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Afastar-se do sujeito autocentrado; produzir arte no atrito e na diferença

O documentarista irlandês Bob Quinn em cena de "One Hundred Steps", filme de Bárbara Wagner e Benjamin de Burca. Foto: Divulgação
O documentarista irlandês Bob Quinn em cena de "One Hundred Steps", filme de Bárbara Wagner e Benjamin de Burca. Foto: Divulgação

Após uma primeira mesa focada em olhares para as questões ambientais, os conhecimentos indígenas, a possibilidade de uma ciência “menos fria”, além do questionamento da falsa dicotomia entre natureza e cultura, a segunda apresentação do VI Seminário Internacional ARTE!Brasileiros aproximou o debate de questões mais diretamente vinculadas à produção artística. Nas apresentações de Andrea Giunta, curadora da Bienal do Mercosul 12, e da dupla de artistas Bárbara Wagner e Benjamin de Burca (que participam da MANIFESTA 13), questões sobre a responsabilidade da arte no mundo contemporâneo, a busca de um fazer coletivo, a visibilidade de saberes marginalizados e a necessidade de fugir da lógica do “corpo autocentrado” nas artes reforçaram uma linha condutiva entre as diferentes falas.

Primeira a apresentar, Giunta traçou um panorama da edição deste ano da Bienal do Mercosul (Bienal 12 Online), que aconteceria presencialmente em Porto Alegre e acabou migrando para o ambiente virtual por conta da pandemia. Destacando a pluralidade envolvida nas temáticas e no próprio título da mostra, Feminino(s). Visualidade, ações e afetos, a argentina ressaltou a importância desta diversidade estar presente na própria constituição da equipe curatorial da bienal. Nesse sentido, frisou o papel fundamental de Fabiana Lopez, Dorota Biczel e Igor Simões, que trouxeram olhares atentos à produção artística especialmente latino-americana, mas também de outros países do globo. Foram ao todo 25 países representados por mais de 70 artistas e coletivos.     

O termo “feminino(s)” – e não “femininas”, nem “feminismos” – representou para Giunta essa escolha por uma pluralidade de pontos de vista, nem sempre só de mulheres, acreditando na “ideia da diferença como multiplicidade e não como separação”. Nesse sentido, a palavra “afeto” também ganhou espaço, ainda mais em um momento de tamanha fragilidade com a pandemia. “E quando ficamos todos isolados, foi muito importante perguntar: como estão os artistas que estavam prestes a viajar para Porto Alegre e não puderam ir? Então pedimos que eles gravassem pequenos vídeos com o celular para o nosso site, o que foi muito importante. Isso criou um arquivo de afetos, um tipo de presença dos artistas na bienal que não tínhamos planejado anteriormente. São algumas coisas boas que aconteceram.”

Sobre La Familia en el alegre verdor, obra de Chiachia & Giannone exposta na Bienal do Mercosul. Foto: Divulgação

O afeto, como afirmou Giunta em entrevista recente à arte!brasileiros, não está desconectado das lutas, protestos e de uma arte que clama por mudança social. “Com afetos, poderosas revoltas foram criadas”, disse. Neste sentido, Giunta apresentou no seminário uma série de trabalhos que considera representativos das temáticas tratadas na bienal, a começar por uma tapeçaria de Chiachio & Giannone que apresenta uma cena de integração entre o homem e a natureza, onde pessoas e animais fazem parte de uma mesma família – “não o homem como dono, controlando a natureza, mas o homem em natureza”. Em seguida, a curadora apresentou uma fotografia do coletivo feminista argentino Nosotras Proponemos: “Levamos em conta os ativismos, os direitos das mulheres, mas também os femininos e os feminismos como a necessidade de pensarmos novamente todas as relações entre o humano e o mundo”, disse

Ressaltando que “a luta do feminismo é uma luta pelos direitos sobre o próprio corpo”, ela apresentou ainda trabalhos que tratam do feminicídio, como o de Fatima Pecci Carou, e das variadas formas de experimentar o corpo, como nas obras de Jota Mombaça, Liuska Astete, Janaina Barros, Lorraine O’Grady ou Priscila Resende. A possibilidade de uma reestruturação da linguagem no campo da discussão de gênero surgiu na produção das Mujeres Públicas, enquanto questões cruciais sobre a memória – e especificamente a memória colonial e afrobrasileira – foram tratadas na obra de Aline Motta. Neste ponto de sua fala, Giunta relembrou uma frase de Rosana Paulino, “que me disse uma coisa muito importante relacionada com o tema deste seminário: nas tradições cristãs e católicas, baseadas na bíblia, Deus deu a natureza para os homens; nas religiões afrobrasileiras, o homem e a natureza estão juntos”.

Psicanálise do cafuné catinga de mulata, de Janaína Barros, obra exposta na Bienal do Mercosul. Foto: Divulgação

Irlanda, França e norte da África em diálogo

Dando sequência à uma série profícua e diversa de produções audiovisuais filmadas em diferentes cantos do globo, a dupla Bárbara Wagner (Brasil) e Benjamin de Burca (Irlanda/Alemanha) acaba de estrear, na MANIFESTA 13, em Marselha, a obra One Hundred Steps. O filme, de 30 minutos, foi o tema da apresentação da dupla no seminário, que contou ainda com a exibição em primeira mão de trecho do trabalho. No seminário virtual, enquanto Benjamin apareceu com seu celular na Escola de Música de Marselha, expondo o término da montagem da obra, Bárbara falou de sua casa sobre o processo de produção do filme, iniciado ainda no final de 2019. Alguns dias depois do seminário a arte!brasileiros conversou por telefone também com Benjamin. 

Após trabalhos sobre o frevo ou o brega em Recife, sobre os gêneros maloya na Ilha de Reunião (departamento francês próximo à África), schlager em Munster (Alemanha) e rap em Toronto (Canadá), a dupla adentra os universos da música popular irlandesa (com suas gaitas, cantos e sapateados) e da música norte-africana de raiz árabe em Marselha, no sul da França. Se de um lado o filme aprofunda a pesquisa da dupla em universos musicais marginalizados, num diálogo constante entre documentário e ficção, entre o que é cultura pop ou manifestação tradicional, de outro o filme parece trazer elementos inéditos ao trabalho de Bárbara e Benjamin. One Hundred Steps é, por exemplo, o primeiro filme que se passa em dois países distintos e que adentra de modo contundente a história colonial europeia e africana.   

Segundo Bárbara, a pesquisa teve início com a aprovação de um projeto de financiamento público do Irish Arts Council. Surgiu, deste modo, a primeira oportunidade para a dupla desenvolver um trabalho no país natal de Benjamin. Foi na pesquisa pela região irlandesa de Connemara que eles se depararam com o trabalho do documentarista irlandês Bob Quinn. “Nos anos 1980 ele desenvolveu um quarteto de documentários que falava da origem da cultura irlandesa de um jeito muito sofisticado, questionando a hegemonia europeia na formação da cultura de lá e sugerindo que o contato com países do norte da Africa foi fundamental”, contou a artista. Na série, intitulada Atlantean, “ele pergunta: e se a nossa cultura irlandesa estiver muito mais próxima da África do que da Europa?”.

Cena de One Hundred Steps filmada em Marselha; trabalho de Bárbara Wagner e Benjamin de Burca integra a MAMIFESTA 13. Foto: Divulgação

Partindo dessa hipótese e do convívio com Quinn, hoje com 87 anos, Bárbara e Benjamin tinham um projeto inicial em mente até o momento em que o convite da MANIFESTA veio para “dar uma amarrada formal no trabalho”, segundo Bárbara. Ao fim, o filme se tornou “uma espécie de experimento visual e de montagem entre a Irlanda e o sul da França, em diálogo com o norte africano”. A dupla convidou, para isso, artistas populares para performarem em dois espaços emblemáticos para a história colonial nestes locais – palácios que se tornaram museus -, criando ambiguidades, atritos e momentos de beleza com várias camadas de sentido.

Na Irlanda, músicos e dançarinos foram filmados em espaços da Bantry House, palácio do fim do século 17 diretamente relacionado ao imperialismo britânico no país e que, além de um jardim suntuoso, possui uma escadaria de 100 degraus – os “hundred steps” do título – construída entre 1840 e 1850, a década da grande fome irlandesa. “Em cada canto da Irlanda tem uma mansão enorme construída pelo povo que estava morrendo. E se formos pensar, essa grande fome, que criou uma diáspora de quase 2 milhões de pessoas, ainda é muito recente na história do país”, diz Benjamin. Os artistas que entram na casa, portanto, – e Bob Quinn aparece ali com sua câmera – “se transformam nessa outra voz, que é a voz da cultura irlandesa”, segundo Bárbara.

Em Marselha, por sua vez, uma casa museu em uma antiga residência burguesa, “com uma história similar, apesar do contexto bastante diferente”, serviu de palco para a performance de músicos norte-africanos radicados na cidade. “Então a gente criou uma forma de aproximar, sem necessariamente estar comparando. É uma especulação, novamente, mas sobretudo rítmica e musical”, explica Bárbara. Se a cultura árabe do norte da África surge explicitamente na casa em Marselha, ela também pode estar difusa na música irlandesa que, segundo Quinn, bebeu dessas raízes. “E de repente a gente olha para esses artistas, como se fossem visitantes, os irlandeses e os árabes, e o filme cria esse dispositivo fantástico em que a gente consegue perceber a ocupação desses espaços com outra história”, conclui a artista. Porque, segundo Benjamin, “o colonialismo continua existindo de outra forma, mais mental, mais imaterial”.

Nas falas ao final da mesa, Andrea Giunta ressaltou, em consonância com a apresentação de Bárbara e Benjamin, que “a arte tem a capacidade de ser um arquivo, um arquivo de experiências que foram criadas em diferentes momentos. E com este arquivo podemos fazer as perguntas do presente”. Além disso, para ela é preciso repensar a relação do corpo com o mundo, no sentido de se afastar da ideia do sujeito autocentrado tão comum na arte – “para compreender, experimentar e sentir que nós estamos no mundo”. Ao que Bárbara concordou: “No sentido do corpo que experimenta uma outra forma de conhecimento, que é partilhado. Nosso trabalho é um trabalho audiovisual que se sustenta na colaboração. Não dá pra fazer trabalho sozinho, não dá para fazer sem atrito, sem diferença”.

Aby Warburg em diálogo com o contemporâneo

Detalhe de um retrato de Aby Warburg por Rudolf Dührkoop, em 1925.
Detalhe de um retrato de Aby Warburg por Rudolf Dührkoop, em 1925. Foto: Bundespressekonferenz.

*Por Rafael Cardoso

No exato momento em que a Bienal de Berlim vem dar sua contribuição ao esforço para tornar a cena artística mais inclusiva e atual, dois importantes espaços expositivos da capital alemã voltam a atenção para a obra de um historiador da arte, falecido há mais de noventa anos, especialista em Renascimento Italiano. As exposições Aby Warburg, atlas de imagens Mnemosine: o original e Aby Warburg, entre cosmos e páthos: obras berlinenses do atlas de imagens Mnemosine, ocupam respectivamente a cultuada Haus der Kulturen der Welt (HKW) e o museu Gemäldegalerie. O que torna a obra de Warburg tão relevante para o presente que mereça esse duplo destaque e, mesmo em tempos de pandemia, atraia um público cada vez maior?

Aby Warburg. Sala de leitura da biblioteca de estudos culturais Warburg, Heilwigstr, em Hamburgo, fevereiro de 1927. Foto: cortesia HKW.
Sala de leitura da biblioteca de estudos culturais Warburg, Heilwigstr, em Hamburgo, fevereiro de 1927. Foto: cortesia HKW.

Aby Warburg (1866-1929) não é nenhum desconhecido na história da arte, mas antes um dos grandes nomes da geração que teorizou uma “ciência das imagens” (Bildwissenschaft, em alemão), no início do século 20. Com o ressurgimento desse tipo de abordagem, no rastro de seguidores como Georges Didi-Huberman e Horst Bredekamp, sua reputação intelectual se avultou ao ponto de ele virar modismo entre estudiosos da arte. O problema é que Warburg é daqueles autores mais referidos do que lidos. Muitos dos que invocam seu nome o fazem apenas para justificar aproximações entre obras de contextos distintos. Dizer-se warburguiano virou, no meio curatorial, uma licença para misturar alhos com bagulhos. O chamado pseudomorfismo (isso parece com aquilo, portanto deve existir uma relação) é efeito colateral comum de quem toma pílulas de Warburg fora da dosagem indicada.

Boa parte da desorientação em torno de Warburg advém do fato de que sua última obra, possivelmente a maior delas, permaneceu inacabada. Ao falecer em 1929, o autor trabalhava sobre um atlas de imagens intitulado Mnemosine – em homenagem à deusa grega da memória, mãe das nove musas. Seguindo uma lógica própria, Warburg montava imagens sobre painéis, organizando-as por grupos temáticos e palavras-chave, apontando persistências e coincidências, buscando ecos e repetições entre obras não necessariamente oriundas de contextos culturais vizinhos. Isso permitia comparações, às vezes geniais, às vezes tortuosas, entre antiguidade e modernidade; Oriente e Ocidente; cartas celestes e cartas de tarô; desenhos renascentistas e cartazes publicitários. Fundamentado em sua vasta erudição e conhecimento histórico, ele foi desenvolvendo um método original de pensar não somente o significado das imagens, mas também o modo como elas significam.

Aby Warburg. Montagem do "Atlas Mnemosine". em exposição na Haus der Kulturen der Welt. Foto: cortesia do museu.
Montagem do “Atlas Mnemosine”. em exposição na Haus der Kulturen der Welt. Foto: cortesia do museu.

Quando da morte de Warburg, o conjunto do atlas consistia de quase mil pranchas distribuídas por 63 painéis. A ascensão do nazismo colocou em dúvida o destino de sua biblioteca em Hamburgo, e seus discípulos organizaram a transferência dos livros e materiais iconográficos para Londres, onde serviram de base para a criação do Warburg Institute em 1934. Desde então, houve várias tentativas de publicar versões do atlas, na íntegra ou em parte, o que só fez aumentar as disputas em torno do sentido da obra. A exposição atual na HKW tem por propósito reconstituir a versão “original”, garimpada em extensa pesquisa nos arquivos do Warburg Institute, onde as pranchas se encontravam dispersas entre milhares de outras. Em paralelo, a exposição na Gemäldegalerie agrupa meia centena de obras estudadas por Warburg e incluídas nos painéis de Mnemosine por meio de reproduções. Juntas, as duas mostras oferecem uma oportunidade ímpar de vislumbrar os processos por trás do pensamento dele.

Qual a relevância desse legado intelectual para os dias de hoje? Não resta dúvida que Warburg foi um pioneiro em conceber as imagens de modo disseminado e universal, sem divisões hierárquicas entre culturas e mídias. Para ele, uma fotografia interessava tanto quanto uma pintura, povos não europeus tanto quanto a Europa. Foi precursor não somente em seu olhar para a linguagem das formas – a chamada iconologia – como também por seu interesse em estudos etnográficos como instrumento para compreender a arte. Era um pensador que entendia a cultura humana como um todo e buscava seguir o devir das imagens como pista para desvendar o que temos em comum. Antecipou, em vários sentidos, as ideias de cultura visual e arte global que hoje desafiam não somente historiadores como também artistas. Podemos aprender muito com sua obra – sobretudo que o melhor pensamento visual requer aprofundamento no repertório. Mnemosine, afinal, é memória. Do seu ventre, brotaram as artes e a história.


* Rafael Cardoso é escritor e historiador da arte, PhD pelo Courtauld Institute of Art. É membro do Programa de Pós-Graduação em História da Arte da UerJ e atua como pesquisador associado junto ao Lateinamerika-Institut da Freie Universität Berlin. É autor de diversos livros sobre história da arte e do design, além de quatro obras de ficção.

Pivô abre inscrições para o programa de residências artísticas

Ateliê Aberto no Pivô Pesquisa 2020
Ateliê Aberto Pivô Pesquisa 2019 - Ciclo III. Foto: Julia Thompson

Há sete anos o Pivô desenvolve um programa de residências artísticas: o Pivô Pesquisa. Em atividade permanente desde 2013, o programa busca tanto um desenvolvimento de pesquisas individuais quanto a criação de um ambiente de interlocução entre os participantes, equipe curatorial e profissionais convidados. O programa é oferecido de forma gratuita. 

Até o dia 6 de novembro, às 16h, o programa recebe inscrições para sua edição de 2021. Excepcionalmente, a convocatória está aberta apenas para artistas residentes no Brasil, devido às incertezas provocadas pela pandemia de Covid-19. Podem se inscrever pessoas maiores de vinte e cinco anos que tenham ao menos três anos de atividade profissional artística comprovada. Serão selecionados 24 nomes, divididos em três ciclos ao longo do ano. O projeto acontecerá presencialmente na sede da associação cultural no Edifício Copan, no centro de São Paulo. 

A pesquisa no Pivô

Pensando no intercâmbio artístico e cultural entre artistas e curadores, o Pivô Pesquisa propõe atividades coletivas, levando em consideração os interesses conceituais, formais e as necessidades técnicas do grupo em residência. Ao mesmo tempo que desenvolve o intercâmbio coletivo, cada artista tem acesso a um espaço individual de trabalho (de 24 ou 32 metros quadrados), garantindo seu tempo de criação e o desenvolvimento de pesquisa própria.

Ciclo III de residências Pivô Pesquisa 2020
Ateliê Aberto Pivô Pesquisa 2019 – Ciclo III. Foto: Julia Thompson

Os novos ciclos

O programa de residências de 2021 conta com três ciclos, de doze semanas cada, sendo:

  • Ciclo I: 08 de março a 01 de junho 2021;
  • Ciclo II: 14 de junho a 09 de setembro 2021;
  • Ciclo III: 20 setembro a 14 dezembro 2021.

Cada ciclo terá um profissional convidado, responsável pelo acompanhamento curatorial do grupo de oito artistas. Beatriz Lemos – curadora da Frestas Trienal de Artes do Sesc Sorocaba (assista à fala da curadora no VI Seminário Internacional ARTE!Brasileiros) e idealizadora da plataforma de pesquisa Lastro – Intercâmbios Livres é guia o primeiro ciclo. Ela é seguida da programadora cultural e curadora do Solar dos Abacaxis Catarina Duncan. O último grupo receberá Helio Menezes, antropólogo e curador de arte contemporânea do Centro Cultural São Paulo.

Os candidatos podem se inscrever para todos os ciclos, mas apenas poderão participar de um deles. A seleção contará com um júri composto pela equipe do Pivô e pelos
curadores convidados, e levará em consideração as especificidades de cada grupo de artistas no ciclo, a coerência do trabalho artístico desenvolvido e a proposta específica para a residência.

Para saber mais e se inscrever, acesse o edital clicando aqui.

arte!brasileiros ganha prêmio ABCA por difusão das artes visuais na mídia

Capas de algumas edições da revista.

Há dez anos, a arte!brasileiros busca retratar a pujança e a diversidade da arte contemporânea. Para isso, “investimos numa plataforma de cultura e arte contemporânea digital, capaz de falar tanto com a academia como com o mercado”, explica a editora Patrícia Rousseaux (leia o editorial da arte!brasileiros #50).

A revista, que hoje existe no impresso e no digital, defende a ideia de que a arte exprime as ideias e as angústias de seu tempo, sintetizando narrativas transversais. Por isso, nestes dez anos, retratamos a inovação no movimento, a busca por novos suportes, a experimentação, a pesquisa de materiais e de histórias na arte e na mídia, mas também tocamos nos temas que se tornaram essenciais para esse tempo e essa arte: a defesa da liberdade e as questões de gênero; a luta contra a discriminação racial, a segregação da mulher, a opressão econômica, social e política; os movimentos migratórios, as liberdades, a denúncia das agressões ao meio ambiente e ao planeta.

Ao lado dos conteúdos, a arte!brasileiros desenvolveu seu Seminário Internacional, que permitiu a interlocução com vários países. Desde 2012, os eventos colocam em pauta reflexões da atualidade e observa como a arte se posiciona no mundo contemporâneo. A iniciativa se expandiu ao lado de outras instituições, fomentando debate em novos seminários, promovidos ao longo dos anos (assista à gravação do seminário deste ano, feito em parceria com o Goethe-Institut).

Foi por essa ação em diversas plataformas que, no último dia 16 de outubro, a arte!brasileiros e sua editora Patrícia Rousseaux receberam o prêmio Antônio Bento da Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA), pela difusão de artes visuais na mídia em 2019.

O prêmio

A premiação anual da ABCA contempla categorias que apontam os destaques do cenário das artes visuais que mais contribuíram para a cultura nacional. A categoria que diz respeito à difusão de artes visuais na mídia, pela qual a arte!brasileiros foi contemplada, leva o nome de Antônio Bento de Araújo Lima, uma das figuras mais relevantes da crítica de arte brasileira. O jornalista, crítico, poeta, cronista musical e contista teve um papel relevante na difusão das artes na mídia. Durante sua vida escreveu colunas sobre artes visuais – no Diário Carioca e no jornal Última Hora -, participou da criação da Associação Internacional de Críticos de Arte (AICA), tornando-se, posteriormente, presidente da seção brasileira da associação. Antônio Bento também teve papel importante nos museus do país, ao ser diretor do Teatro Municipal do Rio de Janeiro e participar da fundação do Museu de Arte Moderna da capital carioca, o MAM Rio. Sendo um dos críticos de artes mais conceituados do país, participou de três bienais realizadas em Paris e integrou o corpo de jurados das Bienais Internacionais de São Paulo e Veneza, do Salão Nacional de Arte Moderna e da Comissão Nacional de Artes Plásticas (1978-1980).

Com a premiação, gostaríamos de agradecer a quem nos acompanha por todos esses anos, à equipe responsável pelos conteúdos e eventos da arte!brasileiros, aos entrevistados, aos palestrantes que passaram por nossos palcos (presenciais e virtuais) e à Associação Brasileira de Críticos de Arte.

A ABCA também premia os artistas, críticos, curadores, exposições e instituições que mais contribuíram para a cultura nacional em 2019. Saiba quem foram os demais vencedores:

Prêmio Gonzaga Duque (crítico associado pela atuação durante o ano)
José Roberto Teixeira Leite

Prêmio Mario Pedrosa (artista de linguagem contemporânea)
Iran do Espírito Santo

Prêmio Ciccillo Matarazzo (personalidade atuante no meio artístico)
Luiz Ernesto Meyer Pereira

Prêmio Mário de Andrade (crítico de arte pela trajetória – filiado ou não)
Annateresa Fabris

Prêmio Clarival do Prado Valladares (artista pela trajetória)
Emanoel Araujo (leia nossa entrevista com o artista)

Prêmio Maria Eugênia Franco (curadoria pela exposição)
Cauê Alves; pela curadoria da exposição Burle Marx: Arte, Paisagem e Botânica, apresentada no MuBE (Museu Brasileiro da Escultura e Ecologia) – São Paulo (leia nossa entrevista com o curador)

Prêmio Rodrigo Mello Franco de Andrade (instituição pela programação e atividade no campo das artes visuais)
Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães (Mamam) – Recife – PE

Prêmio Paulo Mendes de Almeida (melhor exposição)
Tarsila Popular, no MASP (Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand)

Prêmio Antônio Bento (difusão das artes visuais na mídia)
arte!brasileiros – editora Patrícia Rousseaux

DESTAQUES
Casa da Cultura da América Latina da Universidade de Brasília – DF
Usina de Arte – Água Preta PE
Centro Cultural SESI/FIESP Ruth Cardoso

HOMENAGENS
Carlos Pasquetti
João Evangelista
Fábio Magalhães

Fotografia e modernidade no espelho turvo da literatura. Brasil, séc. XIX

Adolfo Caminha, Domingos Olímpio, José de Alencar, Aluisio Azevedo e Machado de Assis. Foto: Reprodução

Ainda precisam ser descritas e analisadas as relações entre a literatura brasileira do século XIX e a fotografia. Trazida para o Brasil em 1840 – um ano após sua descoberta “oficial” em Paris –, a fotografia logo foi disseminada por aqui, tanto em sua materialidade enquanto fotografia “mesmo” (cartões de visita e seus álbuns, cartões postais etc.), quanto pela imagem fotográfica traduzida em xilo e litogravuras, que rapidamente inundou as publicações jornalísticas do período.

Não saberia precisar qual o romance ou conto escrito por um autor brasileiro em que aparece pela primeira vez a fotografia ou a imagem fotográfica, embora creia que tal fenômeno ocorreu com mais força a partir da década de 1870. A presença da fotografia e da imagem fotográfica na literatura brasileira por certo é um dos índices mais precisos sobre o papel relevante que a fotografia aos poucos foi ocupando em vários setores da vida brasileira, quer junto às camadas brancas da população, quer no cotidiano de pessoas negras livres ou libertas (caso do personagem Amaro, de Bom Crioulo, de Adolfo Caminha). Não se trata de afirmar que a literatura da época tenha espelhado de forma direta a presença da fotografia na sociedade brasileira, mas que esse reflexo surge trabalhado e transformado pela própria literatura, entendida como um espelho turvo, que concederá à fotografia e à imagem fotográfica não apenas a posição de exemplo de “modernidade” no Brasil da época, mas, em alguns casos, lhe dará o papel de personagem importante (em O Mulato, de Aluísio Azevedo, por exemplo) ou de personagem fundamental (como em Dom Casmurro, em Machado de Assis).

Por outro lado, pensar a literatura e a fotografia no Brasil durante o século XIX é refletir também sobre as contradições de um país em que conviviam índices incontornáveis de arcaísmo – a escravidão – com signos explícitos de modernidade: a própria fotografia e sua multiplicação via os meios de reprodução. Por mais que tenha sido naturalizado, é difícil entender como um meio de reprodução de imagens tão moderno, tão afinado com os avanços tecnológicos do século XIX, pode ter servido para a documentação da escravidão em um país como o Brasil.

É claro que este artigo não tem e nem poderia ter como propósito esgotar assunto tão complexo, a ser levado adiante não por um, mas por vários estudiosos. Ele pretende apenas chamar a atenção dos leitores e leitoras para esse assunto tão sedutor, para que fiquem com água na boca e se debrucem (ou voltem a se debruçar) na literatura brasileira do século XIX, agora em busca de todas essas peculiaridades que a modernidade constituiu no Brasil.

***

Casa de Pensão, de Aluísio Azevedo, publicado como folhetim em 1883, pode ser um belo começo para o que quero discutir aqui: como a literatura brasileira do século XIX absorveu e filtrou a presença da fotografia no cotidiano da população. O romance narra a história de Amâncio Vasconcelos, que deixa seus pais em São Luiz do Maranhão para estudar medicina no Rio de Janeiro, onde se envolve com pessoas que o levam a desligar-se dos estudos, iniciando uma vida boêmia. Com a morte do pai em São Luiz, sua mãe, d. Ângela, lhe escreve pedindo para que volte para casa. No entanto, a senhora fica sabendo que o filho havia sido preso e, preocupada com Amâncio, toma um navio para o Rio de Janeiro acompanhada de uma mulher escravizada. Porém, o que a senhora nem desconfia é que, naquela altura, seu filho já havia sido solto e, logo depois, assassinado.

Aluisio Azevedo. Foto: Reprodução

Durante a viagem, d. Ângela conhece um senhor que, ao saber que ela, assim que chegasse ao Rio, pretendia seguir a pé pelo centro à procura do filho, decide acompanhá-la quando lá aportam. Ao chegarem, ele despacha as bagagens e pede à escrava da senhora que seguisse a condução com as malas, enquanto ele acompanhava a mãe de Amâncio.

Quando chegam à rua Direita, no centro da cidade, uma vitrine chama a atenção de d. Ângela: ali estavam à venda chapéus “à la Amâncio de Vasconcelos”. Seu acompanhante afirma que era tendência os comerciantes batizarem suas mercadorias com nomes de gente famosa. Vamos ao texto:

[…] É singular!… balbuciou a senhora.

– Por quê?

– É esse justamente o nome do meu filho.

– Oh! Não há só uma Maria no mundo!…

Mas d. Ângela fugira-lhe […] do braço para correr a uma nova vidraça. Eram agora bengalas e gravatas “à Amâncio de Vasconcelos” que lhe prendiam a atenção.

Acabavam de entrar na Rua do Ouvidor.– Vê?… interrogou ela, muito preocupada e procurando esconder a emoção. Ainda!

– Ah, fez o companheiro, já impaciente. V. Exa. vai encontrar o mesmo nome por toda parte. É o costume! Olhe! Se me não engano, lá está o retrato do tal Amâncio! Tenha a bondade de ver!

  1. Ângela aproximou-se do retrato, correndo, e soltou logo uma exclamação:

– Mas é ele! É meu filho! o meu Amâncio!

E começou a rir e a chorar muito perturbada.

O velho, meio comovido e meio vexado com aquela expansão […], principiava talvez a arrepender-se de ter sido tão cavalheiro com Ângela, quando esta, que estivera até aí a percorrer, como uma doida, outros mostradores, arrancou do peito um formidável grito e caiu de bruços na calçada.

Tinha visto seu filho, representado na mesa do necrotério, com o tronco nu, o corpo em sangue.

E por debaixo, em letras garrafais:

“Amâncio de Vasconcelos, assassinado por João Coqueiro no Hotel Paris, em tantos de tal”[1].
 

Desculpem o spoiler, mas o que chama a atenção neste final de romance é como Aluísio Azevedo sublinha a complexidade da sociedade brasileira no final do século XIX, dividida entre a instituição arcaica da escravidão – d. Ângela viajara acompanhada por uma mulher escravizada – e a moderna precessão dos meios de comunicação interpondo-se entre a senhora que chegava para salvar o filho e a notícia de seu assassinato. Com essa estratégia, Azevedo coloca a personagem Ângela em plena sociedade de massa, em que as relações sociais deixam de ser protagonizadas apenas por pessoas para serem mediadas por imagens produzidas por meio de comunicação de massa (o que não é pouca coisa, num país como o Brasil naquele final de século).

***

Joaquim Marçal Ferreira de Andrade, em História da fotorreportagem no Brasil, afirma que, na segunda metade do século XIX, era comum o uso retratos fotográficos de pessoas envolvidas em crimes. Como ainda não haviam prosperado técnicas de impressão direta da imagem fotográfica para a imprensa, essas fotografias preexistentes eram copiadas via litografia para que pudessem ser publicadas.[2] É o que parece ter ocorrido em Casa de Pensão: além do retrato do filho, Ângela também viu a imagem que descreve o cadáver no necrotério. Aluísio Azevedo não especifica a origem dessa imagem, mas podemos inferir que se tratava de uma fotografia de tipo forense, traduzida para a litografia. Como será visto, esse mesmo tipo de imagem fotográfica processada pela lito será personagem de outro importante romance brasileiro do período – o já citado Bom Crioulo. Mas a literatura brasileira não explorou apenas esse tipo de imagem fotográfica. Ela foi pródiga em abordar a fotografia com outras características.

***

O romance Senhora, de José de Alencar, publicado em 1875 – portanto, alguns anos antes de Casa de Pensão –, descreve a penetração da fotografia no cotidiano da elite branca carioca. Um trecho interessante do livro é quando a heroína, Aurélia, explica para Fernando Seixas (seu marido, uma espécie de herói/anti-herói) o lugar que ocupavam os três tipos de álbuns de fotografia em sua residência. Na sala de visitas ficavam dois: o primeiro, dedicado às personalidades europeias, e o segundo, em que eram colocadas as fotos dos conhecidos de Aurélia. Após essa explicação, ela comenta: “O álbum das pessoas de minha amizade, eu o guardo comigo.” Ou seja, as fotografias das pessoas que lhes eram caras, Aurélia as guardava em um álbum que não ficava à vista de quem a visitava socialmente. Ela continua: “Estes são álbuns de sala, tabuleta semelhante às que têm os fotógrafos na porta”[3].

José de Alencar. Foto: Reprodução

Na residência de Aurélia, portanto, existiam três tipos de álbuns: aquele que guardava as fotos de celebridades internacionais; outro que arquivava as imagens de conhecidos e um terceiro, dedicado aos seus entes queridos, conservado em um espaço privado da casa.

Essa descrição de José de Alencar registra uma prática corriqueira das camadas mais privilegiadas da população carioca da segunda metade do século XIX: colecionar e armazenar fotografias para exibi-las (ou não) publicamente. Por outro lado, é interessante a menção que Aurélia faz às tabuletas que ficavam nas portas dos estúdios fotográficos, repletas de fotografias dos clientes, pois amplia nossa compreensão sobre a presença da fotografia nas ruas do Rio de Janeiro, naquele período.

Outro dado interessante nesse diálogo é que, a certa altura, os personagens comentam a inexistência de fotografias de celebridades nacionais, capazes de formarem um álbum específico. Fernando faz a seguinte afirmação sobre o fato:

É verdade, celebridades europeias, pois ainda não as temos brasileiras; isto é, em fotografia que no mais sobram. Admira que nesta terra tão propensa à especulação e ao charlatanismo, ainda ninguém se lembrasse de arranjar uns álbuns de celebridades nacionais. Pois havia de ganhar muito dinheiro; não só na venda de álbuns, mas sobretudo na admissão dos pretendentes à lista das celebridades[4].

A inexistência de álbuns de celebridades locais, em meados dos anos 1870 no Brasil, não significou que algumas pessoas não se valessem da imagem fotográfica para divulgar a própria imagem. Dentro desse grupo destaca-se a principal figura brasileira do século XIX, o imperador D. Pedro II. Em As barbas do imperador[5], Lilia Schwarcz apresenta grande parte da iconografia do segundo imperador do Brasil, em que sobressaem litografias produzidas a partir de daguerreótipos e fotografias. Esse material era distribuído ou vendido como encarte de revistas e jornais para que o público pudesse guardá-lo ou emoldurá-lo para decorar os cômodos da casa.

Adolfo Caminha. Foto: Reprodução

Em Bom Crioulo, de Adolfo Caminha, romance publicado em 1895, é possível visualizar a presença da imagem de D. Pedro II nos aposentos dos personagens (o homem negro, Amaro, e seu amante, o jovem branco, Aleixo), atuando como uma espécie de um tipo de deus protetor dos mais pobres:

[Amaro] Pôs-se a olhar o teto, as paredes, um retrato do imperador, já muito apagado, que viera na primeira página de um jornal ilustrado, preso em caixilhos de bambu, um cromo de desfolhar, examinando com atenção o pequeno aposento, os móveis – a mesa e duas cadeiras –, como se estivesse num museu de coisas raras.[6]

Esta passagem descreve a origem daquela imagem do Imperador: tinha sido capa de um jornal ilustrado, produzida para ser destacada, emoldurada e colocada na parede. Por outro lado, é notável como, pela descrição do aposento, Pedro II surge pairando sobre o cômodo pobre, tornando-se um personagem na trama. Esta sensação ficará mais forte algumas páginas à frente onde se lê:

O retrato do imperador sorria-lhe meigo, com a sua barba de patriarca indulgente. Era o seu homem. Diziam mal dele, os tais ‘republicanos’, porque o velho tinha sentimento e gostava do povo…[7]

Este é um dos trechos mais importantes de Bom Crioulo por deixar claro não apenas a presença de imagens fotográficas em moradias das camadas mais pobres da população brasileira na segunda metade do século XIX, mas também pelo fato do autor ter sabido integrar a imagem fotográfica dentro do rol de personagens do livro, fazendo com que ela cumpra um papel importante para o entendimento da personalidade do personagem principal do romance. Para Amaro não importava o que os “republicanos” podiam pensar de D. Pedro II. Para ele, o imperador era seu protetor pois “gostava de seu povo” e era isso o que importava.

***

Vários artistas trabalhavam, tanto no processo de tradução de imagens fotográficas para a litogravura e a xilo – com o intuito de publicar essas imagens em jornais e impressos em geral –, quanto também no processo de produção de suas pinturas, no Brasil e no exterior. Ainda em Senhora, de José de Alencar, o autor apresenta o processo de produção dos retratos de Aurélia e Fernando Seixas, apontando o papel da fotografia nesse procedimento:

Aí foi Seixas encontrar dois grandes quadros, colocados nos respectivos cavaletes. Na tela viam-se esboços de dois retratos, o de Aurélia e o seu, que um pintor notável, êmulo de Vitor Meireles e Pedro Américo, havia delineado à vista de alguma fotografia, para retocá-lo em face dos modelos.[8]

Senhora apresenta a fotografia em duas funções: como item de coleção e como apoio visual para o artista produzir retratos pictóricos. Em ambas ela atua como receptáculo de memória e será a partir dessa função primordial que a fotografia, no caso, a imagem pictórica de origem fotográfica, também aparecerá como personagem importante de Senhora:

Fernando que a seguia com o olhar surpreso, viu-a aproximar-se de um quadro colocado sobre um estrado e contra a parede fronteira.

A cortina azul do dossel correu; à luz do gás que batia em cheio desse lado destacou-se do fundo do painel o retrato em vulto inteiro de um elegante cavalheiro.

Era o seu retrato; mas do mancebo que fora dois anos antes, com o toque de suprema elegância que ele ainda conservava, e com o sorriso inefável que se apagava sob a expressão grave e melancólica do marido de Aurélia.

– O homem que eu amei, a que amo, é este, disse Aurélia apontando para o retrato. O senhor tem suas feições; a mesma elegância, a mesma nobreza de porte. Mas o que não tem é a sua alma, que eu guardo aqui em meu seio e que sinto palpitar dentro de mim, e possuir-me quando ele me olha.[9]

Em Senhora, portanto, Alencar não apenas documenta dois usos que poderiam ser feitos da fotografia (item de coleção e base para a produção de pinturas), como também a apresenta em seus efeitos junto à subjetividade dos personagens, após ter passado pelo processo de tradução para a pintura.

***

Em O mulato, também de Aluísio Azevedo, publicado em 1891, a fotografia é assumida como elementos importante da trama[10]. É por meio dela que Ana Rosa, enamorada do primo Raimundo, toma consciência da existência de uma suposta rival a quem tentará aniquilar virtualmente pela destruição de seu retrato. Primeiro vejamos como Ana Rosa entra em contato com a imagem da concorrente:

Ao virar de uma folha deram de subido com um cartão fotográfico, que estava solto dentro do livro; um retrato de mulher, sorrindo maliciosamente numa posição de teatro; com suas saias de cambraia, curtíssimas, formando-lhe uma novem vaporosa em torno dos quadris; colo nu, pernas e braços de meia.

– Oh! – articulou a moça, espantando-se, como se o retrato fosse uma pessoa estranha que viesse entremeter-se no seu colóquio.

E, maquinalmente, desviou os olhos daquele rosto expressivo que lhe sorria do cartão com um descaramento muito real e uma ironia atrevida. Declarou-a logo detestável.

– Ah! Certamente… É uma dançarina parisiense – explicou Raimundo fingindo pouco-caso. – Tem algum merecimento artístico…

E tomando a fotografia com cuidado, para que Ana Rosa não percebesse a dedicatória nas costas do retrato, colocou-a entre as folhas já vistas do álbum[11].

Um pouco mais à frente, Raimundo encontra a foto da dançarina com índices de vandalismo, e o seu próprio retrato também vítima dos arroubos de Ana Rosa:

[…] uma vez encontrou toda riscada à unha a cara da dançarina, cuja fotografia ele, com tanto cuidado, escondera de sua prima, porque nas costas do cartão, havia a seguinte dedicatória: A mon brélilien bien-aimé, Raymond…

[…] lisonjeava-lhe aquele interesse, aquela espécie de revelação tímida e discreta; gostou de perceber que seu retrato era, de todos os objetos, o mais violado, e, como bom polícia, chegou a descobrir-lhe manchas de saliva, que significavam beijos[12].

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Parece claro como Aluísio Azevedo, Adolfo Caminha e José de Alencar souberam usar as potencialidades da fotografia e da imagem fotográfica para desenvolverem suas tramas. Porém, aquele que explorou esse elemento típico da modernidade do século XIX, dentro de um padrão único foi Machado de Assis. Embora ele faça uso da fotografia já em seu romance Iaiá Garcia, publicado em 1879, será em 1900 que Machado construirá o seu romance principal, tendo a fotografia como personagem imprescindível da trama: Dom Casmurro[13].

Machado de Assis. Foto: Reprodução

A dúvida de Bentinho (o dom Casmurro do título) sobre o fato de sua mulher, Capitú, tê-lo traído com seu melhor amigo, Escobar, torna-se certeza quando compara seu filho Ezequiel, então uma criança, com a foto de seu amigo:

Palavra que estive a pique de crer que era vítima de uma grande ilusão, uma fantasmagoria de alucinado; mas a entrada repentina de Ezequiel gritando: – Mamãe! mamãe! é hora da missa! – restituiu-me à consciência da realidade. Capitu e eu, involuntariamente, olhamos para a fotografia de Escobar, e depois um para o outro. Desta vez a confusão dela fez-se confissão pura. Este era aquele; havia por força alguma fotografia de Escobar pequeno que seria o nosso pequeno Ezequiel. De boca, porém, não confessou nada[14];

A fotografia de Escobar é a certeza da traição da esposa, fato que se tornará cada vez mais inequívoco conforme o Ezequiel ia crescendo, tornando-se ainda mais parecido com o amigo de Bentinho.

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Entrando no comecinho do século XX, 1903, foi lançado o romance Luzia-Homem de Domingos Olímpio, uma trama que se desenrola durante o início da segunda metade do século XIX no sertão do Ceará. Nela a fotografia é mencionada e, quando em uma única oportunidade, quando um sertanejo relembra a primeira vez em que viu uma fotografia, levada para o interior do Brasil por um grupo de cientistas que integrava a Comissão Científica de Exploração, que de fato existiu, criada pelo Instituto Histórico Geográfico Brasileiro que, entre 1859 e 1861, viajaram para o Ceará e para o Piauí:

[…] Era por volta da era de sessenta. Não me lembro bem o ano; só sei que eu era rapazote; pelo tope dos doze. Andava por estes sertões uma comissão de doutores, observando o céu com óculos de alcance, muito complicados, tomando medida das cidades e povoações e apanhando amostras de pedras, de barro, ervas e matos, que servem para mezinhas, borboletas, besouros e outros bichos. Os maiorais dessa comissão eram homens de saber, Capanema, Gonçalves Dias, Gabaglia, um tal de Frei Alemão, e um doutô médico chamado Lagos e outros. Andavam encourados como nós vaqueiros; davam muita esmola e tiravam, de graça, o retrato da gente com uma geringonça, que parecia arte do demônio. Apontavam para a gente o óculo de uma caixinha parecida gaita de foles e a cara da gente, o corpo e a vestimenta saíam pintados, escarrados e cuspidos, num vidro esbranquiçado como coalhada […][15]

Domingos Olímpio. Foto: Reprodução

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São muitos os lugares onde a fotografia encontra a literatura produzida no Brasil durante o século XIX, esse período tão proteico da cultura do país. Quer como índice de modernidade ou como verdadeira personagem dessa modernidade problemática que é a brasileira, comumente a fotografia se encontra presente abrindo uma série de possibilidade para que se reflita sobre o país e a sociedade aqui engendrada. Neste texto foram pinçados apenas alguns exemplos desse universo à espera de quem o trafegue em busca de outros aspectos tão ou mais interessantes dos que aqui foram citados.

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[1] – AZEVEDO, Aluísio. Casa de Pensão. Porto Alegre: L&PM, 2002. Pág. 387/388.
[2] – ANDRADE, Joaquim Marçal F. História da fotorreportagem no Brasil. A fotografia na imprensa do Rio de Janeiro de 1839 a 1900. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, pág. 157 e seguintes.
[3] – ALENCAR, José de. Senhora. São Paulo: Ática, 1971, pág. 130 e segs.
[4] – Idem. pág. 130.
[5] – SCHWARCS, Lilia. As barbas do imperador. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
[6] – CAMINHA, Adolfo. Bom Crioulo. Editora Martin Claret, 2003. Pag. 62.
[7] – Idem. Págs.72/73.
[8] – ALENCAR, José de. Idem. Pág. 171.
[9] – Idem, pág. 180.
[10] – AZEVEDO, Aluísio. O mulato. Porto Alegre: L&PM. 2002.
[11] – Idem, pág. 123.
[12] – Idem, pág. 138.
[13] – ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. São Paulo: Círculo do Livro, 1994.
[14] – Idem, pág. 152.
[15] – OLÍMPIO, Domingos. Luzia-Homem. São Paulo: Ed. Moderna, 1983, pág. 91.

O espetáculo deve continuar?

Exposição OSGEMEOS: Segredos, na Pinacoteca. Foto: Divulgação.

Escrevo este texto fora de São Paulo, onde estou passando a pandemia, um tanto abismado com as imagens nas redes sociais da reabertura das instituições de arte na capital.

Muitos artistas, intelectuais, curadores e até galeristas escreveram nos últimos meses que após esse momento o sistema da arte precisaria mudar, que chegava o momento de desacelerar o circuito, que era hora de se atentar para novas questões que se impunham dentro do contexto de crise sanitária.

Nas imagens que vejo, nada mudou. Seguem as mostras que estavam em processo de montagem no mês de março, às vésperas da abertura da feira SP-Arte, um ponto de inflexão no calendário de museus e galerias, quando a tendência ao espetáculo e à opulência costuma crescer sem pruridos.

Passaram-se sete meses e minha questão é: faz sentido a reabertura dos museus sem algum tipo de reflexão sobre essa pausa forçada? Afinal, durante esse período nada menos que 150 mil mortes ocorreram e seguem ocorrendo no país pela falta de um governo sensato, a Amazônia e o Pantanal estão em processo de destruição, negras e negros estão sendo assassinados brutalmente e manifestações contundentes sendo realizadas pelo mundo afora, e o fascismo cresce em popularidade no país.

Nesse contexto, as instituições de arte reabrem como se nada estivesse acontecendo e mantêm a mesma programação de março de 2020? Esses sete meses nos perpassaram como anos e suas consequências ainda são difíceis de prever, mas além do óbvio cuidado com higiene e formas de evitar a contaminação, essas instituições não conseguem ir além de “o espetáculo precisa continuar”?

Amigos que foram ver as mostras em cartaz, testemunharam que não há – seja na Pinacoteca, no Museu de Arte Moderna de SP ou no MASP, por exemplo – nenhum tipo de posicionamento sobre o momento atual. A lógica do cubo branco, que isolou o espaço expositivo do mundo ao redor, teria agora sido incorporada como política institucional de negacionismo do contexto?

Durante o VI Seminário Internacional que ARTE!Brasileiros organizou no início de outubro, totalmente pensado frente às questões urgentes deste tempo difícil, Ailton Krenak foi direto em um recado ao circuito da arte: “É como se a ideia das nossas bienais de arte, das nossas galerias estivessem todas ficado no passado, vencidas pelo tempo, pela urgência de uma nova mentalidade, de nós os humanos aprendermos a pisar com cuidado, a pisar suavemente na Terra profundamente marcadas pelas nossas pegadas, que nos puseram no limiar desse Antropoceno.”

Onde está a sensibilidade das gestões desses museus para encarar uma nova mentalidade?

Acervo Comentado Videobrasil: Rosana Paulino

"DAS AVÓS", 2019, videoinstalação de Rosana Paulino. Foto: Videobrasil.
"DAS AVÓS", 2019, videoinstalação de Rosana Paulino. Foto: Videobrasil.

No novo episódio do Acervo Comentado VB, a filósofa Alice Lino, professora de filosofia da Universidade Federal de Rondonópolis (UFR), no Mato Grosso, e pesquisadora de estéticas ameríndias e afro-brasileiras, comenta a obra Das avós (2019), de Rosana Paulino [1], descrita como “uma artista que vem se firmando como uma das principais de sua geração por sua capacidade em plasmar rigor estético/artístico aos questionamentos sobre a história dos afrodescendentes no Brasil e também sobre uma história da arte que se pretende hegemônica no país”, como colocou o crítico Tadeu Chiarelli.

Na obra em questão, Lino descreve que a performer Charlene Bicalho “entra no cenário completamente coberto de branco carregando com muito cuidado, envolto em um pano também branco, a sua ancestralidade”. Para a professora, o gesto é uma referencia à violência pela qual as mulheres negras aqui escravizadas passaram. Diante desse passado cruel, Bicalho abre o tecido branco, dentro do qual estão impressas, em transparência, imagens dessas mulheres negras, o que reverencia, então, a sua ancestralidade nesses termos. A performer, com cuidado, paciência e afeto, passa a costurar essas imagens junto à sua vestimenta que também é branca.

“Eu chamo atenção aqui pro fato de uma construção política da mulher negra quando ela se reconhece a partir da história de sua ancestralidade”, atenta Lino, completando que: “Ademais vale notar que há uma tessitura de um afeto, ela olha com muito carinho para as imagens que ela traz para próximo de si. Há na performance, portanto, a reconstituição desse afeto também direcionado à mulher negra. Onde há violência, não há afeto. A Rosana Paulino, portanto, subverte essa imagem assegurando essas mulheres negras o nosso respeito pela luta travada até os nossos tempos”. Para a filósofa, quando Charlene se levanta no final do vídeo, seu gesto simboliza, com altivez, a tomada de posição pela personagem para enfrentar o racismo cotidiano pelo qual as mulheres negras passam.

"DAS AVÓS", 2019, videoinstalação de Rosana Paulino. Foto: Videobrasil.
“DAS AVÓS”, 2019, videoinstalação de Rosana Paulino. Foto: Videobrasil.

Ainda não conhece o Acervo Comentado?

Acervo Comentado Videobrasil é uma parceria entre arte!brasileiros e a Associação Cultural Videobrasil. A cada 15 dias publicamos, em nossa plataforma e em nossas redes sociais, uma parte de seu importante acervo de obras, reunido em mais de 30 anos de trajetória. Confira os outros episódios neste link.

Sobre Videobrasil

A instituição foi criada em 1991, por Solange Farkas, fruto do desejo de acolher um acervo crescente de obras e publicações, que vem sendo reunido a partir da primeira edição do Festival de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil (ainda Festival Videobrasil, em 1983). Desde sua criação, a associação trabalha sistematicamente no sentido de ativar essa coleção, que reúne obras do chamado Sul geopolítico do mundo – América Latina, África, Leste Europeu, Ásia e Oriente Médio –, especialmente clássicos da videoarte, produções próprias e uma vasta coleção de publicações sobre arte.

Este projeto contribui para “redescobrir e relacionar obras do acervo Videobrasil, e vertentes temáticas, na voz de críticos, curadores e pensadores iluminando questões contemporâneas urgentes”, afirma Farkas.


[1] Além de artista visual, pesquisadora e educadora, Paulino é doutora em artes visuais pela USP, com especialização em gravura pelo London Print Studio. Foi bolsista da Fundação Ford e da Capes, e em 2014, foi agraciada com a bolsa para residência no Bellagio Center, da Fundação Rockefeller, em Bellagio, Itália. Participou das individuais Atlântico Vermelho, na Galeria Superfície (2016), Mulheres Negras – Obscure beauté du Brésil, no Espace Fort Grifoon, Besançon (2014), Tecido Social, na Galeria Virgílio (2010); e das coletivas South­South: Let Me Begin Again, Cidade do Cabo, África do Sul (2017), La Corteza del Alma, Madri (2016) e Territórios: Artistas Afrodescendentes no acervo da Pinacoteca, São Paulo (2015), entre outras

Frieze London: evento local e adaptação ao virtual marcam edição 2020

Frieze London: "Huk Pacha", "Iskay Pacha", "Kimsa Pacha". Obras por Claudia Martínez Garay. Foto: Grimm Gallery.
Frieze London: "Huk Pacha", "Iskay Pacha", "Kimsa Pacha". Obras por Claudia Martínez Garay. Foto: Grimm Gallery.

A pandemia de Covid-19 forçou o cancelamento de quase todas as grandes feiras internacionais de arte neste ano. A Frieze London – realizada todo mês de outubro desde 2003 no Regent’s Park – não foi exceção. Com um formato híbrido em 2020 – entre virtual e uma edição física predominantemente local -, a feira apresenta seus viewing rooms até o dia 16 de outubro.

Segundo Victoria Siddall, diretora global da Frieze, cerca de 250 galerias pagaram para acessar a plataforma de visualização digital, contra 280 de costume em edições anteriores. A diretora relata: “Para o mundo da arte, foi uma rápida adoção ao digital, o que não teria acontecido sem a pandemia”, complementando que “sempre houve uma resistência em colocar arte de alto valor online. E tudo isso [a adoção do digital] aconteceu da noite para o dia.”

Ainda, de acordo com Siddall, no começo desse processo de adaptação “muitas galerias usavam seus estandes em feiras online da mesma forma que fariam em uma feira real e agora estão se adaptando e vendo que isso é na verdade uma maneira diferente de mostrar arte”. Ela reconhece que, nesse sentido, houve um enorme progresso vindo das galerias e dos colecionadores.

Ao The New York Times, Thaddaeus Ropac, fundador de sua galeria homônima, descreveu a Frieze Week deste ano como “um evento muito local” tendo em vista que não participam fisicamente representantes da América Latina, Ásia e Estados Unidos – embora presentes na plataforma virtual. Como resultado, para Ropac seria “ingênuo pensar que será algo comparável ao que normalmente é”.

Para Benjamin Sutton, editor de mercado para o Artsy, “as ofertas são tipicamente amplas: de objetos milenares oferecidos por negociantes de antiguidades na Frieze Masters a obras feitas por artistas emergentes durante o isolamento, nos estandes virtuais da Frieze London”. Ele nota que algumas galerias optaram por apresentações temáticas ou conceituais, enquanto outras se entregaram à tradição ao trazer de tudo um pouco.

Entre as galerias brasileiras participantes, A Gentil Carioca ganhou destaque por uma proposta inusitada, ao invés de exibir “em tempo real” com os viewing rooms, a galeria aproveitou o vão entre suas sedes no Rio de Janeiro para apresentar obras ao ar livre. Seu diretor, Marcio Botner, expressou ao portal Artnet que enquanto aqui não podemos visitar feiras de arte, museus, galerias e espaços culturais, a ideia d’A Gentil Carioca era “imaginar a rua como uma extensão dos próprios espaços da galeria de arte”.

Como parte da ação denominada Encruzilhada Gentil estão: Curupira (2020), uma obra em tecido pela artista Laura Lima; um par de pinturas de Arjan Martins que foi carregado pelas ruas; uma escultura de Vivian Caccuri (inspirada pela música A Woman’s Work de Kate Bush) pendurada em um balaústre; e um múltiplo feito a partir da obra Fantasma da Esperança, de Marcela Cantuária, colocado nas ruas como um sinal de trânsito que revela, de forma holográfica ao mudarmos a posição do olhar, a pergunta “com quantos mortos se faz uma democracia?”, em cima do escudo do personagem de quadrinhos Capitão América.

 

Coleção “Amigo EAV” do Parque Lage participa da ArtRio 2020

Iole de Freitas, O outro, 1973-2019, impressão fotográfica. Uma das obras participantes da ArtRio 2020 pela EAV Parque Lage. Imagem: Divulgação.
Iole de Freitas, O outro, 1973-2019, impressão fotográfica. Uma das obras participantes da ArtRio 2020 pela EAV Parque Lage. Imagem: Divulgação.

Na ArtRio, que começa em 14 de outubro e vai até o dia 18 do mesmo mês, serão apresentadas obras de acervo do programa de colecionismo “Amigo EAV”, cuja venda dos múltiplos, que têm tiragem limitada, será revertida para o programa público da instituição e para cessão de bolsas de estudos a jovens artistas periféricos. Os trabalhos, a partir de R$ 1.800, foram doados nos últimos anos por artistas comprometidos com a sustentabilidade e o futuro da escola carioca. Entre eles, Antônio Dias, Brígida Baltar, Cristiano Lenhardt, Ernesto Neto, Iole de Freitas, Laura Lima, Lucia Laguna, Luiz Zerbini e Rafael Alonso compõem a seleção de nomes consagrados com obras à venda. Para quem faz parte do programa Amigo EAV, a compra conta com até 20% de desconto.

Neste ano, a ArtRio acontece em dois modelos de evento: feira presencial, na Marina da Glória, em formato reduzido, e a feira online. Na Marina da Glória, a ArtRio conta com a presença de cerca de 40 galerias. Segundo a organização, serão seguidos todos os protocolos de segurança indicados pelos órgãos competentes, incluindo o número limitado de visitantes – com indicação de horário de entrada e tempo de permanência – a exigência do uso de máscara, a distribuição de álcool gel e o distanciamento social.

Em ambiente virtual, a ArtRio disponibiliza uma plataforma que permitirá não só a visitação da feira e das galerias presentes, mas também a visualização de detalhes sobre as obras, artistas e histórico. Além disso, um chat possibilita a conversa direta com os galeristas e até comunicação por vídeo, facilitando as negociações. Somando à plataforma de visualização, a feira organizou uma série de palestras, mesas redondas, performances e visitas guiadas que podem ser conferidas em seu site. Com a pandemia, as adaptações virtuais realizadas pelas feiras se tornaram comuns, mas o ambiente digital não é estranho para a ArtRio, que ainda em 2018 lançou um marketplace para venda online.

Lucia Laguna, Colagem nº 22 (jardim), 2019 e Colagem nº 23 (paisagem), 2019, díptico. Uma das obras participantes da ArtRio 2020 pela EAV Parque Lage. Imagem: Divulgação.
Lucia Laguna, Colagem nº 22 (jardim), 2019 e Colagem nº 23 (paisagem), 2019, díptico. Uma das obras participantes da ArtRio 2020 pela EAV Parque Lage. Imagem: Divulgação.

Inédita para 2020 é a inauguração da Casa ArtRio – um espaço fixo com programação permanente no Jardim Botânico. Para o novo espaço, está programada a realização de palestras, debates, conversas com artistas e curadores, além de exposições especiais. Confira aqui.

Outra novidade é o projeto de videoarte MIRA que será justamente abrigado na Casa ArtRio e acontece na semana da feira, sob curadoria de Victor Gorgulho. Os artistas participantes foram selecionados a partir de chamadas realizadas pela organização em seu Instagram, abrindo novas oportunidades para artistas independentes e para a interação com o virtual.

LEIA MAIS: Para Yole Mendonça, diretora da EAV Parque Lage, a Escola de Artes Visuais carioca segue sua missão histórica de ser um espaço de resistência, aproveitando inclusive as possibilidades de se nacionalizar em um momento de migração para o virtual. Acesse aqui.

Alguma coisa acontece no meu coração: as imagens de São Paulo

Maurício Nogueira Lima. "Não entre à esquerda", 1964, metal e esmalte sintético sobre aglomerado, 99,2 x 59,6 cm. MAM SP.
Maurício Nogueira Lima. “Não entre à esquerda”, 1964, metal e esmalte sintético sobre aglomerado, 99,2 x 59,6 cm. MAM SP.

Não entre à esquerda, 1964, de Maurício Nogueira Lima (Col. MAM SP) poderia ser enquadrada como uma obra para espaços domésticos e não propriamente para um museu. Mais próxima de uma placa de sinalização, ela obedece a uma estrutura formal ligada ao movimento concreto, do qual Nogueira fez parte[1]: o suporte é dividido ao meio por uma vertical que, surgindo na parte inferior, desaparece para ressurgir na representação do sinal de tráfego, desaparecendo em seguida. Paralelas a essa vertical, mais duas são indicadas, à direita e à esquerda. Nove horizontais, em conjunto com as verticais, estabelecem uma grade virtual na base, cuja estabilidade é comprometida pela curva formada pela palavra “não”, encimando a pintura. Outro parentesco importante de Não entre à esquerda é com a poesia visual que então era produzida em São Paulo.

Esse hibridismo – misto de placa de sinalização, poesia visual e pintura concretista – ganha complexidade maior, devido tanto à inclusão de duas pequenas peças de metal sobre a pintura quanto ao sinal de tráfego e às palavras inscritas. As duas peças podem sugerir o interesse do artista em conferir materialidade à abstração daquele “mapa” tão sucinto. Elas são e ao mesmo tempo representam a “engrenagem” que move São Paulo.

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As palavras inscritas na obra podem ser divididas em dois grupos. O primeiro segue a objetividade de uma placa de sinalização com frases de fácil entendimento para quem domine a língua portuguesa. Elas enunciam: “Não entre à esquerda”, “Conserve-se à direita”. Essas reforçam o sinal de trânsito – elemento principal do trabalho. Já a terceira, embora inteligível, traz um ruído. A frase “Entre pelo cano” somente ganhará sentido quando aliada a outras informações inscritas no trabalho.

O segundo grupo de palavras – concentradas na base da obra – apesar de aludir a determinados topônimos da cidade, estão inscritos de forma a não seguirem a topografia de São Paulo.

*

Durante o cubismo (mas não apenas), o uso de letras, palavras e mesmo de frases foi estratégico para vários artistas para sublinharem a bidimensionalidade da pintura, e também – ou ao mesmo tempo – outorgarem a ela um caráter mais entranhado na vida cotidiana ou vice-versa. O mesmo pode ser dito sobre os cubistas também terem usado pedaços de papel na produção de suas pinturas[2].

Tarsila do Amaral. “São Paulo (Gazo)”, 1924, óleo sobre tela, 50 x 60 cm. Coleção Particular.

Se tal estratégia é visível na produção de alguns cubistas e entre outras vertentes do modernismo internacional, aqui no Brasil letras, palavras ou frases tiveram um uso mais parcimonioso: são raros os exemplos de obras que usaram desses dispositivos antes dos anos 1960. Na primeira metade do século XX, podem ser rememorados a pintura de Tarsila do Amaral, São Paulo (Gazo) (Col. Particular), de 1924, e algumas obras do artista paulistano Mick Carnicelli como raros exemplares desse tipo de procedimento. No caso da pintura de Tarsila, o uso da palavra “Gazo” testemunha sua adesão ao cubismo, ao mesmo tempo em que constata a modernidade de São Paulo (potencializada pela inclusão da palavra), convivendo com índices de seu caráter ainda provinciano. Já em Carnicelli, a palavra comparece em algumas de suas pinturas como mais um elemento que compõe o cenário urbano da cidade de São Paulo, captado por procedimentos ancorados numa tradição de feição naturalista.

Mick Carnicelli. Sem título, 1944, óleo sobre tela, 60 x 50cm. Coleção Particular, SP.

O que singulariza Não entre à esquerda é como Nogueira Lima lança mão dessa estratégia para conferir novos significados à cidade. Ele se vale de frases objetivas de orientação de tráfego ao lado de uma frase irônica – “Entre pelo cano” – e também dos nomes de alguns bairros da cidade para reposicioná-los fora da ordem que seria de se esperar de uma placa de sinalização de São Paulo. Tudo motivado por um fato conjuntural e traumático: o golpe civil-militar de 1964.

A partir daquela data fatídica – 31 de março de 1964 –, São Paulo passou a ser vista por Nogueira Lima como um território dividido em dois blocos: aquele que apoiava o golpe militar (à “direita”) e aquele que a ele se opunha (à “esquerda”). Reorganizando assim a cidade, Nogueira Lima junta à esquerda os nomes dos bairros que formam para ele um território específico: “Liberdade”, “Paraíso” e “Bela Vista”. Ou seja, à esquerda do cidadão que hipoteticamente se depara com aquela espécie de placa à sua frente existe em São Paulo um território de liberdade, paz, harmonia e beleza. Do outro lado, à direita, há outra organização, reunindo bairros cujos nomes possuem, além do sentido estrito, significados específicos entendidos apenas pelos paulistanos: “Consolação”, “Casa Verde” e “Carandiru”. “Consolação” refere-se ao bairro homônimo onde está localizado o cemitério que lhe deu o nome; “Carandirú”, por sua vez, reporta ao bairro que cresceu ao lado de uma penitenciária. E “Casa Verde” diz respeito a um outro bairro que também abrigava uma antiga prisão.

Apesar de todo maniqueísmo de Não entre à esquerda – compreensivo, aliás, se não nos esquecermos do impacto do referido golpe naqueles que possuíam outras expectativas para o Brasil –, não resta dúvida de que o artista empreendeu uma operação de contundente invocação poética ao propor outra possibilidade para registrar sua revolta frente à situação da cidade (e do país) por meio da reorganização de seu mapa. O que interessa salientar é que talvez pela primeira vez um artista se valeu da subversão dos códigos de representação estandardizado de uma cidade brasileira para propor um novo mapa, uma nova representação, no caso, de São Paulo: um mapa movido pela atitude revoltosa frente ao fato de ter visto solaparem seu projeto de país? Sem dúvida. Porém, não há como não reconhecer a carga de afeto pela cidade misturada àquela revolta. Um afeto que o leva a buscar entender a nova realidade do país a partir da rearticulação e reposicionamento de alguns topônimos de São Paulo, em sua representação mais imediata e objetiva: uma placa de sinalização, um tipo de mapa mais enxuto.

*

Ao reinventar no plano da pintura um novo mapa para a cidade, Nogueira Lima traz para o âmbito da arte contemporânea local uma vontade de intervir na configuração estratificada de São Paulo, fornecendo-lhe outra configuração, expandindo sua consciência sobre a cidade e a circunstância que ela e todos seus habitantes viviam.

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São Paulo não teve sua fisionomia captada pelo desenho, pela aquarela, pela pintura e mesmo pela gravura com a mesma intensidade com que foram retratadas outras cidades brasileiras, como Rio de Janeiro e Salvador. Mesmo assim, a partir do século XIX ela foi registrada por artistas como Thomas Ender, Eduard Hildebrandt e outros. No entanto, nenhum pintor ou gravador que se saiba conseguiu assinalar o processo de transformação da cidade com tanta perspicácia como Militão Azevedo, com as fotografias que compõem seu Álbum Comparativo da Cidade de São Paulo. Justapondo imagens da cidade captadas em 1862 com outras dos mesmos lugares produzidas em 1887, Azevedo conseguiu – dentro dos limites da fotografia de sua época – sublinhar as transformações que já caracterizavam São Paulo como um contínuo vir a ser.

Obras de artistas como Benedito Calixto, Oscar Pereira da Silva e Antonio Ferrigno, entre outros, apresentam cenas pacatas da cidade, sempre interpretada por um viés naturalista, revelador de uma placidez interiorana e sossegada.

Tarsila do Amaral. “São Paulo”, 1924, óleo s/tela, 67 x 90 cm Pinacoteca do Estado de São Paulo.

Mesmo no âmbito do modernismo dos anos 1920 e depois, a São Paulo que aparece – e quando aparece –, é uma cidade destituída de dinamismo, de qualquer índice de seus aspectos transformadores. A cidade que emerge nas telas de Tarsila do Amaral, por exemplo, revela poucos sinais de transformação. Tanto em São Paulo (Pinacoteca) quanto na citada São Paulo (Gazo), ambas de 1924, a cidade – talvez subjugada demais pelos rigores pós-cubistas de linhagem purista –, aparece austera e cristalizada pelos conceitos de “equilíbrio, construção, sobriedade”[3].

Talvez o único modernista que captou a metrópole em potencial que era São Paulo nas primeiras décadas do século passado tenha sido Flávio de Carvalho, em seu Viaduto Santa Ifigênia à noite, (1934, Col. Particular). A São Paulo noturna de Carvalho, mesmo com a multidão ausente, apresenta-se possante, com o viaduto e os edifícios indicando seu crescimento e modernidade. Essa pintura não retrata uma cidade pacata, retida no torpor. Ela é a representação de uma metrópole que descansa, ao mesmo tempo em que revela sua pujança, a partir de linhas horizontais e curvas, repleta de vazados que se interpõem a formas verticais altivas.

Flávio de Carvalho. “Viaduto Santa Ifigênia à noite”, 1934, óleo sobre tela, 38×48 cm, Col. Particular.

Parecem existir duas São Paulo no período entre as duas guerras mundiais, e mesmo após 1945:

A primeira, a dos fotógrafos, flagra a cidade no seu crescimento até então inconcebível. Hildegard Rosenthal, Hans Gunter Flieg, Peter Scheier, Alice Brill, Georg Paulus Waschinski, dentre outros, captaram o rumor das ruas, fábricas e avenidas, a potência dos edifícios de concreto sendo erguidos, a multidão, a mercadoria tomando conta. Para esses fotógrafos imigrantes, as referências, os lugares, a São Paulo representada na fotografia é outra. Agora, a marca é a aceleração do tempo, do tempo como mercadoria.

Georg Paulus Waschinski. “Nylotex Tecelagem e Confecção S.A”, 1954, fotografia.

Em um álbum analisado pelas pesquisadoras Solange F. de Lima e Vânia C. de Carvalho[4], a foto Nylotex Tecelagem e Confecção S.A., de Georg Paulus Waschinski, esclarece a fusão entre homem e máquina, entre tempo e dinheiro. O primeiro plano – em que operárias se confundem com máquinas e fios – caminha para o fundo da cena, num continuum realçado pelas verticais das colunas da fábrica à esquerda. As diagonais produzidas pelas máquinas tomam a maior parte do campo da fotografia. Ao fundo, uma luz intensa vinda das janelas de vidro contrasta com o teto escuro da fábrica.

Hans Günter Flieg. “Pneus Pirelli”, São Paulo, S.d.

Se Waschinski sublinha a fusão entre homem e máquina com a própria fábrica representada dentro de uma mecânica formal que acentua o processo avassalador da produção industrial, já uma parte considerável da produção de Flieg tem outro objetivo: transformar o produto, a mercadoria saída daquele universo em objeto de cobiça. Em Pneus Pirelli, s.d., Flieg transforma as qualidades do produto em elementos de sedução do consumidor[5].

Nas fotos de Waschinski e Flieg não ficam evidenciados os índices exteriores de São Paulo. Nelas, é como se a cidade apresentasse suas entranhas ou, para seguir na metáfora fabril, suas engrenagens. Contextualizadas[6], elas tinham como função sublinhar a potência de São Paulo, atentando para o fato de que novos lugares e objetos podiam mapear outros significantes e significados para a metrópole.

Alice Brill. “Viaduto do Chá”, São Paulo, 1954. Coleção Pirelli-MASP.

Viaduto do Chá, São Paulo, 1954, de Alice Brill revê um local tradicional da cidade, mas flagra ali um momento em que, imerso em espaços de luz e sombra delimitados, o caos da cidade é desmentido pela ordem quase marcial dos componentes da foto: a multidão, a frota de autos, a avenida, as janelas no fundo da cena, o viaduto, nada diverge do sistema engendrado pela lente da artista. A não ser, talvez, o automóvel fora de foco, (e prestes a sair do enquadramento), passando sobre as inscrições no asfalto que cobre o antigo Anhangabaú, convocando a todos para as celebrações do Primeiro de Maio.

Hildegard Rosenthal. “Rua Direita, São Paulo”. 1939 Coleção Pirelli-MASP.

Se na foto de Brill impera a ordem, em Rua Direita, São Paulo, 1939, de Hildegard Rosenthal, surge, esvaziado de horizonte, outro pedaço do centro da cidade. Os edifícios fecham a cena, tornando o espaço claustrofóbico, os transeuntes caminhando para dentro e para fora da área mais iluminada parecem atores de uma peça de Beckett. No entanto, como nas encenações do dramaturgo irlandês, existe uma ordem ali estabelecida, dada pelas linhas que conduzem a multidão para lá e para cá. Uma ordem, no entanto, de natureza distinta daquela apresentada na imagem de Brill. Se nessa o espaço amplo, cortado por linhas cruzadas, implanta um sentimento de expansão e devir, na foto de Rosenthal a ordem subjacente parece ser da natureza do círculo ou elipse deformada, sugerindo nenhuma possibilidade de reversão.

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A segunda São Paulo, aquela dos pintores, é infensa a qualquer inquietação, a qualquer ruído do moderno. Foram poucos os artistas que no século passado deixaram os arrabaldes ermos, os confins longínquos de São Paulo. Poucos trouxeram para o campo da pintura o centro vigoroso da metrópole. E quando o fizeram, preferiram eternizá-lo na modorra das manhãs de domingo, ou então nos momentos breves em que a metrópole silencia, como se de repente ficasse exausta do barulho contínuo.

No primeiro caso, temos Francisco Rebolo. Em seu Arredores de São Paulo, 1938 (Col. MAM SP), a metrópole é evocada apenas no título e negada na sua realidade. O arrabalde da cidade é tudo o que ela não é: calmo, silencioso, onde a luz é o único ruído benfazejo, diga-se, a fertilizar, com o trabalhador em primeiro plano, a terra dadivosa.

Quando Rebolo pinta o centro de São Paulo, seus tons esmaecidos, delicados, parecem almejar mais o que vem depois do primeiro plano, em que os índices do urbano estão demarcados com singeleza e muita parcimônia. Em Praça Clóvis, 1944 (Col. Particular), por exemplo, a São Paulo ali descrita situa-se ainda entre a metrópole que se insinua por meio do edifício de concreto, do ônibus em primeiríssimo plano, e os índices do ontem ainda presentes: a igreja, o casario baixo que se alonga e esgarça até perder-se no campo, entre uma ou outra discreta chaminé, que também alude ao moderno que se avizinha cada vez mais.

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Mick Carnicelli foi um dos raros pintores que registrou São Paulo sistematicamente até o início dos anos 1960. Com formação veneziana, e estágios em Londres e Paris, o artista voltou e se estabeleceu em São Paulo no início dos anos 1920. Com a cidade manterá uma relação peculiar, optando por retratá-la por meio de recortes menos explorados, usando dessas imagens de São Paulo como subterfúgios para expressar uma visão pouco confiante não apenas na metrópole, mas na própria vida. Aderente a um naturalismo reanimado pelo apreço por alguns pós-impressionistas (Cézanne entre eles), Carnicelli, entretanto, não costumava juntar o cavalete e outros apetrechos e sair à caça de locais que chamassem sua atenção, quer pela luz, quer por outros aspectos pitorescos. Reservado, tendente à reclusão, o pintor atuou como um espectador que via São Paulo de sua janela, do pátio ou do quintal de seu ateliê ou moradia. Era desses postos de observação privilegiados, e à parte do embate direto com a cidade e com a arte de ponta, que ele a investigava a si mesmo.

Apesar de, desde o início, ter tido São Paulo como um dos estímulos para sua pintura, o que interessa sublinhar aqui é sua produção realizada a partir dos anos 1950, quando Carnicelli se instala na residência de seus pais, na Avenida Paulista. É daquele ponto privilegiado que o pintor anota o crescimento rápido da cidade moderna que avança.

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Nelson Leirner. “Você faz parte II”, 1964. Madeira, aço cromado e espelho, 111,3X111,3X10,2cm. Coleção Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, São Paulo.

No artigo mais recente aqui publicado[7], escrevi sobre a obra de Nelson Leirner, Você faz parte II que, como Não entre à esquerda, de Maurício Nogueira Lima, foi produzida em 1964. Chamo a atenção para essa coincidência: duas obras que representaram desvios significativos no campo da arte contemporânea – contribuindo para a sua introdução entre nós –, foram produzidas num ano tão fatídico para nossa história. Se a obra de Leirner pode ser entendida como uma crítica ao golpe e como introdutora entre nós da crítica institucional, Não entre à esquerda demonstra como a cidade pode ser pensada e reelaborada enquanto imagem, fora do âmbito da iconografia mais previsível.

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[1] – Um concretismo agora semantizado, mas, mesmo assim, concretismo.
[2] – Neste sentido também podem ser pensadas as peças de metal colocadas na pintura por Nogueira.
[3] – Esses seriam os focos que, segundo Mario de Andrade, Tarsila deveria perseguir. Trecho de uma carta do crítico à artista: “(…) Creio que não cairás no cubismo. Aproveita dele apenas os ensinamentos. Equilíbrio, Construção, Sobriedade. Cuidado com o abstrato (…”). Carta de 16 de junho de 1923, de Mario de Andrade para Tarsila do Amaral. In, AMARAL, Aracy. Tarsila, sua obra e seu tempo. Sobre as relações do modernismo brasileiro com o “pós-cubismo de linhagem purista”, consultar: CHIARELLI, Tadeu. Pintura não é só beleza. A crítica de arte de Mário de Andrade. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2007.
[4] – LIMA, Solange f. de/CARVALHO, Vânia C. de. Fotografia e cidade. Da razão urbana à lógica de consumo. Álbuns de São Paulo (1887-1954). Campinas: Mercado de Letras, 1997.
[5] – Em foto mais recente, o artista mantém o mesmo padrão de objetividade recorrendo, no entanto, a outro expediente: Calculadora Logos 270, Olivetti, Guarulhos, de 1970, apresenta não apenas o produto com seu desenho eficaz, objetivo, mas igualmente o resultado de toda essa eficácia: contrasta de maneira saborosa na imagem, a frieza com que é captada a calculadora e a sensualidade (acentuada pelo jogo sofisticado e sinuoso de luz e sombra) da fita de papel que sai da pequena máquina, marcada pelos registros da contabilidade empresarial.
[6] – Como visto, a foto de Wichinsk foi produzida para um álbum sobre São Paulo e as fotos de Flieg para o catálogo das indústrias mencionadas nos títulos das fotos de sua autoria. Em tempo: essas fotos hoje pertencem ao Instituto Moreira Salles.
[7] – “Para Nelson ou os perigos da fúria interpretativa”, dia 23 de setembro de 2020. https://artebrasileiros.com.br/opiniao/conversa-de-barr/para-nelson-ou-os-perigos-da-furia-interpretativa/