série de discussões e estudos de caso que tratam de aspectos como legislação, sistemas, processos e tecnologia. O coordenador do projeto no Brasil, Leno Veras, faz questão de ressaltar o enorme potencial desse tipo de ação, que vai muito além de emular a experiência de uma visita ao museu. Segundo ele, o caminho é articular contextos, promover novas experiências e estimular uma maior participação do público. “As instituições precisam entender que a tecnologia não é fim, é meio”, afirma.

É possível, no entanto, imaginar que a crise atual venha acelerar uma reação por parte das instituições, tornando mais ágeis e criativas as formas de contato com o público. É o caso por exemplo da iniciativa tomada pela 12ª Bienal do Mercosul que, ao invés de adiar sua realização, optou por realizar o evento online. Outras instituições de fôlego, como o Masp e a Bienal de São Paulo, vêm tentando conquistar o público com uma oferta crescente de lives, destaques de acervo e exposições virtuais. É o caso por exemplo da mostra Distância, organizada pela Pinacoteca com curadoria de Ana Maria Maia, que põe em diálogo cinco videoartes do acervo do museu, nas quais se veem pessoas em situação de distanciamento, físico mas também social, de raça ou gênero.

É possível imaginar que a crise atual venha acelerar uma reação por parte das instituições, tornando mais ágeis e criativas as formas de contato com o público

Seguir exemplos internacionais de sucesso, como os bem realizados sites de museus como o Prado ou o British Museum – que reúnem um volume enorme de informações que o visitante pode consultar de maneira ágil e a partir de focos bastante precisos e pessoais – pode parecer um sonho impossível num momento em que falta mão de obra, tempo e dinheiro. Daí a importância das iniciativas em rede, coletivas, autogestionadas que, mesmo tendo alcance menor, tem um efeito randômico e libertador. Uma delas é a iniciativa do portal-revista-museu NaBorda, de realizar uma edição especial dedicada à pandemia.

O projeto reúne trabalhos de dezenas de artistas, de diferentes gerações, que se debruçam sobre esse momento delicado, desafiante e assustador. Alguns trabalhos são comentários mais diretos sobre o momento político e social atual – como a terrível Novos Empreendimentos, de Eduardo Verderame, que transforma os túmulos abertos massivamente em suntuosos lançamentos imobiliários, ou o ABC do Coronavirus, do nigeriano Ayò Akínwáné, que explicita o caráter excludente e racista das nossas sociedades. Outros lidam de forma mais poética com a sensação de suspensão que estamos vivendo, mostrando como são múltiplos e coletivos os caminhos, estratégias e ações para enfrentar esse mundo em interregno. Afinal, como sintetiza Verderame, “não são tempos fáceis e irão deixar marcas fortes na subjetividade de uma geração inteira”.

Tramas virtuais da arte na Bienal do Mercosul

Bienal do Mercosul
Rosana Paulino, Série Tecelã 4. Foto: Cortesia artista.

No dia 16 de abril foi aberta a 12ª edição da Bienal do Mercosul. Em pleno isolamento por causa da pandemia, a mostra não pôde abrir literalmente as portas para o público, mas resolveu respeitar o calendário previsto e adaptar a exposição para o mundo virtual. Essa iniciativa, ao mesmo tempo corajosa e arriscada, de certa forma virou a exposição ao avesso. O que deveria ser um grande encontro, marcado pela presença física, palpável, de um conjunto amplo de obras – muitas delas construídas in loco, em Porto Alegre –, acabou tornando-se uma conversa mais sutil, conceitual. A noção de coro, que muitas vezes é vital para uma exposição, acabou cedendo lugar para uma série de cantos solo, o que exige mais tempo de escuta, mas não chegou a afetar as linhas gerais que vinham conduzindo a pesquisa.

Rosana Paulino, Série Tecelã 4. Foto: Cortesia artista.

Intitulada Feminino(s): visualidades, ações e afetos, a Bienal 12 – como tem sido chamada – se propõe a mostrar uma visão plural, incorporando investigações poéticas, sensíveis, combativas e com forte componente autobiográfico, sobre o lugar social da mulher no mundo contemporâneo. Com 69 participações provenientes de 24 países diferentes, a seleção é bastante diversa. Pode ser considerada como um desdobramento da mostra Mulheres Radicais, antológica pesquisa sobre a produção artística das mulheres latino-americanas entre as décadas de 1960 e 1980 e que teve como co-curadora a argentina Andrea Giunta, que agora responde pela curadoria da Bienal 12. Além de incluir artistas consagradas já presentes na mostra histórica – que passou pela Pinacoteca do Estado em 2018 – como Carmela Gross, Vera Chaves Barcellos e Liliana Porter, Feminino(s) lança um olhar atento para a produção mais recente, incorporando questões como a necessidade de superar o conceito binário de sexualidade, acolhendo uma série de trabalhos que questionam estereótipos, denunciam qualquer forma de violência e abrem espaço para resgates identitários e de gênero. E, como núcleo de força, traz um conjunto amplo de artistas negras contemporâneas de origens diversas, como África e Caribe, mas sobretudo do Brasil.

Fabiana Lopes, pesquisadora que há mais de seis anos acompanha essa produção e foi convidada para ser uma das curadoras assistentes da 12ª Bienal do Mercosul, realizou uma ampla seleção com mais de 20 artistas afrodescendentes, com idades, questões e poéticas bastante distintas, muitas delas ainda pouco conhecidas no circuito nacional e latino-americano. Mesmo diante da impossibilidade de constatar o que resultaria da articulação desses trabalhos num mesmo espaço (questão que, segundo Fabiana, foi central ao longo do processo de seleção), o exame atento das propostas e das obras descortina uma produção potente e promissora. Há uma força de conjunto, um forte peso de aspectos como memória, ancestralidade, descolonização e crítica ao racismo, bem como poéticas e questões próprias e particulares, como a trama criada por Aline Motta combinando suas experiências na Nigéria e no Vale do Paraíba; o uso da cor como expansão de sentido, proposta por Juliana dos Santos; ou o “Jardim da Abolição”, projeto de Musa Mattiuzzi que reuniria 111 vasos com plantas de poder da cultura afro-brasileira, como forma de reativação de conhecimentos.

Janaína Barros, “Psicanálise do cafuné catinga de mulata”. Foto: Divulgação.

São muitos os trabalhos que partem da ideia de trama, bordado, novelo, aspectos vinculados à feminilidade e também à necessidade de resgate e construção de uma identidade. Helô Sanvoy, um dos poucos homens presentes na seleção, registra sua mãe contando histórias enquanto lhe faz tranças. Em “Bombril”, Priscila Resende usa os próprios cabelos para dar brilho em utensílios de cozinha, numa ironia ácida contra o preconceito racial. E a sul-africana Lungiswa Gqunta recobre de tecidos metros e metros de arame farpado, encapando-os e neutralizando seu poder de ferir, num processo que tem muito de proteção e cura.

Em suma, mesclam-se na Bienal – que exige tempo e paciência para  ser visitada virtualmente – um manancial de questões, que têm servido como fios condutores para o trabalho do setor educativo, sob a coordenação de Igor Simões. Se já tinha uma importância central na Bienal 12, o educativo acabou adquirindo um protagonismo ainda maior pelas circunstâncias de isolamento. Igor faz questão de ressaltar que o trabalho educativo é para o público em geral e não apenas para os professores, numa ação que se irradia pelos mais diferentes públicos e assumindo formas distintas, como propostas de intervenção e reflexão compartilhadas pelo site; organização de lives; o jornal virtual que reúne textos dos artistas e está disponível online. “Apostamos ainda na ideia de encontro”, diz ele.

Carmela Gross, “Rouge”. Foto: Divulgação

“Fizemos um esforço muito grande de criar ferramentas novas”, afirma Andrea Giunta. Segundo ela, essa decisão decorre do fato de que não temos nenhuma certeza do que irá acontecer. Há evidentemente um desejo de viabilizar alguma experiência concreta de exposição, seja com uma abertura tardia, seja por meio de encontros mais pontuais ou de itinerâncias. “Mas acho que o mundo da arte agora tem que ter uma responsabilidade com o presente. A normalidade não vai voltar tão cedo”, conclui. ✱

Uma bienal de três anos

Søren Behncke, "Sorry No Image Available", 2012. Imagem que ilustra texto do curador Francesco Stocchi na série de correspondências do site da Bienal de São Paulo.

A 34ª edição da Bienal de São Paulo foi oficialmente adiada e deverá ocorrer entre os dias 4 de setembro e 5 de dezembro de 2021. A decisão, aprovada por unanimidade pelo conselho da instituição, é consequência direta da pandemia do novo coronavírus. Em março, a mostra já havia sido postergada por um mês, mas as incertezas em torno do retorno à rotina regular acabaram levando a um reescalonamento mais seguro. Segundo o presidente da Fundação, José Olympio da Veiga Pereira, seria necessário começar em breve os trabalhos de montagem da mostra, o que colocaria muitas pessoas em risco. Além disso, a enorme paralisia no turismo nacional e internacional desestimula a realização de um evento de tamanha dimensão.

Esse adiamento exigiu também a tomada de outras medidas de adaptação, como a alteração do calendário geral da mostra, que volta a ocorrer oficialmente em anos ímpares, como aconteceu desde sua inauguração até 1991, e o prolongamento do mandato da atual diretoria, que foi estendido até dezembro de 2021. Iniciativa semelhante já havia sido tomada em maio pela Bienal de Veneza.

O conceito norteador da Bienal, intitulada “Faz escuro, mas eu canto” permanece o mesmo. A mostra se estruturará em torno de algumas linhas temáticas que se entrelaçam, como as noções de resistência, circulação, opacidade e enclausuramento. Questões que, quando vistas a partir da nossa situação atual, adquirem novos e complementares significados que, segundo o curador Jacopo Crivelli Visconti, devem ser incorporados ao projeto da 34ª Bienal. “Existem aspectos que já estavam presentes nas obras, que apontavam nessas direções, mas que se tornaram mais evidentes agora”, explica ele. “Insistir no planejado seria um erro, temos que estar abertos”, acrescentou. Apesar de a lista definitiva de artistas estar praticamente pronta, ela só deverá ser divulgada em sua versão definitiva em março ou abril de 2021, dando aos curadores um tempo extra de reflexão e para possíveis alterações.

Infelizmente, não será possível realizar os eventos programados para acontecer ao longo do ano. De acordo com o calendário original seriam organizadas três exposições e três performances ao longo do ano, mas só foi possível concretizar a mostra de Ximena Garrido-Lecca, inaugurada em fevereiro, e a performance de Neo Muyanga. Para manter ativa a discussão em torno da mostra e o intercâmbio com um circuito amplo, a Bienal planeja fazer uso das ferramentas virtuais, continuar as publicações de correspondências curatoriais (que vem sendo divulgadas no site) e promover uma série de encontros online envolvendo artistas, estudiosos e curadores. “Nosso objetivo é trabalhar a exposição como se fosse um ensaio aberto, compartilhado com o público”, explica Visconti.

Também está programado o lançamento de uma publicação digital, uma espécie de livro de artista que congregará uma série de trabalhos comissionados. Outra proposta, a ser avaliada conforme a evolução do quadro epidêmico, é realizar ainda este ano uma pequena mostra coletiva, reabrindo o Pavilhão ao público, substituindo assim os eventos cancelados e fortalecendo uma das ambições do projeto: criar uma Bienal que se estenda no tempo e no espaço, permitindo ao público vivenciar uma mesma produção artística em diferentes contextos e momentos. Em relação à ampla rede de parcerias que a Bienal havia criado para a realização de cerca de 25 exposições paralelas ao evento principal, Visconti explica que os casos serão trabalhados individualmente, avaliando as circunstâncias de cada projeto individual.

Do ponto de vista orçamentário, José Olympio afirma que a pandemia afetou as contas da Bienal, mas não de maneira insuperável, pois a instituição conta com mais de 20 parceiros estáveis e vem ampliando sua rede de apoio. Segundo ele, o principal obstáculo, até agora, foi a impossibilidade de alugar o espaço do Pavilhão, que responde por parcela importante das receitas.

Colaboradores da edição #51

Luciara Ribeiro é educadora, pesquisadora e curadora. Mestra em história da arte pela Universidade Federal de São Paulo e pela Universidade de Salamanca. Tem graduação em história da arte também pela Universidade Federal de São Paulo.  Interessa-se por questões relacionadas à decolonização da educação e das artes e pelo estudo das artes não ocidentais, em especial as africanas, afro-brasileiras e ameríndias.


Moacir dos Anjos é pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco. Foi curador da 29ª Bienal de São Paulo (2010) e das mostras Cães sem Plumas (2014), A Queda do Céu (2015), Emergência (2017) e Quem não luta tá morto. Arte democracia utopia (2018). É autor dos livros Local/Global. Arte em Trânsito (2005), ArteBra Crítica (2010) e Contraditório. Arte, Globalização e Pertencimento (2017).


Naiara Tukano pertence ao povo Yepá Mahsã da região do Alto Rio Negro, Amazonas, Brasil. Mãe, advogada e ativista, desenvolve projetos que podem contribuir para o fortalecimento cultural e espiritual dos povos nativos. Trabalha como curadora do projeto Sawé junto com o Sesc. Nesta edição, contribui com a discussão sobre os monumentos e a memória.


Maria Hirszman é jornalista e crítica de arte. Trabalhou no Jornal da Tarde e no Caderno 2 d’O Estado de São Paulo.  É pesquisadora em história da arte, com mestrado pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo. Para este número, escreveu sobre as bienais de São Paulo e do Mercosul e sobre as variadas iniciativas virtuais em tempos de pandemia.


Fabio Cypriano, crítico de arte e jornalista, é o atual coordenador do curso de Jornalismo da PUC-SP e faz parte do conselho editorial da ARTE!BRASILEIROS. Para esta edição escreveu sobre a Bienal de Berlim, a Manifesta 13 e o debate sobre o que fazer com os monumentos em homenagem aos bandeirantes no Brasil.


Editorial: Documento da perplexidade

Aline Motta, "Escravos de Jó", trabalho que ilustra a capa desta edição.

Esta edição é um documento dos 100 dias que atravessamos, até aqui, acompanhando as notícias da morte de mais de 60 mil brasileiros e mais de meio milhão de cidadãos vítimas de Covid-19 ao redor do mundo.

Como a sociedade e a arte, perplexas, conseguiram enfrentar esta enorme provação? Como a arte se pronunciou? Como sofreu e sofre junto?

No caso do Brasil, o negacionismo do governo e sua falta de uma política clara, homogênea e enérgica de saúde pública, transformou nosso dia a dia num duplo pandemônio. Não basta lutar contra o vírus, é preciso lutar também contra o autoritarismo e a ignorância.

Frente ao vírus, sua invisibilidade teve a capacidade de fazer visíveis a falta de cuidado de anos com as populações mais carentes. Onde não há saneamento o vírus se propaga com mais facilidade. Ficaram visíveis, escancaradas, mazelas seculares.

A violência do racismo; o ataque ao meio ambiente e aos povos indígenas, tão importantes na sua manutenção; a falta de auxílio na saúde; o lugar da mulher que, além de trabalhar, cuida da família. Politicamente, trouxe à tona grandes setores da sociedade totalmente descompromissados com o outro, com a empatia, com a solidariedade.

Nesse sentido, abriram-se novos caminhos de reflexão e denuncia. Nesta edição, artistas indígenas, negras, curadores e especialistas refletem sobre diversos movimentos que nestes meses irromperam contra a iconoclastia colonial que esteve aí desde sempre. Monumentos e esculturas e sua função histórica, são questionados.

Ao mesmo tempo, apareceram novas articulações de grupos independentes, buscando dar conta da falta de Estado. A organização de sistemas de doações. A ressignificação de tarefas, a organização de reuniões virtuais. A comunicação de cancelamentos e adiamentos, procurando privilegiar a saúde contra as aglomerações. Tudo isto exigiu esforços das instituições, empresas e profissionais que não estavam preparados tecnologicamente.

Da esq. para a dir., acima, a diretora editorial Patricia Rousseaux e o programador e editor web Coil Lopes; abaixo, o designer gráfico Enelito Cruz e os repórteres Miguel Groisman e Marcos Grinspum Ferraz

A maioria dos artigos, ensaios e reportagens desta edição conseguem fazer um balanço de como, nos diferentes setores da comunidade artística e cultural e, em vários setores da sociedade como um todo, há uma busca de redefinições de comportamentos. Gestores dos mais importantes museus falam aqui das suas preocupações, galeristas comentam o quanto o mercado da arte foi atingido e revelam novos caminhos para se reerguer.

Nas palavras do líder indígena Ailton Krenak, organizador da Aliança dos Povos da Floresta, no seu último livro O amanhã não está à venda, “tomara que não voltemos à normalidade, pois, se voltarmos, é porque não valeu de nada a morte de milhares de pessoas no mundo inteiro”.

Fiquemos todos com saúde e boa leitura.

 

Bandeirantes em movimento: entre disputas e conciliação

bandeirantes monumentos
Maquete do Monumento às Bandeiras, de Victor Brecheret

Em 1985, no primeiro número de Chiclete com Banana, Luiz Gê publicou a historieta “Entradas e Bandeiras”. Nela, um casal de paulistanos – Arnaldo e a esposa –, parado dentro de um carro no cruzamento da Brigadeiro Luiz Antonio com a Avenida Brasil, foi impedido de seguir porque um indígena se postou na frente dele. O índio, monstruosamente grande, bloqueava o cruzamento para que um estranho cortejo passasse: eram os demais integrantes do Monumento às Bandeiras, de Victor Brecheret (situado ali ao lado, no Parque Ibirapuera), caminhando pela avenida, em direção ao Morro do Jaraguá.

Instalados naquele local desde 1953, os integrantes do Monumento, por ordem e graça de Luiz Gê – e depois de vinte e dois anos –, se colocavam em movimento por uma cidade muito diferente daquela que viu o monumento ser erguido no Parque, num tempo e num espaço completamente distintos da São Paulo onde, supostamente, viveram aqueles que teriam servido de matriz para o grupo escultórico de Brecheret[1].

O que aconteceria com os integrantes do Monumento às Bandeiras durante aquela caminhada? Contarei no final deste texto. Antes, seria interessante chamar a atenção para um fato que poucos conhecem: até serem instalados na entrada do Parque Ibirapuera, os bandeirantes – ou os projetos de monumentos que deviam homenageá-los – mantiveram-se em movimento constante pela cidade.

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Desde o início do século passado, segmentos importantes da sociedade paulistana pensavam em homenagear os bandeirantes, entendidos como os pais da “pátria paulista”; por décadas tais projetos foram idealmente situados em locais os mais diversos da cidade, forçando os bandeirantes a migrarem de região a região, sempre a serviço dos projetos e projeções que os paulistanos da época faziam do seu próprio futuro e do seu próprio passado.

Ao que se sabe, a primeira ideia de um monumento que homenageasse os bandeirantes surgiu em 1912, em um artigo publicado em vários segmentos pelo engenheiro Adolfo Augusto Pinto, em O Estado de São Paulo[2]. Sua ideia era contribuir para as transformações pelas quais a cidade deveria passar para, dali a dez anos, sediar as comemorações do Centenário da Independência. No seu pensamento, aquela data não deveria ficar marcada em São Paulo apenas pelo Monumento à Independência que já povoava a mente de muitos paulistanos. Era preciso transformar a cidade como um todo, tendo em mente seu crescimento intenso e pensar em novas avenidas, novos parques, novos monumentos que dessem a ela a distinção de ser, ao lado de Buenos Aires e da Capital Federal, uma primorosa metrópole europeia em plena América do Sul. Das transformações que Pinto propunha para a melhoria de São Paulo, destaca-se a de um parque público, às margens do Tietê:

Enfim, um grande parque destinado a ser frequentado pela massa popular de uma grande cidade e em termos de ser ao mesmo tempo o “rendez-vous” da sociedade elegante, não pode deixar de ser situado nas proximidades do centro urbano, de recomendar-se pela beleza da avenida de acesso, assim como pela facilidade e barateza dos meios de transporte ao seu serviço.

Para o acesso ao Parque, a Avenida Tiradentes deveria ir até o rio, e seria justamente na grande avenida que surgiria o monumento em homenagem aos bandeirantes:

A Avenida Tiradentes, estendendo-se então desde a estrada inglesa até as barrancas do Tietê, já seria por si um belo boulevard e elegante via pública, muito teria a ganhar sob o ponto de vista decorativo se, no ponto de deflexão de sua primeira grande reta, fosse interrompida a dupla arborização para aí abrir-se um claro circular, a semelhança do around point da Avenida dos Campos Elíseos, em Paris, destinado a ser embelezado por uma suntuosa obra de arte, a qual não poderia ser senão o monumento aos Bandeirantes.

Para Adolfo Pinto, São Paulo devia essa homenagem aos “legendários mamelucos” porque teria sido dali – “palmilhando o chão dessa mesma avenida Tiradentes” – que eles haviam conquistado o interior do país. E continuava:

Em sua grande espiritualidade histórica, o monumento aos Bandeirantes, representará o traço de união da velha alma paulista, em seus primeiros lances de arrojada iniciativa e rude intrepidez, com o culto espírito de energia, ação e progresso das gerações sobrevindas (…)[3]

Como se sabe, durante os anos 1910 e 1920, Adolfo Pinto se notabilizará por suas contribuições para transformar São Paulo em uma metrópole repleta de símbolos que a colocassem como portadora de um passado enobrecido pelo heroísmo de seus pioneiros, uma metrópole por eles plasmada na América do Sul sob a égide do catolicismo, e repleta de símbolos dessas suas singularidades[4].

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Em 1920, causa alvoroço no pequeno universo de intelectuais e artistas modernistas que então se formava em São Paulo, a maquete para o Monumento às Bandeiras que o então jovem escultor Victor Brecheret apresentava ao público e aos governantes. Onde seria instalado esse monumento? Em qual lugar de São Paulo? Até hoje não se sabe ao certo[5]. Mais do que uma “mera” conclusão estética de alguma equação urbanística, o Monumento às Bandeiras era uma tomada de posição “nacionalista”, contrária à ideia de que a comunidade portuguesa local presenteasse São Paulo com um monumento em homenagem aos bandeirantes, produzido pelo escultor lusitano Teixeira Lopes.

bandeirantes monumentos
Maquete do Monumento às Bandeiras, de Victor Brecheret. Foto: Reprodução

Para os modernistas soava como uma afronta os portugueses pensarem que a “epopeia” bandeirante pudesse ser pensada como sendo lusitana, e não paulista. Menotti Del Picchia, se opondo à doação portuguesa, mostra a guerra entre narrativas então existente entre os grupos (ou povos, ou “raças”) que deviam merecer o reconhecimento como protagonistas na construção do país:

Os filhos do Brasil eram tão brasileiros na colônia lusitana, como o são hoje na República. Não há, pois, ilusões: O Brasil foi feito pelos brasileiros.
A admitir-se a tese portuguesa […] “As Bandeiras” eram proezas dos lusitanos, o que S. Paulo conseguiu com o fruto do esforço dos filhos da Itália é italiano… Isso é monstruosamente absurdo. O nosso nativismo repele esse enxerto de nacionalidades estranhas dentro da nossa pátria.
Posta a tese neste pé, estabelecidos os marcos do que pertence, no nosso passado, a cada povo, evitando que os últimos caciques vivos na selva reivindiquem ao Brasil dos brasileiros os trabalhos dos índios de João de Barros, Duarte Coelho Pereira, Pereira Coutinho, Jorge Correa, Pedro Tourinho, Pero Góes, Mem de Sá e outros donatários e governadores; que os negros da Costa da África nos peçam conta do esforço do braço escravo – direitos nesse caso. Iguais aos dos lusitanos – não me resta mais que ver nas “Bandeiras” a epopeia máxima dos paulistas, únicos fixadores do arcabouço da nossa pátria[6]

Nessa visão, como se percebe, somente os paulistas (brancos, é de se supor) entrariam na composição das bandeiras. Tal posição, por sua vez, esclarece algumas das características encontradas na maquete do Monumento de 1920. Tendo sido del Picchia quem instruíra o escultor sobre a história dos bandeirantes[7], entende-se perfeitamente a razão para que, no núcleo principal da composição, só tivessem sido representados os paulistas (brancos). Na maquete não existia a representação de negros e, os indígenas, bem, os indígenas estavam relegados a duas figuras laterais, símbolos das insídias que espreitavam os bandeirantes nos sertões.[8]

Nos textos de época publicados, não foi encontrada nenhuma notícia sobre o local em que esse monumento deveria ser localizado. Naquele momento, acredito, não se fazia premente justificativas de cunho urbanístico. Mais do que qualquer racionalidade, cabia apenas reivindicar a precessão dos paulistas na narrativa sobre o bandeirismo. Para comprovar que o debate era mais ideológico do que prático é importante lembrar que também não se noticiava onde os membros da colônia portuguesa visavam situar o monumento que gostariam de doar para a cidade.

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Teixeira Lopes chegou a produzir uma maquete do seu monumento? Não se tem notícia a respeito [9]. Já a maquete de Brecheret foi doada para a Pinacoteca de São Paulo, após sua exposição, uma vez que as autoridades paulistas não se interessaram em levar adiante a produção do Monumento[10]. E por que isso teria ocorrido?

Os modernistas pouco esclareceram sobre essa falta de interesse, sendo que del Picchia lamentou a “falta de bandeirantes modernos” que pudessem bancar a edificação do grupo escultórico[11].

A historiografia modernista, por sua vez, será discreta ao se referir ao fato de que as autoridades paulistas não se interessaram pelo monumento proposto por Brecheret porque já haviam se comprometido com o projeto de outro artista italiano residente em São Paulo – Nicola Rollo. O monumento concebido por Rollo – Heroísmo dos Bandeirantes –, possuía um local determinado para ser instalado: o primeiro lance das escadarias sobre a bacia d’água afrontando os jardins do Museu Paulista[12].

Segundo a estudiosa Maria Cecilia M. Kunigk, o monumento era dividido em três partes distintas, mas complementares, formando uma unidade indivisa:

Representando os “Heróis” na parte central do monumento, estaria uma figura feminina austera e mítica, sobressaindo-se da proa de uma barca sobre um pedestal elevado […] os “Conquistadores”, do lado esquerdo do monumento, representando os primeiros homens a descravar novas terras, englobariam símbolos dos colonizadores impetuosos; e, por fim, do lado direito, os “Fecundadores”, simbolizando a tomada da terra, o trabalho do solo, a agricultura, representando a etapa final da conquista […][13]

Esse projeto de Rollo faria parte de um complexo viário monumental, ligando o Museu Paulista ao centro da cidade por meio de uma grande avenida, decorada com parques em “estilo inglês” e monumentos que louvassem a importância de São Paulo dentro da história do Brasil. O Heroísmo dos Bandeirantes deveria ficar no sopé do Museu, entre esse e o Monumento à Independência, de autoria de Ettore Ximenez – cuja construção seria iniciada no ano seguinte[14]. Mais para frente, na intersecção entre essa avenida monumental e a Avenida do Estado, deveria ser levantado ainda um “obelisco alegórico” à República[15]. A mensagem dos paulistas não poderia ser mais clara: São Paulo, tendo por base a herança bandeirista, tornara possível não apenas a independência do país, como também a própria República.

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Segundo Konigk, Rollo teria iniciado seu trabalho, levantando o monumento em argila, em tamanho definitivo, em seu estúdio no Palácio das Indústrias. Porém:

Para sua edificação, seria necessário, contudo, a conclusão da reurbanização do parque que formaria os jardins do Museu, fazendo com que o artista dependesse de terceiros para dar prosseguimento a seu trabalho […] o artista precisou aguardar a finalização das obras do jardim para ter a aprovação definitiva de sua obra, o que ocorreria somente por volta de abril de 1924 […].[16]

Mas 1924 também foi o ano da Revolução comandada pelo General Isidoro Dias Lopes, visando depor o presidente Artur Bernardes. O Palácio das Indústrias foi tomado pelos rebeldes e Rollo, impedido de continuar o trabalho com a maquete definitiva. Ressecada, em breve a maquete se deteriorou por completo.

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Projeto: Ponte Grande, 1930, de Prestes Maia. Foto: Reprodução.

Especula-se que o projeto de Rollo, Heroísmo dos Bandeirantes, teria ainda uma sobrevida: em um estudo de 1930, ao menos parte dele seria usada no projeto que Francisco Prestes Maia propunha para sua monumental Ponte Grande (atual Ponte das Bandeiras), uma memorial bridge que deveria ligar a cidade ao outro lado do rio Tietê.

Prestes Maia pensava construí-la em dois grandes arcos, que se encontrariam no centro do Tietê, (alargado naquela região), numa pequena ilha artificial. Por sua vez, essa ilha abrigaria um monumento em homenagem aos bandeirantes. É preciso que se diga que, em nenhuma parte do texto, como será visto, Prestes Maia cita o monumento de Rollo como sendo a matriz de onde ele retiraria a decoração principal para a sua Ponte Grande.

Seria importante sublinhar a razão para o arquiteto desejar homenagear os bandeirantes com aquela ponte/monumento:

Os acontecimentos memorados pela Ponte Grande são as “bandeiras”. Já um monumento aos bandeirantes fora iniciado pelo Governo no Parque Ipiranga e outro projetado pela Prefeitura à margem do Tietê. Agora imaginamo-lo não à margem, em situação secundária, mas no centro mesmo do rio, como uma grande proa a emergir das águas, voltada para a jusante, justamente na direção do sertão, que o paulista devassou e que é ainda, dentro do Estado, a “terra prometida”.[17]

Note-se que, no texto, Prestes Maia não cita explicitamente o projeto de Nicola Rollo, mas alude, tanto ao monumento que se pensou fazer no “Parque Ipiranga”, quanto o outro, “à margem do Tietê”[18]. Embora ele faça referência a “uma grande proa a emergir das águas” – um elemento que igualmente constava no estudo de Rollo – também na sequência da descrição sobre a ponte projetada, ele não citará o monumento concebido por escultor italiano:

O projeto acha-se concebido em estilo moderno. Os pilones e o monumento principal reduzem-se a uma casca de pedra ou granilito […] sobre esqueleto de cimento armado. Tudo liso e simples, o que fará valer as esculturas. Mas não a nudez ou a estéril abstenção decorativa do pseudo racionalismo. Como diz o professor de Viena, “nem todo o necessário é bonito, nem todo o supérfluo é feio”.
O grupo central inferior compõe-se de grandes figuras simples, ligeiramente rígidas e geométricas, – ao gosto da época e da arquitetura circundante. Ainda mais que os outros grupos o seu valor será sobretudo de massas e de silhueta. Esta explicação responde de antemão a diversas objeções. Trata-se dum monumento destinado a produzir essencialmente efeitos de massa e não a exibir estatuária delicada.
O grupo inferior representa uma “bandeira”; os que encimam os pilones figuram episódios e lendas referentes à época; o grupo de coroamento é puramente simbólico. A representação realística, aliás perigosa na arte monumental é no caso secundária, dado o caráter da obra.
A decoração reduz-se quase exclusivamente a dois motivos: aos escudos das cidades ribeirinhas (São Paulo, Mogi, Tietê etc.) e a anhuma estilizada. Sabe-se realmente que este curso d’água era o Tieté-Anhembi, o “rio grande das anhumas”.[19]

Comparando essa concepção com a descrição que Maria Cecilia M. Kunigk fez do Heroísmo dos Bandeirantes (citada acima), parece evidente existir pontos de contato evidentes entre a ideia de Maia e o projeto de Rollo.

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Da Avenida Tiradentes ao Parque do Museu; da Praça da Sé ao meio do Rio Tietê, como sabemos, os bandeirantes acabaram parando no início do Parque do Ibirapuera, por meio do Monumento às Bandeiras, de Victor Brecheret, não gratuitamente nas bases da Avenida Brasil, voltados para o Jaraguá.

Embora o projeto original de Brecheret seja de 1920, até o início da implantação do Monumento, em 1936, ele passou por uma série de transformações, sublinhando as mudanças que ocorriam na poética do artista, e que se manifestavam em desenhos, projetos para outros monumentos etc.[20]. Mas não apenas.

Mesmo que se leve em conta o rigor formal desse que, sem dúvida, é o monumento escultórico esteticamente melhor concebido da cidade, o Monumento às Bandeiras aponta para uma proposta de conciliação das elites paulistas para com o restante da população. Quem domina o Monumento são os dois homens a cavalo – o branco “superior” e o mameluco, seu descendente “direto” –, mas, se no projeto original os negros estavam fora da proposta e os indígenas simbolizados como as mazelas da selva, nessa nova versão eles configuram o “povo”, a nação e suas distintas etnias comandadas pelos brancos e seus apaniguados. É que os paulistas haviam perdido a Revolução de 1932 e, assim, deviam ir com calma em sua reinserção no plano simbólico e real do Brasil.

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Retomo agora “Entradas e Bandeiras”, de Luiz Gê, de 1985, ano de início da abertura política, quando o país começa a sair das agruras do regime civil-militar, instituído em 1964.

Assim que passa o cortejo pelos olhos atônitos do casal, Arnaldo resolve finalmente seguir viagem. Mas, surpresa: eis que Borba Gato aparece correndo, vindo de Santo Amaro, em busca dos amigos do Monumento. Atrasado, o bandeirante deselegante, concebido por Júlio Guerra, destrói o carro, Arnaldo e sua esposa.

“Entradas e Bandeiras” pode ser lida apenas como uma divertida história em quadrinhos ou, então, como uma forte alegoria do Brasil e dos brasileiros, que ressurgiam após aquele período obscuro. Corriam os bandeirantes para a luz no fim do túnel ou ali haveria um alçapão?[21]

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[1] – “Entradas e bandeiras”, de Luiz Gê. Chiclete com banana. N.1, 1985.
[2] – O artigo de Adolfo A. Pinto, “A transformação e o embelezamento de São Paulo”, foi publicado em O Estado de São Paulo, entre 12 e 24 de novembro de 1912.
[3] – “A transformação e o embelezamento de São Paulo III”. O Estado de São Paulo. 14 de novembro de 1923, p. 3.
[4] – Para um apanhado geral sobre as intervenções de Adolfo A. Pinto, consultar, do autor: “O engenheiro e o monumento”. ARTE!brasileiros, 18 de dezembro de 2019 e “O pantheon do imortais de São Paulo: Delírio Tropical no Pátio do Colégio”. ARTE!brasileiros, 24 de junho de 2020.
[5] – Marta Rossetti Batista, citando um manuscrito de Mário de Andrade, afirmou que o poeta “aventara a hipótese de vê-lo erguido na Praça da Sé”. (In BATISTA, Marta R. Bandeiras de Brecheret: história de um monumento (1920-1953). São Paulo: Departamento do Patrimônio Histórico, 1985 pag. 53). Ao que se sabe, esta é a única referência à possível localização do Monumento, em 1920.
[6] – “Dois Monumentos. Os paulistas e os portugueses renderão uma homenagem a S. Paulo”, Menotti del Picchia. A Gazeta. São Paulo, 28 de junho 1920. In BATISTA, Marta R. Bandeiras de Brecheret: história de um monumento (1920-1953). São Paulo: Departamento do Patrimônio Histórico, 1985 pag. 25.
[7] – Em texto de 1969, Menotti del Picchia reafirma seu papel como mentor de Brecheret para questões relativas à história dos bandeirantes, em 1920: “Formado artisticamente na Europa, para onde seguira muito moço, ignorava muito da nossa terra e quase tudo da nossa história. Foi com surpresa e entusiasmo que conheceu por mim, a grandiosidade da epopeia bandeirante”. E vai mais longe: “Foi talvez a impressão plástica desse relato que lhe sugeriu então a linha ascensional e processional do grupo mateiro. É ela a espinha dorsal do majestoso monumento”. “História de um Monumento (1)” Menotti del Picchia. Diário de São Paulo, 26 de junho de 1969. Republicado em: PELLEGRINI, Sandra B. Brecheret 60 anos de notícia. São Paulo: Companhia Melhoramentos de São Paulo, s.d.
[8] – Ver “Memorial descritivo da maquete do Monumento das Bandeiras”. Papel e tinta. SP e RJ, jul. 1920. (In Marta R. Bandeiras de Brecheret: história de um monumento (1920-1953). São Paulo: Departamento do Patrimônio Histórico, 1985 pag.29). Conforme será visto, essa característica não permanecerá no projeto definitivo do Monumento posteriormente erigido na entrada do Parque Ibirapuera.
[9] – Até o momento não se possui nenhum dado sobre o projeto para o monumento, de autoria de Teixeira Lopes. Teme-se, inclusive, que tal projeto – ou esboço – nem mesmo exista. Em todo caso, estamos entrando em contato com colegas portugueses para ver se encontramos algo, ou algum documento, em Portugal.
[10] – A maquete do Monumento, concebida em 1920 e doada à Pinacoteca foi destruída acidentalmente em queda ocorrida nas dependências do Museu nos anos 1940.
[11] – “Crônica Social – Eva”. Correio paulistano. 15 de abril de 1021. Republicado em: PELLEGRINI, Sandra B. Brecheret 60 anos de notícia. São Paulo: Companhia Melhoramentos de São Paulo, s.d. p.31.
[12] – KUNIGK, Maria Cecilia M. Nicola Rollo (1889-1970). Um escultor na modernidade brasileira. São Paulo: Dissertação de Mestrado; Departamentos de Artes Plásticas ECA USP, 2001. P. 114.
[13] – Idem, pág. 110.
[14] – MONTEIRO, Michelli Cristine Scapol. São Paulo na disputa pelo passado: o Monumento à Independência de Ettore Ximenes. São Paulo. Tese de Doutoramento. FAU-USP, 2017, pág. 327.
[15] – “Avenida da Independência – A inauguração dos trabalhos de construção da grande via urbana”. Correio Paulistano. 6 de julho de 1919. Pág. 1.
[16] – KUNIGK, Maria Cecilia M. Nicola Rollo (1889-1970). Um escultor na modernidade brasileira. São Paulo: Dissertação de Mestrado; Departamentos de Artes Plásticas ECA USP, 2001. P. 116.
[17] – MAIA, Francisco Prestes. Estudo de um Plano de Avenidas para a Cidade de São Paulo. São Paulo: Companhia Melhoramentos de São Paulo, 1930, p. 351.
[18] – Essa segunda alusão se refere à ideia de Adolfo, A Pinto de construir um monumento em homenagem aos bandeirantes nas imediações do Tietê? Algo a ser pesquisado.
[19] – MAIA, Francisco Prestes. Estudo de um Plano de Avenidas para a Cidade de São Paulo. São Paulo: Companhia Melhoramentos de São Paulo, 1930, p. pág, 355 e 356.
[20] – Sobre o assunto, ler, entre outros: “Andar por São Paulo faz com que São Paulo também ande em nós”. Tadeu Chiarelli. In CHIARELLI, Tadeu. (cur.). Metrópole: experiência paulistana. São Paulo: Pinacoteca de São Paulo, 2017. Pág. 11 e segs.
[21] – Para uma outra interpretação de “Entradas e Bandeiras”, de Luiz Gê, consultar “O Monumento às Bandeiras como Processo: do presente ao passado”, de Thiago Gil de Oliveira Virava e Domingos Tadeu Chiarelli ,in  https://revistaquiroga.andaluciayamerica.com/index.php/quiroga/article/view/340/244

Somos todos responsáveis

Bienal Manifesta
Virgínia de Medeiros, still de "Trem em transe", 2019. A obra será mostrada na Bienal de Berlim. Cortesia da artista.

A 13ª Manifesta e a 11ª Bienal de Berlim serão abertas em agosto e setembro, respectivamente, apenas alguns meses após a Europa atravessar períodos de quarentena de forma radical, bem diferente do relativismo tropical-suicida brasileiro. Se há algo que caracteriza bienais é servir como um termômetro do presente. Então, a pergunta inevitável é como se torna possível seguir com as mostras concebidas antes desse momento tão dramático, marcado pelo colapso da saúde por um lado, e de  manifestações antirracistas decorrentes do assassinato de George Floyd por outro.

O que parece claro em ambas é que as duas bienais já partiam de questões que, se não previam um vírus como o que se alastrou pelo planeta, já apontavam para um quadro um tanto catastrófico. “Para nós, a pandemia deixa claro que os temas da 11ª Bienal de Berlim, como o combate ao fanatismo e ao extrativismo, a vulnerabilidade de indivíduos que vivem em campos ou situação de confinamento, a existência de corpos sexodissidentes, adquirem uma urgência maior”, afirmam as curadoras – o coletivo se autodefine na voz feminina – da mostra, María Berríos, Renata Cervetto, Lisette Lagnado e Agustín Pérez Rubio, em uma mensagem coletiva, por e-mail.

Carlos Pertuis, Sem Título, 1950. Óleo sobre papel, 36 x 54 cm. Foto: Cortesia Museu de Imagens do Inconsciente.

Segundo elas, “contra essa distopia, evidenciamos práticas artísticas que valorizam a reivindicação territorial, iniciativas de solidariedade como o eco e o hidrofeminismo, ou mesmo forças que se afirmam como autocurativas. Com a Covid-19, os países fecharam suas fronteiras, e todo o problema da mobilidade política ficou invisibilizado”.

Berlim, programada agora para ser aberta em 5 de setembro, foi concebida por um grupo de curadoras com pulsação latino-americana – Pérez Rubio, único europeu, encerrou em 2018 período de quatro anos à frente do Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires (Malba). A bienal já se apoiava no pensamento dissidente de pensadoras como Nise da Silveira (1905-1999). Com seu trabalho precursor no Centro Psiquiátrico do Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro, em proporcionar aos pacientes vivências em ateliês de pintura, ela foi também criadora do Museu de Imagens do Inconsciente. Obras criadas por dois pacientes foram selecionadas para irem a Berlim.

“O termômetro para entender o presente não difere tanto do diagnóstico da doutora Nise da Silveira, isto é, de que a humanidade carece de calor humano e de que ‘somos todos responsáveis’”, lembram as curadoras de Berlim.

Bienal Manifesta
Adelina Gomes, Sem Título. Óleo sobre tela, 1962, 64 x 53 cm, Museu de Imagens do Inconsciente. Cortesia do Museu.

O interesse pela produção artística de pacientes de institutos psiquiátricos encontra ressonância na figura do artista Flávio de Carvalho (1899-1973). Ele foi o criador do Clube dos Artistas Modernos (CAM), onde organizou, em 1933, o evento “Mês das Crianças e dos Loucos”, com o psiquiatra Osório Cesar, que também trabalhava arte com os internos do Hospital Psiquiátrico do Juqueri.

Por sua vez, o CAM é outra inspiração para a própria escala desta edição da Bienal de Berlim, sem anseios espetaculares, mas de forte enraizamento na periferia da capital alemã, já que a sede das primeiras atividades da mostra é no local onde eram fabricadas impressoras Rotaprint, no bairro operário de Wedding. Foi lá que a artista brasileira Virginia de Medeiros participou da exp. 2 com o coletivo Feministische Gesundheitsrecherchegruppe, um grupo feminista de pesquisa em saúde, entre novembro do ano passado e fevereiro deste ano.

Segundo as curadoras, a 11ª Bienal de Berlim foi “concebida de forma porosa e processual; o espaço experimental que abrimos ao público no ano passado em ExRotaprint nos permitiu apresentar as ideias que estavam esboçadas no projeto e ensaiar publicamente uma relação com a audiência local”. E resumem: “Não trabalhamos com uma moldura que veio pronta para ser simplesmente aplicada aqui; é sempre difícil trazer um contexto sem cair no exotismo e foi preciso calibrar muita coisa em termos discursivos.”

Além do ExRotaprint, a última “experiência da Bienal de Berlim, chamada de epílogo, vai ocorrer em outros três espaços: o Kunst-Werke (KW), sede original da mostra, o segundo andar do Gropius Bau, imenso espaço expositivo construído no século 19, perto da totalmente renovada Potsdamerplatz, e a galeria daad, no bairro de Kreuzberg, uma região de imigração turca.

Bienal Manifesta
“Paradise”, da artista francesa Martine Derain, que participa da Manifesta 13. Foto: Divulgação.

Grand Puzzle

A atenção à cultura local, à cidade onde a mostra se realiza tem sido uma marca e uma qualidade muito particulares da Manifesta, a bienal nômade que a cada edição acontece em uma cidade europeia.  Em 2020, a escolhida foi a cidade de Marselha – já está definido em que 2022 a Manifesta será em Pristina, no Kosovo – e a abertura agendada para o próximo 28 de agosto.

“Nosso público é composto por 75% dos visitantes regionais e agora, ainda mais do que antes, precisaremos transformar a bienal em uma plataforma de mudança social e cultural focada localmente, que possa ajudar a fortalecer as infraestruturas já existentes e tornar-se mais proeminente ajustada em direção ao que as comunidades precisam”, explica a holandesa Hedwig Fijen, diretora da Manifesta.

De fato, nas últimas edições, e especialmente a mais recente, em Palermo, a mostra focou bastante na cidade e agora, em Marselha, a diretora aponta que a tendência já tinha esse sentido: “A Manifesta 13 já estava bastante alinhada com algumas das demandas que agora enfrentamos, de avançar deliberadamente em direção ao local e em direção ao verdadeiro engajamento com a comunidade”.

Com um time de curadores internacionais, composto por Alya Sebti (galeria ifa, de Berlim), Katerina Chuchalina (Fundação V-A-C, de Moscou) e Stefan Kalmár (ICA, de Londres), uma das ferramentas para uma reflexão sobre a cidade é o Grand Puzzle, uma pesquisa urbana da MVRDV (de Winy Maas). “Trata-se de um estudo interdisciplinar que analisou Marselha e reuniu uma quantidade incrível de dados que serviu como uma ferramenta para contextualização, análise e inspiração a partir da qual os participantes da Manifesta 13 foram incentivados a se engajar no desenvolvimento de intervenções criativas que se envolvem com a cidade”, explica Fijen.

O Musée Grobet-Labadié, palácio do século 19 e um dos espaços que vai sediar a Manifesta 13 em Marselha
O Musée Grobet-Labadié, palácio do século 19 e um dos espaços que vai sediar a Manifesta 13 em Marselha. Foto: Divulgação.

Em Palermo, na edição passada, esse estudo foi realizado pelo escritório de arquitetura de Rem Koolhas, um excelente guia sobre a cidade italiana.

Tendo em vista as novas condições impostas pela pandemia, os locais que sediarão a exposição principal não abrirão mais todos juntos, com horários alternados para evitar multidões e sem a semana de abertura para convidados. “Em vez disso, o programa de lançamento será espalhado em um período de três meses, dividido em eventos ainda menores, como um festival”, conta.

A mostra, intitulada Traits d’union.s (tratados de uniões), irá ocorrer em seis espaços da cidade, nenhum deles com histórico em arte contemporânea, exceção do Museu de Belas Artes. Assim, a Manifesta segue produzindo intervenções que favorecem diálogos com a história local, ao colocar a produção atual em espaços inusitados como o Musée Grobet-Labadié, um palácio do século 19.

Com 47 participantes, entre eles muitos ligados à literatura, como Georges Bataille e Roland Barthes, a presença brasileira nesta edição vem com Benjamin de Burca & Bárbara Wagner.

Voltada ao local e com engajamento da comunidade, a Manifesta se revela uma referência importante quando o mundo da arte dá uma parada e precisa se reinventar para além do incansável circuito vip, dos eventos caros e desnecessários. ✱

Ao longo dos seus 70 anos de existência, o SESC São Paulo compõe um significativo acervo de arte brasileira.

Obras de arte traduzidas nos mais diversos suportes e técnicas, evidenciando artistas que se destacaram na cena paulistana e brasileira em diferentes períodos. Preservar e difundir esse acervo corresponde a um dos múltiplos compromissos da instituição com a democratização do acesso à cultura e se concretiza pelo estímulo à sensibilidade e à aprendizagem através do olhar.

No vídeo abaixo faça um passeio conosco pelas unidades e conheça algumas das importantes obras que estão dispostas por elas. Essas obras compõem esse conjunto notável que faz parte desse valioso trabalho de conservação e difusão da arte realizado pelo SESC São Paulo.