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Arte132 Galeria abre as portas em São Paulo com exposição de Alex Flemming

Vista da exposição ALTURAS, de Alex Flemming, na Arte132 Galeria
Vista da exposição individual de Alex Flemming, "Alturas", em cartaz na Arte132. Foto: Henrique Luz/Divulgação

“Temos particular interesse na produção menos conhecida dos [artistas] mais reconhecidos pelo circuito brasileiro das artes e, também, na produção dos consagrados pela história da arte brasileira, mas que demandam revisão. Contudo, a arte de um país e de um período não é constituída apenas por alguns nomes definidos pelo mercado, mas por todos os artistas que desenvolveram um entendimento do Mundo e do Homem num momento. Pretendemos reincluir nomes no cenário das galerias e instituições”, conta Telmo Porto. Fundador da Arte132, é assim que ele define os rumos da nova galeria, inaugurada em agosto de 2021 em Moema, zona sul da cidade de São Paulo. 

Mais do que uma galeria tradicional, a Arte132 pretende se projetar como espaço múltiplo, promovendo discussões e cursos com especialistas – que interdisciplinarmente envolverão temas como artes visuais, história, literatura, música e humanidades -, bem como recitais de música, tornando-se um lugar de encontro. 

Engenheiro de formação, Telmo Porto lecionou na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo por 40 anos, mas sempre teve a arte como um de seus pontos de maior interesse. Conselheiro e patrono de museus em São Paulo, ele agora abre a galeria como um das frentes de sua atuação no cenário artístico brasileiro. “O que se pretende oferecer são obras que reflitam o tempo em que foram criadas, contemporâneo e passado, e que possam ser adquiridas como testemunho. Obras que mantenham seu poder de propor e deslumbrar”, conta sobre o projeto. E complementa: “Queremos mostrar e oferecer arte de qualidade ao maior número de pessoas possível. Entre o grande colecionador, com apoio curatorial, e a jovem família, que quer ter arte relevante em sua parede, mas enfrenta restrições orçamentárias”.

Foi com uma exposição individual inédita de Alex Flemming, com curadoria de Angélica de Morais, que a casa abriu suas portas. Em cartaz até 16 de outubro, Alturas reúne obras da série homônima iniciada em 1988. São 15 pinturas de grande escala nas quais “sobre fundos abstratos, Flemming registrou a altura física de pessoas que admira e que foram ao seus ateliês (no Brasil ou na Alemanha). Não são registros de celebridades, são homenagens”, explica Porto em um dos vídeos sobre a mostra publicado no Instagram da galeria. “Nesta série, retrato concretamente a altura das pessoas do nosso tempo, com toda a carga artística que uma obra requer. A série é abstrata, mas também absolutamente real e concreta”, comenta Alex Flemming.

“Flemming apropriou-se e expandiu em pintura um antigo hábito incorporado ao cotidiano doméstico da sua família: medir o crescimento dos filhos. Quando garoto, habituou-se a ter sua altura conferida em uma régua de traços construída e acumulada em uma parede da casa ao longo dos anos. O procedimento, que ele replicou para todos seus retratados, consiste em tirar os sapatos e, de costas para uma tela in progress, ficar imóvel para também ter sua estatura mensurada”, explica Angélica de Morais no texto curatorial. E destaca: “Coerente com o foco de sua obra, fortemente ancorada na figura humana, ele substitui a imagem do corpo pelo índice da presença: a régua que informa a altura do retratado”.

Paulo Mendes da Rocha, Gilberto Gil, João Moreira Salles, German Lorca, Ayrson Heráclito, Eduardo Galeano, José Mujica são alguns dentre os tantos que tiveram sua estatura registrada. No total da série, “33% dos homenageados nessas telas são artistas plásticos brasileiros, 16% são artistas plásticos estrangeiros, 19% são fotógrafos, 6% cineastas, e há também atores e atrizes, esportistas, escritores, poetas, filósofo, bailarina e bailarino, cantores e cantoras”, explica Porto.

O artista padroniza o tamanho das telas para que constituam uma espécie de “Código de Barras da cultura de nosso tempo”. Para a curadora, o conceito de medir é subvertido nessas obras por outra escala de valores: a relevância cultural, “entendida aqui não só na esfera das artes mas também de outras atividades que, somadas, definem a cara do que é estar no mundo hoje e as muitas contribuições que tivemos para estruturar nossa própria visão de mundo, cada vez mais fragmentária e contingente, caleidoscópio de muitas facetas iluminadas que se completam por oposição ou complemento”.

SERVIÇO

Alturas, individual de Alex Flemming
Arte132: Av. Juriti, 132 – Moema, São Paulo (SP)
Visitação: Em cartaz até 16 de outubro. Segunda à sexta-feira, das 14h às 19h; sábado, das 11h às 17h

steinART se coloca como nova galeria no circuito

Claudio Steiner na steinART. Foto: Divulgação

“Desde muito jovem sempre fui um apreciador de arte. Logo cedo me encantei com Kandinsky, Polock e Miró”, conta Claudio Steiner, um dos donos da steinART, escritório de arte recém transformado em galeria. No início dos anos 2000, Claudio e sua esposa Yael fundaram a steinART ao começar sua, até então, pequena coleção. Tendo Administração como formação, Claudio conta que, à medida que sua coleção crescia, o casal começou a analisar o mercado e vender obras quando sentiam que era o momento certo. Antes de montar seu escritório, ele havia trabalho 25 anos no mercado têxtil. “Após sair da empresa me aprofundei no mercado de arte, unindo minha experiência comercial com o amor à área. Comecei como art dealer, e nasceu a steinART como escritório de arte e agora galeria.”

“Arte abstrata sempre foi a minha preferência, ela me emociona, me encanta, me provoca e me deixa em estado meditativo”, diz ele em referência ao foco da galeria: abstracionismo na arte contemporânea brasileira. No acervo da steinART, o diálogo se dá por uma geração de brasileiros e latino-americanos com trajetórias já construídas e que rompem com o modernismo e experimentam através de cores e texturas. Claudio conta que a motivação inicial para uma aquisição pela galeria é a estética e a qualidade da obra. “Em seguida investigamos a origem e certificação da obra. Recentemente adquirimos obras do Amílcar de Castro, Amélia Toledo, João Carlos Galvão, Almandrade, Yutaka Toyota, Ascânio e Eduardo Sued, entre outros.”

Embora estejam focados no mercado secundário, a steinART já colocou um pé no mercado primário com, por exemplo, a retrospectiva dos 60 anos de carreira do Yutaka Toyota com lançamento de seu livro na SP-Arte 2019. Na edição deste ano, a galeria irá expor 20 obras no viewing room da feira, com a continuidade do formato híbrido das feiras de arte. No entanto, Claudio confessa que a concretização das vendas, mesmo que iniciada pela internet, sempre acontece presencialmente. Ele nota, também, que apesar da preocupação inicial do mercado da arte, as vendas continuaram e com um aumento sensível do interesse das pessoas por obras de arte. “Inicialmente achei que os negócios fossem parar, porém foi o contrário: as vendas cresceram”, conta. Para o futuro, os donos da galeria planejam uma exibição de suas obras e a continuação dos seus trabalhos, também, como marchands e art advisors.

 

Monteiro Lobato crítico de arte. De novo [ou ainda]

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"A mulher de cabelos verdes", s.d., de Anita Malfatti. Foto: Reprodução/ Fund. A. Queiroz, Fortaleza CE
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“A mulher de cabelos verdes”, s.d., de Anita Malfatti. Foto: Reprodução/ Fundação A. Queiroz, Fortaleza/CE

Às vésperas do centenário da Semana de Arte Moderna, é oportuno refletir sobre a crítica daquele que é visto como o intelectual que levaria o modernismo paulistano a ganhar dimensão pública: Monteiro Lobato. Como repete a historiografia oficial, teria sido a partir de seu texto “contra” Anita Malfatti que os modernistas, ainda em 1917/1918, começaram a se arregimentar[1].

Antes de entrar na crítica lobateana, minha intenção é introduzi-la num quadro mais amplo, deixando os limites do debate artístico de São Paulo na segunda década do século passado para pensar sua atuação na luta entre dois tipos de arte que, desde o final do século 19, estavam em disputa. Uma delas, a mais nova, impunha-se como potência insurgente; a mais antiga resistia às investidas da primeira, convocando forças para uma luta que, no final, se revelaria inglória. Me refiro ao embate entre a arte tradicional, que se estruturava desde o Renascimento, e a arte modernista que, surgida no século 19, buscava efetivar-se como um novo paradigma.

Traçar esse quadro permitirá compreendermos de forma menos circunscrita o papel desempenhado por Lobato como crítico. Na segunda parte examinarei algumas questões da crítica lobateana dentro desse quadro mais alargado.

***

No livro Después del fin del arte – el arte contemporáneo y el linde de la história,[2] o filósofo norte-americano Arthur C. Danto propõe uma “era da arte” iniciada mais ou menos a partir de 1400. Sobre a produção anterior a essa data, o autor, tendo como referência o estudioso alemão Hans Belting, em Likeness and Presence: A history of the Image before the era of art, assim se manifesta:

Isso não significava que essas imagens não fossem arte em seu sentido amplo, e sim que sua condição artística não figurava na elaboração das mesmas, dado que o conceito de arte ainda não havia aparecido realmente na consciência coletiva. Consequentemente essas imagens – na verdade ícones – tiveram um papel bastante diferente na vida das pessoas do que tiveram as obras de arte quando esse conceito apareceu enfim e começou a reger nova relação com elas (…) Nem sequer eram consideradas no sentido elementar de terem sido produzidas por artistas (…), e sim que eram observadas como se sua origem fosse milagrosa (…)[3].

Se houve essa quebra na compreensão do fenômeno da arte, seria possível, então, conceber um fim para a “era da arte”. Essas questões são o início da apresentação da tese de Danto, justificando o objeto do seu livro: a produção artística levada a cabo “após o fim da arte”. Para ele não se tratava de discutir o “fim da arte” – como vários autores decretaram nos últimos tempos –, mas sim, o fato de que uma era havia findado:

Minha opinião não era que não devia haver mais arte (…) e sim que qualquer nova arte não poderia sustentar nenhum tipo de relato que pudesse ser considerado como sua etapa seguinte. O que havia chegado a seu fim era esse relato, mas não o tema do relato”[4].

Dentro desse grande relato proposto por Danto, ainda segundo ele, teria havido um período – o modernismo –, em que os pintores que, antes, se dedicavam “à representação do mundo, pintando pessoas, paisagens e eventos históricos tal como se apresentavam a seus olhos. Com o modernismo, as condições da representação se tornam centrais, e é daqui que a arte, em certo sentido, se torna seu próprio tema”[5].

Danto citará o crítico norte-americano Clement Greenberg como o responsável pelo relato sobre o modernismo, que teria substituído a narrativa baseada na vida dos artistas, criada por Giorgio Vasari, no século 16[6]. Para Greenberg, Manet teria exercido na pintura o papel de Kant na filosofia. Se esse último se questionou sobre como seria possível o conhecimento, as pinturas de Manet “se tornaram as primeiras imagens modernistas, em virtude da franqueza com a qual se manifestavam as superfícies planas em que eram pintadas”.[7] Danto, afirma:

Se Greenberg estiver certo, é importante assinalar que o conceito de modernismo não é meramente o nome de um período estilístico que começa nas últimas décadas do século 19, ao contrário do maneirismo que é um período estilístico que começou nas primeiras décadas do século 16 (…) O modernismo está marcado pela ascensão a um novo nível de consciência, refletido na pintura como um tipo de descontinuidade, como se acentuar a representação mimética tivesse se tornado menos importante que outro tipo de reflexão sobre os sentidos e os métodos de representação (…) A questão é que ‘moderno’ não significa somente ‘o mais recente’. Significa, na filosofia e na arte, uma noção de estratégia, estilo e ação”[8].

“Olympia”, 1863, de Édouard Manet. Foto: Reprodução/ Museu D’Orsay, Paris

Ainda segundo Danto, para se estabelecer, o modernismo precisou impor um novo paradigma, substituindo aquele praticado antes, o da mimesis, que durante séculos serviu aos propósitos da arte[9]. Continuando:

Durante um período histórico, se supôs que para ser uma obra de arte, especialmente uma obra de arte visual, a obra teria que ser mimética: imitar uma realidade externa, atual ou possível (…). Mimesis era a resposta filosófica habitual à pergunta sobre o que era arte, desde Aristóteles até o final do século 19, inclusive o século 20 (…) A mimesis se converteu em um estilo com o aparecimento do modernismo (…)[10].

Na sequência, em meio às suas considerações sobre o modernismo e seu fim (que ele situa a partir de meados dos anos 1960), Danto demonstra como eram percebidas as transformações da arte mimética para a arte moderna. Para tanto, citará o esteta inglês Roger Fry que, em 1912, ao resenhar uma exposição de pós-impressionistas em Londres, afirma:

Quando ocorreu a primeira exposição de pós-impressionistas há dois anos nessas galerias, o público inglês soube majoritariamente pela primeira vez que existia um movimento artístico, um movimento que foi o mais desconcertante por não ser uma variação dos temas aceitos e sim que implicava uma reconsideração dos próprios propósitos e metas, assim como dos métodos da arte pictórica e plástica (…) Foram feitas livremente acusações de torpeza e incapacidade [por um público] que em uma pintura admira principalmente a destreza com que o artista produz a ilusão e que resiste a uma arte em que a destreza está completamente submetida à expressão direta do sentimento”[11].

Nota-se que Fry entende estar frente a uma arte não mimética – principal valor para o público de então. Porém, mesmo não possuindo repertório para julgar a pintura pós-impressionista, nota-se o respeito com que o inglês se acerca da arte não mimética proposta pelos expositores.

Mas sabemos que quase ninguém agiu com a sensibilidade ao falar sobre a arte moderna. A recepção que a arte modernista teve na Europa, desde finais do século 19, até os primeiros anos do século seguinte, foi ditada pela incompreensão e pela tentativa de fazer prevalecer o paradigma da verossimilhança, mesmo em intelectuais que, de início, lutaram a favor dos impressionistas. Aqui a figura do francês Émile Zola é emblemática. Defensor de Manet e dos impressionistas, em 1896 ele se escandaliza frente à arte da época, demonstrando seus limites frente ao próprio impressionismo:

Mas minha surpresa se converte em cólera quando comprovo a demência a que pôde conduzir em trinta anos a teoria dos reflexos. E esta foi uma das vitórias que nós obtivemos, os precursores! Com toda razão, sustentávamos que a iluminação dos objetos e das figuras não é simples, que sob as árvores, por exemplo, as carnes nuas assumem tonalidades verdes, que se produz assim um contínuo intercâmbio de reflexos que é mister ter em conta se se pretende dar a uma obra a vida real da luz. A luz se decompõe sem cessar, se quebra e de esparrama. Se alguém não quiser cair na pintura acadêmica feita à luz fictícia do ateliê, se se aborda a natureza imensa e cambiante, à luz eternamente diversa chega a ser a alma da obra. Mas nada há mais delicado e difícil de captar e representar que esta decomposição e estes reflexos, estes jogos do sol que, sem deformá-las, banham as criaturas e as coisas. Quando se insiste em um aspecto e quando intervém a racionalização se chega rapidamente à caricatura. E são realmente obras desconcertantes essas mulheres multicores, essas paisagens de cor violeta e esses cavalos alaranjados que nos oferecem os artistas, explicando-nos cientificamente que são assim por obra de determinados reflexos ou de determinada decomposição do espectro solar. Oh! Essas senhoras que têm uma bochecha azul à luz da lua e a outra bochecha amarelada sob a luz da cúpula de uma lâmpada! Oh! Esses horizontes em que as árvores são azuis, as águas vermelhas e os céus verdes! É horrível, horrível, horrível![12].

É notável como Zola se exaspera frente aos artistas que superam questões caras aos realistas e primeiros impressionistas, abandonando expedientes para conseguir maior efeito mimético. Agora eles investem no próprio ato de pintar.

***

Em 1905, sete anos depois do texto de Fry e 12 antes daquele de Lobato, um casal de colecionadores norte-americanos se posiciona sobre o Salão de Outono de Paris:

Agora chegamos à mais assombrosa galeria neste Salón tão rico em surpresas. Aqui toda descrição, todo informe, o mesmo que qualquer crítica, se tornam igualmente impossíveis dado que o que nos apresentou aqui – com exceção do material empregado – não tem nada em comum com a pintura: alguma confusão informe de cores: azul, vermelho, amarelo, verde: algumas manchas de pigmento cruamente justapostas: o bárbaro ingênuo esporte de uma criança que brinca com a caixa de cores que acaba de receber como presente de Natal (…). Esta seleta galeria de aberração pictórica, de loucura de cor, de indizíveis fantasias produzidas por gente que, se não joga algum jogo, deveria ser enviada de novo para a escola[13].

De novo o preconceito frente aquilo que só parecia se assemelhar à pintura devido ao uso dos mesmos materiais. De resto, uma visualidade que nada tinha a ver com a mimesis, nada a ver com a arte “culta” ou “adulta”. Daí a relação direta com a arte da criança ou de gente que, se não estivessem brincando, deveriam ser enviadas de imediato para a escola para aprenderem o “certo”.

Na sequência, mais uma declaração de pouca empatia frente à arte moderna, também citada por Danto. Trata-se de uma matéria publicada em Munique em 1909, sobre uma exposição que então ocorria na Nova Associação de Artistas:

Há só duas formas possíveis de explicar esta exposição absurda: uma, que alguém assuma que a maioria dos membros e convidados da Associação são dementes incuráveis, ou outra que se trata aqui de desavergonhados enganadores que apenas conhecem muito bem o desejo de sensacionalismo do nosso tempo e tratam de aproveitar-se de seu auge.[14]

***

Os trechos acima reafirmam a dificuldade de muitos (e não apenas de Lobato) em encarar que a pintura poderia ir além da criação de duplos do real.

Desde o Renascimento acreditava-se que a arte poderia captar o real de maneira idealizada ou não, e os debates caminhavam sempre dentro deste limite. Até a segunda metade do século 19 jamais havia sido colocado em dúvida que a pintura não tivesse o compromisso de ser um análogo da realidade. Porém, na medida em que alguns artistas levantavam outro paradigma – afirmando que a arte poderia voltar-se para a análise da própria produção, para a exploração de suas “verdades” intrínsecas –, as reações perante essa nova possibilidade tendiam a se manifestar por meio de três posturas:

1 – a arte moderna era uma produção realizada por “analfabetos” artísticos, e daí o melhor era que eles fossem estudar; 2 – a arte moderna era praticada por pessoas insanas, e então eles deveriam voltar para o manicômio; 3 – a arte moderna era uma produção praticada por mistificadores que teriam como objetivo confundir a opinião pública, desbaratando os valores da arte tradicional.

lobato
“Rosita”, 1913, Ignacio Zuloaga

Levantados esses dados, leio agora um trecho do famoso texto que Lobato escreveu sobre a exposição protagonizada pela artista Anita Malfatti, em 1917:

Há duas espécies de artistas. Uma composta dos que veem as coisas e em consequência fazem arte pura, guardados os eternos ritmos da vida, e adotados, para a concretização das emoções estéticas, os processos clássicos dos grandes mestres.

Quem trilha esta senda, se tem gênio, é Praxíteles na Grécia, é Rafael na Itália, é Reynolds na Inglaterra, é Dürer na Alemanha, é Zorn na Suécia, é Rodin na França é Zuloaga na Espanha. Se tem apenas talento, vai engrossar a plêiade de satélites que gravitam em torno desses sóis imorredoiros.

A outra espécie é formada dos que veem anormalmente a natureza e a interpretam à luz das teorias efêmeras, sob a sugestão estrábica de escolas rebeldes, surgidas cá e lá como furúnculos da cultura excessiva (…); são frutos de fim de estação, bichados no nascedouro. Estrelas cadentes (…).

Embora se deem como novos, como precursores de uma arte a vir, nada é mais velho do que a arte anormal ou teratológica: nasceu como a paranoia e a mistificação (…)

(…) Todas as artes são regidas por princípios imutáveis, leis fundamentais que não dependem da latitude nem do clima (…)

(…) Enquanto a percepção sensorial se fizer no homem normalmente, através da porta comum dos cinco sentidos, um artista diante de um gato não poderá “sentir” senão um gato; e é falsa a “interpretação” que o bichano fizer do toró, um escaravelho ou um amontoado de cubos transparentes (…)[15].

Este texto ecoa de perto os excertos que comentei. Frente à produção que via na mostra protagonizada por Anita Malfatti, para ele existiriam duas opções para enquadrar aquelas obras: ou eram fruto da paranoia ou puras mistificações.

***

Reler o texto de Lobato no cenário da batalha travada entre os defensores da “era mimética da arte” e a “era modernista”, faz com que seu provincianismo e reacionarismo encontrem seus pares na cena internacional. Embora exista um pequeno gap entre os textos citados e aquele de Lobato, não restam dúvidas de que, caso fôssemos encetar um levantamento nos arquivos europeus e norte-americanos da segunda década do século passado, encontraríamos outras provas de que Lobato, em 1917, não estava só. Por outro lado, seu texto redimensiona a recepção da arte modernista como um todo: ela não foi belicosa apenas no Brasil. Em outros países os partidários do antigo paradigma e daquele proposto pela arte moderna também entraram em uma luta que ainda não foi devidamente recuperada e estudada em seus mais variados alcances.

Como no caso brasileiro, a adesão às ideias modernistas no exterior também ocorre com algum retardo. No Brasil, seria justamente a partir de 1917, com a exposição protagonizada por Malfatti, que tal fenômeno se iniciaria.

Mas esta adesão – não podemos esquecer – se deu num momento em que as vertentes mais radicais do modernismo europeu se encontravam em fase de refluxo, perdendo a força que tiveram desde o final do século 19. Em 1917, em alguns setores do ambiente europeu, muitos artistas, antes ligados às vanguardas, começavam a repudiar parcial ou irrestritamente as manifestações mais radicais das vanguardas, recolocando o renascimento da mimese a partir do retorno a uma visualidade anterior[16].

Assim, em 1917, quando Lobato fica indignado frente à exposição protagonizada por Malfatti – por ver ali indícios de que haveria um projeto que se opunha ao seu próprio projeto de arte brasileira (sobre o qual retornarei) –, no plano internacional já se esboçava outra situação de complexidade ainda maior: muitos artistas renegavam os ganhos estabelecidos pelo paradigma modernista.

***

Sem título, 1887, de Anders Zorn. Foto: Reprodução/ Museu Nacional, Estocolmo

Vale a pena reler o seguinte trecho do texto de Lobato:

Quem trilha esta senda, se tem gênio, é Praxíteles na Grécia, é Rafael na Itália, é Reynolds na Inglaterra, é Dürer na Alemanha, é Zorn na Suécia, é Rodin na França é Zuloaga na Espanha. Se tem apenas talento, vai engrossar a plêiade de satélites que gravitam em torno desses sóis imorredoiros.

O crítico evoca grandes artistas ligados à tradição europeia, (Praxíteles, Rafael, Reynolds e Dürer), ao lado de contemporâneos: Zorn, Rodin[17] e Zuloaga. Se os primeiros ainda hoje são referências para a arte ocidental, Zorn e Zuloaga foram para o limbo da história por praticarem uma pintura que mesclava estilemas naturalistas a uma estrutura conservadora.

O que, então, teria feito com que Lobato juntasse esses dois conjuntos de artistas, sem se preocupar em definir as diferenças entre eles? É que, “clássicos” ou “modernos”, “bons” ou “medianos”, todos eram adeptos da arte mimética. Frente às vertentes que ameaçavam romper com esse paradigma, as diferenças entre os dois grupos deixavam de existir, pois era necessário convocar a todos contra o inimigo comum.

Lobato, desde seus primeiros textos posicionou-se como filiado à arte naturalista, acreditando ser ela a vertente moderna para a arte do Brasil. Essa filiação servia-lhe de filtro para a apreciação que fazia sobre qualquer artista, inclusive Pedro Américo – a quem não aceita por ser um artista idealista e não naturalista – e Almeida Jr. – para ele o grande pintor do país, por ter retratado, dentro do naturalismo, o homem brasileiro “puro”.

Saudade, 1899, de Almeida Jr. Foto: Reprodução

Porém, após a exposição protagonizada por Malfatti, Lobato demonstra-se chocado com a possibilidade de um outro projeto de arte moderna para o Brasil. Ele então titubeia e, como crítico, dá sinais de que se encontra em questionamento. É neste sentido que se entende seu súbito interesse por Pedro Alexandrino, fiel ao mimetismo idealizado e produtor de naturezas-mortas arrebanhadas com sofreguidão pela burguesia da cidade. É justamente Pedro Alexandrino quem Lobato visitará em 1918 e sobre o qual escreverá, enaltecendo os valores tradicionais da pintura e do agir daquele artista. Ao finalizar, ele deixa o seguinte conselho:

Se nos fosse concedida a liberdade de aconselhar alguém, diríamos a todos os jovens pintores em formação: frequentai Pedro Alexandrino, aprendei com ele a fazer da arte uma religião, tomai como norma de vida moral a sua simplicidade encantada; como norma de vida mental o seu ódio a tudo o que é falso, charlatanesco, burlesco, vila-marianesco, Kyrialesco, idiota, cúbico ou futurístico, e o seu amor à verdade e à sinceridade[18].

Interessante a necessidade de Lobato em procurar um grande divulgador daquilo que entendia como sendo a arte de “amor à verdade e à sinceridade”. Isto, após ter escrito sobre a exposição protagonizada por Malfatti, que trazia para São Paulo uma arte que, para ele, era pura paranoia ou mistificação.

Tal atitude demonstra que, para Lobato, a exposição protagonizada por Anita não significou pouca coisa. Suas convicções se abalaram frente ao novo paradigma que a artista, seu professor e colegas apresentavam[19]. Por isso, talvez, a necessidade de visitar Alexandrino, buscando a “verdade da arte” que parecia querer escapar. Por isso a ideia de aconselhar os jovens artistas em formação a irem ao ateliê do artista mais velho em busca da “verdadeira arte”[20].

“Maçãs e uvas”, s.d., de Pedro Alexandrino. Foto: Reprodução/ Pinacoteca de São Paulo

***

Lobato considerava-se um crítico moderno e essa afirmação dá a medida da complexidade do ambiente artístico paulistano dos anos 1910. Ele considerava-se moderno e opositor da arte acadêmica e, assim, associava-se a críticos brasileiros do final do 19, como Angelo Agostini e Felix Ferreira, também naturalistas. Ele também se alinhava a Zola, o crítico que, tendo divulgado da arte “científica” e positivista dos naturalistas e impressionistas franceses, encontrou-se inconformado, no final daquele século, frente à “deturpação” que vinham impingindo ao paradigma da arte como duplo do real.

A diferença de Lobato frente aos três era que, aliado à sua adesão irrestrita ao naturalismo, ele juntava o nacionalismo. Sua crítica propugnava um naturalismo nacionalista e esse, de fato, era o anteparo que ele usava para refletir sobre arte.

Lobato constituiu um projeto de estetização nacionalista da vida brasileira, não ficaram restritas à pintura e à escultura. valendo a pena atentar para seus textos sobre arquitetura, os estrangeirismos na língua portuguesa e suas propostas para uma moda nacional[21].

***

O que poderíamos concluir sobre a crítica de Lobato contra investidas do modernismo? Em primeiro lugar, não devemos esquecer a complexidade da situação, lembrando que tal resistência ocorre com maior força a partir de 1917, quando, ao mesmo tempo, vertentes do Retorno à Ordem passam a jogar contra as vanguardas, insistindo no retorno a uma produção ligada à mimesis, tornando ainda mais complexa a implantação do modernismo paulistano. Por outro lado, não se deve pensar Lobato como um crítico “acadêmico”. Sua produção é conservadora, sobretudo se a pensarmos tendo as próprias vertentes modernistas como base. Porém, se atentarmos para o debate artístico durante sua atuação mais aguerrida, será visto que ele representava uma alternativa naquele quadro e isso porque, além de adepto do naturalismo, postulava o nacionalismo na arte. Naturalismo nacionalista: esta era a diferença da crítica de Lobato no debate brasileiro. Foi essa posição que o tornou não apenas mais um crítico, mas O crítico de arte mais respeitado em São Paulo entre 1914 e 1918[22].

No entanto, para dar a exata dimensão da complexidade daquele momento, não é possível deixar de lado que Lobato foi atropelado pelo modernismo que chegava através da exposição protagonizada por Malfatti. Tal fato fez com que ele se visse obrigado a deixar de lado suas diferenças com a arte acadêmica, para nela arregimentar forças contra o inimigo que vinha colocar em risco a crença positiva em uma arte que fosse um análogo do real, idealizado ou não.

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[1] – “Paranoia ou Mistificação”, Monteiro Lobato in LOBATO, Monteiro. Ideias de Jeca Tatu. 7ª. São Paulo: Editora Brasiliense, 1956 pág. 59-65. Em tempo: Lobato não escreveu o famoso artigo contra Malfatti, e sim contra a arte moderna (Daí, a palavra contra ter vindo grafada entre aspas no parágrafo.
[2] – DANTO, Arthur C. Después del fin del Arte. El arte contemporâneo y el linde de la historia. Barcelona: Paidós, S.A., 1999.
[3] – DANTO, Arthur C. op.cit. pág. 25/26.
[4] – Idem. Pág. 27.
[5] – Idem, Pág. 29.
[6] – Giorgio Vasari, pintor, arquiteto e historiador que, em 1550, publicou Vidas dos mais excelentes pintores, escultores e arquitetos, pautado no relato das biografias dos artistas. Vasari é considerado por muitos o primeiro historiador da arte.
[7] – Greenberg, C. Apud DANTO, Arthur C. Idem. Pág. 29.
[8] DANTO, Arthur C. op.cit. Pág. 52.
[9] – Idem.
[10] – Idem. Pág. 68.
[11] – Idem. Pág. 74/75.
[12] – ZOLA, Émile. El buen combate. Em defensa del impressionismo. Buenos Aires: Emecé Editores, 1986. Págs. 259/260.
[13] – DANTO, Arthur, op.cit. pág. 77/78.
[14] – Idem, pág. 78.
[15] – “Paranoia ou mistificação”, Monteiro Lobato. Op. Cit. Recentemente o estudioso Daniel Rincon Caires publicou o artigo “Bichado ao nascedouro – cientificismo e degeneracionismo na crítica de arte de Monteiro Lobato”,  (https://www.snh2021.anpuh.org/site/anais),em que avança nos estudos sobre as filiações intelectuais de Monteiro Lobato em relação aos preconceitos contra a arte moderna.
[16] – Refiro-me ao Retorno à Ordem, tendência artística do entre guerras que recuperou vários aspectos da arte mimética. Sobre o assunto, ler, entre outros, CHIARELLI, Tadeu. Arte internacional brasileira. 2ª. São Paulo: Lemos, 2002.
[17] – Rodin falece em 1917.
[18] – “Pedro Alexandrino”, Monteiro Lobato. Revista do Brasil, ano 3, vol.7, n.26, fev 1918. Pág, 118-130. Apud CHIARELLI, Tadeu. Um Jeca nos vernissages. São Paulo: Edusp, 1995. Pág. 210-211.
[19] – Não nos esqueçamos que, pelo fato de Anita Malfatti ter apresentado sua produção ao lado de obras de seu professor norte-americano A. S. Baylinson, e de suas colegas Floyd O’Neale e Sara Friedman, a exposição pode ser considerada não propriamente uma mostra individual, mas uma coletiva protagonizada por Malfatti. Corroborando essa hipótese, o título da mostra: “Exposição de Arte Moderna. Anita Malfatti”.
[20] – Irônico é que, pouco depois, acolhendo direta ou indiretamente o conselho de Lobato, Malfatti vai estudar com Alexandrino, em cujo ateliê conhecerá Tarsila.
[21] – Sobre esses temas, vale a leitura de artigos como “A caricatura no Brasil”, “A criação do estilo ( A propósito do Liceu de Artes e Ofícios)”, “A questão do estilo”, “Ainda o estilo” e “Estética oficial”, entre outros. IN LOBATO, M. Op.Cit.
[22] – Importante não esquecer que o nacionalismo modernista emprestará algumas questões vindas dos postulados lobateano. Sobre o assunto ler: CHIARELLI, Tadeu. Pintura não é só beleza. A crítica de arte de Mário de Andrade. Florianópolis: Letras contemporâneas, 2007.

Inglourious bastards

By @jerrygogosian. Courtesy of the creator.

In Ocupar os memes é preciso, the researcher and professor of University of São Paulo, Giselle Beiguelman, resumes the origin of the word “meme”, tracing it back to a time before the internet. The name we use today was coined by the English biologist Richard Dawkins, in 1976, in the book The Selfish Gene. In Dawkins’ theory, as Beiguelman summarizes, “the meme is a replicator unit that spreads by imitation, always subjected to mutation and mixing, and that functions as critical resistance”.

Dislinking itself from its origin, and “back to the future”, the meme as we understand begins to appear in the 2000s and spreads with sharing via social networks. Far from being restricted to pop culture, memes have taken roots to other fields, such as politics, and, gradually, have been operated by propaganda and advertising.

"Star Trek Memes Untamed", @freeze_magazine. Courtesy of Cem A. aka @freeze_magazine.
“Star Trek Memes Untamed”, @freeze_magazine. Courtesy of Cem A. aka @freeze_magazine.

Without imprisoning them in a categorical definition, Beiguelman rather points to their frequent composition: “They present a format in which the text does not function as an explanatory complement to the image nor the image serves merely to illustrate the text, but the two elements chain themselves together to produce a third sense”. On Instagram, in particular, another visual element is included, positioned in a certain “between” – neither completely inside or outside the post – which is the location of the photo, used more and more to add depth to the joke. “Low resolution, bastards and without signature; [memes] are poor images, in the sense given by the German artist and essayist Hito Steyerl to the expression, which can act as a counterpoint to the dominant representation systems”, Beiguelman describes. The Brazilian profile New Memeseum is in line with the argument when it indicates that memes possibly help to formulate narratives different from the hegemonic ones. “Maybe show their unfoldings, contradictions and oppositions”. For them – whose identities are preserved in anonymity – the power of memes lies in their fictional character. “Paraphrasing Karl Ove Knausgård, maybe we are trying to combat fiction with fiction”. At the end of the second volume of the Norwegian writer’s series My Struggle, it reads – and the New Memeseum quotes: “It was a crisis, I felt it in every fibre of my body, something saturating was spreading through my consciousness like lard, not least because the nucleus of all this fiction, whether true or not, was verisimilitude and the distance it held to reality was constant. In other words, it saw the same. This sameness, which was our world, was being mass-produced”.

With regard to this counterposition activity, Cem A. (also known as @freeze_magazine, in parody of the British art magazine) presents the possibility of memes as agents of change, although not in a revolutionist way, but reformist. “Memes should be seen as a tool to popularise forward-thinking ideas. Their popularity can give us the upper hand in the conversation. This is where their strength lies. The crucial danger here is how they might be absorbed by the art market. If memes were commercialised with a short sighted approach, this would only make them less popular, genuine and efficient. It would make me question if they could be considered memes at all”.

When the establishment begins to swallow memes (which, until then, resisted it with acidic and humorous criticisms), do they lose strength (by integrating what they once have challenged)? An important observation is made by Hilde Lynn Helphenstein, creator of the virtual character Jerry Gogosian (the name alludes to two recognized figures in the art world, the critic Jerry Saltz and the mega gallerist Larry Gagosian): “The ways in which I plan to monetize what I’ve created with @jerrygogosian will be a means to achieve a version of the art world I can live with on a micro-scale. My artistic achievements will be perpetuated by the capitalist machine and I have no problem with that. An artist has to dream big (and eat)”.

“We are not sure whether the institutionalization of memes can cause any impact or change for content creators”, notes New Memeseum, when considering that, perhaps, the impact is on the institutions themselves, who, “by looking with less distinction between high and low culture, are incorporating languages that can attract new audiences into their programming”. Digging deeper, they question whether the narrative could not be told in reverse: from the perspective of social networks, it may be that museums and galleries are the “spaces of exception”, precisely because art is still somewhat inaccessible to the majority of the population [at least in Brazil]. According to what they observe in today’s scenario, institutions have started to seek their space on the Internet, investing and worrying about their virtual platforms.”There is a desire for audience engagement. The economy of likes has also impacted the sources of sponsorship – let’s remember the cultural edict that, recently, assumed as criterion the sum of social media followers of the members from each project”, they add. With these questions put on the horizon, they point out that New Memeseum (in the same way as Jerry and Freeze) is an Instagram profile and, as such, works within an app managed by a trillion-dollar conglomerate. “We also live under the regency of algorithms”.

Under such regency, is humor an effective format to face the established powers?, asks Hilde, to which she herself responds negatively. “Being the jester who states the obvious to the court in the presence of the king is still beholden to the king. Humor is a medicine which temporarily soothes the pain of those not in power and creates the illusion of taking back control. Taking money from the powers that be and redistributing wealth is probably the only way to “win” in late stage capitalism…but it feels good to laugh, whether you’re winning or losing”. In The Value of Laughter, Virginia Woolf expresses that laughter preserves our sense of proportion, recalls New Memeseum. In Woolf’s words: “Dogs, mercifully, cannot laugh, because, if they could, they would realise the terrible limitations of being a dog. Men and women are just high enough in the scale of civilisation to be intrusted with the power of knowing their own failings and have been granted the gift of laughing at them”. In that same text, reminding us of the importance of proportion, the British writer ends up also mentioning the nonexistence of a “complete hero”, the one who needs to be put on a pedestal.

The “complete hero”, does it look like a pretension familiar to some figures in the art world? Such self-mythologized characters, not rarely, make up the cast of this memetic play. Is it possible, though, to get them off the pinnacle and back to proportion? “We don’t know if the satire of institutions and their characters by arts-related memes make these same characters/elements more accessible”, confesses New Memeseum. “Perhaps, it makes more visible the narrative plot in which they are involved: the problems, weaknesses, contradictions, professional and personal dramas etc”.

By @newmemeseum. In Portuguese, it reads: "The dream of every single Brazilian worker of the culture sector". Meme courtesy of @newmemeseum.
By @newmemeseum. In Portuguese, it reads: “The dream of every single Brazilian worker of the culture sector”. Courtesy of @newmemeseum.

If not to demystify the linguist, can memes decode their language? For Cem A., memes can be useful both for communicating complex ideas and for criticizing inaccessible texts – frequent in the art world – when they don’t fight hard enough to win their reader. To the latter, Hilde refers to as “show off texts where people are really proud to show you they have a master’s degree in polysyllabic words”.

“I think that this sort of language is used as an intimidation tactic and rarely are the people wielding this language in full control of what they say. If they were, they’d say much less in a smoother, more palatable way”, she states and, wittily, poses the question: “Have you ever heard of a meme?”. According to Jerry Gogosian’s creator, “you do need cultural literacy to understand memes as well as a general sense of the topic, but you can learn to read them rather quickly and there’s not grammar to learn (please see how poorly I spell in my memes)”.

For New Memeseum, the memetic panorama is too diverse to state categorically that memes make something more accessible, and can be as or more truncated than many curatorial texts or artists’ speeches. “Sometimes the reception of memes ranges from ‘ok, I get it’ to ‘what does that really mean?’ – there’s a wide spectrum between transparency and opacity and that makes this language so interesting to work with”.

Such nuance combined with humor allows memes to address important issues, sometimes relegated by consolidated media and/or cultural commentators. The anonymity of the producers of memes (Hilde had her identity revealed against her will, in fact, in an Artnet article, whose writer did not get the memo, nor the joke) along with their irreverence and the release from the pretense heroes of the art world, really allow them cross narrower corridors.

By @jerrygogosian. Courtesy of the creator.
By @jerrygogosian. Courtesy of the creator.

“

It is nearly impossible to run a sustainable business in the art world. Media outlets are included in this too. So I can see why their editorial choices tend to be conservative. Having said that, I don’t agree with their approach at all”, says Cem A. when I mention the case of the exhibition Arte em Campo, held in late 2020 and reported on with the neutrality of a detergent. The event brought together about 25 galleries and 54 artists to celebrate the “new Pacaembu”, the result of its concession to the private sector for 35 years. It was the opportunity to “say goodbye” to the beloved stadium that would have, months later, the area that housed its most affordable tickets demolished. Curator Pollyana Quintella tells she wondered what role the exhibition played there, in addition to camouflaging, “sophisticating” and providing “a cool façade that would justify interests that were far from the ones favoring the city [and the public interest, rather than the private sector]”. Therefore, this kind of news – or distribution of “merely carefully crafted pieces of PR”,” as Hilde describes it – also gets on the radar of meme creators.

Taking advantage of the busted art ♡ neoliberalism affair, Cem A. does not cease to draw attention to the “invisible work” of digital projects: “People often overlook the time and effort it takes to put together a digital project. Memes are included in this too. The pandemic showed us that the internet is now an integral part of the art ecosystem and often can reach bigger audiences than what is possible in the physical world. We need to do more to address the financial inequalities in this paradox and compensate digital-first artists more fairly”.

By @jerrygogosian. Courtesy of the creator.
By @jerrygogosian. Courtesy of the creator.

To approach the elephant in the room before finishing this article: after all, memes are art? “We often think that, no matter how far away, they have some connection with the conceptualism of the 1960s and 1970s, especially with regard to operations performed between word and image”, notes New Memeseum. Cem A. believes that memes should be recognized in the context of art because they carry aesthetic and conceptual qualities. “However, this doesn’t necessarily mean they should be considered artworks or as ‘contemporary art’”, and stresses: “In fact, we should collectively question the assumption that contemporary art stands on a higher level”. This and the other issues mentioned above might still gain momentum. “We believe that nothing has been exhausted [in relation to memes] because, in art, these debates have barely begun”, the Brazilian meme creators reiterate.

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Bastardos inglórios

Meme de @newmemeseum. Cortesia dos criadores.
Meme de @newmemeseum. Cortesia dos criadores.

Em Ocupar os memes é preciso, a pesquisadora Giselle Beiguelman retoma a origem da palavra, traçando-a para um tempo anterior à internet. O nome que utilizamos hoje foi cunhado pelo biólogo inglês Richard Dawkins, em 1976, no livro O gene egoísta. Na teoria de Dawkins, como resume Beiguelman, “o meme é uma unidade replicadora que se alastra por imitação, sempre sujeito à mutação e à mistura, e que funciona como resistência crítica”.

Desvinculando-se de sua origem, e de volta ao “futuro”, o meme como compreendemos começa a aparecer na década de 2000 e alastra-se com o compartilhamento via redes sociais. Longe de estarem restritos à cultura pop, os memes foram enraizados para outros campos, como a política, e vão sendo operados aos poucos pela publicidade.

você não vai simplesmente jogar o nome do Richard Dawkins, certo?”/”Não, né?”. Cortesia @freeze_magazine.
“Star Trek Memes Untamed”, @freeze_magazine: “Vou escrever sobre memes”/”Mas você não vai simplesmente jogar o nome do Richard Dawkins, certo?”/”Não, certo?”. Cortesia @freeze_magazine.

Sem aprisioná-los em uma definição categórica, Beiguelman aponta para a sua composição frequente: “Apresentam um formato em que o texto não funciona como complemento explicativo da imagem nem a imagem ilustra o texto, mas os dois elementos encadeiam-se para produzir um terceiro sentido”. No Instagram, em específico, acrescenta-se ainda um terceiro elemento visual localizado num certo “entre” – nem completamente dentro ou fora da postagem – que é a localização da foto. “De baixa resolução, bastardos e sem assinatura, são imagens pobres, no sentido dado pela artista e ensaísta alemã Hito Steyerl à expressão, que podem atuar como um contraponto aos sistemas de representação dominantes”, ela adiciona. O perfil brasileiro New Memeseum vai ao encontro disso quando indica que os memes possivelmente ajudam a formular narrativas diferentes das hegemônicas. “Quem sabe, matizá-las… mostrar seus desdobramentos, contradições e oposições”. Para eles – cujas identidades são preservadas em anonimato -, o poder dos memes reside em seu caráter ficcional. “Parafraseando Karl Ove Knausgård, talvez nós estejamos tentando combater ficção com ficção”. No final do segundo volume da série Minha Luta, do escritor norueguês, lê-se – e o New Memeseum cita: “Havia uma crise, eu sentia em cada parte do meu corpo, algo saturado, como banha de porco, se espalhava em nossa consciência, porque o cerne de toda essa ficção, verdadeiro ou não, era a semelhança, e o fato de que a distância mantida em relação à realidade era constante. Ou seja, a consciência via sempre o mesmo. E esse mesmo, que era o mundo, estava sendo produzido em série”.

No que tange essa atividade de contraposto, Cem A. (também conhecido como @freeze_magazine, em paródia à revista de arte britânica) apresenta a possibilidade dos memes como agentes de mudança, embora não de forma revolucionária, mas reformista. “Os memes deveriam ser vistos como uma ferramenta para popularizar ideias progressistas. Sua popularidade pode nos dar vantagem na conversa”. O que surge como uma barreira para tal? A possibilidade deles serem absorvidos pelo mercado. “Se os memes fossem comercializados com uma abordagem imediatista, isso apenas os tornaria menos genuínos e eficientes. Até me faria questionar se eles poderiam ser considerados memes, no fim das contas”.

Quando o establishment começa a engolir memes (que até então resistiam a ele com críticas ácidas e bem-humoradas), eles perdem força (ao integrar o que uma vez enfrentaram)? Uma constatação importante é feita por Hilde Lynn Helphenstein, criadora do personagem virtual Jerry Gogosian (o nome alude a duas figuras reconhecidas no mundo da arte, o crítico Jerry Saltz e o mega galerista Larry Gagosian): “As maneiras como pretendo monetizar o que criei com @jerrygogosian, por exemplo, serão um meio de alcançar uma versão do mundo da arte com a qual posso conviver em uma microescala. [De todo modo,] minhas realizações artísticas serão perpetuadas pela máquina capitalista e não tenho nenhum problema com isso. Um artista tem que sonhar grande (e comer)”.

“Não temos certeza se a institucionalização dos memes pode causar algum impacto ou mudança para os criadores de conteúdo”, nota o New Memeseum ao considerar que, talvez, o impacto seja para as próprias instituições, que, “ao olhar com menor distinção entre alta e baixa cultura, estejam incorporando em suas programações linguagens que possam atrair novos públicos” – a exemplo da exposição Língua Solta, no Museu da Língua Portuguesa. Cavando mais fundo, eles questionam se a narrativa não pode ser contada de forma inversa: na perspectiva das redes sociais, pode ser que os museus e as galerias sejam os “espaços de exceção”, justamente porque a arte ainda é um tanto inacessível para a maioria da população. Ao que observam, as instituições têm procurado seu espaço na internet, têm investido e se preocupado com suas plataformas virtuais. “Existe um desejo de engajamento de públicos. A economia de likes também impactou as fontes de patrocínio – lembremos do edital cultural que, recentemente, assumiu como critério a soma do número de seguidores dos integrantes de cada projeto”, acrescentam. Com essas questões postas no horizonte, eles ressaltam que o New Memeseum (da mesma forma que Jerry e Freeze) é um perfil do Instagram e, como tal, funciona dentro de um aplicativo gerenciado por um conglomerado trilionário. “Nós também vivemos sob a regência de algoritmos.”

Sob tal regência, o humor é um formato eficaz para enfrentar os poderes estabelecidos?, pergunta Hilde, ao que ela mesma responde de modo negativo. “Ser o bobo da corte que declara o óbvio aos palacianos na presença do rei ainda é estar em dívida com o rei. O humor é um remédio que alivia temporariamente a dor de quem não está no poder e cria a ilusão de retomar o controle. Tirar dinheiro dos poderes instituídos e redistribuir a riqueza é provavelmente a única maneira de ‘ganhar’ no estágio avançado do capitalismo… mas é bom rir, esteja você ganhando ou perdendo”.

Em O valor do riso, Virginia Woolf afirma que ele preserva nosso senso de proporção, lembra o New Memeseum. Nas palavras de Woolf: “Felizmente os cães não podem rir, porque eles mesmos se dariam conta, se pudessem, das terríveis limitações de ser um cão. Homens e mulheres estão na devida altura, na escala da civilização, para que, tendo recebido o poder de conhecer as próprias falhas, fossem agraciados com o dom de rir delas”. Nesse mesmo texto, ao nos lembrar da importância da proporção, a escritora britânica acaba fazendo menção também à inexistência de um “herói completo”, aquele que precisa de um pedestal, estar no pináculo. Parece uma pretensa figura familiar no mundo das artes? Tais personagens, não raramente, compõem o elenco dessa peça memética. Com isso é possível descê-los do palco? “Não sabemos se a sátira das instituições e de seus personagens pelos memes relacionados às artes tornam esses mesmos personagens/elementos mais acessíveis”, confessa o New Memeseum. “Talvez, torne mais visível a trama narrativa em que estão envolvidos: os problemas, fragilidades, contradições, dramas profissionais e pessoais etc”.

Meme de @newmemeseum. Cortesia dos criadores.
Meme de @newmemeseum. Cortesia dos criadores.

Se não para desmistificar o linguista, conseguem os memes decodificar sua linguagem? Para Cem A., os memes podem ser úteis tanto para comunicar ideias complexas quanto para criticar textos inacessíveis – frequentes no mundo da arte – quando eles não lutam com força suficiente para conquistar seu leitor. A esses últimos Hilde refere como “textos exibicionistas onde as pessoas têm muito orgulho de mostrar que possuem um mestrado em palavras polissilábicas”.

“Acho que esse tipo de linguagem é usado como uma tática de intimidação e raramente as pessoas que usam essa linguagem têm controle total sobre o que dizem. Se tivessem, eles diriam muito menos, de uma forma mais lisa e palatável”, afirma e, espirituosa, coloca a questão: “Já ouviu falar de um meme?”. Segundo a criadora do Jerry Gogosian, “você precisa de conhecimento cultural para entendê-los, bem como uma noção geral do tópico, mas é possível aprender a lê-los rapidamente e não há norma culta para estudar (por favor, veja como eu escrevo nos que faço)”.

De acordo com o New Memeseum, o panorama memético é muito diverso para afirmarmos categoricamente que os memes tornam algo mais acessível, podendo ser tão ou mais truncados que muitos textos curatoriais ou falas de artistas. “Por vezes, a recepção dos memes vão desde o ‘ok, entendi’ até o ‘o que que realmente isso quer dizer?’ – há um grande espectro entre a transparência e a opacidade e isso faz dessa linguagem algo tão interessante de se trabalhar”.

Tal nuance combinada com humor permite que os memes abordem assuntos importantes, às vezes relegados por meios consolidados. Estamos falando da mídia tradicional também? Sim, mas essa briga entre nova e tradicional é cafona; a existência de uma não preclude a outra. Porém, o anonimato dos produtores de memes (Hilde teve sua identidade revelada, na verdade, em um artigo do portal Artnet, que claramente não entendeu a brincadeira) junto com sua irreverência e a desobrigação aos heróis do mundo da arte, realmente, lhes dá passagem livre por corredores mais estreitos.

Meme de @jerrygogosian: “Selando o pacto com meu art dealer de que está tudo bem venderem minhas obras para um negociante de armas conhecido / império farmacêutico / Walmart / predador sexual etc., com a promessa solene de agir surpreso e indignado se algum dia isso vier à tona”. Cortesia @jerrygogosian.
Meme de @jerrygogosian: “Selando o pacto com meu art dealer de que está tudo bem venderem minhas obras para um negociante de armas conhecido / império farmacêutico / Walmart / predador sexual etc., com a promessa solene de agir surpreso e indignado se algum dia isso vier à tona”. Cortesia @jerrygogosian.

“É quase impossível administrar um negócio sustentável no mundo da arte. Os meios de comunicação também estão incluídos nisso. Portanto, posso ver porque suas escolhas editoriais tendem a ser conservadoras. Dito isso, eu não concordo de forma alguma com a abordagem deles”, afirma Cem A., quando menciono o caso da exposição Arte em Campo, realizada no final de 2020 e noticiada com a neutralidade de um detergente. O evento reuniu cerca de 25 galerias e 54 artistas para celebrar o “novo Paca”, resultado de sua concessão à iniciativa privada por 35 anos. Era a oportunidade de “se despedir” do estádio que teria, meses depois, a área que abrigava seus ingressos mais acessíveis demolida. A curadora Pollyana Quintella conta ter se perguntado qual era o papel da exposição ali, “além de maquiar, sofisticar e proporcionar uma fachada cool que justificasse interesses que estão longe de favorecer a cidade”. Logo, esse tipo de noticiário – ou distribuição de “meras peças de relações públicas cuidadosamente elaboradas”, como descreve Hilde – também entra no radar das páginas de memes.

Aproveitando o flagra do affair arte ♡ neoliberalismo, Cem A. não deixa de chamar atenção para “o trabalho invisível” dos projetos digitais: “Muitas vezes as pessoas esquecem o tempo e o esforço necessários para montar um projeto digital. Os memes também estão incluídos nisso. A pandemia nos mostrou que a internet agora é parte integrante do ecossistema da arte e muitas vezes pode atingir públicos maiores do que é possível no mundo físico. Precisamos fazer mais para lidar com as desigualdades financeiras nesse paradoxo e compensar os artistas que priorizam o digital de forma mais justa”.

@jerrygogosian: “Demonstrando minha apreciação refinada pela alta cultura ao me comportar conforme exigido diante de um Rothko”. Cortesia da produtora.
Meme de @jerrygogosian: “Demonstrando minha apreciação refinada pela alta cultura ao me comportar conforme exigido diante de um Rothko”. Cortesia da produtora.

Para abordar o elefante na sala antes de terminar este artigo: afinal, memes são arte? “Costumamos pensar que, por maior que seja a distância, eles possuem alguma ligação com o conceitualismo dos anos 1960 e 1970, principalmente no que concerne às operações realizadas entre palavra e imagem”, assinala o New Memeseum. Já Cem A. acredita que os memes devam ser reconhecidos no contexto da arte porque carregam qualidades estéticas e conceituais. “No entanto, isso não significa necessariamente que devam ser considerados obras de arte ou ‘arte contemporânea’”, e salienta: “Na verdade, devemos questionar coletivamente a suposição de que a arte contemporânea está em um nível superior”. Essa e as outras questões apontadas acima ainda devem ganhar fôlego. “Acreditamos que nada tenha se esgotado porque, na arte, esses debates mal começaram”, reiteram os produtores brasileiros de memes.

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As palavras de Carolina de Jesus

Carolina Maria de Jesus em 1960, em foto para a revista O Cruzeiro. Fotos: Henri Ballot / Revista O Cruzeiro
Carolina Maria de Jesus em 1960, em foto para a revista O Cruzeiro. Fotos: Henri Ballot / Revista O Cruzeiro

*Por Luzia Gomes

Um amanhã
Possível realidade
Uma honestidade
Humanidade nua
Um despejo em papéis
Um pedaço da fome
Invadiu
Resistiu
Infiltrou
Corroeu um sistema e foi pra cima
Muito bem Carolina!!!
(Larissa Luz)

I. Desenquadrando existências

A vida e a obra da escritora brasileira Carolina Maria de Jesus chegam até nós, neste mês de setembro, através da exposição Carolina Maria de Jesus: um Brasil para os brasileiros, no Instituto Moreira Salles (IMS) de São Paulo, com curadoria do antropólogo Hélio Menezes, da historiadora Raquel Barreto, e tendo como assistente de curadoria a historiadora da arte Luciara Ribeiro. Exposições como essa apresentam as possibilidades de diálogos entre a arte literária de autorias negras e os espaços expositivos para além de uma perspectiva biográfica. Pensar a obra dessa autora possibilita ultrapassar a história da sua própria vida, pois, no exercício da sua poética, nas brechas, nos retalhos dos papéis, nas tramas dos bordados desenhados das suas letras, grafadas nas linhas de vários tempos, Carolina Maria de Jesus nos apresenta um retrato do Brasil, enquadrado nos resquícios coloniais e conflitos urbanos.

A exposição Carolina Maria de Jesus: um Brasil para os brasileiros é composta de aproximadamente 15 núcleos temáticos, tecidos entre palavras e imagens. Nesta narrativa expográfica, desenquadra-se o enquadramento limitante da estetização da pobreza diante da existência de uma mulher negra e vigora uma Carolina Maria de Jesus que usou colares de pérolas, vestiu roupas elegantes, viajou de avião, apareceu em programa de TV com seus filhos e filha. Acessar essas outras imagens da autora nos move a uma reflexão sobre o poder das imagens e como elas podem nos humanizar:

Tinha esquecido o poder das imagens arraigadas e da linguagem estilosa para seduzir, revelar, controlar. Tinha esquecido também sua capacidade de nos ajudar a dar continuidade ao projeto humano, que é permanecer humano e impedir a desumanização e a exclusão dos outros. (MORRISON, 2019, p. 62)

Subvertendo os cânones brancos, a prosa e a poesia de Carolina é um fundamento epistêmico para pensarmos a sociedade brasileira e percebermos que as desigualdades socioeconômicas e o racismo, por exemplo, que a escritora apontava no século 20, ainda se fazem presentes no século 21. E, diante dessa estrutura sociocultural brasileira, ainda não construímos estratégias concretas de erradicação dessas mazelas do nosso tecido social.

A obra de Carolina também é um patrimônio cultural do nosso tempo, dentre tantos patrimônios possíveis. Não estou pensando aqui patrimônio apenas como uma categoria de Estado na formação das identidades nacionais, mas sim um patrimônio a partir de uma perspectiva do amor, como uma ação que nos possibilita avançar numa luta constante para a liberdade. Pois, como afirmou a poeta Maya Angelou: “[…] eu uso a palavra amor como uma condição tão forte que pode muito bem ser o que mantém as estrelas em seus lugares no firmamento e faz o sangue fluir disciplinadamente por nossas veias”. (ANGELOU, 2018) As escritas de Carolina restituem os corpos considerados “descartáveis” de humanidade, ou seja, descartáveis de memórias, subjetividades, individualidades e suas complexidades de ser e existir no mundo.

II. As Letras de Carolina

As letras de Carolina Maria de Jesus são como as águas que não pedem licença – Carolina entra, arrebenta, inunda, lava e leva. As águas não têm pressa, elas seguem seu curso no seu tempo, dizendo-nos que elas são senhoras de vários tempos nos interstícios entre passado e futuro, desaguando no presente. A prosa e a poesia de Carolina, seguindo o curso e o percurso das águas, ofertam-nos uma constante reconstrução da sua própria existência, num fluxo contínuo do eu para o nós.

As letras de Carolina Maria de Jesus nos remetem, também, ao pensamento da intelectual Carla Akotirene quando afirma: “[…] a língua escravizada esteve amordaçada, politicamente, impedida de tocar seu idioma, beber da própria fonte epistêmica cruzada de mente-espírito”. (AKOTIRENE, 2018, p. 16) Nesse sentido, a obra literária de Carolina desamordaça nossas línguas e contribui para a desmantelação das imagens e memórias de controle opressoras das existências negras. A partir das suas escritas, ela se torna sujeita reflexiva e tenciona o campo da linguagem, nos jogos de poder das letras. Carolina é dona da sua fala, dona da sua existência.

As letras de Carolina Maria de Jesus estão dentro da sua norma de escrita, pois é uma grafia criada “[…] no seu interior, nas vísceras e nos tecidos vivos — chamo isto de escrita orgânica. […]”. (ANZALDÚA, 2000, p. 234) A obra de Carolina desenquadra as palavras, tornando-as organismos vivos, com as quais ela revela as agruras de ser uma mulher negra, pobre, moradora da favela do Canindé, mãe solo, realizando um trabalho de desprestígio social. Porém, é com a sua própria escrita que ela nos diz: a sua existência não se reduzia a essa condição marginalizada, não limitava o seu sonhar, nem o seu pensar a si mesma e ao mundo ao seu redor. É com as suas próprias normas de escrever que Carolina fabula as possibilidades de reinvenção do que a cerca.

As letras de Carolina Maria de Jesus atravessaram o Oceano Atlântico e, no lado de lá, desaguaram construindo diálogos afro-diaspóricos materializados no livro Cartas a uma negra, da escritora martinicana Françoise Ega, radicada na França. A obra de Carolina faz parte de um universal entre os vários universais existentes no mundo. As suas palavras acolheram outra autora e possibilitaram que ela também se tornasse sujeita reflexiva de si a partir da escrita em diálogo com as letras de Carolina.

Pois é Carolina, as misérias dos pobres do mundo inteiro se parecem como irmãs. Todos leem você por curiosidade, já eu jamais a lerei; tudo o que você escreveu, eu conheço, e tanto é assim que outras pessoas, por mais indiferentes que sejam, ficam impressionadas com as suas palavras. (EGA, 2021, p. 5)

Carolina Maria de Jesus é uma escritora do nosso tempo. Sua obra, além de seguir nos fazendo pensar a sociedade brasileira com todas as suas desigualdades sociais, é um patrimônio cultural afro-brasileiro que deve ser revisitado constantemente. A partir disso, é tarefa primordial desenquadrar nossos olhares sobre a vida, a prosa e a poesia de Carolina e, para isso, a exposição Carolina Maria de Jesus: um Brasil para os brasileiros propõe e nos instiga a perceber essas outras tramas existenciais da escritora. Lembremo-nos de Carolina a partir das suas palavras: “Não digam que fui rebotalho, que vivi à margem da vida”.

Disco Quarto de despejo, 1961, de Carolina Maria de Jesus. Foto: Coleção José Ramos Tinhorão / Acervo Instituto Moreira Salles
Referências

AKOTIRENE, Carla. O que é interseccionalidade? Belo Horizonte: Letramento, 2018.
ANGELOU, Maya. Mamãe & eu & mamãe. Tradução de Ana Carolina Mesquita. 1ª ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2018.
ANZALDÚA, Glória. Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo. In: Revista Estudos Feministas, p. 229-236, 2000.
EGA, Françoise. Cartas a uma negra. Tradução Vinícius Carneiro e Mathilde Moaty. 1ª ed. São Paulo: Todavia, 2021.
MORRISON, Toni. A origem dos outros: Seis ensaios sobre racismo e literatura. Tradução Fernanda Abreu; prefácio Ta-Nehisi Coates. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras.


*Luzia Gomes é poeta, feminista negra, museóloga e Professora Doutora do Curso de Museologia na Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal do Pará (UFPA). Coordena projetos de pesquisa e extensão que versam sobre a arte literária de mulheres negras e a Museologia.

Bienal de São Paulo: 70 anos de acertos e equívocos

Vista da 3ª Bienal de São Paulo
Vista da 3ª Bienal de São Paulo. Foto: Fundação Bienal de São Paulo

A arte pode ser um capricho individual, mas seu poder de contágio, como dizia Lima Barreto, é o traço de ligação entre os homens. Apesar do estranhamento com que foi recebida em 1951, a 1ª Bienal de São Paulo se impôs e tornou-se a manifestação artística brasileira mais conhecida no exterior. Ao criá-la, Francisco Matarazzo, conhecido como Ciccillo, apostou no projeto cultural mais ousado já realizado nos trópicos. A 1ª edição foi montada provisoriamente no Belvedere Trianon, onde hoje está o Masp (Museu de Arte de São Paulo). De dois em dois anos a Bienal participa de uma espécie de “Grand Slam” das artes, ao lado da Bienal de Veneza e da Documenta de Kassel.

Um dos desafios desse esforço, de grande carga utópica, era refletir sobre o papel da produção nacional, a pertinência de sua atualidade e inserção no plano internacional. Temos que admitir que a contribuição de suas 34 edições, nesses 70 anos, nem sempre se deu de forma explícita, às vezes por tentativas de um pensamento inusitado, outras vezes por uma montagem perturbadora.

Inspirada na Bienal de Veneza, realizada desde 1895, o evento paulistano provocou em sua edição inaugural forte impacto nos artistas brasileiros. A escultura Unidade Tripartida, de Max Bill, artista suíço laureado com o prêmio máximo da Bienal, abriria as portas para o abstracionismo geométrico e influenciou escultores brasileiros como Franz Weissmann. Outros artistas também deixaram suas marcas, como René Magritte, Alberto Giacometti, Di Cavalcanti, Candido Portinari e Lasar Segall. Eles sinalizaram a arte desenvolvida naqueles anos de 1950.

Em 1954 São Paulo se preparava para a festa de seu o quarto centenário quando Ciccillo surpreende a todos ao trazer para a segunda edição a Guernica e mais 65 obras de Picasso, com curadoria do artista espanhol realizada diretamente de Paris. Os locais determinados para mostrar arte, a partir de então se expandem com a mobilidade da vida. Na segunda edição, a Bienal ganhou lugar definitivo no complexo do Parque do Ibirapuera, projetado por Oscar Niemeyer. Além da retrospectiva de Picasso, exibiu o futurismo italiano, o cubismo, os geométricos argentinos e as salas de Mondrian, Paul Klee e Edvard Munch. Uma aula sobre a excepcionalidade da arte do século 20.

Guernica de Pablo Picasso
“Guernica”, de Pablo Picasso, foi exposta da 2ª Bienal de São Paulo, em 1954, com mais 65 obras do artista. Hoje ela se encontra no Museu Reina Sofia, protegida por vidro a prova de bala, detector de metais. No Ibirapuera chegou num dia de chuva, em cima de um caminhão de madeira, dentro de um tubo de metal com uma lona por cima. Foto: Reprodução

A criação da Bienal estava relacionada às mudanças político-econômicas da cidade de São Paulo e às estratégias culturais da elite local para transformá-la em pista de pouso das vanguardas internacionais. A arte começa a mudar rapidamente e, com o tempo, elas se agigantam e ganham peso. Já em sua 4ª edição, de 1957, a Bienal teve que ser transferida para o antigo pavilhão das Indústrias, também no Ibirapuera, onde está até hoje. O prazer de estar nas multidões, segundo Walter Benjamin, “é uma expressão misteriosa do prazer sensual da multiplicação do número. O numeroso está em tudo”. Os jornais noticiavam que o evento atraia centenas de pessoas para admirar o prédio transparente com as belas curvas arquitetônicas de Niemeyer e obras de arte ininteligíveis. Uma delas era a pintura de Jackson Pollock que chegou à Bienal um ano após sua morte. Os trabalhos de Tapiès e Josef Albers provocam intercâmbio silencioso com as obras de Frans Krajcberg, Lygia Clark e Hélio Oiticica. Essa edição foi marcada pelo corte de 84% dos artistas inscritos e causou a fúria de muitos deles, como Flávio de Carvalho – uma das figuras mais polêmicas da arte brasileira, personalidade dionisíaca e nietzschiana – que se dirigindo a Ciccillo denunciou: ”Você influencia o júri e ele elege quem o MAM quer. O que acabam de fazer foi um crime contra a arte brasileira. Antes, malandro era só o júri, agora é o museu também”.

O ano de 1961 constitui-se num marco na história da Fundação Bienal, que se desvincula do Museu de Arte Moderna de São Paulo e se transforma em instituição autônoma. As obras premiadas na Bienal até então foram doadas ao Museu de Arte Contemporânea da USP. Também no mesmo ano, a capital do Brasil deixa de ser o Rio de Janeiro, é transferida para Brasília e materializa uma ideologia estética lançada por Le Corbusier. Era apenas o começo de uma era explosiva. Mario Pedrosa, o crítico brasileiro mais conhecido internacionalmente, é escolhido como curador da edição, que exibiu retrospectiva consistente do alemão Kurt Schwitters, um revolucionário nas assemblagens que influenciou o pop Robert Rauschenberg. Pedrosa expôs obras de Maria Helena da Silva, que saiu vencedora da premiação, e ainda mostrou o realismo socialista do italiano Renato Guttuso e as pinturas de Clemente Orozco, Paul Devaux, René Magritte e Marc Chagall. Porém, por motivos burocráticos, não conseguiu trazer o melhor da vanguarda russa. Pedrosa há alguns anos queria mostrar o suprematismo, movimento revolucionário criado por Malevich em 1915 e consolidado nos primeiros anos da Revolução Russa, mas acabou trazendo artistas jovens não significativos. De certa forma decepcionou alguns críticos e artistas.

Ditadura e repressão

Os anos de 1960 sacodiam o mundo e a Bienal, também atingida pelas mudanças político-ideológicas, tenta sobreviver sob o slogan de Pedrosa: “A arte é o exercício experimental da liberdade”. Era o momento da contracultura, guerra do Vietnã, ditaduras latino-americanas. O golpe militar de 1964, desferido contra a democracia brasileira, colocou muitos intelectuais na prisão. O período coincide com o declínio da Bienal. Em 1965, Maria Bonomi, ao receber o prêmio de melhor gravadora, com uma das mãos pega o troféu e com a outra entrega ao presidente Castelo Branco uma carta assinada por intelectuais e artistas pedindo a soltura do crítico Mário Schenberg, do sociólogo Fernando Henrique Cardoso e de outros intelectuais.

Dois anos depois, obras ícones da pop art americana desembarcam na Bienal. Trabalhos de Andy Warhol, Roy Lichtenstein, Jasper Johns, Robert Rauschenberg e Robert Indiana mostram que se pode trabalhar com os ícones da cultura de massa de um país, com crítica e humor, sem fazer realismo socialista. O prêmio é atribuído a Jasper Johns pela série Three Flags, enquanto Quissak Júnior, jovem artista brasileiro, teve seu trabalho interditado pela polícia por usar a bandeira nacional. O pop brasileiro também mostrou sua dimensão com obras críticas ao sistema, como as de Claudio Tozzi, Antonio Henrique Amaral, Rubens Gerchman e Nelson Leirner. Citando Michel Foucault, “o poder é produtor antes de repressor; produz maneiras de viver e produz realidades”.

Dois anos depois a Bienal sofre um boicote internacional decorrente da intervenção militar na exposição do Museu de Arte Moderna do Rio, que exibia as obras que iriam para a 6ª Bienal de Paris; algumas foram consideradas ofensivas ao regime. Mario Pedrosa é exilado no Chile em 1971 e provoca uma carta de repúdio assinada por dezenas de personalidades, como Octavio Paz e Pablo Picasso. Contrariando as expectativas, o crítico Mário Schenberg, militante da esquerda, não boicotou a Bienal. Para ele, permanecer era uma forma de resistência, de garantir o lugar de protesto. Convicto de sua posição, organiza uma sala com jovens artistas, entre eles José Roberto Aguilar, Carmela Gross, Ione Saldanha, Claudio Tozzi e João Câmara. A Bienal amargava um momento triste ao ver esgarçado o maior projeto de arte que o país já teve. E por que o Brasil jamais recebeu o Grande Prêmio (Itamaraty) da Bienal de São Paulo? Nunca houve explicação convincente. O que se sabe é que o único país latino-americano a conseguir essa façanha foi a Argentina em 1977, com o Grupo de los Trece, liderado por Jorge Glusberg, idealizador do CAyC (Centro de Arte y Comunicación), de Buenos Aires.

Redemocratização

Na década de 1980, com o início da abertura política, os países que assinaram o boicote retornam à Bienal. As galerias se multiplicam e o trânsito da comunidade artística internacional se intensifica, não mais apenas centrado no período do evento, mas durante todo o ano. Walter Zanini assume a edição de 1981 dando ênfase ao experimental e cria zonas de interrogações, sem se preocupar com as certezas. Tal como Harald Szeemann – curador da Documenta de Kassel em 1972, que muda toda a estrutura da mostra alemã e a coloca no topo das grandes exposições internacionais -, Zanini também muda o conceito da Bienal de São Paulo, trocando a montagem por países pela analogia de linguagem. O curador levou o evento para uma relação direta com o novo, expôs a arte postal, o vídeo texto, mostrou a antiarte do grupo Fluxus, abriu para as performances da dupla inglesa Gilbert & George e proporcionou uma profunda análise sobre a Arte Incomum com a participação de psicanalistas e estudiosos sobre a produção dos portadores de doenças mentais.

17ª Bienal de São Paulo.
17ª Bienal de São Paulo. Foto: Fundação Bienal de São Paulo

No processo de ocupação dos 33 mil metros quadrados do pavilhão da Bienal, a 18ª edição, curada por Sheila Leirner, se diferenciou com o impacto causado pela Grande Tela, um conjunto de três corredores de 100 metros cada que exibia centenas de pinturas neo-expressionistas vindas de vários países. Ainda nessa edição, Marina Abramovic e Ulay finalizaram a performance Nightsea Crossing, iniciada na Bienal de Sidney em 1981 e que somava quase 600 horas e 94 dias. Nela, o casal performático permaneceu sentado, se entreolhando durante sete horas, em sete dias, sem se mexer. Alex Vallauri leva seu grafite mundano para a Bienal e constrói a casa da “Rainha do Frango Assado” personificada por Claudia Raia, sua amiga, então com 18 anos.

Seria imprudente negligenciar a 24ª edição, de 1998, com sua abordagem carregada de brasilidade, traduzida em Antropofagia e curada por Paulo Herkenhoff. A mostra transversal histórica incluía obras do período colonial do século 19 e estabeleceu justaposições com a contemporaneidade como no Eixo Exógeno, de Tunga, que dialogou com o quadro Lea e Maura, de Guignard, sendo uma das garotas retratadas a mãe de Tunga. A contemplação silenciosa dos visitantes contrastava com a estridência dos objetos reunidos na sala de Paulo Bruscky na 26ª edição, de 2004, curada por Alfons Hug, cujas releituras se abriam para outras experiências de tempo e memória.

Na Bienal de 2006, com a curadoria de Lisette Lagnado, o artista americano Jimmie Durham, de origem aborígene, escreveu uma carta aberta que enviou junto com seu trabalho, em que denunciava a situação dos indígenas no Brasil, afirmando que a Bienal não tinha se interessado pelo assunto. Essa intervenção de confronto ao colonialismo foi um marco inusitado. Ao escolher Incerteza Viva como tema, o curador Jochen Volz colocou o meio ambiente no debate da 32ª edição, mostra que teve a participação majoritária de mulheres e a primeira cocuradora negra, Gabi Ngcobo.

Nos últimos anos, a Bienal abriu as portas para vários coletivos de artistas que gravitavam, ainda apagados, em torno da produção brasileira. A maioria com inserção de gênero, minorias afrodescendentes e indígenas, que atualizaram o diálogo, mas nem sempre com obras à altura de uma bienal. Não há uma maneira subjetiva única de entender o mundo como forma de relacionar o presente com o passado, a memória com a identidade e se abrir para as infinitas leituras sobre as demandas sociopolíticas atuais. A Bienal de São Paulo chega à sua 34ª edição (analisada nesta edição por Fabio Cypriano) e dá sinais de que o momento artístico e político pede profunda reflexão e estudo de novas atitudes para superar a pobreza e a obscuridade que atualmente toma conta do Brasil.

Os tempos entrelaçados de Rosângela Rennó

Guidon, homem de Betanimen
"Guidon, homem de Betanimen", Rosângela Rennó (2018), da série "Seres Notáveis do Mundo". Foto: Cortesia Pinacoteca do Estado de São Paulo
Foto horizontal, colorida. Rosângela Rennó está sentada em uma escada sem corrimão. Com as pernas cruzadas, apoia o cotovelo sobre um dos joelhos e usa a mão de apoio para o rosto, que mira a câmera. Usa uma camiseta preta de manga comprida, uma calça cinza, echarpe estampado com tons de laranja, verde, marrom, bege e azul. No rosto, um óculos redondo e branco. Tem os cabelos soltos. Atrás da artista, uma estante com rolos de filme para cinema.
Rosângela Rennó. Foto: Gabriela Lima

A obra de Rosângela Rennó será revisitada numa grande exposição antológica, a ser inaugurada na Estação Pinacoteca, em 2 de outubro, dando oportunidade ao público de ver em conjunto a potência de sua produção. Tendo como principais elementos a memória e a imagem, sobretudo a fotográfica, a artista desconstrói estruturas de perpetuação do poder, ilumina perversões sociais e traz à tona artifícios da nossa ordem social que nos ajudam a iluminar e desconstruir naturalizações que por vezes parecem inabaláveis.

Com curadoria de Ana Maria Maia, a mostra apresenta um leque amplo de pesquisas e questões elaboradas pela artista ao longo de 35 anos. Lá estão trabalhos antológicos, como as séries Vermelha (Militares), Vulgo ou Apagamentos, mesclados a obras pouquíssimo vistas, do início da carreira, ou pesquisas inéditas no Brasil como Eaux de Colonies (2019).

Enfim, Pequena Ecologia da Imagem, título da exposição que deriva de um trabalho feito em 1988, aponta para o núcleo poético em torno do qual Rosângela orbita, marcado por tempos entrelaçados, pelo recurso persistente a imagens de âmbito privado e por um fascínio por tirar da invisibilidade de arquivos e histórias anônimas, aspectos que ela aborda na entrevista a seguir.

arte!brasileiros – Essa exposição revisita toda a sua carreira? Pode ser considerada uma grande retrospectiva?

Rosângela Rennó – Ela é grande, mas não é retrospectiva. Primeiro porque a palavra retrospectiva já me deixa em pânico, nos coloca com uma certa idade que a gente se recusa a admitir que tem. Mas também porque muita coisa ficou de fora, o que é natural em qualquer exposição. Ela foi conduzida para ter um certo tipo de obra e uma temperatura. Se de fato fosse para ser retrospectiva, a gente teria que abranger outras questões.

Você trabalha com fotografia desde sempre, não?

Ainda estava na Escola Guignard – fiz arquitetura e a Guignard ao mesmo tempo – quando fiz a optativa de fotografia. Foi aí que eu falei: “É isso que eu quero fazer, esse é o meu meio principal”. Entre começar a trabalhar com fotografia e assumir certas manias, certas cismas (é coisa de mineiro. Mineiro cisma!) e eleger certas questões, certos temas, foi um tempo muito curto.

O primeiro trabalho é de 1987. Deve ser interessante esse processo de revisitar produções antigas.

Eu usei uma boneca dos anos 1950, que era da minha irmã, muito feia, para encarnar a Alice, o personagem do Lewis Carroll. Mas na verdade era uma espécie de pretexto para fazer algumas experimentações fotográficas. A gente discutiu muito sobre coisas recorrentes, inclusive porque existe um trabalho que se chama Círculos Viciosos, do acervo da Pinacoteca e que vai estar na exposição. Na minha vida tem um monte de coisas que vão e voltam. Porque eu faço elas voltarem, provoco isso. E também tem questões que eu já tratei dentro do meu trabalho que não me abandonam. Não é que elas voltam, elas nunca saem. Tem problemas que estão sempre na minha cabeça porque eles são assombrosos. Assombramento, nem sei se existe a palavra, é uma coisa do território da fotografia, não?

Como algo velado, latente? Parece que você está sempre querendo chegar no osso, mas esse osso está sempre um pouquinho mais longe.

Porque eu acho também que é isso também que faz a grande potência da imagem fotográfica. É pelo assombramento que você pode ficar entre ficção e realidade. Hoje se discute muito isso: o quanto de informação, o quanto você pode projetar de ficcional numa suposta informação, numa informação objetiva. Não vamos nem dar espaço demais para falar sobre o óbvio, que é o uso político que pode se fazer disso. Mas, esse território, essa coisa entre ficção e realidade, sempre existiu na fotografia. Só que às vezes isso chama mais atenção. E parece que no território do digital isso é mais fácil de perceber.

O Arquivo Universal, essa reunião de material sobre a imagem que você iniciou nos anos 1990, segue vivo? Como ele se fará presente na exposição?

A gente fica mais velho, fica mais seletivo. Tem que ser uma história muito boa para guardar. Eu edito menos o material, mas guardo muita coisa. O Arquivo Universal é o arquivo de textos sobre imagem. Vai aparecer na exposição com vários dos dispositivos que eu já usei antes. Está na base de instalações como o Hipocampo, que deve ter uns 18 textos com letra fosforescente, tem uns textos tatuados sobre pele e fotografados… Tem restos de atelier também. Há, por exemplo, dois textos que estavam no meu atelier porque ninguém quis. São textos horríveis, assuntos horríveis, que agora voltam para a parede. O curioso é que esses patinhos feios, que ninguém quer ter na sala, são ligados a racismo e colonialismo. Olha a coincidência.

Estão na categoria dos nossos assombramentos?

Assombramentos que na verdade nunca deixaram de sair do nosso imaginário. Só não estavam na frente. É muito curioso. Alguma coisa eu mostrei, cinco anos atrás, que incomodou. E quero mostrar de novo, incomodar de novo. Nem que seja pra ver se mudou alguma coisa ou não. No fundo, a gente faz essas coisas ou insiste em mostrar certas coisas, falar de novo, porque só pela repetição que a gente em algum momento consegue mudar a percepção de alguma coisa. O ser humano só aprende se você martelar várias vezes a mesma coisa.

Você poderia falar sobre a questão da ecologia, que está no título da exposição? Tem a ver com essa recuperação de materiais que você faz, mas há outras dimensões menos evidentes, não?

Quando fiz Pequena Ecologia da Imagem já me interessava pensar numa certa ideia de economia das imagens. É uma questão relacionada a um pensador que nos anos 1980 me marcou muito, o Andreas Müller-Pohle. Muito pouca gente leu, muito pouca gente falava nele, mas ele era o editor da revista European Photography junto com o Vilém Flusser e tinha textos maravilhosos. No fundo, o que ele chamava de princípio político da ecologia da informação eu trouxe para o território das imagens. Porque eu já era, naquela altura, uma colecionadora desses resíduos fotográficos que povoavam meu laboratório, sem saber muito bem o que fazer com aquilo. Se estava tratando da imagem como informação, para mim era natural que eu trabalhasse com os títulos. Essa era a brincadeira, essa intertextualidade forçada. Foi a partir da Pequena Ecologia da Imagem que eu assumi essa coisa de criar esses ruídos de leitura. As imagens eu ampliava com os restos de laboratório e colocava uns títulos meio malucos, alguns nonsense, ligados a uma espécie de hecatombe do mundo. Você lembra daquele filme Brazil, do Terry Gilliam? Além do visual louquíssimo, ainda tinha aquela coisa de ficar tocando Aquarela do Brasil no fundo, algo de um mundo pós terceira guerra mundial. E ali estava também minha inspiração para os títulos malucos: Nós éramos felizes antes da bomba; Feixe de elétrons rumo ao século 21… Olhei para aquilo e pensei: olha o que eu fiz em 1988! E aí ficou impossível não trazer de volta esse trabalho. Gostei muito de poder chamar a exposição de Pequena Ecologia.

Falando das obras mais recentes, há também um trabalho feito especialmente para a mostra?

Na verdade tem dois trabalhos super novos. Tem o Eaux des Colonies. É um trocadilho, infame, básico. Eu deveria ter feito ano passado uma residência lá em Colônia para pesquisar nos arquivos das indústrias de lá, só que a residência não rolou por causa da pandemia. Mas alemães são alemães e a exposição não foi adiada. A emenda saiu melhor do que o soneto. Acabei invertendo a lógica da produção do trabalho e abri meu leque, acessando tudo que me contava sobre a história da água de colônia, sobre a história da perfumaria no mundo inteiro. Acabei entendendo toda uma lógica que relacionava a água de colônia à cidade de Colônia, que era uma colônia romana, o que inevitavelmente me levou à questão da colonização. E aí ficou muito mais saboroso o trabalho, muito mais divertido. Pude agregar histórias e falar sobre colônias, sobre colonização. E sobre consumismo, universo no qual a gente está mergulhado e eu não vejo como sair.

E o segundo trabalho, que você está fazendo especialmente para a exposição?

Desde o ano passado estou trabalhando com uma ideia. Ganhei uma série de slides, que são kits educativos produzidos pelos salesianos, que são uma catequese, no sentido amplo, não é só do ensino da religião. Um material muito estranho, mas que me interessou muito porque percebi que, na questão pedagógica, praticamente nada mudou, salvo algumas coisas muito pontuais. Percebi que dentro dos problemas, ou da construção do sujeito – uma das sequências era Vida em Construção -, não se falava em racismo, por exemplo. No mais é exatamente a mesma coisa.

Estamos presos em um mesmo ciclo, como uma repetição infernal?

A gente está ali no filme Brazil, do Terry Gilliam. Aí pensei: é isso que eu vou fazer agora. Peguei a historinha do Zé Ninguém, o homem que não era Homem (com H maiúsculo), que era o nome original dessa parábola, e inverti. O Zé Ninguém virou o José Ninguém. Na história original o personagem toma “Personalina” e se torna um homem, a história dos salesianos era essa.

A gente sempre à volta com os milagres que parecem resolver tudo?

No fundo é exatamente isso. Criei uma nova ficção para um indivíduo que se chama José Ninguém. Ele é José, não um Zé. Só que ele tem uma dúvida. Vai procurar ajuda científica, que dá para ele dois tipos de tratamento: ou ele toma “Amnesilax” ou “Memorilina”. Os dois têm efeitos colaterais, nenhum diagnóstico é categórico, ele tem que escolher. Só que ele não escolhe e a vida dele continua igual. É triste, mostrei para amigos que falaram que é deprimente.

Terra de José Ninguém
“Terra de José Ninguém”, de Rosângela Rennó. Foto: Divulgação

Um humor negro, uma melancolia de fundo que de certa forma perpassa teu trabalho todo, não?

É, porque eu acho que a vida é isso, a gente faz o que pode. Eu não conseguiria contar uma outra história a partir daquelas imagens, uma história que tivesse algum final feliz. É slide, não tem imagem em movimento. Não queria que nada escapasse da lógica original. Os slides são modificados, cada imagem foi atualizada. Fiz o trabalho com uma amiga, Isabel Escobar. Ela é uma das minhas editoras de vídeo e ela é fera em colagem.

Essa história me remeteu a questão da identidade e a outro trabalho seu, Espelho Diário…

Tem tudo a ver. Tanto que a gente fez a opção óbvia de colocar os dois trabalhos juntos. Nós temos à esquerda o Espelho Diário e à direita o José Ninguém. Espelho é uma das questões muito vinculadas ao universo fotográfico, desde sempre. Está em muitas questões, no tema dos negativos, dos duplos. Sempre trabalhei muito com a noção de duplo.

A exposição se organiza em três diferentes núcleos, aproxima trabalhos que lidam com as escalas do indivíduo, do coletivo e do político. Mas pelo menos nesses dois trabalhos todos estes aspectos estão presentes. No fundo, seu trabalho é político o tempo todo, mesmo quando não está explicitamente falando nisso?

Para mim essas classificações sempre são muito difíceis. Tenho certas preocupações, certas questões, coisas que me levaram a tomar certas decisões por um caminho e não por outro, e não consigo deixar de pensar nisso. Uma leitura de fora é sempre legal. Isso do que é coletivo e do que é individual, meu trabalho tem o tempo todo. E Rosângelas é um exercício explícito disso. Eu criei um personagem coletivo, falso, mas é feito de 133 casos específicos de Rosângelas. Com histórias horríveis ou engraçadas. O próprio Arquivo Universal é isso. São casos específicos, mas no momento em que eu tiro o nome, a referência histórica, você forma uma imagem que pode vir de muitos lugares.

Tem uma questão meio inevitável. Você é uma fotógrafa que raramente fotografa. Trabalha com a economia da imagem, com a circulação da imagem, mas tira todo esse lado da autoria. Hoje isso é mais comum, mas na época em que você começou a fazer era uma grande novidade. Seria interessante se você pudesse falar um pouco sobre isso.

Quando você me perguntou se eu dou importância ou não para teoria, não posso dizer que não. Lógico que dou. Muitas ideias e convicções nasceram nos anos 1980 em função de muitas coisas que eu li. E uma das coisas que me marcaram muito foi o Bourdieu. Ele fala muito dessa arte mediana, que é a fotografia. Foi por passar a entender a fotografia assim que me interessei pelo grande leque da fotografia, que de certa forma fica invisível. Ou que nunca foi muito explorado, ou não era aquilo que era o artístico. Descobri que era mais legal, muito mais interessante para mim trabalhar com tudo aquilo que não era feito com uma proposta estética por trás. E aí eu tive que aprender: fotografia científica, fotografia vernacular, o micro e macro, quer dizer, os usos científicos que você faz da imagem, desde a imagem no microscópio até aquela captada via telescópio… Tudo isso para mim era mais interessante, mais saboroso, mais instigante para discutir a fotografia do que os ensaios que se faziam, a fotografia de caráter modernista, fotografia como arte. Sempre achei aquilo chato. De fato acho que pouca gente usava, na época, o próprio meio para discutir isso. Se falava sobre isso na academia, os textos estavam ali para você ler. Mas no Brasil você tinha muito pouca gente questionando ou fazendo algum trabalho onde isso fosse visto de fato. Isso demorou para chegar aqui porque a fotografia ficou por muito tempo associada ao fotojornalismo. Querendo ou não, a gente vinha de um período de repressão. Você pedir para a fotografia deixar de ser a janela do real ou de discutir a realidade, era até muito cruel. Afinal, ela tinha essa agenda de comprometimento com a denúncia. Eu tenho muito respeito pelos fotógrafos que por muito tempo fizeram esse trabalho, dentro das condições mais difíceis do mundo. Quantos fotógrafos fizeram imagens sutis para falar de coisas tão pouco sutis? É isso, acho que havia uma inércia grande para aceitar que a fotografia podia ter uma agenda maior do que a que era aceita naquela época. E eu sempre tive isso quase como uma espécie de bandeira, entendeu? Acho que é por isso que eu sempre digo que sou fotógrafa. Sempre fui. Só não preciso fazer foto.

Isso ainda se aplica hoje?

Acho que hoje nem cabe mais, porque todo mundo faz imagem digital. Nem faz muito sentido. É que havia um nicho, por conta de uma especificidade técnica. E você tinha que dominar aquela técnica para poder trabalhar com ela. Para não fotografar eu aprendi a fotografar. Sempre fui preguiçosa na hora de fazer fotos. Pra mim foto sempre foi meio xerox. Mas eu sei, aprendi. Eu queria trabalhar com um meio e usar toda a potência possível que aquele meio me permitia.

Museu Paulista: um lugar privilegiado para repensar a história

Vista da escadaria do Museu Paulista da Universidade de São Paulo
Vista da escadaria do Museu Paulista da Universidade de São Paulo. Foto: Hélio Nobre

Fechado para visitação em 2013 em razão de problemas estruturais no prédio, o Museu Paulista da Universidade de São Paulo – conhecido como Museu do Ipiranga – vem passando por um amplo projeto de reforma, física e conceitual. E deve reabrir as portas no ano que vem, aproveitando o ensejo do Bicentenário da Independência, para trazer ao público sua nova configuração. Além de adaptar o palacete neoclássico às exigências de um museu contemporâneo, o processo de modernização enfrenta o desafio de propor novas leituras e interpretações da história, rediscutindo, reclassificando e repensando esse patrimônio de forma a estabelecer novas correlações entre passado e presente que não perpetuem visões estanques e discursos consolidados de poder.

Do ponto de vista arquitetônico, o museu ganha o dobro de área construída, novos espaços de apoio, uma maior integração com o jardim circundante, instalações modernas como elevadores, escada rolante, banheiro em todos os andares e uma cuidadosa adaptação de seu espaço para atender todo tipo de público, com 100% de acessibilidade para pessoas com deficiência. A expectativa é que essas transformações permitam passar de 300 mil visitantes anuais (na época do fechamento) para 700 mil ou um milhão.

Um dos destaques do projeto desenvolvido pelo escritório H + F, que venceu o concurso realizado em 2017, é a busca por um olhar mais generoso, tentando revelar mais aspectos externos e internos da instituição. Propõe uma maior visibilidade do entorno (com a instalação de uma grande janela panorâmica, voltada para o Jardim Francês) e deixa aparente elementos do próprio arcabouço do prédio, exibindo parte da parede de juçara original. E cria a possibilidade de ver de cima – a partir do mezanino instalado no último andar – toda a estrutura construtiva.

De certa forma, essa ampliação da visibilidade às diferentes camadas estruturais, presentes no projeto arquitetônico, reverbera também no amplo processo de reconfiguração do próprio projeto museológico, que se articula em torno de uma clara tentativa de iluminar as várias dimensões históricas, sociais, culturais que se entrecruzam nessa instituição mais do que centenária. Do prédio-monumento, pensado no final do século 19, à configuração atual de museu de história moderno, baseado no estudo da cultura material, muitas camadas se sobrepõem. Num esforço conjunto dos cinco docentes responsáveis pela curadoria da instituição e de uma ampla equipe de pesquisadores, técnicos, educadores e estudantes, estruturou-se um novo formato para as mostras. Serão 11 exposições permanentes, uma grande mostra temporária e uma série de atividades paralelas a serem selecionadas por meio de editais, chamadas de “contrapontos”, para dialogar com o acervo.

“A gente acha que o museu é um lugar privilegiado para se estudar a dimensão material da sociedade. Como essa materialidade ajuda a construir as coisas, as nossas relações”, explica Vânia Carneiro de Carvalho, coordenadora do novo plano expositivo, lembrando que já faz muito tempo que o Museu Paulista deixou de lado a historiografia baseada nas grandes personalidades. “Nós procuramos trabalhar o museu como um lugar de exercícios, de desafio das imagens e das memórias que elas teriam que representar”, complementa Paulo Garcez Marins, atual chefe do Departamento de Acervo e Curadoria.

As exposições

As mostras de longa duração se articularão em torno de dois eixos: “Para entender a Sociedade” e “Para Entender o Museu”, olhando ao mesmo tempo para importantes aspectos da vida cotidiana, como o mundo do trabalho, os hábitos de consumo e a complexa história da instituição. Nesse núcleo mais ligado ao cotidiano está, por exemplo, a exposição Casas e Coisas, que deriva da pesquisa de doutorado de Vânia e que investiga como os objetos ajudam a construir a identidade de gênero e muitas vezes escondem formas arraigadas de preconceito. Ou a mostra Territórios em Disputa, que vai tentar mostrar como o conceito de território de posse dos portugueses entra em conflito com a noção de território dos povos indígenas que estavam aqui.

Já o mergulho em busca de uma maior compreensão da história e do papel do museu, aponta em duas linhas: mostrar ao público o trabalho feito pela instituição, seu papel como centro de pesquisa e de educação pertencente à USP desde 1963, e ajudar a tornar transparente, revelar a forte estratégia ideológica presente no projeto base do museu, inaugurado há 100 anos por Affonso d’Escragnolle Taunay. Foi ele quem idealizou e conduziu com mão de ferro um projeto museológico para reforçar a ideia de um protagonismo paulista na formação nacional, alçando as Bandeiras como momento fundador e elemento dinamizador do progresso nacional – corporificado no eixo monumental. Como esse núcleo é tombado como patrimônio imaterial pelas três esferas – municipal, estadual e federal -, esse exercício de revisitar e revelar o caráter construído dessa história será feito por meio de uma série de intervenções multimídia. A mostra temporária também procurará relativizar essa visão “paulistocêntrica” da independência, ao mostrar o caráter plural dos vários movimentos independentistas que eclodiram ao longo do século 19 no país.

Tanto nessas intervenções como em outras exposições que problematizam essa relação tensa entre memória e ideologia, o importante é – segundo os curadores – ensinar o público a questionar as imagens, não aceitar uma visão congelada, unidirecional, da história nem considerar as imagens construídas como um duplo do real. Imagens são imantadas de valores simbólicos, que contribuíram fortemente para o silenciamento de negros e índios e para uma falsa visão “pacífica” das nossas relações sociais – como ficou evidente no recente debate acerca da estátua do Borba Gato. Afinal, como explica Garcez, muitas vezes o que se revela “é uma narrativa apaziguadora, racista, sexista e elitista, à medida que também os personagens são quase todos oriundos das elites do país. Então nós temos que de alguma maneira enfrentar essas questões com o público”. “Pensamos o museu como um laboratório de caráter intelectual, educativo, mas também um laboratório de cidadania”, conclui ele.

Museu Casa do Pontal ganha uma sede segura

Nova sede do Museu Casa do Pontal
Nova sede do museu, projetado pelo escritório Arquitetos Associados, na Barra da Tijuca, Rio. Foto: Divulgação

“Chuva no Rio alaga Museu Casa do Pontal e danifica obras”, estampava o site da Folha de S.Paulo em abril de 2010; “Inundado pelas chuvas, Museu Casa do Pontal ficará fechado por uma semana”, relatava o Estadão em 2016; “Tempestade resulta na pior inundação da história de museu no Recreio”, cravava o Rio Notícias em 2019; “Museu Casa do Pontal é inundado pela oitava vez”, dizia o jornal O Globo, já em 2020. Não era neste tipo de noticiário, de tragédias ou acidentes, que a instituição com a maior coleção de arte popular do Brasil gostaria de estar presente, mas assim o foi por cerca de uma década. Mas os títulos de notícias e artigos que se leem agora, em 2021, demonstram que o Museu Casa do Pontal retorna ao lugar do qual não deveria ter saído: as páginas de cultura e arte de jornais, revistas, sites e blogs.

A constatação feita acima não significa que o museu carioca não tenha conseguido também receber um grande público, montar exposições e cuidar de seu acervo – mais de 9 mil peças – de 2010 até os dias de hoje, mas sim que o risco de enchentes permeou sem pausas a história recente da instituição. Essa novela finalmente acaba, definitivamente, com a abertura no dia 9 de outubro da nova sede do Museu Casa do Pontal, no bairro da Barra da Tijuca. Localizado historicamente em uma grande casa no afastado Recreio dos Bandeirantes, com terreno de 5 mil metros quadrados, o museu caminha 20 quilômetros em direção ao centro – se aproximando de um público maior – em um terreno de 14 mil metros quadrados, que inclui vasta área verde e uma praça aberta.

Passeata pela Reforma Agrária, parte do acervo do Museu Casa do Pontal
Passeata pela Reforma Agrária, de Celestino. Foto: Divulgação

Com projeto dos mineiros Arquitetos Associados – autores de uma série de pavilhões em Inhotim como a Cosmococa, a Galeria Claudia Andujar, a Galeria Miguel Rio Branco e o centro Educativo Burle Marx – o novo Museu do Pontal apresenta um edifício com linhas retas, ampla iluminação natural e ventilação que dispensa a necessidade de ar-condicionado. Com várias salas expositivas, o espaço ganha ainda reserva técnica e área de manutenção e restauro de que precisa – após anos de inundações, o foco neste setor teve que ser cada vez maior. Talvez resultado também das tragédias recentes, o museu contará com o reuso de água de chuva para a manutenção do jardim. Este, por sua vez, tem paisagismo assinado pelo Escritório Burle Marx, com milhares de árvores de 73 espécies nativas brasileiras.

A história 

Mesmo que ampliada no atual contexto, a preocupação com as questões ambientais não é novidade para o Museu Casa do Pontal, como explicam os diretores Angela Mascelani e Lucas Van de Beuque. Criado em 1976 pelo artista e designer Jacques Van de Beuque (1922-2000), a instituição reunia a vasta coleção trazida pelo francês de suas andanças pelo Brasil, onde havia se estabelecido décadas antes. O acervo foi sendo aprimorado ao longo do tempo tanto na gestão de Guy Van de Beuque (1951-2004), quanto na de Angela – que agora divide o cargo com Lucas, neto de Jacques. “Desde o meu avô, que teve seu primeiro trabalho no Brasil ao lado do Burle Marx, o museu tem uma relação muito forte com a natureza. Não a toa a casa estava localizada ao lado de uma reserva ambiental”, conta Lucas. “E agora nós queríamos manter essa relação da arte com a natureza, incluindo também essa grande praça, democrática, em um lugar que não tem essa tradição de praças, que é a Barra.”

"Circo", de Adalton. Exposta no Museu Casa do Pontal
“Circo”, de Adalton. Foto: Divulgação

Mas o que mais impressiona no Museu Casa do Pontal, de fato, é a sua coleção de arte popular que apresenta uma produção feita desde os anos 1930 até os dias de hoje. As mais de 9 mil obras de 300 artistas das mais variadas regiões do país incluem nomes como Adalton, Mestre Vitalino, Noemisa Batista, Nhô Caboclo, GTO, Mestre Didi, Ciça, Dona Isabel, Louco, J. Freitas, Manuel Eudócio, Nino, Sólon, Saúba, Zé Caboclo e Maria Amélia. Com mais espaço expositivo, a nova sede apresentará um número maior de obras destes e de outros artistas, por vezes em setores monográficos, por outras em áreas temáticas.

Em um primeiro momento, ganham destaque salas com os títulos: “Mundo Brincante”, com obras interativas e cinéticas, teatro de bonecos e jogos digitais; “Vale do Jequitinhonha, Minas – a força da terra”, com debates sobre a dimensão matérica dos trabalhos e sobre o termo “tradição”; “Mar, Rio, Fogo e Ar”, onde surgem antológicas esculturas em barro, barcos do Rio São Francisco, seres mitológicos e obras eólicas; e, por fim, “Poética da criação e as redes de apaixonados pela arte popular”, que coloca em diálogo obras da coleção original de Jacques com acervos doados ou emprestados para o museu, possibilitando a ampliação da apreciação do público. Ao longo da visita estão presentes ainda vídeos e depoimentos de personalidades como Gilberto Gil, Ailton Krenak e José Saramago. 

Mas, mais importante, estão presentes os depoimentos dos próprios artistas, em consonância com a busca do Museu Casa do Pontal pela valorização destes criadores que, muitas vezes, foram enquadrados apenas como representantes da produção de regiões e contextos sociais, tendo seus nomes relegados à segundo plano. “Porque a arte popular brasileira, em função das limitações do entendimento sobre ela, raramente está entendida como arte. E há 20 anos estamos discutindo essa questão de uma negação da categoria ‘arte’ para essas pessoas, como se eles não merecessem”, afirma Angela. “Justamente porque o campo das artes plásticas, entre todos os campos culturais, é o reduto mais fechado e elitizado. E como nós vivemos em um país extremamente classista e hierárquico, o olhar que se tem sobre essa produção é muito filtrado por estereótipos, de que seria apenas artesanato, algo feito para a comercialização.”

Popular e acessível

Popular em seu conteúdo, o novo Museu Pontal pretende ser popular também para o público visitante. Para além da praça aberta, o pagamento de ingresso será sugerido, mas não obrigatório, e a instituição pretende ter sua sustentabilidade econômica pautada mais na ideia de engajamento do que na bilheteria. Se soa utópico, foi assim que o museu conseguiu se reerguer ainda na velha sede e terminar as obras para a inauguração do novo espaço. Segundo Lucas, para além dos apoios de empresas privadas e estatais, centenas de pessoas participaram das campanhas bem sucedidas de financiamento coletivo promovidas nos últimos anos, resultando também numa rede de apoio ao museu que segue ativa e articulada.        

A rede de apoio se torna ainda mais importante, segundo os diretores, num contexto difícil para a cultura brasileira. “Das doações de empresas e pessoas vieram 75% dos recursos da obra, até porque outros recursos governamentais acabaram na vindo”, conta Van de Beuque. “É um momento de falta de esperança, de falta de horizonte, e acho que a cultura vem sofrendo especialmente, de uma forma constante. Então conseguir abrir o museu neste contexto, com um projeto possibilitado pela mobilização das pessoas, inclusive com colecionadores doando obras, acreditando no seu futuro, é maravilhoso. Mostra que a arte brasileira tem importância e que o público sabe valorizar o patrimônio do país.”

Após anos com dificuldades financeiras e estruturais – nos quais a instituição dependeu também de uma série de parcerias com instituições nacionais e estrangeiras para mostrar o acervo e manter seu nome em destaque -, o Museu Casa do Pontal parece se sentir seguro para um novo ciclo duradouro de atividades e convívio com o público. Em outubro de 2020, com a mostra Até logo, até já, o museu se despediu de sua antiga sede. Em outubro de 2021 o “até já” do título finalmente chegou, em um momento que, apesar da crise e do conservadorismo no país, a arte popular tem ganhado, aos poucos, maior destaque e respeito, segundo os próprios diretores.