Jérémy Chabaud, vencedor do Prêmio Arthur Piza e atual diretor da Association Jeune Création. Foto: Hélio Campos Melo
O artista francês Jérémy Chabaud é um dos dois laureados deste ano do Prêmio Arthur Luiz Piza, iniciativa cuja proposta é manter viva a relação dos artistas jovens franceses com o Brasil e dos jovens artistas brasileiros com a França.
Jérémy, que já expôs na França e nos EUA, é o atual diretor da Association Jeune Création, entidade de artistas criada em 1949. A Association, que ele preside, acabou de ganhar um espaço na Fondation Fiminco, em Romainville, na região noroeste de Paris, e possui também um local para residência de artistas em Marselha, no sul da França. É considerada uma iniciativa fundamental para artistas que não estão inseridos no mercado. “Por 70 anos a Jeune Création está em movimento, se reinventando e sempre deixando-se envolver pelas gerações que o atravessam. Ela procura ser o reflexo cru e sólido do mundo e da sua época”, comenta Jérémy.
Anualmente é realizada uma importante exposição, agora em sua 71ª edição em 2020/21, que exibe as obras de 46 artistas escolhidos por um júri formado por jovens artistas e uma convidada, neste caso a crítica de arte e curadora Nathalie Desmet. A metodologia de trabalho, comenta Jérémy, é extremamente horizontal, já que a direção e os trabalhos são escolhidos pelo próprio grupo, que é composto em sua maior parte por artistas no começo de suas carreiras. “O reconhecimento mútuo é, portanto, muito importante. Grande parte da discussão é também baseada em assuntos éticos: visibilidade, paridade, representatividade, inclusão. O festival anual do Jeune Création não é, portanto, apenas uma exposição, mas uma espécie de convenção de múltiplas vozes; o reflexo de uma experiência que é tão humana quanto é artística, onde as escolhas coletivas acabam se tornando a seleção: um extrato do que nos seduz, o que nos marca, o que a nós nos parece promissor ou necessário trazer à luz”, diz Nathalie Desmet.
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Santídio Pereira, ganhador do Prêmio Arthur Piza, em seu ateliê. Foto: João Liberato
Santídio Pereira em seu ateliê. Foto: João Liberato
Xilogravuras de Santídio Pereira na exposição "No Power Station of Art", em Shanghai, China. Foto: Orange Image
Deste lado do Atlântico, o gravurista Santídio Pereira é o escolhido pelo Prêmio Arthur Luiz Piza para viajar para França em 2022 e realizar sua pesquisa e residência. Ele nasceu em 1996, em Curral Comprido, um pequeno povoado localizado na cidade de Isaías Coelho, no interior do Piauí. Foi um dos jovens favorecidos pelo Instituto Acaia, uma ONG que atende crianças e adolescentes residentes próximas ao Ceagesp, local onde Santídio também trabalhou.
“A xilogravura atendeu aos primeiros interesses do artista, que desenvolveu procedimentos próprios de trabalho, como o que ele denomina ‘incisão, recorte e encaixe’, ou seja, a composição por meio da combinação de várias matrizes recortadas, como peças de um quebra-cabeça. Além de proporcionar um jogo de cores através do acúmulo e justaposição de tinta, essa técnica permite subverter a função de multiplicidade, tão característica da gravura. São duas as séries de xilogravuras mais representativas de Santídio: Pássaros (2018) e Bromélias (2019). A memória afetiva levou o artista a investir numa pesquisa iconográfica sobre os pássaros da caatinga do Piauí. Mais tarde, a partir da residência artística Kaaysá, realizada em Boiçucanga, surgiu a série de Bromélias. Já Morros (2021) surgiu com o sentimento de liberdade ao se deparar com a paisagem natural de Santo Antônio do Pinhal, Serra da Bocaina e da Cantareira, todas em São Paulo”, informa a biografia do autor no site da Galeria Estação – que o representa desde o começo de sua carreira. Santídio acaba de participar de importante exposição em Shangai. Ele resgata reminiscências de cores, imagens e sensações e sua obra é ao mesmo tempo quase minimalista, de alto teor sensível.
Danilo Santos de Miranda, filósofo, sociólogo e diretor-regional do Sesc-SP Foto: Matheus José Maria
Danilo Santos de Miranda, filósofo, sociólogo e diretor-regional do Sesc-SP Foto: Matheus José Maria
Mesmo se dizendo uma pessoa otimista, Danilo Santos de Miranda, 78, não esconde sua grande preocupação com o momento político que o Brasil atravessa: “Estamos em uma situação terrível, sob vários aspectos”, diz o sociólogo e filósofo, diretor-geral do Sesc-SP desde 1984. “Isso vem de antes da pandemia, com erros na condução da economia, com a falta de financiamento para a cultura, com esse negacionismo ao campo do conhecimento e da ciência. E a coisa ficou muito pior com os milhares de mortos, o sacrifício, a dor e o luto espalhados pelo país.”
Em entrevista à arte!brasileiros, Miranda faz um balanço da atuação do Sesc-SP durante a pandemia, com sua intensa atividade virtual, e fala da volta ao presencial: “O encontro, o convívio, as atividades presenciais, isso é essencial para o nosso dia a dia”. É por isso mesmo que a instituição planeja também a abertura de uma série de novas unidades nos próximos anos, algumas delas já em construção – como Franca, Limeira, Marília e Parque Dom Pedro (na capital).
Sobre as constantes tentativas de corte de recursos para as entidades do Sistema S – como Sesc, Senac, Sesi e Senai -, financiadas por taxas compulsórias cobradas na folha de pagamento das empresas (com orçamento anual que chega a quase R$ 20 bilhões), Miranda afirma que isso não é exclusividade do atual governo: “Isso sempre nos preocupou e exigiu de nós uma espécie de comprovação permanente da nossa importância. Como se todos os dias tivéssemos que mostrar o porquê de existirmos, qual o papel que nós fazemos e motivo pelo qual a sociedade necessita da nossa atuação”.
Por outro lado, o que é característica mais particular da atual gestão federal, segundo ele, é que “o governo não tem nem a menor ideia do que é cultura. Não são pessoas que se dedicam ou que mergulham nesse conceito. Quando colocam, por exemplo, a cultura como parte de uma ação voltada para o turismo, sem dúvida nenhuma não entenderam nada do que ela significa” – o ministério da Cultura foi extinto sob o governo Bolsonaro e a atual secretaria é vinculada à pasta do Turismo.
Miranda falou também sobre a desigualdade global e regional escancaradas pela pandemia, sobre a necessidade de aprendermos a ser mais solidários e de atentarmos “à questão ambiental, à questão da diversidade, à questão de gênero e do respeito mútuo”. Leia abaixo a íntegra da entrevista.
ARTE!✱ – As unidades do Sesc, mesmo sendo espaços privados, sempre se colocaram na cidade quase como extensões do espaço público. São abertas a todos, pensadas para uma convivência criativa e democrática, enfim, ligadas a um projeto de “bem-estar social e de bem viver”, nas suas próprias palavras. Por um ano e meio estas unidades precisaram fechar as portas, por conta da pandemia. Como foi essa experiência de tentar manter a missão do Sesc sem os espaços físicos?
Danilo Miranda – Fez muita falta, já que o espaço é vital para podermos cumprir a nossa missão plenamente. O encontro, o convívio, as atividades presenciais, isso é essencial para o nosso dia a dia. Eu costumava dizer que a nossa grande especialidade é juntar gente. Agora, diante dos fatos, da nova situação, tivemos que nos reinventar, mudar as coisas. Então as unidades foram fechadas e passamos a fazer uma infinidade de atividades através do nosso sistema à distância, com grande alcance em nossas páginas. Tivemos uma ação muito forte do ponto de vista de conteúdo, com destaque para o Sesc Digital, que é uma plataforma que já estava pronta e foi lançada logo no início da pandemia, em abril de 2020. Lá temos muito material de acervo – mais de 20 mil itens -, uma complementação muito grande do ponto de vista de prestação de serviços e muita informação. E isso foi se aperfeiçoando. Aos poucos fomos prestando alguns serviços presenciais pré-agendados, na parte de alimentação, de odontologia e, mais à frente, até cursos, exposições, shows etc. Somente agora estamos reabrindo completamente.
Espaço aberto do Sesc Pompeia, em São Paulo, projetado por Lina Bo Bardi Foto: Araty Perone
ARTE!✱ – A partir de agora o Sesc-SP passa a trabalhar então em um modelo híbrido entre virtual e presencial? Como são os planos neste sentido?
Sim, nós vamos misturar os dois, o que vai tornar a nossa atuação ainda mais efetiva. Eu já dizia, há algumas décadas, que tudo o que fosse possível deveria ser feito à distância. E nós não tínhamos nem dimensão ainda de quanta coisa isso representava, do lugar em que as tecnologias chegariam. Eu pensava principalmente na parte burocrática, de informações, agendamentos e inscrições, para que as pessoas já chegassem nas unidades com as coisas facilitadas. Mas isso se exacerbou, especialmente agora na pandemia, e o virtual ganhou uma força muito maior, e vamos trabalhar também com essa realidade.
ARTE!✱ – No início da pandemia muito se falou sobre a necessidade de aprender algo com o que estava acontecendo, ou seja, uma ideia de que deveríamos sair deste período sabendo lidar melhor com o mundo à nossa volta. Agora, quando vemos um avanço grande na vacinação e a retomada de grande parte das atividades, você acha que de fato aprendemos algo? Mudamos nosso modo de ser ou voltamos para o mesmo lugar?
Falando institucionalmente, no Sesc-SP nós fizemos um grande esforço nesse sentido. Muitas coisas que acumulamos neste período – de informação, modos de fazer e de encarar as coisas – vão ser incorporadas nos nossos hábitos. Agora, falando de modo amplo, eu não gosto da expressão “retorno ao normal”. Porque o normal já era problemático demais, nós já enfrentávamos uma situação de aperto econômico, de dificuldades para financiar muitas ações… Não digo no Sesc, internamente, mas do ponto da sociedade, especialmente no mundo da cultura. Já havia constrangimentos graves antes da pandemia. E então voltar ao normal significa voltar para aquilo? Não nos interessa. Então vamos retomar nossos hábitos, mas também buscar esse caminho novo, que não tem nada a ver com o período pandêmico, mas tampouco com o período anterior. Queremos mudanças mais profundas.
Porque acho que, apesar de tudo, nesse tempo nós enriquecemos o nosso entendimento das coisas, sob determinados aspectos de convivência, de solidariedade, de consideração com o outro, da dependência mútua entre nós. São coisas que foram incorporadas, mesmo que de um jeito muito forte, quase forçado, e nós precisamos ter mais consciência de que vivemos em uma sociedade onde a solidariedade deve ser incorporada – independentemente de posições de caráter político ou religioso, mas do ponto de vista puramente humano. E nesse aspecto alguns pontos ficaram muito exacerbados. A questão ambiental, a questão da diversidade, a questão de gênero, do respeito mútuo, tudo isso vem junto. Não são coisas novas, mas começaram a ser mais exigidas de nós respostas a tudo isso. Então uma grande quantidade de instituições, organizações e empresas estão mais atentos a isso, no mundo inteiro. Governos também, mas aí não é o nosso caso. Somos uma exceção, um absurdo total.
ARTE!✱ –Em conversaque tivemos no começo da pandemia, quando o epicentro dessa crise estava na Europa, você afirmou que se lá a epidemia estava sendo grave, aqui seria ainda pior. De fato, chegamos agora a cerca de 620 mil mortos. A pandemia escancarou ainda mais as desigualdades globais?
Sem dúvida nenhuma. Há um desequilíbrio enorme, isso é notável. Se olharmos o que ocorreu aqui, mas também em países da Ásia, da África e outras partes mais pobres do mundo, sobretudo no hemisfério sul, é bem diferente do que acontece no hemisfério norte. Isso vale para economia, para política, cultura, diplomacia… e vale também para a saúde. É muito grave.
E pensando internamente, em nosso país, há também uma desigualdade muito grande. Nós temos na cidade de São Paulo 100% da população adulta vacinada, enquanto em outros lugares do Brasil há ainda situações muito inadequadas, números muito abaixo disso.
Agora, de lá para cá as coisas caminharam de uma forma um pouco imprevista. Aqui no Brasil de fato chegamos a uma situação gravíssima, inclusive um descontrole total no começo deste ano, mas de lá para cá – mais por força da sociedade, da imprensa e de políticos de outros níveis que não o federal – nós conseguimos um processo de vacinação bastante amplo. E isso hoje nos coloca numa situação até de certa vantagem sobre uma boa parte da própria Europa, onde há um negacionismo muito maior em relação à vacina. Então as coisas mudaram um pouco e é por isso que podemos ter também essa perspectiva de reabertura no Sesc. Ao mesmo tempo, temos razão de sobra para ter muita prudência ao pensar, por exemplo, nas festas de fim de ano, no carnaval e até mesmo nas propostas de liberação do uso de máscara em espaços abertos. No Sesc, por enquanto, vamos exigir as duas doses de vacina e máscara, para os funcionários e para os visitantes.
Obra de Carlito Carvalhosa em área interna do Sesc Guarulhos, inaugurado em 2019. Foto: Divulgação
ARTE!✱ – Lembrei de uma entrevista sua em que você fala que nós vivemos uma realidade muito materialista, onde as coisas são colocadas apenas do ponto de vista do desenvolvimento econômico, mas que, cada vez mais, se percebe que a busca pela qualidade de vida depende de muito mais coisas. E aí você fala de educação e cultura em um sentido amplo, sendo elas as bases do trabalho do Sesc-SP. Poderia falar um pouco sobre isso?
Para nós, o conceito de cultura sempre foi muito amplo e muito vinculado à questão educacional. Nesse sentido, os conceitos de cultura e educação até se confundem, porque significam a preparação para uma vida melhor, a busca de um bem-estar maior para todos, em todos os aspectos. Aí entra a questão do conhecimento, da visão de mundo, da percepção das coisas, de senso estético, do senso de comunidade e de pertencimento. Mas entram também as questões de caráter pessoal, questões físicas, de saúde, de alimentação, do modo de vida, e também questões ambientais. Inclusive, os nossos povos indígenas colocam isso de maneira muito integrada, tudo é parte de tudo: nós somos parte desse todo, e o que este todo também é parte de nós. E então, voltando ao Sesc, nós temos essa visão bastante holística, bastante ampla, bastante abrangente, atuamos com essa perspectiva.
ARTE!✱ – Essa visão ampla de cultura é, entre outras coisas, o que falta ao atual governo federal do país?
Não tenha dúvidas. O governo atual não tem nem a menor ideia do que é cultura, nem mesmo a tradicional, clássica. Não tem ideia nem do que é o conceito mais restrito de cultura, esse voltado para as artes e para o simbólico, nem do conceito mais amplo, de caráter antropológico, que diz respeito a tudo que é criação humana. Não são pessoas que se dedicam ou que mergulham nesse conceito. Quando colocam, por exemplo, a cultura como parte de uma ação voltada para o turismo, sem dúvida nenhuma não entenderam nada do que significa a própria cultura.
ARTE!✱ – Pensando nesse sentido, passaram pelo governo até agora cinco secretários de cultura, todos com atuações bastante polêmicas. Chegamos então ao atual secretário, Mário Frias, que parece estar cerceando cada vez mais a atuação na área, paralisando a Lei de Incentivo, entre outras coisas…
É uma sequência de pioras progressivas, infelizmente. A Lei Rouanet é uma lei invejada por outros países do mundo, uma vez que trata da questão do incentivo fiscal a partir das empresas, com os projetos empresariais vinculados à questão da cultura pública. É uma coisa que deve ser mais aprofundada, melhorada, avançada, sem dúvida nenhuma, e não digo que a lei é perfeita. Havia problemas sobretudo quanto à questão geográfica e quanto à uma mistura entre o publicitário e o cultural mas, ainda assim, era uma lei que tinha ampla participação de empresários, artistas, promotores culturais, criadores e gestores, com uma comissão representativa da sociedade. Quando você corta isso e torna tudo decidido unicamente por uma pessoa, seja quem for, você está andando para trás, prejudicando todo o entendimento da lei e impedindo efetivamente que ela seja aplicada devidamente. É um recuo gravíssimo, que diz respeito não apenas ao financiamento, mas ao caráter que eu chamaria de didático, educativo, no sentido de envolver as empresas em um compromisso de caráter cultural, social, comunitário e participativo.
ARTE!✱ – Aliás, é este mesmo secretário que foi à Bienal de Veneza e disse não saber quem é Lina Bo Bardi, arquiteta que projetou uma das mais emblemáticas unidades do Sesc-SP, o Pompeia…
Arquiteta que estava sendo premiada no evento. E o Sesc Pompeia é uma unidade exemplar, de fato, ícone da cultura no Brasil e no mundo. É um orgulho do Sesc e acho que de todo o país. Das obras de Lina é, para mim, a mais significativa e importante. Claro que o Masp tem papel central, o Solar do Unhão, a Casa de Vidro, todos são muito importantes, mas o projeto que tem maior vinculação com um vasto programa cultural e educativo, com a convivência, é o Sesc Pompeia.
ARTE!✱ – Migrando da Secretaria de Cultura para o Ministério da Economia, desde o início do governo há uma ameaça de cortes nos recursos do Sistema S. Recentemente isso se deu mais uma vez, com Paulo Guedes dizendo que queria usar parte da arrecadação para um programa de estímulo ao emprego. Em que ponto está esse imbróglio?
Olha, eu estou no Sesc há mais de 50 anos e desde lá eu ouço, por parte de praticamente todos os governos, sobre essas tentativas de tirar recursos ou até mesmo de impedir a continuação do funcionamento dessas entidades do Sistema S – como se elas tivessem um caráter supérfluo, desnecessário, desimportante. Bom, isso sempre nos preocupou e exigiu de nós uma espécie de comprovação permanente da nossa importância. Como se todos os dias tivéssemos que mostrar o porquê de existirmos, o porquê de devermos existir, qual o papel que fazemos e o motivo pelo qual a sociedade necessita da nossa atuação. E isso tem sido o grande elemento que impede que essas ideias de cortes prosperem, porque quando eles vão verificar sabem que essas instituições têm um caráter fundamental para a sociedade brasileira, em todos os sentidos – especialmente as quatro originais: Sesc, Senac, Sesi e Senai. Nós temos uma enorme quantidade de pedidos de prefeituras que desejam ter um Sesc, porque consideram essencial ter essa presença em suas cidades. Isso significa um valor importante, somos desejados e é sinal de que há uma aprovação da seriedade e qualidade do nosso trabalho. E, além disso, a nossa importância não é dada necessariamente pelos dirigentes públicos, pelos governos; nossa importância, nosso valor, é dado pelas milhares de pessoas que usam, que frequentam nossas unidades. Pessoas pelo país afora que usufruem seja da formação profissional especializada que o Senac e Senai oferecem, seja de um programa de cidadania, de bem-estar social e valorização do ser humano que o Sesc, o Sesi e outras instituições do Sistema S oferecem. Ou seja, nós prestamos conta do que fazemos permanentemente.
Mas, enfim, quanto à nossa relação institucional com o governo, nós temos também uma dependência efetiva de ações públicas e governamentais em nossa programação, em nossa maneira de agir. Temos relações com o governo e gostaríamos que elas fossem muito saudáveis, temos todo o interesse em manter boas relações com os três níveis de poder.
Imagem do futuro Sesc Franca, já em construção, uma parceria dos escritórios SIAA e Apiacás Arquitetos. Foto: Divulgação
ARTE!✱ – Aproveitando que você comentou de cidades que desejam ter a presença do Sesc, poderia falar das unidades que estão em construção neste momento?
Nós temos todo um planejamento para os próximos dez anos, aproximadamente, que prevê a criação de várias unidades em cidades do interior, na capital e no litoral de São Paulo. Atualmente estamos construindo uma unidade importante em Franca, que é a obra mais adiantada, além de outras em Limeira, Marília e no Parque Dom Pedro (capital). Recentemente inauguramos uma unidade em Mogi das Cruzes, teremos outra em Osasco e em breve a recuperação de uma área que nos foi entregue em São Bernardo do Campo. Há ainda ampliações em Registro e Ribeirão Preto – que é uma unidade muito antiga e precisa ser atualizada, e temos previsões também para construir em Pirituba, São Miguel Paulista e Campo Limpo. É muita coisa.
ARTE!✱ – De algum modo, portanto, apesar de toda a situação ruim no país, há sempre motivos para otimismo, para tocar em frente os projetos e imaginar transformações na sociedade?
Eu acho que sim, eu sou uma pessoa otimista. Olha, estamos em uma situação terrível no país, sob vários aspectos. Isso vem de antes da pandemia, com erros na condução da economia, com a falta de financiamento para a cultura, com esse negacionismo ao campo do conhecimento e da ciência. E a coisa ficou muito pior com os milhares de mortos, o sacrifício, a dor e o luto espalhados pelo país todo com o coronavírus. Agora, temos que ter uma perspectiva de mudança pela frente, temos que acreditar nisso, uma visão otimista, porque isso tudo tem que ser superado, não pode continuar. E depende muito de nós, de deixarmos evidente tudo o que está acontecendo.
Posso dizer que no Sesc-SP nossa programação segue muito positiva, otimista, com muitas coisas pela frente em todos os campos. No campo das artes visuais, por exemplo, já temos uma série de exposições importantes em cartaz – Alfredo Jaar no Sesc Pompeia, a Trienal Frestas em Sorocaba, entre outras– e em 2022 devemos trabalhar muito também com o centenário da Semana de Arte Moderna de 22, com os 200 anos da independência e com uma série de assuntos atuais que são fundamentais. Nós vamos continuar tocando o barco sem restrições. ✱
Em 2013, uma grande instalação foi apresentada na 18ª Bienal Sesc_Videobrasil com destaques dos primeiros 30 anos de trajetória do festival. Foto: Divulgação
Depois de um período de grandes incertezas e instabilidades – que obviamente ainda não se dissiparam totalmente no Brasil atual -, os próximos anos prometem ser um período prolífico e até mesmo celebrativo para a Associação Cultural Videobrasil (VB). Primeiro, pela efeméride dos 40 anos do 1º Festival Videobrasil, realizado em 1983, ainda nos últimos anos da ditadura civil-militar no país. Segundo, pela confirmação da realização da 22ª Bienal Sesc_Videobrasil em 2023, adiada por dois anos por conta da pandemia e que já terá atividades programadas para o próximo ano. Há, ainda, a realização de uma grande exposição do vasto acervo do VB em Vitória (Espírito Santo), a partir de março, a continuidade das mostras virtuais no Videobrasil Online e a participação em outros projetos como uma exposição em cartaz no Museu da Língua Portuguesa.
Curadora estabelecida com vasta atuação no Brasil e no exterior, ex-diretora do MAM-BA e no comando da Associação VB desde o início, Solange Farkas era apenas uma jovem recém-formada – em jornalismo e história da arte pela Universidade Federal da Bahia – quando decidiu realizar o Festival Videobrasil. Já radicada em São Paulo, teve como principal incentivador o seu sogro, Thomas Farkas (1924-2011), um dos mais importantes nomes da fotografia e do cinema modernos no Brasil e, à época, dono da empresa Fotoptica. Já interessada no cinema underground brasileiro, tema de seu trabalho de conclusão de curso na UFBA, Solange se deixou levar pelos estímulos de Thomas, somados à clara percepção de que o vídeo se estabelecia como nova linguagem no país e no mundo.
“No início dos anos 1980 o vídeo estava surgindo como um equipamento. Existia o cinema e a televisão, mas não o que chamamos de vídeo”, conta ela em entrevista à arte!brasileiros. A produção brasileira anterior a esse período, ainda dos anos 1970, era basicamente circunscrita ao núcleo do professor Walter Zanini, que após adquirir no exterior um equipamento para o MAC-USP cedeu o uso para artistas como Regina Silveira, Wesley Duke Lee, Carmela Gross, Julio Plaza e José Roberto Aguilar. “Mas o equipamento de vídeo mais acessível chegou apenas no início dos anos 1980 e o Thomas sacou que ali tinha algo grande. E me perguntou se eu não queria fazer uma mostra, ou algo do tipo, que estimulasse os artistas a usarem o vídeo e mostrarem essa produção.”
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Cartaz do 1º Festival Videobrasil. Foto: Divulgação
Cartaz do 2º Festival Videobrasil. Foto: Divulgação
Cartaz do 3º Festival Videobrasil. Foto: Divulgação
Cartaz do 9º Festival Videobrasil. Foto: Divulgação
Cartaz do 10º Festival Videobrasil. Foto: Divulgação
Cartaz do 14º Festival Videobrasil. Foto: Divulgação
E assim foi realizada, no Museu da Imagem e do Som em agosto de 1983, a primeira edição do festival, em uma escala ainda pequena se comparada à da atual bienal, mas já com mostra competitiva, apresentação de performances, instalações e até mesmo com uma feira de novas tecnologias como computadores, teletexto e videogames. Era o contexto dos últimos anos de ditadura – trabalhos tinham de ser submetidos à censura – e o tom geral era de crítica ao monopólio da televisão aberta, o que se apaziguou nos anos seguintes com a aproximação de produtoras e diretores de vídeo aos canais de TV. A partir daí a história é longa, cheia de transformações e reviravoltas, e sempre ligada não só aos contextos político e cultural, mas também ao caminhar do desenvolvimento tecnológico audiovisual.
Após a realização de oito festivais, Solange criou em 1991 a Associação Cultural Videobrasil, com estatuto que previa a manutenção e ativação do crescente acervo de obras e publicações reunidos nos eventos. No ano seguinte, o Sesc-SP entra como principal parceiro do festival, o que possibilita sua realização com grande estrutura desde então, em unidades como a Pompeia, o Belenzinho e o 24 de Maio.
Primeiras batalhas
Não só os equipamentos de filmagem foram se transformando, mas as próprias tecnologias de armazenamento e cuidado com o acervo. “Manter o vídeo vivo, fisicamente, é caríssimo”, explica Solange. “É uma mídia extremamente frágil para conservação e extremamente volúvel, porque a cada poucos anos muda a mídia de preservação do momento e você precisa converter tudo novamente. Estou fazendo isso há 40 anos e nunca para, dá até para fazer uma arqueologia da mídia a partir dessa história do VB.” Por conta dos enormes custos deste trabalho, Farkas já negocia a passagem do acervo do VB para as reservas técnicas de instituições com maior estrutura, em um processo que deve ter uma conclusão em um futuro próximo.
Parte da exposição da 20ª Bienal Sesc_Videobrasil, em 2017, no Sesc Pompeia. Foto: Divulgação
Está conectada a essa história tecnológica, também, a longa batalha da instituição pelo reconhecimento do vídeo enquanto suporte artístico relevante, tão importante quanto qualquer outro. “O preconceito contra o vídeo, dentro do próprio cenário das artes, era pesadíssimo”, conta ela, que foi tanto observadora quanto agente da transformação desta perspectiva ao longo das décadas. Curiosamente, com a atual pandemia de Covid-19 e o longo confinamento das pessoas em suas casas, a curadora nota um retorno maior a essa mídia: “É interessante pensar como o vídeo, nesse momento, ocupa um lugar central em todos os campos da cultura. O vídeo é o modo de comunicação, é a expressão possível nesse momento, é o que está nos conectando”, afirmou à arte!brasileiros ainda em 2020.
Uma outra longa batalha travada pelo VB ao longo das décadas, talvez mais dura e permanente, se refere à decisão da associação de se dedicar à produção artística do chamado Sul Global, definido em uma de suas publicações como “termo que se refere à condição cultural, econômica e política de países e territórios à margem da modernização hegemônica e do capitalismo central”. Após a internacionalização do festival na passagem dos anos 1980 para 1990 e a inclusão do termo “arte eletrônica” no nome do evento em 1994, o Videobrasil se firmou de fato como plataforma dedicada a produções “de fora do eixo tradicional formado pela Europa e pelos Estados Unidos”.
O conceito de Sul Global, no entanto, esteve sempre em transformação e não deixa de incluir também territórios internos aos países centrais: “É um Sul político, não exatamente geográfico. Não é recortar o globo no meio”. A aproximação com diversas regiões da África, América Latina, Oriente Médio, Leste Europeu e Ásia, entre outros, colocou o VB em um lugar de vanguarda, mas criou também uma série de dificuldades em um mundo geopoliticamente tão desigual. “Inclusive entre os artistas, alguns me diziam: eu não quero ir para África, quero ir para Paris. Porque todo mundo, para existir, queria ir ou para a Europa ou para os EUA”, conta. “Foi uma militância nossa a de tentar criar pontes, redes, que possibilitassem o trânsito entre nós do Sul Global, para que ele pudesse existir sem que os artistas tivessem sempre que ser chancelados pelo norte.”
Se a questão está longe de estar resolvida, Farkas percebe uma enorme mudança nos dias de hoje, com a proliferação, por exemplo, de espaços culturais e residências artísticas em lugares antes excluídos do mapa global das artes. Na entrevista concedida em 2020, no primeiro pico da pandemia, ela afirmou: “Existe uma coisa interessante – se é que é possível falar de alguma coisa interessante nesse momento em que há tanto sofrimento, tantas pessoas padecendo -, que é que todas as grandes certezas, as diretrizes sempre colocadas de lá para cá, do Norte para o Sul, estão sendo postas em cheque. (…) Nesse sentido, estamos um pouco parecidos. E quando passar o ápice de tudo isso, talvez a gente esteja um pouco à frente em relação a algumas alternativas e saídas; nós que vivemos em crise permanente e que sempre tivemos que lidar com a precariedade e achar alternativas, sobretudo no campo da arte e da cultura”.
21ª Bienal Sesc_Videobrasil, em 2017, no Sesc 24 de Maio. Foto: Everton Ballardin
Queda e volta por cima
Bastante anteriores à pandemia, outros marcos na história do Videobrasil foram a inclusão, a partir de 2011, dos mais variados suportes artísticos para além do vídeo e da arte eletrônica nos festivais e mostras; e a mudança de sua sede, em 2015, para um grandioso galpão na Vila Leopoldina (São Paulo). Em 2019, o evento assumiu também o nome de bienal, passando a se chamar Bienal de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil. Mas o VB, assim como tantas instituições culturais, não ficou imune às ininterruptas crises vividas pelo país nos últimos anos, especialmente sob o governo Jair Bolsonaro. Com a dificuldade para captação de recursos, a associação devolveu o galpão (onde chegou a realizar mostras importantes) ainda em 2019 e encarou uma espécie de paralisia institucional. “É impossível planejar qualquer projeto diante de um governo que desrespeita a cultura, ataca a cultura, elimina a cultura. Na verdade, isso diz respeito à cultura, à imprensa e às instituições democráticas, nesse flerte claro com o totalitarismo”, afirmou Farkas em 2020.
A diretora afirma também que em um profundo período de reflexão nos últimos anos percebeu que precisava repensar algumas estruturas da associação, inclusive estabelecer um tipo de independência do VB em relação à sua própria pessoa. “Porqueo acervo, enorme, maravilhoso, também assusta. A pandemia trouxe um dado de realidade cruel, a percepção de que podemos morrer a qualquer hora. E o que acontece com esse acervo? Não pode estar apenas nas minhas mãos, vi que preciso pensar em continuidade.”
A responsabilidade por uma coleção com grande custo de manutenção, que inclui não só os trabalhos reunidos ao longo dos 21 festivais – vários deles feitos a partir de comissionamentos -, mas também coleções inteiras cedidas por artistas (ou suas famílias) como Rosangela Rennó, Rafael França, Marina Abs e Moysés Baunstein, aceleraram a ideia da passagem dos cuidados do acervo para outras instituições. A concretização deste plano não significaria, no entanto, a desvinculação deste acervo da associação, como ressalta Farkas. Neste ponto, ela exemplifica a riqueza do material citando alguns nomes que possuem ao menos dois trabalhos na coleção: Akram Zaatari, Barbara Wagner e Benjamin de Burca, Enrique Ramirez, Eder Santos, Bouchra Khalili, Cao Guimarães, Jonathas de Andrade, Liu Wei, Marcellvs L., Maya Watanabi, Sebastian Diaz Morales, Seidou Cissé, Vincent Carelli, Virgínia de Medeiros, Walid Raad, Walter Silveira, Ximena Cuevas e Ximena Garrido-Lecca.
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Cena de "Laboratorio de invención social o posibles formas de construcción colectiva", 2018, filme da argentina Gabriela Golder. Foto: Divulgação
O artista Abdoulaye Konaté, que é tema do documentário que estreiou a plataforma. Foto: Everton Ballardin
Cena de "!Women Art Revolution", 2010, filme da norte-americana Lynn Hershman Leeson que esteve em cartaz no Videobrasil Online. Foto: Divulgação
Cena de "Volando Bajo", de Calderón y Piñeros. Foto: Divulgação
Com tudo isso em mãos, o VB começou a sair de sua paralisia com a criação da plataforma Videobrasil Online, em setembro de 2020, no auge da pandemia. “Nessa ausência do espaço físico, ficou muito claro para mim que o lugar do vídeo é de fato na telinha. E que faz sentido, mais do que nunca, voltarmos a focar no vídeo, que é a origem da associação.” A página virtual, que apresenta tanto mostras com trabalhos do acervo quanto produções inéditas, já está em sua nona exposição, da artista argentina Gabriela Golder. A mostra, segunda de uma parceria com a KADIST (instituição com sedes em São Francisco e Paris) que inaugurou com a exposição da americana Lynn Hershmann Leeson, seguirá com uma coletiva apenas de mulheres das coleções das duas instituições.
Passaram ainda pelo VB Online ao longo deste pouco mais de um ano as exposições de Abdoulaye Konaté (Mali), Ayrson Heraclito (Brasil), Ayoung Kim (Coreia do Sul), Giselle Beiguelman e Ilê Sartuzi (Brasil), Calderon y Piñeros (Colômbia) e uma coletiva sobre o sistema prisional no Brasil, curada por Juliana Borges. “Então o Videobrasil Online surgiu, em boa parte, como um projeto que funcione neste mundo virtual e que cumpra minimamente esse papel da digitalização e ativação do acervo. É uma plataforma expositiva que nos obriga a digitalizar a mídia, legendar, criar novos verbetes e colocar tudo no ar, com um alcance de público global, o que é fascinante”, diz Farkas.
A “volta por cima” do VB acontece ainda com a realização em Vitória, a convite do Governo do Estado do Espírito Santo, de uma grande mostra que ocupará dois espaços da cidade: no Museu de Arte do Espírito Santo haverá um grande recorte da coleção da associação; no Galeria Homero Massena, uma curadoria em cima dos mais de 300 vídeos de performances guardadas pelo VB que será montada em uma grande instalação audiovisual. Além disso, em cartaz no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, está a mostra Sonhei em Português!, que abriga uma sala com vídeos do VB relacionados a temas da migração e da diáspora de povos ao redor do mundo. “É um exemplo de como, a partir de uma proposta curatorial dada, você pode ir no acervo e achar coisas sobre qualquer tema. Dá para contar muitas histórias, montar diversos recortes, inclusive que dialoguem com os contextos locais. Isso é o nosso grande tesouro.”
Por fim, a maior celebração deve ser a realização da 22ª Bienal Sesc_Videobrasil – que esteve em suspenso por conta da pandemia – em 2023, exatas quatro décadas após o incipiente festival de 1983. Com curadoria do carioca Raphael Fonseca e da senegalesa Renée M’boya, a mostra no Sesc 24 de Maio já estava em planejamento quando precisou ser cancelada, mas retoma agora a produção em ritmo acelerado. No início do ano será realizada a chamada aberta para os projetos de artistas, que se somam aos cinco nomes convidados para a edição. “Vamos ter que adaptar os temas e o recorte curatorial a um outro mundo, muito diferente daquele de dois anos atrás”, conclui Farkas.
"Tempos modernos: arte, tempo, política", de Jacques Rancière, publicado em 2021 pela N-1 edições. Foto: Reprodução
“Tempos modernos: arte, tempo, política”, de Jacques Rancière, publicado em 2021 pela N-1 edições. Foto: Reprodução
Se existe um local onde inclusão, decolonialismo e debate antirracista são muito presentes é na cena da arte contemporânea. Por isso, não deixa de ser estranho que o novo livro de Jacques Rancière, Tempos modernos – arte, tempo, política, se dedique a uma espécie de revisão do modernismo apenas com referências de autores homens, brancos e europeus ou estadunidenses.
Afinal, seu livro A partilha do sensível – estética e política, publicado no Brasil em 2005, é uma referência importante sobre a compreensão de que uma obra de arte deve ser vista sempre dentro do “tecido da experiência”, como o próprio Rancière conceitua, portanto dentro de um contexto.
É verdade que a publicação que sai, agora em 2021, pela editora N-1, reúne quatro textos já um tanto datados, a maioria de 2015. Sim, seis anos no atual momento, pós #metoo e #blacklivesmatter, é um período suficientemente largo, porque alterou paradigmas culturais e acadêmicos, que não toleram mais certas práticas ultrapassadas.
No Brasil, essa questão torna-se ainda mais pertinente pois já tiveram início as reflexões em torno dos 100 anos da Semana de Arte Moderna de 1922, e muitos seminários e eventos buscaram rever a efeméride a partir de óticas mais inclusivas e de autoras e autores com distintas representatividades.
Regime da experiência
Apesar de tudo isso, o marxista Rancière segue buscando criar conceitos que possam olhar para formas de emancipação, como ao problematizar a noção de moderno como “construir um novo senso comum, um novo tecido sensível em que as atividades prosaicas recebam o valor poético que faz delas os elementos de um mundo comum”.
Esse “tecido sensível” é visto também como um “regime da experiência” e torna-se parte do foco desta pesquisa: apontar que a noção de tempo linear da modernidade deve ser repensada, pois “o tempo não é simplesmente a linha que se estica entre um passado e um futuro. Ele é também, e antes de mais nada, um meio em que se vive”. Dos quatro textos da publicação, com uma um tanto óbvia homenagem ao filme de Charles Chaplin, Tempos Modernos, dois deles são dedicados a linguagens específicas da arte: a dança e o cinema.
Sobre a dança ele aponta o caráter libertário e livre, especialmente dos anos 1920 e 1930, abordando coreógrafas e bailarinas de um amplo espectro: da expressionista alemã Mary Wigman (1886-1973), precursora da dança-teatro, à norte-americana Lucinda Childs.
Já no ensaio sobre cinema, Rancière trata de cenas específicas de três filmes: Um homem com uma câmera (1929), de Dziga Vertov, As vinhas da ira (1940), de John Ford, e Juventude em Marcha (2006), do português Pedro Costa. Ao menos aí, Costa representa uma certa marginalidade no pensamento tão eurocêntrico do autor.
"Vista desde la desembocadura del arroyo Ugarteche mirando hacia el sur", da argentina Luisa Lerman, é uma das obras que integram a mostra coletiva Laboratorio Ampibio del Plata. Foto: Divulgação
Em sua terceira edição, a BIENALSUR (Bienal Internacional de Arte Contemporânea do Sul) amplia ainda mais seu raio de alcance, estendendo suas ações para diferentes partes do globo e tentando consolidar-se como um evento alternativo às bienais tradicionais de arte. Os números indicam que a ideia de realizar um evento descentralizado, dinâmico e colaborativo vem surtindo resultados. Em sua estreia, em 2017, envolveu 16 países, 34 cidades e mais de 80 sedes (como são chamadas as instituições que abrigam as mostras). Quatro anos depois, esses números tiveram um aumento significativo: agora são 23 países, 47 cidades e 120 sedes espalhadas pelo mundo. Com grande concentração na América Latina (em especial na Argentina, que sedia o projeto) e Europa, o evento também tem desdobramentos em lugares menos prováveis como a Arábia Saudita e Japão.
Idealizado por Aníbal Jozami e Diana Wechsler, da Universidad Nacional de Três de Fevereiro (Untref), de Buenos Aires, o projeto procurou desde o início subverter algumas premissas do circuito das artes, descentralizando decisões, abrindo convocatórias abertas aos artistas, estabelecendo parcerias com pesquisadores e instituições internacionais e procurando estabelecer uma plataforma que se estenda pelo tempo e pelo espaço. A primeira mostra foi inaugurada em julho em Salta (Argentina) e já deu a tônica que marca essa edição do evento, com uma forte presença de questões ligadas ao meio ambiente e aos direitos da terra. A escuta e os ventos. Relatos e inscrições do Grande Chaco trouxe trabalhos de artesãs, ativistas dos povos originários e artistas convidadas, como a argentina Andrea Fernández (que também é a curadora da exposição) e a alemã Inka Gressel, falando de tradição e resistência.
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"De las cenizas", de Donna Conlon, integra a mostra Desde la herida. Foto: Divulgação
"Itiyuro", imagem do ensaio documental "Territorio", de Brayan Sticks. Foto: Divulgação
"Misterios", de Christian-Boltanski, integra a exposição Conciencia medio ambiental capítulo 1 Paisaje en foco Miradas desde el presente. Foto: Divulgação
“Desde a primeira edição a questão de migrações, fronteiras, trânsitos e identidades vem sendo um leitmotiv e continua aparecendo de maneira muito forte, na quantidade de propostas que aparecem”, explica Diana Wechsler, diretora artística do evento. Essa ideia de temas predominantes decorre da própria lógica estrutural do evento, que se guia pelas inscrições abertas (nesta edição foram submetidas mais de 5,5 mil projetos) para identificar as principais questões mobilizadoras no plano da arte. Outro tema forte neste momento, que está norteando as exposições organizadas na Arábia Saudita, são os modos de habitar. A mostra coletiva Ecos. Um mundo entre o analógico e o virtual, aberta em outubro em Riad, reúne 24 artistas de distintas nacionalidades – 70% deles mulheres – que lidam com essa questão do espaço de moradia e existência, uma vivência cotidiana que flui entre o analógico e o digital, o real e o virtual. São trabalhos nos quais, segundo Diana, “espaço e tempo aparecem por momentos alinhados e por outro dissociados”. Essa discussão ganha maior fôlego quando pensada no contexto da pandemia, em que esses dois aspectos apareceram fortemente dissociados e foram objeto de muitas reflexões poéticas, além de ter uma profunda conexão com o caráter um tanto atemporal e nômade do próprio projeto da BIENALSUR.
Aliás, a BIENALSUR é um dos poucos eventos internacionais que não alterou seu calendário em função do Covid-19, como fizeram as bienais de Veneza e São Paulo. Sua natural dispersão geográfica e a presença cada vez mais intensa das redes de internet em sua lógica estrutural – com um destaque bastante importante dado à comunicação virtual, por meio sobretudo do siteestão entre as razões para a manutenção do calendário. “Nos pareceu que a lógica de rede, a lógica de trabalhar de maneira simultânea, polifônica, descentralizada nos ia permitir seguir adiante e creio que isso ficou demonstrado pelo fato de que desde 8 de julho, quando lançamos a primeira exposição, até hoje, BIENALSUR veio crescendo, somando sedes, somando projetos, articulando-se entre si e gerando uma comunidade de arte que contribui hoje com o desenvolvimento de uma cultura crítica no tempo contemporâneo”, diz Diana.
“Oil Painting”, de Sujin Lim. Foto: Cortesia artista
Naturalmente, esse esgarçamento acaba por provocar uma sensação de desorientação, que pode ser captada por exemplo nos comentários e pedidos de explicação que se acumulam nas redes sociais do evento. Mas, por outro lado, traz, segundo Diana, uma flexibilidade um tanto libertadora, dando uma maleabilidade e uma grande capacidade de adaptação. “A BIENALSUR é um projeto associativo, que se adapta, que é flexível e que trabalha com as lógicas de cada lugar. Não é um projeto prepotente ou imperativo que vai a cada lugar colonizando, mas o contrário: chega a cada lugar com a humildade do estrangeiro, se senta para conversar sobre a possibilidade de trabalhar juntos e a partir de compartilhar uma agenda de interesses e de questões a levar a cabo juntos”, pondera a diretora artística e idealizadora do evento. “Estamos atentos não só aos processos que de maneira singular fazem cada um dos artistas, mas entendemos que esses processos de alguma maneira são processos da sociedade, são processos coletivos, são processos que se fazem também na pluralidade e na diversidade”, complementa.
Jaider Esbell na exposição "Apresentação : Ruku" na Galeria Millan. Foto: Renata Chebel / Galeria Millan
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Jaider Esbell na exposição "Apresentação : Ruku" na Galeria Millan. Foto: Renata Chebel / Galeria Millan
"Os Parixaras", de Jaider Esbell, exposta na 3a Frestas - Trienal de Artes. Foto: Divulgação / Sesc Sorocaba
A morte de Jaider Esbell, aos 41 anos, no dia 2 de novembro, consternou o circuito de arte contemporânea. Como escreveu Denilson Baniwa, “Jaider chegou a esse lugar que para os brancos é considerado sucesso [mas que] para nós dois foi, dia a dia, tornando-se um peso”.
Muito vem se falando a respeito dessa perda, mas o que melhor dá conta deste contexto é uma longa entrevista que o próprio Jaider deu a Artur Tavares, publicada na íntegra na revista digital Elástica, um excelente documento sobre o pensamento do ativista indígena (clique aqui e leia na íntegra).
Na entrevista, Jaider deixa claro como ele e outras lideranças indígenas viram na cena da arte contemporânea uma forma de militância – e não se reivindicava de fato como artista plástico:
Esse trabalho todo com a Bienal é parte da nossa política histórica de resistência indígena, que é uma extensão de um movimento invisibilizado pelas próprias mídias, o movimento de base. (…) Estamos falando de um lugar que não é exatamente o do artista plástico. Eu não sou, de fato, artista plástico, muito embora dentro dessa performance toda a gente precise corporificar essa persona artística para chegar nesses lugares privilegiadíssimos, como a própria Bienal de São Paulo, e não passar por lá como mais um artista que está por aí no mundo.
Jaider também explicita na entrevista as diferenças de tempos e procedimentos com o circuito da arte e como era necessário contestar a folclorização da presença indígena tanto na Bienal de São Paulo como na mostra Moquém_Surarî, que ele organizou no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP):
De fato, não deixamos qualquer coisa passar de qualquer forma, como as coisas têm sido tratadas há mais de 500 anos. As nossas histórias e nossos pensamentos sempre foram interpretados, introduzidos e moldados por antropólogos, por padres, por políticos, enquanto a gente nunca conseguiu imprimir um pensamento autoral, que nos coloque devidamente em um lugar de pessoas que têm mundos próprios, cosmologias próprias.
E aí temos que paralelizar a todos os momentos com a cultura que quer ser dominante. Quando, por exemplo, o Makunaima, que é meu avô – o Macunaíma que está na capa do livro de Mário de Andrade – vira um mero folclore. A gente diz que o folclore brasileiro não existe, é uma invenção, é uma apropriação das nossas cosmologias e entidades. Uma apropriação. E aí, como se não existíssemos mais, vamos tornar essa história bonita em folclore brasileiro.
Existe de sua parte uma percepção muito adequada da importância da Bienal e do circuito da arte como um espaço de reflexão, algo semelhante ao que defende Grada Kilomba. Ela, que era professora da universidade Humboldt, em Berlim, decidiu sair da carreira acadêmica para se dedicar à arte por perceber a abrangência e a liberdade desse campo. É muito semelhante ao que Jaider defende quando apresenta a escola como “aparelho colonial”:
Essa Bienal, esse palco, é um lugar importantíssimo, um dos últimos refúgios de uma ideia de pensamento em construção, um lugar no qual precisamos estar. Muito mais do que a academia, do que a política partidária, muito mais que organismos com as escolas ou as igrejas, esses aparelhos coloniais e exóticos. (…) Chamamos o que estamos fazendo de arte indígena contemporânea, que também sabemos que não é suficiente, que não abarca tudo, mas que é necessária para atrair alguns curiosos, atentos, que têm vontade de escutar de fato alguma história outra, que vêm perguntar pra nós: “O que é arte indígena contemporânea?”. E a gente diz: “É uma armadilha para levar bons curiosos para um lugar de reflexões profundas”, que, mais uma vez, não cabe no movimento político, na igreja, nem no judiciário, nem lugar nenhum, porque esses lugares não foram feitos para isso mesmo.
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Obra "Carta ao velho mundo", de Jaider Esbell, exposta na 34a Bienal de São Paulo. Foto: Levi Fanan / Fundação Bienal de São Paulo
Obra "Carta ao velho mundo", de Jaider Esbell, exposta na 34a Bienal de São Paulo. Foto: Levi Fanan / Fundação Bienal de São Paulo
Jaider também conta como sua luta diz respeito aos povos indígenas e não apenas a ele em particular, ao revelar que a mostra do MAM-SP foi proposta para ser uma individual e ele modificou o projeto:
Então a Bienal me convida porque gostou do meu trabalho, e queriam que eu fizesse uma exposição individual lá no MAM. Falei que individual eu não faço, porque não sou individual. Todo meu trabalho é coletivo, tudo que eu faço é coletivo. Faço se for coletivo. Foi quando começamos a construir a exposição Moquém_Surarî. A coisa tem que ser estratégica em todos os lugares.
Contudo, Jaider explica que os embates com o circuito da arte não foram fáceis e não se sentiu contemplado pelas atitudes da Bienal de São Paulo, tendo que pagar ele mesmo pela presença de outros indígenas:
Não estamos satisfeitos. Porque primeiro a Bienal disse que não queria índio nenhum. Agora que está saindo na mídia bonitinha que botou não sei quantos índios, isso não é verdade, precisamos esclarecer. E tem mais. Se já estão se arvorando disso, saindo de bonzinhos, isso não está certo. Porque isso tem um custo, e quem está pagando essa conta basicamente sou eu – e estou falando de dinheiro mesmo. Porque a Bienal paga um cachê de 12 mil reais, pega sua obra e te esquece. E aí, em se tratando da arte indígena contemporânea não basta. Porque quando você pega uma obra do artista, pega toda a história dele muito antes da colônia. Pega toda essa complexidade colonial e a coletividade. Então, se eu cheguei, vão chegar outros.
O depoimento no total é contundente e preciso. A perda é inestimável, mas o legado é definitivo.
Vista geral Oficina Brennand. Fotos: Breno e Gabriel Laprovitera / Cortesia Oficina Brennand
Quando seu pai lhe entregou as chaves da velha fábrica, o artista Francisco Brennand confessou que ali entrava para nunca mais sair, e assim o fez. Foi em 11 de novembro de 1971 que Brennand, aos 44 anos, decidiu ocupar as ruínas da Cerâmica São João da Várzea – um complexo de 15 km2 – e torná-la seu ateliê.
Falecido em dezembro de 2019, Brennand tomou duas providências antes de morrer: “Confeccionou a sua própria urna funerária num conjunto de esculturas chamado de Templo do Sacrifício; e transformou a Oficina Brennand numa instituição privada com fins públicos. Se assegurou que as terras onde se localiza a oficina não pudessem ser vendidas nem ter a finalidade alterada. Desta maneira, sua obra não poderia ser esquecida”, como nota a marchand Cecília Ribeiro Peirão. A criação da urna está intrinsecamente ligada à sua profunda relação com o local. À Folha de S. Paulo, em 2013, chegou a confessar: “Eu lido com fogo há muitos anos… quero me transformar naquilo que é, vamos dizer, uma cerâmica, então eu vou ser cremado, volto pra essa urna, parte de minhas cinzas ficará nessa urna e o restante será jogado lá na casa do [engenho] São Francisco, onde eu vivi, de onde veio a minha família”.
Agora, meio século depois da ocupação do artista, a oficina transformada em instituto organiza uma grande exposição que mostrará cerca de 200 itens – entre pinturas, esculturas, gravuras, serigrafias e documentos – garimpados do acervo permanente do instituto (que conta com mais de 3 mil obras), de coleções privadas e museus. “Eu nunca me preocupei com unidade porque a sensação que eu tenho é de vários, nós somos vários”, chegou a atestar o artista.
Vista da Oficina Brennand. Foto: Breno e Gabriel Laprovitera / Cortesia Oficina Brennand
Batizada Devolver a terra à pedra que era: 50 anos da Oficina Brennand, ela ficará em cartaz até outubro de 2022. Seu recorte curatorial tem por base os pilares conceituais “Natureza”, “Território” e “Cosmologias” – tópicos que também norteiam o programa da nova fase do instituto e marcam a produção do artista. Nesta proposta, o pilar “Natureza” permite pensar o ecossistema como identidade, mas também oferece uma oportunidade para eliminar a suposta dicotomia entre natureza e cultura. Ao mesmo tempo, sua escolha está ligada ao fato de que “é impossível pensar em natureza sem pensar em território, sem pensar em cosmologias”, afirma Júlia Rebouças, atual diretora artística da instituição, que divide a curadoria da mostra com a venezuelana Julieta González.
“No universo de criação de Brennand há uma grande diversidade de espécies híbridas, que fusionam existências animais, minerais, vegetais, sempre em tensão com as formas humanas. A natureza também está presente a partir da convivência com essas duas entidades importantíssimas, presentes e constituintes ali do que ele entende como território da oficina, o Rio Capibaribe e a mata da Várzea”, explica Rebouças. É justamente a esse entorno que se refere o eixo “Território”, com foco na geografia e história da região. “Estamos desenvolvendo ações específicas para a região, que começaram com o estreitamento de uma rede de relacionamento. Em 2021, para além de uma ampla formação de professores, de parcerias com a UFPE, lançamos uma residência educativa que serviu inclusive para levantar proposições de trabalho na região. Com o aprofundamento dessas ações, o educativo está sendo formado e projetos e políticas de trabalho com a Várzea devem ser anunciadas”, coloca a diretora artística. “Cosmologias”, por sua vez, pretende abordar o aspecto fabulador e automilotologizante do artista (descrito por sí próprio como “feudal” e “supersticioso”) através das evocações arquetípicas, literárias e filosóficas em suas obras. “Eles [se referindo às esculturas que Brennand chamava de ‘guardas’] estão em cima do muro que, na verdade, rodeia toda a fábrica e isso fecha a cidadela, com todos os seus mistérios”.
Segundo Rebouças, “Brennand entendia que a memória e a preservação de sua obra precisavam do tensionamento do presente. A criação do instituto com o propósito de abrigar outras produções era resultado disso”. Aqui se encontram duas missões para a nova fase da oficina, uma de criar diálogos com o contemporâneo – sobre cuja arte Francisco reconheceu publicamente: “Nada disso me interessa”; outra de preservar a memória do artista para além da sua fortaleza. A exemplo disso estão as peças doadas por ele para o Parque das Esculturas, em Recife, em razão dos 500 anos do descobrimento do Brasil – muitas foram roubadas ao longo dos anos. Curiosamente, no documentário de 2012, homônimo ao artista, ele diz: “As esculturas vão receber sol e chuva, atravessar noite e dia e elas vão durar para sempre se não forem destruídas, só a mão do homem pode destruí-las”.
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Fotografia de Sofia Borges retrata mundo particular dentro da Oficina Brennand. Ensaio da artista será publicado em livro comemorativo sobre o instituto. Foto: Sofia Borges / Cortesia Oficina Brennand
Fotografias de Mauro Restiffe retratam mundo particular dentro da Oficina Brennand. Ensaio do artista será publicado em livro comemorativo sobre o instituto. Foto: Mauro Restiffe / Cortesia Oficina Brennand
Em relação à segurança futura das peças no Parque de Esculturas, Marianna Brennand, sobrinha neta do escultor e presidente da oficina, afirma: “Esse projeto sofreu com vandalismo desde a sua inauguração, com muito infortúnio. Ao longo do tempo algumas obras foram sendo repostas, mas nos últimos anos a situação se agravou e quase todas as obras em bronze foram roubadas”. Ela observa, no entanto, que a atual gestão da prefeitura (de João Campos, do PSB) está empenhada em trazer uma solução de longo prazo, não apenas com o restauro do parque mas com ações de reforço na segurança do espaço e melhorias no fluxo e acolhimento dos visitantes. A Oficina está colaborando e dando o suporte necessário, além de fornecer peças de reposição e atuar no restauro das peças cerâmicas”, assegura Marianna. Ela menciona também que o artista Jobson Figueiredo, parceiro de Brennand no projeto original, está desenvolvendo as peças em bronze a partir dos moldes originais.
Para o futuro, a monumental olaria conta com uma ampliação capitaneada pela METRO Arquitetos Associados, tendo em vista a missão de fazer intervenções que considerem o fluxo do público no espaço ao mesmo tempo que respeitem as características seminais e históricas do espaço original. Enquanto as transformações ocorrem, Devolver a terra à pedra que era: 50 anos da Oficina Brennand segue seu rumo normalmente, não sendo, no entanto, a única mostra sobre o pintor e escultor a tomar lugar no momento. Em São Paulo, até 29 de janeiro de 2022, na galeria Gomide & Co (que representa o espólio de Brennand desde o começo de 2021) pode ser visitada a exposição Francisco Brennand: Um primitivo entre os modernos, também com curadoria de Julieta González. ✱
Vivian Ostrovsky. Foto: Anne Maniglier / OFF Pictures
Prolífica cineasta experimental, Vivian Ostrovsky, 76, carrega mais de 30 filmes na sua bagagem. Nascida nos Estados Unidos, depois de ter passado a infância no Rio de Janeiro, iniciou estudos na Europa. Foi lá, na França, que junto com Rosine Grange, nos anos 1970, fundou a organização pioneira Ciné-Femmes Internacional, dedicada exclusivamente à promoção, distribuição e exibição de filmes realizados por mulheres. Tudo isso em um modo guerrilha, viajando com os rolos de filme em uma caminhonete Renault 4L e circulando pela França e pela Europa para mostrá-los, em um tempo em que os distribuidores – todos homens – não queriam tocar em filmes de realizadoras. Ainda em 1975, Ostrovsky foi uma das responsáveis pelo simpósio internacional Women in Film, sob tutela da UNESCO, e que reuniu nomes como Susan Sontag; Agnès Varda; Chantal Akerman – de quem foi grande amiga e à qual dedica But elsewhere is always better -; e Mai Zetterling, cineasta sueca da qual está organizando uma retrospectiva nos dias de hoje.
Utilizando-se de found footage (imagens encontradas, sejam de arquivo ou não) e dos seus próprios filmes caseiros, Ostrovsky acabou criando sua própria linguagem, a qual o cineasta e crítico Yann Beauvais apelidou de “journal-mosaic” (diário mosaico), uma junção de dois gêneros do cinema experimental, a video colagem e o cinediário. Nas palavras da escritora Juliet Jacques, o trabalho de Ostrovsky apresenta a dialética como um elemento recorrente, seja entre imagem e som, culturas e ideologias, ou passado e presente.
Recentemente, ela foi responsável pela programação da segunda edição do Festival Scratch Collection, organizado pela distribuidora de filmes experimentais Light Cone, para o qual selecionou filmes de 33 realizadoras mulheres, vindas de 14 países e diferentes gerações, dos anos 1940 à contemporaneidade. A arte!brasileiros conversou com a cineasta sobre o evento, o cenário do cinema experimental e sua amizade com Ione Saldanha, artista gaúcha conhecida pelas pinturas em carretéis, ripas e bambus e cujo trabalho lida com questões como a quebra da moldura e a conquista do espaço pela cor, segundo Adriano Pedrosa, curador responsável pela homenagem a Saldanha que ocorre agora no Masp.
ARTE!✱ – Sendo você uma cineasta, mas também distribuidora de filmes e programadora de festivais, como ocorre esse cruzamento entre ofícios? Em que momentos você percebe um empréstimo entre a realizadora dos seus próprios filmes e a responsável por selecionar os de outras autoras?
Vivian Ostrovsky – São três atividades em épocas diferentes também. Eu comecei com a função de distribuidora, tendo distribuído filmes de mulheres entre 1974 e 1980. A partir de 1980, eu comecei a fazer meus próprios filmes, o que me levou a parar a distribuição. Já o trabalho de curadoria foi algo que comecei por volta de 1990 e faço até hoje, de forma esporádica. Como curadora eu nunca programo os meus próprios filmes porque acho isso totalmente antiético. Dos meus filmes quero que sejam outras pessoas que façam a programação.
Meu polo principal é como cineasta. Tenho feito principalmente curtas. No cinema experimental os filmes são bem mais curtos, o financiamento sendo uma das razões para tal: em geral não há financiamento para esse tipo de cinema, são os próprios cineastas que se financiam. Em épocas passadas já houve ajuda nos lugares nos quais residi (França e EUA), mas, de fato, eu nunca tentei arranjar nenhum patrocínio ou bolsa pela simples razão que eu não trabalho com roteiro e nem posso saber o que vou fazer. Com isso quero dizer que existem certas coisas que eu sei de antemão, por exemplo, eu fiz um filme com uma coreógrafa sobre dança, sobre o preparo, os bastidores de um espetáculo. Eu sabia que queria fazer um documentário experimental sobre esse assunto, mas em geral pegava a câmera e ela era como meu caderno, eu ia filmando a torto e a direito coisas que atraiam o meu olho, nem todas que eu depois usava: tenho um arquivo de super 8 que totalizam uns 40 quilômetros ou mais de filmes em bobina e de vez em quando uso uma coisa ou outra. Justamente por isso eu também não podia dizer que tenho um projeto pré-definido, e que vou fazer “isso” ou “aquilo”. Em geral, trabalho sobre as imagens mesmo e nisso que vai se formando o filme, a partir dessa matéria, e pela associação de ideias.
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Vivian e Ione em frame de "CORrespondência e REcorDAÇÕES" (2013). Foto: Cortesia da artista / On The Fly
Frame de "Copacabana Beach" (1983). Foto: Cortesia da artista / On The Fly
Frame de "SON CHANT" (2020), Vivian Ostrowsky. Foto: Cortesia da artista / On The Fly
ARTE!✱ – Como ocorreu sua transição da graduação em Psicologia na Universidade Sorbonne para o feitio dos filmes? Foi algo natural?
Eu acabei a graduação de psicologia, saí diplomada e sabia que não queria trabalhar como psicóloga. Nos anos 1970 havia muitos filmes bons para ver, era uma época riquíssima, com autores como Alain Resnais, Ozu, Wim Wenders, Glauber e o cinema novo, o cinema novo tcheco e o cinema suíço, Bergman; cada semana saía no mínimo quatro filmes que eu queria ver. Além do mais, na cinemateca francesa – da qual eu morava perto – eu podia ver filmes ótimos de todo tipo, clássicos ou outras coisas que não conhecia. A cinemateca foi, para mim, uma ótima escola. Essa foi minha educação, aprendi fazendo.
ARTE!✱ – Tendo vivido no Brasil, em Paris e residindo nos EUA, você acredita que a linguagem interfira no nosso pensamento criativo? Você nota uma engrenagem mudando à medida que raciocina entre linguagens e territórios diferentes?
Eu prefiro que seja o pensamento criativo que interfira com a linguagem e não o oposto. Para mim, não é tanto o raciocínio que muda entre linguagens e territórios, mas o que se muda é, por exemplo, o que se diz e como se diz.
ARTE!✱ – No seu trabalho há a interposição das suas gravações com filmagens de arquivo. Quando procuramos em um arquivo – pessoal ou público -, de certo modo estamos explorando o direito de ser lembrado. Hoje, com as redes sociais e o acervo da internet, que não poupa ou liberta ninguém que tenha pisado lá, estaríamos lutando ao mesmo tempo pelo direito da memória e pelo direito de sermos esquecidos?
Para mim as redes sociais são facas de dois gumes, porque ao mesmo tempo que você pode ver coisas muito engenhosas e criativas de 30 segundos ou um minuto, nós estamos nos afogando em um oceano de imagens que já não tem cabimento.
Para falar sobre o direito de ser esquecido, é verdade que, hoje em dia, você encontra quase tudo na internet, assim como é verdade que certas coisas que você gostaria de esquecer você não pode. Mas, ao mesmo tempo, há como descavar coisas que foram esquecidas e que viraram lixo. Por exemplo, o trabalho da cineasta sueca Mai Zetterling, que, quando eu comecei nos anos 1970, era uma grande figura da história do cinema sueco. Zetterling era atriz do Bergman e depois começou a realizar os próprios filmes. Hoje, ninguém a conhece mais, no entanto, ela era uma das únicas mulheres que conseguia verba para fazer longa-metragem de sala de cinema, era muito feminista. Agora estão restaurando os filmes dela na Suécia.
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Frame de "CORrespondência e REcorDAÇÕES" (2013), de Vivian Ostrovsky. Foto: Cortesia da artista / On The Fly
Frame de "CORrespondência e REcorDAÇÕES" (2013), de Vivian Ostrovsky. Foto: Cortesia da artista / On The Fly
ARTE!✱ – Sobre sua seleção para a segunda edição do Scratch Collection, disse que olhou para obras que não via há muito tempo, por um lado, e para a geração do novo milênio em busca de algo novo, por outro. Como resultado selecionou filmes que datam dos anos 1940 a 2021, totalizando 33 cineastas de 14 nacionalidades. O que você sente falta dos clássicos? E o que, nos novos, dá as boas vindas?
Adoro os dois, eu adoro os clássicos e não tem nada que me faça falta porque hoje em dia eles são mais acessíveis do que nunca, graças a YouTube, Vimeo, Ubu Web, entre outros. Quanto aos novos, são novas direções, novas temáticas, como ecologia, identidade, gênero. Então, eu acho muito bom porque você tem acesso às duas coisas. Se você ainda tem fome, dá pra “abrir a geladeira e pegar o que você quer”, mais do que antigamente, porque antes era preciso esperar sair no cinema para ver…
ARTE!✱ – O festival aconteceu entre outubro e novembro. Ainda estamos passando pela pandemia, mas aos poucos os espetáculos e as salas de cinema parecem caminhar para o retorno de seu ritmo de apresentações. A programação do Scratch Collection de 2021 sofreu com limitações da pandemia?
Não houve limitação, eu até fiquei surpresa. Eu não posso dizer “depois da pandemia” porque ainda temos 50 mil casos de Covid-19 na França por dia. Quer dizer, não estamos fora da pandemia, mas fora do lockdown, das coisas fechadas. Por conta disso, o pessoal estava com fome de sair na rua e de ir para restaurantes, para cafés, para as brasseries. Apesar disso, os cinemas estavam meio vazios e os donos das salas estavam preocupados. Então, quando começou o Scratch Collection, eu estava esperando pouquíssimas pessoas, ainda mais porque, em geral, para cinema experimental tem um público bem menor que para o “cinema normal”, que é mais conhecido. Mas as sessões variavam entre 90 e 115 pessoas, conforme foi acontecendo, tinha mais e mais gente, muitos jovens, muita gente de escola de artes, de escola de cinema, isso me deixou super contente.
ARTE!✱ – No Brasil, como você observa a cena do cinema experimental?
É algo que me alegra porque há um interesse bem maior agora do que quando comecei e tem se falado muito mais da cena do experimental no Brasil. Posso destacar o Festival Internacional Dobra, organizado junto com o MAM Rio; a Mostra Cine Brasil Experimental, em São Paulo; o Videobrasil; algumas mostras esporádicas realizadas pelo IMS; o próprio Yann Beauvais, que tem um polo em Recife que ensina, apresenta filmes. Isso é muito estimulante porque dos anos 1980 a 2000 não havia quase nada, quando eu organizava festivais de filmes experimentais de mulheres ninguém sabia sobre isso.
ARTE!✱ – No meio das artes visuais, há um certo preconceito contra o filme e a fotografia? Ao ponto que, muitas vezes, a imagem em movimento só tem sua entrada no radar das publicações de arte quando é colocada em uma galeria. Você observa isso?
Eu fiz parte do comitê que selecionava filmes para o Centro Pompidou. Isso já foi há um tempo atrás, quando havia muita diferença entre filme e vídeo, dois campos diferentes – hoje em dia já desapareceu essa fronteira – e, nessa época, o que eu notei é que quando era para comprar um filme, ele valia muito menos. Nesses casos, o museu comprava diretamente do cineasta, mas quando se tratava de um videoarte já havia uma galeria por trás e com isso o preço era dez vezes maior. Entretanto, quando você confrontava os preços de vídeo – mesmo videoarte – com os de pintura, não havia comparação possível porque quase nem era considerado como parte do mercado. Uma outra coisa que é muito importante é em termos de crítica e artigos em revistas de arte sobre vídeo ou filme, tem muito pouco…
Frame de CORrespondência e REcorDAÇÕES
ARTE!✱ – Nas primeiras duas décadas do cinema (fim do século 19), percentualmente, havia mais mulheres trabalhando na indústria do que há agora – reporta a crítica e historiadora Pamela Hutchinson. Será que ainda nesta década conseguiremos reverter esses números e acabar com a ideia de que certas funções na produção cinematográfica são “reservadas aos homens”?
Depende da profissão, especificamente, porque as montadoras são principalmente mulheres. No início, porém, até os anos 1970, quase não havia mulheres diretoras de fotografia e diziam que não era possível porque a câmera era pesada demais e a mulher não podia aguentar – idiotices do tipo, mas hoje está mudando, uma mudança qualitativa, não só quantitativa.
ARTE!✱ – Como se iniciou sua amizade com a artista brasileira Ione Saldanha, que será homenageada com uma exposição retrospectiva no Masp a partir de dezembro de 2021?
Ione foi uma grande amiga. Eu fui apresentada à Ione por uma amiga de meus pais. Ela não era da minha geração, era uma geração mais velha e simpatizamos muito, eu adorei o seu trabalho. Me disseram como ela trabalhava com bambus e como eu sou curiosa fui ver as obras no ateliê, no Rio. Isso foi no início da década de 1980 e até a morte dela fomos grandes amigas… Como era uma época pré-internet eu tinha uma grande correspondência com Ione. Tendo conhecimento disso, Adriano Pedrosa, curador dessa exposição, me perguntou se eu não queria escrever uma carta, mais uma carta para ela. Resolvi que era uma boa ideia e escrevi para Ione tentando incluir coisas que eram muito típicas dela e que davam uma ideia de quem ela era como pessoa. Ela gostava de meus filmes, lembro que quando o MAM Rio fez uma retrospectiva deles ela carregou uma plateia que era composta de Lucio Costa, Lygia Pape. Foi fantástico.
Objeto escultural desenvolvido na Residência Belojardim. Foto: Jadiel Silva
O projeto Corpos de Phonosophia, de Camila Sposati, concluiu a terceira edição da residência Belojardim, no agreste pernambucano – que após interrupção por dois anos, devido à Covid-19, volta em formato semi-digital. Ao longo do trabalho, liderado pelas curadoras Cristiana Tejo e Kiki Mazzucchelli, não faltaram surpresas ativadas pelo diálogo entre a música e a cerâmica, além dos movimentos corporais trabalhados junto a um grupo de 14 moradores de Belo Jardim. As referências culturais locais foram o ponto de partida para chegar a um projeto impregnado de memórias e histórias afetivas em torno do barro, elemento originário da cultura brasileira, cuja ancestralidade vem das matrizes indígena e africana. As residências surgiram no contexto do Instituto Conceição Moura, a partir de conversa entre Cristiana Tejo e Mariana Moura. Ambas deram os primeiros passos para tornar público o desejo de trabalhar com a comunidade de Belo Jardim, cidade contaminada por poéticas da região. Foram chamados profissionais de cinema, teatro, dança e música e Tejo assumiu a curadoria das artes plásticas. “Há algum tempo vinha conversando com a Kiki sobre cultura popular, Lina Bo Bardi, Aloísio Magalhães, e a convidei para dividir a curadoria.” Desses diálogos nasceram as duas primeiras edições, com projetos dos artistas Marcelo Silveira, em 2017, e Carlos Mélo, em 2018, ambos nascidos na região e conhecedores de Belo Jardim há vários anos.
Dirigir um projeto dessa magnitude corresponde, de um modo realista, a se abrir a novos horizontes. Para esta terceira edição as curadoras ampliaram o convite a outros locais e convidaram Camila Sposati, cujo projeto Corpos de Phonosophia une delicada e complexa reflexão sobre instrumentos de sopro e as possíveis conexões com os órgãos humanos, tema que ela pesquisa há tempos. “Desde 2015 trabalho com instrumentos. Me entusiasmei com a possibilidade de trabalhar em Belo Jardim, fui conhecer o lugar e fiz uma proposta”, diz ela. De qualquer forma, queria que o contexto influenciasse a obra, então readaptou o trabalho para o agreste. Camila permaneceu em Belo Jardim só por dois meses, mas para reconfigurar o projeto trabalhou três anos. Quando chegou a pandemia, a artista teve que retornar a Viena, onde mora, mas contou com uma equipe de confiança in loco para ajudá-la a levar o projeto adiante. “Acompanhei tudo virtualmente e contei com a coordenação de David Biriguy, um poeta e produtor cultural de Belo Jardim que conhece bem os artistas locais e soube escolher os participantes. Ele tornou-se um co-curador.” Logo no início, deixou claro aos participantes que não haveria interferência nos trabalhos e todos aceitaram entrar no projeto, que não é nada simples, reconhece Camila.
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Objeto escultural desenvolvido na residência. Foto: Jadiel Silva
Objeto escultural desenvolvido na residência. Foto: Jadiel Silva
Cada um deles foi protagonista de um instrumento, que na verdade, é um objeto escultural que poderia ser moldado como quisessem, até em formato de um triângulo, quadrado ou hexágono, não importava. Experimentação é um dos desafios dessa residência que deu asas aos participantes para escolherem que tipo de som eles queriam fazer. Ao serem indagados, escolheram o som político. “As pessoas querem fazer o som para sociedade, o som da rua, da raiva, da angústia, do respirar, do medo”, argumenta Camila. A escolha não surpreende, uma vez que o Teatro Legislativo (1996) de Augusto Boal, é um dos pilares conceituais de Corpos de Phonosophia. Ele consiste em uma das técnicas do Teatro do Oprimido que une teatro e política, numa espécie de cidadania ativa.
Camila conheceu os residentes no início dos trabalhos quando ficou na cidade e, como não foi possível voltar para outra imersão por causa da pandemia, David Biriguy fez a ponte entre a curadoria e os residentes. Cristiana Tejo lembra que ele foiidentificando as pessoas e chegaram a um time afinado. Os 14 participantes foram divididos em três grupos, por questões sanitárias. Camila convidou Amália Lima, que é coreógrafa, paraibana radicada no Rio há anos e preparadora de corpo para espetáculos de dança, teatro e para a TV Globo. Elas tiveram encontros digitais duas vezes por semana. “Eu passava os exercícios de som e a Amália os de corpo. Aos poucos os grupos foram unindo o corpo, o barro e o som. “As atividades de Amália propõem exercícios corporais que mantêm os desejos, partindo do corpo até a elaboração do instrumento. O desejo pode ser uma sentença, uma palavra, uma nota. Cada instrumento toca uma nota, um som.”Elaine Lima, líder da comunidade quilombola do Barro Branco, na região do Belo Jardim, foi outra pessoa importante no projeto que se estendeu até aquela área.
Com o trabalho concluído, uma das formas de viabilizar a exposição, que acontece digitalmente, foi gravar o som em estúdio, separado dos instrumentos. Por motivo de orçamento não houve a queima do barro, o que deve ocorrer mais tarde, segundo Tejo. “Tínhamos a urgência de falar a partir do Teatro Legislativo, do Boal, isso era importante nesse contexto e era nossa prerrogativa. Cada elemento da equipe vive em lugar diferente, com sua formação, desconstruindo o protagonismo do curador. Tudo foi pensado em rede, cada um com o seu saber”, comenta Tejo.
Criatividade, liberdade e experimentação nortearam as oficinas envolvendo barro e música, com 14 residentes de Belo Jardim. Foto: Jadiel Silva
Os instrumentos estão prontos, alguns com curva volumosa que se multiplica em bocais, outros com sua exterioridade curvilínea que lembra um vaso de flores. Todos escondem seu som secreto que corresponde, de modo sutil, aos humores, ritmos e objetivos diversos de seus autores. Os objetos/instrumentos exteriorizam os aspectos formais do aprendizado e agora se transformaram em protótipos digitais. Os residentes escolheram os três locais onde os instrumentos serão mostrados em situações espaciais de contraste: na cidade de Belo Jardim, na fábrica Mariola e nas margens de uma cachoeira, tudo em vídeo mostrando obras, espaços, pessoas, com direção de Ruda Cabral. Tejo considera a cena final meio surreal: um instrumento sozinho figurando num espaço e o som gravado ecoando digitalmente. Lembrando Jean-Paul Sartre, esses músicos/ceramistas souberam dar à sua matéria a única unidade verdadeiramente humana: a unidade do ato. É isso que difere um projeto estruturado de outros expostos ao exotismo turístico, chamariz para artistas estrangeiros em trânsito. A Residência Belojardim talvez não ocorra no próximo ano, tudo depende do atual governo. A esperança é que em 2023 tudo volte ao normal e a cultura reencontre o seu lugar, de onde nunca deveria ter saído. ✱
Vista da 17ª edição da SP-Arte, no galpão ARCA. Foto: Divulgação
Em 2020, após quase um ano do início da pandemia de Covid-19, a arte!brasileiros conversou com uma série de galeristas, leiloeiros e especialistas em mercado para fazer um balanço de como havia sido o período para o setor, notadamente no Brasil. A constatação, surpreendente à época, era de que após um baque inicial com a decretação da quarentena, o reaquecimento dos negócios foi rápido e consistente, em contraste até mesmo com outras regiões do globo como Europa e América do Norte. Neste fim de 2021, após mais um ano de pandemia, entrevistamos novamente uma série de profissionais da área para saber dos resultados de um período que, apesar das restrições, envolveu também uma série de flexibilizações. A conclusão, praticamente unânime entre os cerca de 15 entrevistados, é de que o ano foi ainda melhor do que o anterior, mesmo em meio a um cenário – sanitário, político, econômico e social – tão conturbado no país.
“O ano de 2021 foi muito melhor do que 2020 e melhor também se comparado com o ano anterior à pandemia”, conta Luisa Strina, uma das mais importantes galeristas do país. O leiloeiro Aloísio Cravo, que teve uma atuação mais oscilante no início da quarentena, segue a mesma linha: “Os leilões de 2021 tiveram faturamentos comparáveis aos de 2014 ou 2015, antes de entrarmos numa sequência muito ruim com todas as instabilidades políticas e econômicas no país”. Com as particularidades que envolvem cada casa, as afirmações dos galeristas seguem sempre em sentido parecido. Vilma Eid, da Galeria Estação, conta que duas das mostras realizadas na casa tiveram todas as obras vendidas ainda nos primeiros dias de exibição. André Millan (Galeria Millan), por sua vez, resume: “Por incrível que pareça, pelo menos aqui no Brasil, esses tempos de pandemia surpreenderam a todos e, em linhas gerais, as vendas foram muito boas, o mercado de arte reagiu surpreendentemente bem”.
Alguns dos motivos desse resultado, constatados já no primeiro ano da pandemia, soaram mesmo inesperados: o maior tempo passado dentro de casa e a diminuição com outros tipos de gastos, como viagens e restaurantes, incentivaram as pessoas a comprar mais obras de arte para seus ambientes privados; a migração dos negócios para o ambiente virtual aproximou uma parcela de compradores mais jovens, menos acostumados aos ambientes de galerias e feiras e bastante inseridos no mundo online; além disso, a criação de projetos de parcerias entre galerias, antes raros, e uma experimentação com novos formatos de venda trouxeram resultados. Isso tudo considerando, é claro, que “a elite é quem compra arte e é quem menos sofreu com a pandemia”, como destacou a avaliadora e consultora de mercado de arte Tamara Perlman ao fim de 2020.
O que se viu, portanto, foi até mesmo a abertura de novas galerias – HOA, Projeto Vênus e Index no ano passado; Marli Matsumoto, Arte 132 e Bailune Biancheri neste ano, entre outras – e de filiais de casas já estabelecidas como Jaqueline Martins, DAN Galeria e A Gentil Carioca. Mas, se foram dois anos positivos, há também diferenças notáveis entre a atuação das casas e o comportamento dos compradores nos dois períodos.
O papel do online e a (des)aceleração do presencial
Se em 2020 o online se tornava o centro das negociações, dobrando o número de vendas nele executadas – como apresenta o relatório anual da Art Basel e UBS -, com o início da vacinação e a redução no número de novos casos de Covid-19 no Brasil e no mundo, 2021 teve parte desse cenário alterado. As atividades presenciais foram retomadas gradativamente ao longo do ano, galerias e museus reabriram suas exposições e feiras de arte nacionais e internacionais adotaram um formato híbrido.
No caso dos leilões, “o online se consagra como uma alternativa sólida de operação”, como garante Aloísio Cravo. O leiloeiro destaca que seus dois eventos deste ano ocorreram virtualmente e tiveram bons resultados, chegando a dobrar os valores das peças. Há também uma profusão de pequenos leilões por canais virtuais, com patamares de preços mais baixos, como afirma Tamara Perlman.
Estande da Galeria Nara Roesler na The Armory Show 2021. Foto Charles Roussel
Porém, esse não parece ser o cenário geral para as artes. O modelo híbrido se firma como um caminho sem volta, o online não parece disposto a recuar, mas talvez não persista do modo que se esperava. “Acho que, neste ano, o virtual foi mais um processo de aproximação, menos de venda. Ele não perdeu a importância, mas a venda voltou a ser mais presencial”, afirma Murilo Castro, de Belo Horizonte. Vilma Eid e Alexandre Roesler, sócio da Galeria Nara Roesler, fazem coro e destacam os viewing rooms como um complemento, mais do que uma frente de negócios. A diretora da ArtRio, Brenda Valansi, pôde verificar isso na edição deste ano da feira carioca: “A plataforma virtual acaba sendo muito usada como pesquisa, para quem depois quer ver no presencial, ou às vezes a pessoa vê fisicamente e finaliza a compra no online”. Para o fundador da Gomide & Co. (antiga Bergamin & Gomide), Thiago Gomide, a comparação entre os resultados dos eventos presenciais e virtuais é desleal: “Acho que os viewing rooms vieram para ficar, mas é ridícula a comparação. As vendas que foram resultado de alguma coisa online foram irrisórias no meu faturamento”.
Apesar da programação digital não ter a mesma potência da física, como aponta Roesler, ela é muito mais barata. Esse parece ser um dos fatores chave para o sucesso de 2020. Se por um lado as vendas foram menores, foi a capacidade de reduzir custos operacionais que permitiu a alguns galeristas manter a lucratividade. A volta do presencial traz um impacto nesse sentido, em especial com o aumento da cotação do dólar e do euro. “Participar de feira física, por exemplo, é caríssimo. Atualmente está mais caro ainda, porque os custos de logística mais do que duplicaram”, destaca Roesler.
Nos anos anteriores à pandemia, as feiras eram responsáveis por quase 50% das vendas de galeristas ao redor mundo, segundo o relatório da Art Basel e UBS. Em 2020, esse número caiu para 13% em decorrência dos eventos cancelados. Diversos galeristas no Brasil e no mundo apontam que essa diminuição na dependência das feiras pode ter vindo para ficar. Segundo reportagem do The Art Newspaper, só em 2019 aconteceram 178 feiras de arte paralelamente a bienais ou trienais e às exposições de museus e galerias. “É um sistema predatório. Não há casa que consiga bancar financeiramente todo esse investimento”, compartilha André Millan. “Quando você para um pouco, percebe que não fez nenhuma feira [em 2020] e continuou vendendo bem, aí você se pergunta: será que realmente preciso fazer tudo isso?”, indaga Roesler.
Para Thiago Gomide e Thais Darzé (Paulo Darzé Galeria), a pausa decorrente da pandemia permitiu que os galeristas – geralmente imersos em rotinas intensas de eventos – pudessem pensar sobre o quanto o custo operacional e o processo de estresse, cansaço e expectativa revertem financeira e institucionalmente. O resultado brasileiro parece conversar com as previsões estrangeiras, que apontam uma diminuição das viagens e participação em feiras por parte das galerias. Márcio Botner, sócio d’A Gentil Carioca, por outro lado, acredita que a tendência seja uma retomada muito próxima ao que existia antes. “Claro que dá uma sensação de que talvez não dê para ser tão veloz assim, que talvez fosse melhor de alguma outra maneira, mas continuo achando o contato presencial fundamental”, afirma o carioca. Apesar das discordâncias, a opinião não destoa totalmente da postura dos demais galeristas, que defendem que mesmo com a diminuição da dependência das feiras, não é possível se desprender completamente, seja pelas possibilidades de vínculo e socialização criadas, pelos resultados em vendas a longo prazo ou pela expansão para outros mercados.
Estande da Cassia Bomeny Galeria na ArtRio. Foto: Divulgação
Os resultados dos dois maiores eventos nacionais em 2021 demonstram, de fato, que o interesse nas feiras segue elevado. Ao longo dos cinco dias de evento, a SP-Arte – que esse ano trocou o Pavilhão da Bienal (25 mil m2) pelo galpão ARCA (9 mil m2) – recebeu cerca de 18.500 pessoas, esgotando praticamente todos os ingressos disponibilizados, e contou com 40 mil acessos em sua versão virtual. Para a Gomide & Co., a feira apresentou um dos melhores resultados do ano. A Verve Galeria vendeu 95% do primeiro acervo exposto e a Portas Vilaseca vendeu a totalidade de obras selecionadas antes mesmo do fim do evento. A ArtRio, por sua vez, contou com 14.500 pessoas na versão física e, pouco após a edição, anunciou sua expansão em uma nova empreitada: a ArtSampa, uma feira em território paulistano com data já marcada para março de 2022.
Cabe, porém, destacar que ambas as feiras – assim como as internacionais – aconteceram de forma mais local, com menos expositores e visitantes estrangeiros, em decorrência das dificuldades de trânsito entre países provocadas pela pandemia. Outras alterações de público também foram notadas, não só nas feiras, mas na cena artística como um todo.
Entre ativismo e financeirização
Mesmo sendo um movimento já perceptível ao longo dos últimos anos, o período pandêmico viu se intensificar a entrada de novos compradores no mercado de arte, especialmente jovens, alguns dispostos a ter uma postura mais “ativista”, outros interessados em fazer negócios. Este movimento, verificado globalmente, inclui especialmente os chamados millenials – geração que tem hoje entre 20 e 40 anos -, como mostra a pesquisa da Art Basel e UBS: “A mudança para o digital trouxe melhorias na transparência de preços, acesso a informações e aos artistas. A redução das barreiras de entrada no mercado permite o desenvolvimento de uma base mais ampla de novos colecionadores em diferentes níveis de preços”, diz o relatório.
Ao menos parte dos galeristas brasileiros percebeu este movimento em seu dia a dia. “Houve um crescimento de compradores de 35 a 45 anos. Não foram apenas os colecionadores tradicionais que alimentaram o mercado de arte neste período, mas sim novos. Ou talvez pessoas que nem sejam ainda colecionadores, mas novos compradores com potencial de se tornar colecionadores”, afirma o galerista Murilo Castro. Gomide e Strina, que trabalham com obras em faixas de preços mais elevadas, também perceberam a mudança, por mais que ressaltem que a manutenção dos velhos compradores seja essencial.
“É um público consistente e que já chega com muita informação”, relata Cravo, atuante há 40 anos no mercado. “Até os anos 1990 sinto que a gente precisava informar muito mais o novo cliente, que vinha com vontade, mas muito cru. Hoje você observa o jovem que já pesquisou, que sabe o que gosta, que já vem com material para iniciar o diálogo. Acho que isso também tem muito a ver com a internet, com esse enorme acesso à informação”. Tem a ver também, segundo Perlman, com a expansão de uma rede de profissionais qualificados voltados a apoiar este mercado, desde os chamados art advisors e avaliadores até os catalogadores e restauradores, entre outros. “Ou seja, toda uma infraestrutura de serviços que facilita o crescimento do mercado”, explica.
Segundo Brenda Valansi, o impacto desta geração mais jovem foi sentida na ArtRio de 2021, e se relaciona também a uma produção mais engajada no país: “O que eu percebo que acontece no mercado, em decorrência do contexto político e social, é uma mudança na escolha dos artistas e dos assuntos tratados, que acompanham as discussões que estão acontecendo na sociedade. Junto a isso, há um fortalecimento de um colecionismo ativista, uma preocupação do colecionador em ser mais socialmente atuante, e isso se dá muito fortemente com as novas gerações. Então o mercado precisa também estar atento e oferecer outros caminhos”. Em uma escala global, o foco internacional na arte latino-americana e produzida por grupos minorizados – negros, indígenas, mulheres ou população LGBTQIA+ – também favorece o mercado brasileiro. Servem como exemplo – em uma faixa mais elevada de preços – a venda realizada pela Gomide & Co. para o Guggenheim de Abu Dhabi, em 2020, de uma obra de Lygia Clark por cerca de R$ 10 milhões; ou a transação recente, em leilão da Sotheby’s Nova York, de um autorretrato da mexicana Frida Kahlo por quase R$ 200 milhões – valor recorde para uma obra de artista latino-americano.
Autorretrato “Diego y yo”, de Frida Kahlo, leiloado pela Sotheby’s, em novembro de 2021, por quase R$ 200 milhões – valor recorde para uma obra de artista latino-americano. Foto: Angela Weiss / AFP via Getty Images
Mas há ainda uma parcela cada vez mais significativa de compradores, como revelam pesquisas nacionais e internacionais, que está pouco – ou nada – preocupada com o conteúdo dos trabalhos, mas apenas com a arte enquanto investimento financeiro. Perlman, ao analisar dados divulgados este ano pela consultoria Deloitte, explica que há um grupo crescente de compradores mais jovens, “ligado a tudo que é digital, inclusive arte digital”, que entra no mercado para fazer negócios, ou seja, comprar e vender obras com relativa velocidade, não colecioná-las. Surgem cada vez mais, neste sentido, tipos de operações em que o comprador nem mesmo se torna dono da obra, mas apenas de uma fração do trabalho, como quem compra ações na Bolsa de Valores.
A desigualdade que não afeta o mercado
Para Thais Darzé, essa relação da arte como investimento talvez seja um dos motivos que leve os anos de pandemia a resultados bons de venda. “Obra de arte é um investimento material, muita gente em momento de crise opta por fazer esse tipo de transação”, diz. Com um acervo diverso, a Paulo Darzé Galeria apresenta obras de artistas jovens emergentes, bem como nomes consagrados, como Amilcar de Castro, Frans Krajcberg, Leda Catunda e Tunga. Os dois lados do negócio tiveram resultados muito distintos em 2021. “Temos um mercado de arte aquecido para obras mais caras, porque a crise impacta menos as grandes fortunas do país. No ponto de vista dos jovens artistas, o negócio fica bastante precário. São obras mais em conta, de artistas emergentes e o impacto de vendas é muito significativo.”
A crise que se impõe sobre o país, inclusive na área cultural – com a paralisia na Lei de Incentivo a Cultura, a falta de investimentos nas instituições públicas e até mesmo o cerceamento à criação artística – não chega a afetar significativamente o mercado. “Acho que temos um desmonte acontecendo, um momento muito complexo em relação aos recursos públicos da cultura, mas de fato o mercado no Brasil é muito dependente dos colecionadores privados, e esses colecionadores continuam capitalizados, continuam fazendo o dinheiro circular de alguma forma, então não tem um impacto direto no mercado”, diz Bruna Bailune, das jovens Galeria Aura e Bailune Biancheri. As constatações vão de encontro ao contexto atual. Como aponta o relatório sobre riqueza global feito pelo banco Credit Suisse, a concentração de renda aumentou em todo o mundo no período da pandemia. No Brasil, vivemos o pior nível de concentração de renda desde 2000, com 49,6% da riqueza do país na mão de 1% da população. “Acho que tem muita grana no mercado de arte. Cada dia entram novos colecionadores e novos patronos. Sinto que estamos no início de um grande boom, que a próxima década vai ser a melhor que o mercado de arte já teve na história”, diz Thiago Gomide.
A previsão do galerista não parece distante do que mostram as pesquisas. “O relatório da Deloitte mostra que o número de super ricos no mundo cresceu muito nos últimos anos, e que isso ainda não resultou num aumento proporcional nos números de venda de arte, o que significa que esse mercado ainda tem muito para crescer”, aponta Perlman. Segundo a pesquisa, até 2025 deve-se ver um grande crescimento no investimento em artes não só no Brasil, como em todo o mundo.