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O cangaço ontem e hoje

Imagem do livro Memórias Sangradas, vida e morte nos tempos do cangaço
Ulysses de Souza Ferraz mostra fotografia da volante de Nazareth, composta por seus parentes e comendada por seu pai. Foto: Ricardo Beliel

Com o tempo perdemos a transmissão da história pela oralidade; pior, perdemos o poder da escuta. Do silêncio, do tempo que transcorre tranquilo sem a necessidade de apressá-lo. Com o tempo perdemos nossa capacidade de olhar para nossos rostos para ver as nossas marcas, para entendermos o nosso ser e estar no mundo.

Mas é esse tempo perdido, essa voz que adoça os ouvidos, que reencontramos no livro do repórter e fotógrafo Ricardo Beliel, Memórias Sangradas: vida e morte nos tempos do cangaço, Editora Olhares e apoio do Rumos Cultural.

A publicação reconta uma história que há muito perpassa o imaginário brasileiro, tendo sido contada em livros, fotos e filmes: a do cangaço. O movimento que dominou o sertão nordestino de 1920 até ser definitivamente aniquilado em 1938 pelas tropas do então governo do Getúlio Vargas, na famosa batalha de Angico em Sergipe. A saga de Virgolino Ferreira, conhecido Lampião (1898-1938), Maria Bonita (1911-1938) e seu bando, composto entre outros por Corisco, Dadá, Pancada, Labareda, Volta Seca e Jararaca é talvez uma das mais importantes e conhecidas da história brasileira.

E foi atrás desta história que o jornalista Ricardo Beliel e sua esposa, a artista plástica e cineasta Luciana Nabuco, embarcaram. “Tudo começou em 2007, quando fiz uma reportagem para uma revista europeia chamada Geo. Junto com um repórter espanhol subimos o Rio São Francisco”, nos conta o autor. Foi lá que Beliel relembrou sua infância, quando sua mãe professora de história e geografia gostava de contar para a família as narrativas da cultura brasileira, e escutou histórias dos que ali ainda viviam. Foi ali também que soube que havia remanescentes do movimento do cangaço. O então menino, que ouvia encantado sua mãe falar sobre o interior nordestino, sobre o sertão, por meio dos livros de Graciliano Ramos e de Rachel de Queiróz, entres tantas outras histórias, ampliou seu imaginário.

Naquele mesmo ano, na verdade, na mesma semana, Ricardo Beliel, como freelancer, retornou ao sertão nordestino para produzir algumas matérias sobre o assunto do cangaço. Conseguiu publicar algumas matérias em revistas, mas foi só em 2014 que ele convidou Luciana Nabuco para percorrerem juntos o sertão nordestino, procurar os lugares por onde o bando de Lampião andou e tentar falar com as pessoas que habitavam aquelas paragens, ouvir suas histórias, fotografar suas memórias. De 2007 a 2019 foram nove viagens, 11 mil quilômetros percorridos de carro, sete estados visitados e muitos, muitos, depoimentos gravados e rostos e lugares fotografados: “Queríamos ouvir a história destas pessoas. Sabemos que muito já foi dito e escrito, mas queríamos contar essa história por nós mesmos como uma grande reportagem, uma memória social daquele tempo”. O apoio de Luciana Nabuco foi fundamental. Nascida no Acre, ela, assim como Beliel, cresceu ouvindo seu pai contar histórias de seu longo caminhar, da cultura familiar. Como afirmava a pesquisadora e psicóloga social Ecléa Bosi: “A memória oral é um instrumento precioso se desejamos constituir a crônica do cotidiano”.

Imagem do livro Memórias Sangradas, vida e morte nos tempos do cangaço
Ana Cleto e Pedra, parentes dos cangaceiros Zé Gato e Sabina. Foto: Ricardo Beliel

A cada retorno, ao ouvir as histórias que haviam gravado, resolveram então que a semântica da fala dos personagens deveria ser preservada. Os entrevistados, em sua grande maioria pessoas quase centenárias, são descendentes da época do cangaço, personagens de um ciclo da história do Brasil que nem sempre foi bem lembrada.
Desta forma, Ricardo Beliel começou a escrever o livro entrelaçando sua visão como jornalista – que é e sempre foi – com os depoimentos dos 43 personagens que selecionou para fazer parte de Memórias Sangradas. Aos escritos juntou suas fotos, mas também foi atrás das fotos que os próprios personagens guardavam em suas casas. Fala-se muito do libanês Benjamin Abrahão (1890-1938), que fotografou e filmou o bando na década de 1930, mas muitos outros fotografaram o movimento sem o devido reconhecimento, visto que na época falar em crédito na fotografia era quase inexistente. Muitas vezes o que aparecia era o nome do proprietário do jornal. Beliel encontrou estas imagens na casa dos próprios entrevistados e as reproduziu mesmo sem retoques, sem trazer um ar novo para a fotografia, mas resguardando as marcas do tempo que já haviam se incorporado às imagens: “Foram fotografias feitas nos anos 1920 e 1930, adquiriram marcas do tempo da história que quisemos preservar”, comenta Beliel.

O resultado, embora em tom jornalístico, relembra um pouco os grandes livros épicos onde histórias de morte, de amor, de luta, de vinganças, de encontros e desencontros nos são recontadas. Daí a ideia do título. Um livro construído pela escuta – aliás, papel este do jornalista, seja ele de texto ou da fotografia: “Este livro é o renascimento do repórter que nunca deixei de ser”, conta Beliel. Mas é Luciana Nabuco que em forma de poesia no prefácio e posfácio do livro nos lembra que ”estamos perdendo a história porque estamos deixando de escutar nossos velhos. Eles são as nossas fontes primárias”.

Colaboradores da edição #58


Christian Dunker é professor titular em Psicanálise e Psicopatologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, com pós-doutorado em patologias da linguagem. É autor de uma série de livros, entre eles “Lacan e a democracia”, lançado este ano pela Boitempo.


Márcio Seligmann-Silva é doutor pela Universidade Livre de Berlim, pós-doutor por Yale, professor titular de Teoria Literária na UNICAMP e pesquisador do CNPq. É autor de livros premiados como “Ler o Livro do Mundo” e “O Local da Diferença”, entre outros.


Renato Araújo da Silva é pesquisador e curador. Graduado em Filosofia pela USP, pertence ao grupo de crítica de arte contemporânea do CCSP. É autor de livros como África, Mãe de Todos Nós.

Dereck Marouço é pesquisador, crítico de arte, curador e tradutor, mestrando em Culturas Curatoriais na Faculdade de Belas Artes de Leipzig, na Alemanha. Vive e trabalha em São Paulo e Berlim.



Simonetta Persichetti é jornalista e crítica de fotografia. Mestre em Comunicação e Artes (Mackenzie), doutora em Psicologia Social (PUC-SP) e pós-doutora pela ECA-USP, é membro do Conselho Editorial da arte!brasileiros. Publicou diversos livros e ganhou o prêmio Jabuti de Reportagem.

Fotos: arquivo pessoal

Arte sem luta de classes é apenas decoração?

À frente, "Museu do Homem do Nordeste", de Jonathas de Andrade, ao fundo obras de Candido Portinari, Almeida Junior e Paulo Nazareth. Foto: Levi Fanan/Acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo
À frente, "Museu do Homem do Nordeste", de Jonathas de Andrade, ao fundo obras de Candido Portinari, Almeida Junior e Paulo Nazareth. Foto: Levi Fanan/Acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo

Como é possível retratar e envolver pessoas e comunidades de forma ética? Essa é uma questão chave para artistas com obras que possuem teor social, especialmente nos últimos cinco anos. Afinal, o sistema da arte contemporânea, trabalhando no campo simbólico, deve apontar para estratégias que se diferenciem de segmentos como a publicidade ou o jornalismo, que muitas vezes abordam questões sociais sem qualquer tipo de compromisso com elas.

Sebastião Salgado é um exemplo de transição neste caso. Fotojornalista que transita no mundo da arte com desenvoltura, sua mostra Amazônia, em cartaz no Sesc Pompeia, retrata povos indígenas ameaçados, entre eles os Yanomami. Ao contrário do costume no fotojornalismo, que é não pagar para fazer imagens, Salgado contribuiu financeiramente com a Hutukara, que é a associação da Terra Indígena Yanomami, presidida por Davi Kopenawa.

Contrapartida financeira nem sempre é uma das estratégias, quando se fala de arte contemporânea. Em Cartazes para o Museu do Homem do Nordeste, obra que está em cartaz na mostra de longa duração da Pinacoteca do Estado, Jonathas de Andrade entregou fotografias aos homens retratados no trabalho. Ele escolheu seus modelos na rua e, em troca da participação no projeto, deu a eles um retrato realizado. O Museu do Homem do Nordeste comporta-se como uma coleção paralela e homônima ao museu antropológico criado, em 1979, por Gilberto Freyre, ainda existente na cidade do Recife.

A questão que esta estratégia traz é: até que ponto essas pessoas retratadas por Jonathas não estão sendo tão exploradas quanto qualquer trabalhador que agrega valor a um objeto, mas não participa de fato de seu lucro, além de não terem controle de sua própria imagem. É importante ressaltar que a obra tem quase 10 anos, portanto não estava inserida no atual contexto de debates.

Artistas etnógrafos

Em um texto já clássico de 1995, O artista como etnógrafo, Hal Foster constatava nas práticas artísticas o surgimento de uma estratégia de associação a um novo sujeito: “O outro cultural e/ou étnico, em nome de quem o artista engajado luta”.

No fim do século 20, Foster ainda não tinha dado conta de que lutar em nome de alguém representava um posicionamento por um lado paternalista, já que é como se o artista pudesse se colocar no lugar da causa que defende, e, por outro, oportunista, afinal ele se legitimava com um discurso de esquerda, mesmo que no final seus trabalhos acabem rendendo apenas a ele de fato.

Esse tipo de estratégia já foi criticado por artistas como o argentino León Ferrari (1920-2013). Ao abordar o artista “engajado”, ele afirmou que “o triunfo de suas obras significou o fracasso de suas intenções”, no texto A arte dos significados, de 1968.

Algo semelhante defendeu o crítico Hrarg Vartanian recentemente, em sua conta no Instagram: “Um mundo da arte que se beneficia das desigualdades econômicas não é um mundo da arte pelo qual valha a pena lutar. Chico Mendes disse que ‘ambientalismo sem luta de classe é apenas jardinagem’. Talvez arte sem luta de classes seja apenas decoração.”

Still de “Swinguerra”, de Bárbara Wagner e Benjamin de Burca, 2019.

Nesse sentido, uma significativa mudança de atitude pode ser o posicionamento do artista: ao invés de lutar “em nome de alguém” que ele lute “com alguém”, como fizeram Bárbara Wagner e Benjamin de Burca no pavilhão brasileiro da Bienal de Veneza, em 2019, com o filme Swinguerra.

Baseada em um fenômeno cultural periférico, a swingueira pernambucana, a obra envolveu uma parceria com três companhias de dança, Cia. Extremo, La Máfia e O Passinho dos Maloka. Parceria aqui é palavra essencial, ela aponta para um trabalho conjunto, tanto que durante a apresentação para a imprensa, na abertura da Bienal, em Veneza, a protagonista do filme, a artista trans Eduarda Lemos, participou da divulgação do trabalho junto com Bárbara e Benjamim. Fica a questão de como foi tratada a divisão dos lucros do filme.
De qualquer forma é no mínimo esse tipo de parceria que precisa ser cada vez mais proposto e implementado. Assim, não se trata mais de falar sobre, em uma postura etnográfica, método questionado agora pela própria Antropologia, mas de falar com.

Debate decolonial

Tal debate também faz parte dos estudos decoloniais, uma reflexão importante, que surgiu especialmente nas universidades, mas que cada vez mais ocupa o mundo da arte. Trata-se de colocar em xeque o caráter colonialista de polos político-econômicos como Europa e Estados Unidos, além de questionar o caráter patriarcal e heteronormativo dessas culturas, assim como suas formas de exploração social. Isso tudo, no final, aponta para a necessidade de novas constituições de poderes, o que envolve também o poder do artista, especialmente aqueles que tratam de questões sociais.

Não por acaso, recentemente algumas vozes começaram a questionar até as imagens do povo Yanomami, realizadas por Claudia Andujar, já que por ser de origem europeia e branca, ela estaria falando em nome dos indígenas, em um posicionamento superior a eles. Repare que na mostra Amazônia, Sebastião Salgado dá voz às lideranças indígenas em vídeos como forma de escapar dessa questão.

Aí é que o debate precisa evitar cancelamentos precipitados. Claudia tem uma vida dedicada aos Yanomami, tendo trabalhado com eles desde os anos 1970, sem sequer produzir para o circuito da arte. Suas imagens foram realizadas como registros para denúncias no Brasil e no exterior, tanto sobre as invasões como sobre a necessidade da demarcação da terra Yanomami, o que foi uma conquista em 1990 na qual ela esteve profundamente engajada.

Claudia, aliás, usou o museu como espaço de denúncia, muito antes dessas instituições iniciarem seus próprios processos de decolonialismo. Genocídio do Yanomami: Morte no Brasil, por exemplo, foi uma instalação apresentada por ela junto com a CCPY (Comissão pela Criação Yanomami), no Museu de Arte de São Paulo, em 1989, quando garimpeiros invadiam suas terras, como segue ocorrendo hoje.

Foi apenas no início do século 21, de fato, que a obra de Claudia acabou sendo incorporada ao circuito de arte contemporânea, e ela estabeleceu um princípio bastante particular: divide o resultado das vendas de forma paritária com a galeria que a representa e os Yanomami, através da Hutukara, cada um ficando com um terço do valor.

Registro do projeto Vídeo nas Aldeias. Foto: Divulgação

Por tudo isso, é preciso muita atenção para não ficar na superfície do debate. A questão indígena, aliás, tem outro exemplo notável de inclusão que é o trabalho desenvolvido pelo antropólogo Vincent Carelli com o Vídeo nas Aldeias (VNA), fundado já em 1986, que desde então fornece equipamento e treinamento em oficinas a povos indígenas para que eles próprios criem suas representações sem a mediação cultural de outras pessoas.

Com isso, o VNA já formou dezenas de especialistas em audiovisual, o que possibilitou a criação de um importante acervo de imagens sobre os povos indígenas no Brasil, com uma coleção de mais de 70 filmes, a maioria deles premiados nacional e internacionalmente – transformando-se em uma referência nesta área. Tendo participado da Bienal de São Paulo Incerteza Viva, em 2016, esse é um dos grandes exemplos de estímulo para que povos marginalizados sejam autores das imagens de suas lutas.

Finalmente, é importante lembrar ainda de um outro exemplo de posicionamento radical feito pela artista Mônica Nador, em 2004, quando ela implantou o Jamac (Jardim Miriam Arte Clube), uma associação na periferia da zona sul da cidade, e desde então vive lá. Trata-se praticamente de um centro cultural, onde ocorrem debates, encontros, ciclos de filmes sobre arte e cidadania, mas a particularidade é como Mônica compartilha com a comunidade um saber: em como usar a pintura como forma de ativação social. No princípio, ela ensinou os moradores da região a utilizar técnicas como o estêncil – máscaras de papel que permitem pintura seriada -, tendo como motivos temas simples, de objetos de cozinha a animais ou plantas. Hoje, várias pessoas da comunidade usam essas técnicas, não só em paredes, mas em tecidos também.

Com isso, Nador alia a tradição da pintura a um exercício colaborativo e conceitual, que coloca em prática a máxima pregada pelo alemão Joseph Beuys: “Todo mundo é um artista”. Com isso, uma nova ética se realiza de fato.

Visualidade exuberante em tom crítico

Sem título, José Antonio da Silva, na exposição Raio-que-o-parta
Sem título, José Antonio da Silva. Foto: Divulgação

Um dos méritos em torno das comemorações dos cem anos da Semana de Arte Moderna é que a efeméride vem ganhando um tom crítico em torno do evento. Afinal, após tanto debate já acumulado sobre o protagonismo paulista ao longo desses cem anos seria estranho não aproveitar o momento para uma revisão dos significados da Semana e do próprio projeto moderno brasileiro. Em um momento de rever narrativas hegemônicas, sem dúvida chegou a vez da Semana.

Raio-que-o-parta: ficções do moderno no Brasil, em cartaz no Sesc 24 de Maio, insere-se dentro dessa perspectiva e uma de suas marcas centrais é a inclusão de 200 artistas de todo país em cerca de 650 obras, com um recorte que valoriza produções nem tão reconhecidas. Nesse sentido, a mostra é menos uma exposição de obras primas e mais um imenso caleidoscópio na produção nacional. Ela é também uma forma de reparação, ao trazer para o debate da Semana muitos artistas até então invisibilizados, especialmente os fora do eixo Rio-SP.

O título em si já aponta para desconstrução da própria Semana, mandando-a para o “raio que o parta”, nome dado em Belém do Pará à decoração das fachadas das casas feitas por cacos de azulejos, reunindo tanto padrões abstratos como figurativos. Um vídeo logo na entrada da mostra, realizado por Danielle Fonseca, documenta exemplos dessas construções com testemunhos de moradores que usaram tais procedimentos em suas casas. Ou seja, trata-se de um estilo contra-hegemônico e fora do padrão de caráter vernacular. Apesar desse ótimo começo, não há mais casos para esse tipo de processo construtivo alternativo, o que é uma pena.

Mesmo assim, não faltam obras surpreendentes, como o potiguar Dorian Gray (1930-2017), que comparece com uma tapeçaria com motivos florais de 1973. O artista com nome de personagem de Oscar Wilde é uma das descobertas felizes da mostra.
Com curadoria de Aldrin Figueiredo, Clarissa Diniz, Divino Sobral, Marcelo Campos, Paula Ramos e Raphael Fonseca e consultoria de Fernanda Pitta, Raio-que-o-parta é organizada em quatro módulos: Deixa falar; Centauros iconoclastas; Eu vou reunir, eu vou guarnecer; e Vândalos do apocalipse.

"Floral com Pássaro", de Dorian Gray na exposição Raio-que-o-parta
“Floral com Pássaro”, de Dorian Gray. Foto: Evelson de Freitas / Divulgação

O primeiro se dedica a um debate bastante contemporâneo que diz respeito à apropriação cultural. Ele traz, entre outras obras, uma espécie de colagem em feltro de Regina Gomide Graz (1897-1973), chamada Índios, da década de 1930, na qual estão representados indígenas caçando. Procedimento típico do modernismo, essa representação de culturas “exóticas” ou “selvagens”, como eram designadas na época, pode ser vista agora em um contexto de revisão sobre lugar de fala. Algo semelhante ocorre com os vasos de prata de Maria Hirsch da Silva Braga (1875-1960), muito impressionantes aliás, ornados em padronagens indígenas. Hoje, tais obras são questionadas por se apropriarem de outras culturas.

“Ao presumir que os indígenas estariam ‘extintos’ ou ‘aculturados’ e que, por isso, supostamente deveriam ter suas memórias ‘preservadas’ pela obra de artistas brancos, a arte nutriu uma economia simbólica ancorada na impossibilidade histórica de autorrepresentação que, por sua vez, se atualiza constantemente no ‘bem-intencionado’ e lucrativo horizonte estético e político da representação do Outro”, discorre a curadoria em um discreto texto na parede, mas que conduz a mostra para o debate decolonial de maneira explícita. Esse, aliás, é um dos méritos de Raio-que-o-parta: apresentar uma visualidade potente e diversificada, mesclada a textos pontuais críticos que problematizam questões vinculadas às obras selecionadas.

Sem título, José Antonio da Silva, na exposição Raio-que-o-parta
Sem título, José Antonio da Silva. Foto: Divulgação

Assim ocorre também nos demais módulos, Centauros iconoclastas, que aborda ações performativas e transformações; Eu vou reunir, eu vou guarnecer, sobre a festa e a criação coletiva; e, finalmente, Vândalos do apocalipse, que trata das ruínas e catástrofes derivadas do projeto modernista nacional. É nesse último que estão pinturas de José Antonio da Silva (1909-1996), como Trem e Lavoura, de 1959, onde a visão de progresso já era denunciada como a destruição das florestas, antecipando o papel arrasador do agronegócio.

Uma exposição tão abrangente – vamos relembrar, são 650 obras, incluindo até o tríptico Sôdade de Cordão, de 1940, do artista ucraniano radicado no Brasil Dimitri Ismailovitch (1892-1976) – em um espaço difícil e pequeno, ganha potência graças a uma montagem arquitetônica simples e modesta, que deixa as obras em primeiro plano. Seria excelente um catálogo que documentasse essa ampla pesquisa, afinal são os catálogos que ficam para a história. E, nessa narrativa, Tarsila do Amaral e Anita Malfatti, finalmente, não são as protagonistas. Mesmo faltando um registro para o futuro, Raio-que-o-parta trata-se de uma das mais contundentes reparações sobre o modernismo e sobre a Semana no presente.

 

O fetichismo europeu no contexto colonial e seu efeito de longa duração: o caso do Humboldt Forum

Fachada do Humboldt
Fachada do Humboldt Forum, em Berlim. Foto: Alexander Schippel / Stiftung Humboldt Forum im Berliner Schloss

Em 2021 a cidade de Berlim ganhou um novo espaço de debate a respeito da cultura, que trouxe também uma enorme responsabilidade histórica e demandas presentes: o atual Humboldt Forum, construído no local do antigo Palácio da República (1976-2003), anteriormente ocupado pelo Palácio Berlinense (1443-1950). Trata-se de um local que, por sua centralidade política, geográfica e simbólica já reflete há bastante tempo a identidade alemã. Hoje, o museu e seus espaços expositivos têm sua articulação sincronizada usando as coleções dos Museus Estatais de Berlim (Staatliche Museen zu Berlin), da Fundação do Patrimônio Cultural Prussiano (Stiftung Preußischer Kulturbesitz), em parceria também com a Projetos Culturais Berlim (Kulturprojekte Berlin) e o Museu da Cidade de Berlim (Stadtmuseum Berlin).

Após sérios danos sofridos durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o Palácio Berlinense foi demolido para dar espaço a um novo prédio que indicaria o renascimento em uma nova era, e não apenas em pressupostos arquitetônicos. O Palácio da República, projetado por Heinz Graffunder e sua equipe de arquitetos, Karl-Ernst Swora, Wolf-Rüdiger Eisentraut, Günter Kunert, Manfred Prasser e Heinz Aust, foi construído em 1976 e funcionou até 1990, quando então o seu funcionamento foi interrompido por conta do uso de amianto no sistema de isolamento contra fogo. O prédio continuou funcionando parcialmente e sendo habitado mediante aprovação em ocasiões especiais, e após 2004 deu espaço à um projeto intermediário para a criação de eventos culturais sob o nome de Palácio do Povo (Volkspalast), até ser demolido em 2006. Em 2000, no entanto, já havia sido formada uma comissão para examinar a futura utilização do espaço em uma nova fase e em 2002 o projeto de retomada da fachada barroca do antigo Palácio Berlinense foi aprovado – o edifício agora seria habitado pelas coleções listadas anteriormente. Após tantas mudanças e um projeto que se estendeu e custou mais do que se tinha imaginado, somando mais de 600 milhões de Euros, o Humboldt Forum é o edifício cultural mais caro da história da Alemanha. O Palácio Berlinense, que teve sua fachada redesenhada em estilo barroco pelo arquiteto alemão Andreas Schlüter no século 17, ganhou uma nova leitura do italiano Franco Stella, ganhador do concurso para o projeto do novo edifício, e foi reaberto em 2021 para visitação com uma área expositiva de aproximadamente 28 mil metros quadrados.

Um dos objetivos atuais da instituição é de significativa dificuldade: abrigar as coleções de arte “etnográfica”[1] adquiridas durante o passado colonial alemão entre 1885, com a Conferência de Berlim[2], até a atualidade, e se posicionar criticamente através dos objetos de cultura material exibidos. Essa premissa, junto com a retomada da fachada do Palácio Berlinense, abriu grande resistência e protestos da comunidade artística e cultural – essencialmente cosmopolita e pluricultural de Berlim. Com livre visitação através de ingressos com hora marcada e sem custos, a exposição de longa duração que abre o edifício para o público é intitulada Museu Etnológico e Museu para a Arte Asiática (em tradução livre do alemão), mostra dividida em diversos segmentos.

Como se já não bastasse o forte gesto – bastante anacrônico – de se trazer à contemporaneidade a fachada barroca do período imperial alemão, as exposições, na tentativa de instruir e educar o público de Berlim, expressam ativamente o desejo de corresponder aos interesses do país europeu. Dois terços dos objetos da coleção etnográfica alemã são provenientes dos tempos coloniais e foram colecionados com o “intuito de se ter material básico para pesquisas futuras”. No entanto, mesmo que o armazenamento desses objetos seja bastante trabalhoso e demande extensivo financiamento, e mesmo que pesquisas sobre sua proveniência sejam incentivadas pelo Humboldt Forum em parceria com instituições e pesquisadores de suas áreas do local de produção desses objetos, trazê-los para o contexto museológico europeu ignorando as suas qualidades adicionais, que extrapolam o seu peso estético, contribui para a atual complexidade social dos países dos quais foram tomados. Ignora-se o contexto e proveniência original dos objetos para se considerar apenas a sua utilidade à cultura estrangeira que os abriga, como se pode ler em alguns dos textos da exposição: “A seleção dos objetos expostos não pretende definir, homogeneizar ou delimitar as culturas. Ela não oferece uma visão geral da história cultural, mas reflete interesses europeus e alemães, inclinações estéticas e orientações científicas no passado e no presente”[3].

A exposição Uma questão de perspectiva (tradução livre), a qual recebe os visitantes no Museu Etnológico, é bastante interessante justamente porque lida com arquivo e não com objetos. Com diversos eixos, oferece uma reconstituição do passado colonial alemão no século 19, incluindo a relação da Alemanha Oriental com as suas colônias através de relatos nativos e conta com miniaturas representando os ocupantes através do olhar local[4]. No complexo expositivo de imagem, texto e vídeo, o visitante autônomo tem de se engajar fisicamente para descobrir informações e fotos e assim reconstituir, ou “revelar”, as dinâmicas coloniais. Fica-se claro que o colonialismo é uma tática de dominância que considera apenas o espaço físico, ao passo que ignora os espaços sociais e culturais anteriormente cultivados no local de ocupação. Por exemplo, uma das fotos mostra a escola das Mulheres da Federação Colonial Alemã (uma organização oficial do Estado alemão), que tinha como objetivo “tratar o espírito familiar alemão e seu tipo”, trazendo mulheres para as colônias para que os soldados e ocupantes alemães não se casassem com mulheres africanas[5].

Trono "Mandu Yenu" (Camarões, antes de 1885) no módulo "Emaranhados Coloniais" do Humboldt Forum
Trono “Mandu Yenu” (Camarões, antes de 1885) no módulo “Emaranhados Coloniais” do Humboldt Forum. Foto: Alexander Schippel / Staatliche Museen zu Berlin, Ethnologisches Museum / Stiftung Humboldt Forum im Berliner Schloss

Outro exemplo que prima pela ausência de contato entre colonizador e colonizado foi o Gauturnfest 1939 em Lüderitzbucht (Namíbia), que levou jovens alemães para competir na colônia, onde permaneciam isolados dos habitantes locais durante o torneio. No eixo Vida Entre Culturas é abordada a história dos jovens namibianos, filhos de exilados e refugiados que foram criados na Alemanha Oriental durante a Guerra da Independência da Namíbia (1966-1990) entre 1975 e 1990. O conflito foi também ultimamente um desdobramento da divisão da África pelos países da Europa na Conferência de Berlim (1884-1885). Mais tarde, com o final da guerra, os jovens namibianos foram repatriados pelo Estado independente da Namíbia, o que causou um significativo choque cultural.

Objetos africanos

Posterior à relativização das perspectivas apontada pela estrutura expositiva anterior, o próximo ciclo dentro da exposição é o Armazém Aberto África, que reproduz o modo de armazenamento da coleção expondo os objetos em vitrines, acompanhados de seus números de identificação. Estão ali armas, facas, espadas, adornos de marfim, brincos, braceletes, representações de espíritos e estátuas de significação política representando governantes de variados tamanhos, instrumentos musicais como tambores e instrumentos de sopro. Madeira e metal, cordas, conchas e marfim são os principais materiais, esculpidos e compostos com notável técnica. Fica-se evidente que a subtração desses objetos de seus lugares de proveniência é primeiramente um desvio do trabalho, não somente dos feitores dos objetos, mas também de todo um povo que passava seu conhecimento de trabalho de geração em geração por um sistema de ensino hereditário ou de tutor para pupilo. Os objetos acumulados aqui são provenientes de diversas expedições ao território africano do final do século 19 e a sua exibição na Europa influenciou diretamente a arte moderna[6]. Estas expedições foram conduzidas por oficiais da Alemanha colonial tal qual Hans Glauning, que morreu em uma de suas expedições em Camarões.

A relação de Camarões com a Alemanha é posta em foco no próximo segmento expositivo, através de batentes de portas esculpidos à mão, esculturas de diversos tamanhos, apetrechos, bancos, máscaras adornadas e outros objetos históricos. Grande parte dos itens denotam o grau de importância de seus detentores na sociedade camaronesa do início do século passado, além de adereçar o caráter da pessoa que os possuía. Estes objetos, carregados com agência social e espiritual, também tinham finalidade e efeito político. Exemplo máximo disso é o Trono Comemorativo do Rei Tufoyn, do povo Bekom, datado do século 19 e cujo desaparecimento gerou estado de emergência, já que sua presença era necessária para que se pudesse passar o poder ao próximo governante da matriz hereditária. O trono foi adquirido em 1906 pelo explorador alemão Hans Gaspar Ganz zu Putzliz. Para evitar uma crise no poder e na sucessão, o Rei Yuh, sobrinho e sucessor de Tufoyn, ordenou a criação de um novo trono, hoje em dia considerado como original, enquanto que o que se encontra na Europa foi expropriado de seu caráter oficial. As técnicas de dominação cultural motivadas pelo fetichismo estrangeiro refletem diretamente na desestabilização política das culturas as quais pretenderam dominar.

A Oceania e a cultura dos mares

A coleção de objetos de cultura material das antigas colônias da Oceania também faz parte da exposição. Uma sala foi dedicada para abrigar uma coleção de adereços e o último navio construído pelos habitantes da ilha Luf, na Papua Nova-Guiné, em 1890 – já que todos os outros foram destruídos na guerra pelos alemães. Após a guerra, este último navio foi comprado por uma companhia de comércio alemã, que o trouxe à Berlim. A proibição da livre locomoção imposta pelos ocupantes ao povo de Papua Nova-Guiné também contribuiu para a extinção das técnicas de construção de barcos que tinham importância singular na economia da região, uma vez que eram trocados por outros tipos de bens em um sistema de escambo. A união entre povos nativos e a natureza fica evidente não só pela relação direta com o mar, entendido como extensão de seu território tanto quanto o solo, mas também porque sabiam lê-lo, encontrando caminhos através de suas correntes e usando seus materiais. O mar tem papel central na tradição oral e na conexão com deuses e ancestrais. A alienação do modo de produção de barcos, além da proibição de locomoção, bem como as doenças trazidas pelos europeus e a destruição causada pela guerra, fizeram com que a autonomia do povo da Polinésia morresse completamente. Na Micronésia e Melanésia o conhecimento de construção naval também foi quase completamente extinto. É importante frisar que o produtor de barcos era também dotado de autoridade espiritual e, portanto, podia fazer rituais acessando poderes sobrenaturais, tendo um papel central na sociedade. Atualmente a construção de barcos é lentamente retomada pelo povo da região da Polinésia através do modelo deste último barco que se encontra em posse alemã.

Em outra sala é exposto o Armazém Aberto Oceania, com diversas vitrines que apresentam a cultura material vinda da Oceania ocupada pela Alemanha. Aqui também se trata de uma coleção formada por diversas expedições e em diferentes regiões. Assim como nas sociedades africanas, as esculturas aqui tinham o poder de organizar a sociedade, sinalizar funções sociais gênero-distintivas e motivar através da espiritualidade comum e dos rituais de passagem e celebrações. São um exemplo as esculturas usadas nos rituais Malagan, que tinham diversos significados e funções, sendo utilizadas com objetivos espirituais como a conexão com ancestrais e também funções práticas, tal qual a transmissão de direitos à terra.  Por serem considerados espíritos perigosos e poderosos, as esculturas eram utilizadas somente uma vez e destruídas após o ritual. A coleção e exibição destes objetos desconsidera e desrespeita a sua concepção e função cultural. Imagens espirituais chamadas de Tikki, nas Ilhas Marquesas, tinham a característica de carregar um espaço com propriedades sagradas onde somente o alto sacerdote poderia adentrar. Este espaço e os rituais conduzidos ali formavam o centro da vida espiritual e a proximidade com os Tikki dotava ao sacerdote mana. Essa energia sobrenatural dava-lhe poder que poderia ser usado para diversos fins, como por exemplo arruinar pessoas ou abençoar ao povo antes de uma batalha, o que os tornava líderes de alto escalão. Através da imposição do cristianismo, hoje religião que representa 90% dos habitantes de Papua Nova Guiné, diversas partes da tradição local morreram. Assim como nas antigas colônias africanas, o padrão de dominação através da separação entre um povo e os seus objetos de cultura e culto também se fez presente.

Tempos coloniais

Este seria o momento ideal para países detentores de objetos de cultura material de outros povos e regiões, como a Alemanha, iniciarem uma verdadeira reparação ética do ponto de vista cultural em relação aos países que sofreram a imposição de relações coloniais notadamente unilaterais e extrativistas. A função atual poderia ser classificada como antiética, já que a Alemanha continua a se beneficiar destes bens sem realmente oferecer algo de valor equivalente aos demais países de proveniência, cuja ausência desses objetos mudou completamente a auto-percepção das diferentes culturas. Trata-se de uma instituição que minimiza o valor dos objetos que se propõe salvaguardar, reduzindo sua importância ao valor estético, e nega, no escopo macro-político, que estes objetos também tragam outras dimensões de poder, para que não seja necessária a imediata devolução destes patrimônios. A falta de acesso dos povos de origem a estes objetos não só contribui para um senso de identidade deficitário, mas também permite ao antigo ocupante controlar a história dos países anteriormente ocupados. O Humboldt Forum está para as ex-colônias da Alemanha assim como o museu russo Hermitage está para a Ucrânia – objetos foram tomados do país por combatentes nazistas e depois retornados à União Soviética após o fim da Segunda Guerra. Ao retirar símbolos culturais com diversas funções do seu local de produção procura-se manter as outras culturas subjugados através de cisões no tecido social, tática colonial que tem como produto final o ganho de tempo para que o fantasma do fascismo – que muitos países possuem em suas dinâmicas políticas e no caso da Alemanha se encontra ativo, ainda que seja minoria – se aproveite caso seu projeto venha a se concretizar.

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[1] Outras instituições com o mesmo tipo de coleção como o Museu Grassi (Leipzig, Alemanha) tem se posicionado criticamente a respeito da classificação “etnográfica”, uma vez que este nome produz comparações entre produções culturais materiais de diferentes contextos.
[2] A conferência de Berlim dividiu a África entre os países da Europa ocidental, gerando o sua atual divisão territorial, a qual desconsidera os diversos povos e culturas africanas.
[3] Trd. “Die Auswahl der Exponate erhebt nicht den Anspruch, Kulturen zu definieren, zu homogeneizieren, oder voneinander abzugrenzen. Sie bietet keinen Kulturgeschichten Überblick, aber sie spiegelt europäische und deutsche Interessen, ästhetische Neigungen und wissenschaftliche Ausrichtungen in der Vergangenheit und Gegenwart wieder”. (Humboldt Forum, 2022, tradução nossa).
[4] Na exposição existe um foco na relação com os seguintes países: Camarões, Namíbia, Papua Nova-Guiné, Samoa-Alemã e Tanzânia. No entanto, a Alemanha possuía muitas outras Colônias antes da Primeira Guerra Mundial (1939-1945).
[5] Trd. Den deutschen Familiengeist und die deutsche Art zu pflegen. (Humboldt Forum, 2022, tradução nossa).
[6] Uma das maiores commodities do mercado secundário são as obras de Pablo Picasso, que era colecionador de arte africana.

Repensando o modernismo a partir da Semana de 1922

Baía de Guanabara, de Ismael Nery
"Baía de Guanabara", de Ismael Nery, exposta em "Fluxos do Moderno" na Casa Roberto Marinho. Foto: Cortesia Casa Roberto Marinho

Muitas vezes celebrações de efemérides são mera formalidade. Mas no caso da Semana de Arte Moderna essa rememoração é incontornável. Afinal, se continuamos mirando para aquele passado depois de tanto tempo, é porque algo dele sobrevive e nos faz pensar não apenas sobre nossas raízes, mas sobre como elas ajudam a definir nosso futuro. Há nestes festejos em torno dos 100 anos do evento algo de singular, um desejo de entender melhor seu significado. E há também uma espécie de ansiedade, de desejo de reavivar uma fagulha que nos ajude a iluminar o presente, encontrando algum alento que nos auxilie a enfrentar a angústia e a paralisia contemporâneas – buscando com um misto de nostalgia e cansaço entender e defender projetos transformadores, que desafiaram as regras e se propuseram a abandonar os ranços passadistas em busca de novos modelos de pensamento e produção.

A lista de encontros, exposições, lançamentos de livros e revistas que giram em torno do encontro de três dias realizado no Theatro Municipal de São Paulo em fevereiro de 1922, que com o tempo foi se transformando no mito fundador da modernidade nacional, é enorme. E só faz crescer. São inúmeros os enfoques adotados e é um alívio que neste centenário haja pouco espaço para olhares congelados e meramente laudatórios. É verdade que tal profusão de estudos e apresentações deixam margem tanto para debates de fôlego como para briguinhas bairristas que há muito estão ultrapassadas, mas que funcionam como iscas de clicadas e likes nesse nosso mundo de belicismos digitais.

O contraste entre o volume de pensamento contido nas mostras, catálogos e antologias e o aspecto raso com que a grande mídia vem tratando a efeméride é gritante, pois o pouco que se viu na imprensa sobre o tema é eivado de erros históricos, chamados usualmente de fake news, que perpetuam equívocos largamente repetidos como a suposta participação de Tarsila do Amaral na Semana (ela estava em Paris e só se aproximou do grupo posteriormente) ou então a conspiratória ideia de que as vaias ouvidas durante as apresentações no Municipal teriam sido claques contratadas pelos próprios artistas para valorizar suas performances, algo que lembra as manipulações cotidianas dos tempos contemporâneos e que foi desmentido com veemência por Oswald de Andrade em Diário Confessional, obra reeditada pela Cia. das Letras junto com outras obras de sua autoria.

Apesar das acusações de excessivo paulistocentrismo e de um certo esforço de apontar para uma série de lacunas e contradições presentes naquele grupo, é cada vez mais consensual entre os pesquisadores a ideia de que a importância da Semana é mais simbólica do que real. Também não é mais novidade o fato de que muitos dos autores participantes só futuramente consolidaram sua modernidade e que é preciso expandir o olhar para além de São Paulo, para fora dos marcos de 1922 e para segmentos sociais ignorados pelos modernistas no período. Isso não tira a importância emblemática da Semana, enquanto momento de condensação de um processo lento e mais abrangente de modernização no país. Talvez haja nessa observação mais atenta e diversa a confirmação de que algo premonitório havia na resposta dada por Manuel Bandeira a um repórter em 1952. Disse o poeta, cujo poema Os Sapos, lido durante a semana, foi alvo de vaias: “Acho perfeitamente dispensável comemorar o trigésimo aniversário da Semana. Que esperem o centenário. Se no ano 2022 ainda se lembrarem disso, então sim”.

Capas dos livros Semana de 22
Capas dos livros “Semana de 22: Antes do Começo, depois do fim”, “O guarda roupa modernista” e “Modernismos 1922-2022”. Fotos: Reprodução
Visões que se transformam

O pontapé inicial para as reflexões acerca dos desdobramentos da semana teve início no ano passado, com uma série de encontros patrocinados por um consórcio de instituições culturais paulistas: Pinacoteca do Estado, Museu de Arte Contemporânea de São Paulo e Instituto Moreira Salles. Iluminar pontos cegos, situar a Semana num contexto menos mítico e mais real, inserindo-a em um processo de formação da cultura nacional mais plural, foram alguns dos objetivos do evento, que se desdobrou em 10 encontros entre março e dezembro, com dezenas de convidados e que podem ser vistos no Youtube dos organizadores. Também foi em 2021 que muitos museus (MAM-SP, MAC-USP e Pinacoteca, entre eles) preferiram realizar suas exposições em torno do modernismo, desvinculando-se da obrigatoriedade de participar do calendário celebratório e optando por uma ótica menos nuclear. O Museu de Arte Moderna destacou-se com a mostra e o catálogo Moderno onde? Moderno quando?, com curadoria de Aracy Amaral e Regina Teixeira de Barros, e que não por acaso adotou como intertítulo a frase: “A Semana de 22 como motivação”, evidenciando a importância da Semana como elemento fundamental, mas não necessariamente a locomotiva do processo de “aggiornamento” da arte brasileira, que se desdobrou de maneiras diversas no tempo e no território.

Aliás, os termos adotados nos títulos das inúmeras publicações já lançadas ou ainda no prelo sobre o tema são muito ilustrativos: Semana de 22: Antes do Começo, depois do fim (Estação Brasil), Modernidade em Branco e Preto e Modernismos 1922-2022 (Cia. das Letras) traduzem de forma bastante sintética algumas das questões fundamentais que constituem a coluna vertebral de como o movimento de São Paulo vem sendo pensado na atualidade.

Afinal, como 2022 vê 1922? E como essa visão foi sendo transformada ao longo do tempo, ajudando-nos a compreender mais sobre o momento histórico e também sobre o momento atual? Como escreve Ana Maria de Moraes Belluzzo em texto publicado no catálogo de Moderno onde? Moderno quando?, trata-se de um projeto coletivo de interpretação nacional, que nos coloca diante de diferentes modernismos. Ela lembra que não podemos esquecer que, para além da Semana de 22, temos outros momentos de grande densidade histórica que ajudaram a compor a nossa modernidade, como por exemplo o Salão Revolucionário de 1931, do qual participaram em intensidade ainda maior grandes nomes da arte nacional (como Cícero Dias, Ismael Nery, Guignard, Goeldi…). Como outros eventos de destaque no campo modernista é possível citar ainda o Congresso Regionalista, realizado em 1926 em Recife, além de uma série de publicações, revistas ou manifestos publicados em diferentes lugares do território brasileiro sem que a Semana fosse sequer mencionada. “O modernismo não pode ser visto como um cânone, mas sim como um momento de riqueza muito grande”, diz ela. “Não sei porque esse pessoal continua querendo saber onde começa. Não começa, pipoca”, ironiza ela. “Quem faz essa pergunta pensa que a história é um processo linear”, explica a pesquisadora, que organiza este ano o programa Modernismo Hoje, uma série de 11 episódios que discutem a emergência e desenvolvimento do modernismo, uma iniciativa da Academia Paulista de Letras.

Ninguém sabia direito o que era aquilo em 1922, explica Thiago Gil de Oliveira Virava, autor de Um Boxeur na Arena: Oswald de Andrade e as Artes Visuais no Brasil, a ser lançado esse ano pela Biblioteca Brasiliana e o Sesc, junto com outros trabalhos premiados que tratam da nossa dupla celebração do ano: o centenário da Semana de Arte Moderna e o bicentenário da Independência. Naquele momento, segundo ele, o que diferencia o movimento é que existe um grupo, que começou a se formar em torno da exposição de Anita Malfatti em 1917, cujos participantes se defendem uns aos outros e se preparam para essa ofensiva. Evidentemente havia uma articulação política e não à toa escolheram o ano de 1922 (chegaram a cogitar organizar a Semana em 1921, mas a coincidência com as celebrações do centenário da Independência os fez adiar a execução). O projeto vai se constituindo aos poucos, tendo como base tanto uma articulação com as vanguardas parisienses – com Tarsila e Oswald posteriormente, entre 1923 e 1928, atuando como espécies de embaixadores na capital francesa – e a tentativa de criar uma rede nacional de troca e interlocução. “O que não significa que eles estivessem determinando como seria o modernismo nesses lugares”, alerta.

Sem título, de Roberto Rodrigues (1926)
Sem título, de Roberto Rodrigues (1926), exposta em “Fluxos do Moderno “na Casa Roberto Marinho. Foto: Cortesia Casa Roberto Marinho
Um tema que não se esgota

“1922 é um marco do modernismo, se foi construído a posteriori, não importa” destaca Lauro Cavalcanti, diretor da Casa Roberto Marinho e curador da mostra Fluxos do Moderno, em cartaz no instituto carioca até junho. Reunindo obras de nomes incontornáveis da Semana e artistas menos conhecidos na atualidade, como Roberto Rodrigues, irmão de Nelson Rodrigues que foi assassinado aos 23 anos por uma jornalista – que se indignou com a publicação de uma charge aludindo uma suposta traição dela -, a mostra tem momentos de grande atualidade e defesa dos ideais modernistas. “Mais do que nunca no Brasil é necessário comemorar a modernidade. Estamos num período de trevas e essa resistência, esse momento de força de possibilidades, de abertura é fundamental”, conclui.

“Este é um tema que não se esgota”, afirma Gênese Andrade, organizadora da antologia Modernismos 1922-2022 e que define a Semana como a primeira performance de grande repercussão no país. “Como as performances costumam ser, foi muito pouco vista. Fala-se sobre uma cena sobre a qual há apenas uma memória turva, uma fama sem lastro muitas vezes”, afirma. Talvez seja por esses contornos tão fluidos que ela se preste tão bem ao papel de síntese de um processo díspar, espalhado, prolongado e desigual como foi a penetração do pensamento e da linguagem moderna no Brasil.

Um outro aspecto interessante desse centenário e que possivelmente venha a render frutos no futuro é o esforço de colocar em diálogo pensadores de diferentes formações, áreas de conhecimento, regiões do país e até mesmo de diferentes gerações. Memórias, reflexões, questionamentos compõem um panorama diverso, às vezes até mesmo contraditório, mas complementar, como é possível descobrir nas páginas da antologia. Ali estão reunidos desde estudos que ajudam a compreender a simbiose entre o projeto da Semana e um projeto maior de elevação de São Paulo à liderança política e econômica nacional. Felipe Chaimovich faz, por exemplo, uma interessante análise sobre as articulações da família Prado com as formas de ver e patrocinar as artes brasileiras. E Luiz Ruffato ilumina a experiência fundamental das revistas literárias que brotaram por toda a parte no Brasil na primeira metade do século 20. Também sobressaem-se em muitos desses textos críticas e reflexões sobre o caráter elitista e excludente do movimento (em termos raciais e de gênero, sobretudo na literatura), mas predomina o esforço coletivo de tentar entender como as interpretações em torno do movimento paulista foram tornando-se diferentes e mais complexas ao longo do tempo.

Dilui-se, portanto, a associação entre a Semana e a ideia de vanguarda. Para usar um outro termo militar, que não o de pelotão de frente (afinal, a modernidade foi importada da França, com anos de atraso, e adaptou-se de diferentes maneiras pelo país afora), pode-se adotar a metáfora do canhão, como instrumento que lança um projétil muito à frente, como uma arma de efeito prolongado.

Modernismos alternativos e cultura popular

Há, sobretudo em São Paulo, opções de todas as ordens para quem quiser mergulhar nesse universo. A exposição Era uma vez o Moderno, em cartaz no Centro Cultural Fiesp e organizada em parceria com o Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), vem sendo apontada como a maior mostra sobre o modernismo brasileiro já realizada, com mais de 300 obras e documentos que normalmente ficam preservados do público nas reservas técnicas da instituição da USP, que tem entre suas preciosidades os arquivos e a coleção de Mário de Andrade, material fartamente revisitado em publicações, estudos e teses.

Também com dimensões estonteantes há a exposição Raio-que-o-parta, que faz parte das celebrações do Sesc-SP em torno da Semana e que reúne um conjunto expressivo de mais de 600 trabalhos, realizados por 200 artistas de diferentes regiões, gerações e linguagens. A mostra dá espaço importante para formas de expressão mais populares como os impressos, a fotografia e a arte popular, usualmente menos valorizados pela elite letrada, mas que têm um papel fundamental na disseminação do moderno no país.

A força da cultura popular e o apagamento da questão racial também constituem elementos importantes do livro Modernidade em Preto e Branco, de autoria do pesquisador Rafael Cardoso. “Os nomes do nosso cânone derivam quase exclusivamente das esferas elitistas de literatura, arquitetura, arte e música eruditas, enquanto os modernismos alternativos que brotaram da cultura popular e de massa são esquecidos ou ignorados”, escreve o autor que analisa, dentre outros, os casos de Arthur Thimoteo da Costa e Lima Barreto, pintor e escultor negros, ambos mortos em 1922, cujo modernismo “alternativo” foi longamente ignorado. Mas como diz o próprio Cardoso, “o passado sempre dá um jeito de voltar a assombrar o presente”.

A questão racial, que nos últimos anos têm rendido algumas das mais inovadoras reinterpretações da história do país, também esteve presente de forma marcante no ciclo de eventos organizado pelo próprio Theatro Municipal, palco das ações de 100 anos atrás. Numa fala marcada por denúncia e reflexão, o poeta e pesquisador Allan da Rosa desconstruiu mitos e não apenas demarcou claramente o caráter elitista do evento, como descreveu o que ocorria na cidade de São Paulo enquanto a elite se digladiava nos palcos do teatro. Avesso à celebração do popular como explosão de alegria carnavalesca, Allan falou sobre urbanidade, exclusão, opacidade e esquecimentos. Segundo ele, apenas lembrar que a Semana foi feita sob o patrocínio da aristocracia cafeeira, aliada ao capital financeiro e ao capital comercial, é chover no molhado. É importante olhar para a cultura urbana, ignorada, presente nos cantos de trabalho, na cozinha, no cotidiano. É importante pensar naquelas pessoas que nem souberam da Semana, pois esta trazia “um olhar muito branco, tetricamente branco, apesar de louvar encontros carnavalizados”, conclui, lembrando que naquele início de século o projeto vigente desde o final do século 19 era o branqueamento da nação. E ele alerta: “Quando a gente troca um recalque imperial solene por outro recalque, não é um desrecalque”.

Mulheres modernistas

Nem só de Mários e Oswalds, Anitas e Tarsilas se faz o modernismo. Evidentemente, os Andrade, como muitos chamam os dois escritores maiores do modernismo e que fizeram sua aparição de primeira ordem com a Semana de 22, são incontornáveis. Afinal, desenvolveram ao longo de décadas alguns dos mais sólidos projetos de cultura para o país, bastando citar o Manifesto Antropofágico, formulado por Oswald em 1928, e todo o projeto de levantamento e preservação do patrimônio nacional capitaneado pelo autor de Macunaíma. Mário, aliás, é um dos poucos a ser lembrado nessas celebrações com uma exposição individual, em cartaz no Museu Afro Brasil.

No caso das duas pintoras, é interessante notar como elas foram ao mesmo tempo eleitas a um papel de destaque na arte brasileira a partir da proximidade com os ideários da Semana, mas ao mesmo tempo pagaram um preço por isso. Como demonstra Ana Paula Simioni em Mulheres Modernistas, seu envolvimento com o grupo acabou fazendo com que o olhar sobre suas produções se restringisse ao período inicial, com o resto de sua obra sendo por muito tempo vista como decadente ou inferior. Elas também acabam sendo enquadradas em modelos estreitos, Anita sendo eternamente enquadrada no papel de “mártir”, vítima dos ataques de Monteiro Lobato na crítica à sua exposição de 1917, e Tarsila no papel de “musa”, da mulher bela e sedutora.

Segundo Simioni, um dos efeitos positivos de celebrações como essa em torno da Semana seria uma recuperação do modernismo como tema de pesquisa, com destaque para estudos que buscam resgatar artistas ou fases menos estudadas, sobretudo entre artistas mulheres que foram longo tempo relegadas a um papel secundário ou inexistente na história da arte. Uma dessas figuras que segundo ela mereceria ser melhor conhecida é Nair de Teffé, primeira caricaturista do Brasil e possivelmente do mundo e que se casou com ninguém menos que o presidente Hermes da Fonseca. Dentre os vários méritos de Nair está o de ter levado O corta-jaca, composição popular de Chiquinha Gonzaga, para dentro do Palácio do Catete em 1914.

“Nos digladiamos pelo passado porque vivemos um presente de destruição”, diz Ana Paula, em sintonia com a ideia defendida por Lauro Cavalcanti de que mais do que nunca é necessário comemorar a modernidade, como forma de se contrapor a destruição de seu legado – basta ver o desmonte das estruturas culturais que vem sendo estrategicamente orquestrada pelo atual governo, como por exemplo desmantelamento do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), um dos mais importantes legados de Mário de Andrade e de sua geração – sem cair na armadilha de usar questões vitais da contemporaneidade para, anacronicamente, fazer cobranças aos agentes de antigamente. Afinal, é preciso ter consciência de que, como diz Thiago Virava, temos uma “modernidade incompleta, falha e cheia de buracos”.

A afrodescendência, a internet e a democracia no fim do túnel

A ancestralidade de matriz africana e a memória afetiva dos lugares onde viveu são as principais referências para os trabalhos de Rafael Pereira, que desde os 24 anos dedica-se exclusivamente à profissão de artista, vendendo seu trabalho nas ruas das diversas cidades Brasil afora. O artista atualmente é representado pela Galeria Estação. Foto: Patricia Rousseaux

Embora este também seja um sonho bastante distante, está muito mais próximo do que o sonho de uma idade de ouro. No entanto, o primeiro requisito é a memória. A memória fraca beneficia a nós mesmos, mas prejudica os nossos descendentes. A capacidade de esquecer permite que as pessoas abandonem passo a passo o sofrimento que um dia conheceram; mas a capacidade de esquecer também leva as pessoas a repetirem os erros de seus predecessores.
Lu Xun (1881-1936), sobre o direito feminino à igualdade em relação aos homens (XUN, L., 2017, p. 259)

Para os gregos antigos, à certa altura os inventores da experiência democrática, falar grego era suficiente para ser considerado grego ou pelo menos não ser considerado bárbaro. Em um certo período da história daquele país a democracia estava ligada à fala e, portanto, à capacidade de persuasão. Ser cidadão, contudo, já era algo mais complexo, porque era um conceito associado à tomada de decisões que afetavam os rumos não só dos concidadãos como um todo, mas também da classe dirigente e de sua capacidade de perpetuar seus privilégios. O poder econômico, desde os gregos antigos, portanto, cuidou para que aqueles que tomassem as decisões que afetassem a tudo e a todos fossem exatamente os atores advindos de uma elite: uma raça de pessoas que defenderia seus conflituosos e, não raro, contraditórios interesses privados na polis (cidade), ou seja, no mundo político.

Por outro lado, nos momentos históricos em que as elites levaram autocrática ou oligarquicamente os rumos de todos ao caos ou à beira da destruição, foram os períodos em que se tornaram mais evidentes a presença nefasta de instâncias que se quiseram acima da política. Também no Brasil, uma certa afrodescendência jogada para debaixo do tapete devido à vergonha que significou a escravidão para a história do país, outrora escondida, hoje se escancara à luz de todos via internet, publicidade e meios de comunicação, auxiliando-nos, ambiguamente, a vermos a democracia concreta como a única luz no fim do túnel do capitalismo tardio.

O declínio grego antigo, que o historiador de filosofia Will Durant chamou de “suicídio da Grécia”, esteve ligado ao declínio da liberdade e da democracia. Durante o segundo Império Ateniense “graves denúncias costumavam ser imputadas aos mais preeminentes banqueiros, e o povo os encarava com a mesma inveja, admiração e desagrado com que os pobres favorecem os ricos em todos os tempos. A substituição da riqueza imóvel pela móvel produziu uma luta febril pelo dinheiro, e o idioma grego teve de inventar as palavras pleonexia, para classificar esse apetite por ‘mais e mais’ e outra, chrematistikê, para a feroz conquista da fortuna. Produtos, serviços e pessoas eram cada vez mais julgados à luz do dinheiro e da propriedade. Faziam-se e desfaziam-se de fortunas com rapidez nunca vista, e eram esbanjadas em toda sorte de extravagâncias, num exibicionismo que teria escandalizado a Atenas de Péricles.” (DURANT, 1957, p. 148)

A igualdade perante a lei, a participação direta nos rumos da nação, bem como a garantia legal de expor, discutir e votar as suas opiniões nas assembleias públicas não só são o suprassumo da democracia, como o acesso a isso é o suprassumo do que é ser cidadão. Aqueles que forem excluídos da igualdade estando acima ou abaixo das leis – sendo por coerção ou pela própria vontade alijados da participação política ou aqueles minimizados social, física ou psiquicamente a ponto de não poderem expor, discutir e votar as suas opiniões em público – são pessoas privadas, barradas da cidadania, alheios do que é ser cidadão.

No sistema democrático de consumidores, excetuando os sonegadores, aqueles que forem pagantes de impostos que se assumirem em suas responsabilidades cidadãs, independente da cor de pele, origem ou status social tendem a ser chamados cidadãos. No limite, mesmo quando se trata de grupos populacionais de extrema pobreza, eles compõem a economia do país quando participam da circulação de mercadorias, compra e venda ou prestação de serviços, compondo uma porcentagem do quadro econômico, ainda que muitas vezes não tenham nenhuma porcentagem na participação política.

Marginalizados são coagidos a não participarem do debate público. Porém, mesmo estes e seus ancestrais ajudaram a construir o conjunto que forma o Estado, o mercado e a sociedade. A taxa de homicídio dos negros trazidos pelos Atlas da Violência (IPEA, 2021), por exemplo, indicou que o número de óbitos por homicídio esteve em torno de 77% em 2021 (esse mesmo dado, em 2008, girava em torno de 64,55%). Ser negro significa ter duas vezes mais chances de morrer assassinado no Brasil atual. Porém, mesmo com esse chamado “genocídio”, segundo dados do IBGE, 54% da população é negra. Tal número pode ser ainda maior a considerar que esses dados são colhidos por meio de autodeclaração e uma grande parte dos afrodescendentes não se assumiram ainda como mestiços ou negros.  

Para aqueles que duvidam da necessidade de reparação do processo escravagista que durou oficialmente cerca de 400 anos, lançamos a seguinte reflexão apenas para ficarmos nos campos profissional e educativo: o reino português foi o responsável direto pela escravização negra e indígena brasileira; foram milhões de pessoas escravizadas desde cerca de 1530 até a independência do Brasil em 1822. Eles proibiram que os africanos e seus descendentes se alfabetizassem e mesmo os brancos pobres, já que os portugueses jamais abriram uma universidade sequer no Brasil. Quantos negros são hoje chamados a frequentarem universidades com bolsas de estudo ou participarem de editais, projetos socioeducativos ou profissionalizantes em Portugal? Depois da independência, a realeza brasileira assumiu o controle escravagista até seu fim na Proclamação da República em 1889. Que responsabilização os herdeiros da família real luso-brasileira ou os governos que os sucederam na primeira e na segunda república atribuíram para si em relação a todo período exploratório afro-indígena anterior e o período de abandono posterior? Ou seja, os governos português e brasileiro e ainda outros foram os responsáveis diretos pela escravidão e pela inexistência de reparação social dos danos causados por ela aos seus descendentes; quais argumentos reais os absolveria desta e de outras responsabilidades junto aos afrodescendentes marginalizados?

Dando espaço para debates intermináveis, a grande mídia se mostra contra a reparação porque coloca em dúvida a existência da violência histórica naturalizando-a no dia a dia. Mas seriam inocentes os afrodescendentes que esperassem da grande mídia ou do Estado Brasileiro ou, pior ainda, do governo português essa reparação. Mas os jovens afrodescendentes têm demonstrado estar cientes disso pelo grande descontentamento que vem apresentando nas redes sociais. Eles sabem que o racismo histórico encontrou meios de se perpetuar e que a ampliação do fosso social e a criação de uma marginalidade cria também a ilusão de superioridade em certos grupos que se sentem diferenciados ou acima das leis – isto ainda é uma pedra no sapato do futuro da democracia no país.

Empurrar negros para a marginalidade, uma tática racista que funcionou por um certo espaço de tempo, não só é hoje disfuncional como se volta em grande onda contra aqueles responsáveis pela marginalização. A ampliação e o aprofundamento da cidadania é um dever cidadão; atitude indeclinável de quem vive em sociedade. Direito de ser, direito de existir, direito de ir e vir, entre tantos outros, são sempre direitos de tempos em tempos questionados aos marginais ou aos considerados “marginais da vez”. A ampliação e o aprofundamento cidadão moverá obrigatoriamente para dentro do corpo social toda “ovelha desgarrada”, porque simples e logicamente não há humano fora de seu gênero, bem como não há humano fora da política – ainda que seja aquele excluído de todos os direitos. O acesso a bens culturais, acesso à saúde, à ciência e às artes, acesso ao pensamento público, significa direito humano: o acesso à informação e à produção humana, acesso à educação, alimentação, trabalho e lazer etc. significa ser humano, simplesmente.

O marginalizado é desumanizado. Ele tem espaço na vida, por mais que esta seja limitante e limitada, mas o seu acesso ao bem-estar social, à produção cultural total é restrito ou bloqueado pela ausência do espaço que teria naturalmente na economia política. Mas mesmo que haja racionalidade na identificação de que há indiferenciação entre poder econômico e poder político num país de bases escravagistas, vivemos em um tipo de democracia formal que dá a entender ilusoriamente que qualquer cidadão tem acesso a participação política apenas pelo voto, o que não é verdade.

Pensemos mesmo assim, nos negros com poder econômico. Eu não me refiro aos negros músicos ou técnicos de empresa cujo poder aquisitivo lhes garante ter acesso aos carros de entrada das grandes montadoras. Sequer eu me refiro aqui aos negros produtores de grandes eventos ou os que seguiram carreira na medicina, advocacia (especialmente a criminal), engenharia ou que tiveram acesso a empregos técnicos em multinacionais e que lhes tornaram capazes de acessar com pagamento a prazo as suas SUVs e picapes – em suma, eu não me refiro ao negro de classe média. Eu me refiro a aqueles jogadores de alta performance que assim que se tornam milionários “embranquecem”, sonegam impostos, defendem interesses de classe, mas que continuam sendo chamados de “macacos” na Europa ou desprezados por juízes, ou ainda reduzidos a objetos por mulheres que são igualmente reduzidas a objetos por aqueles. O poder econômico desses atletas não os absolve de sua negritude – principalmente nos locais onde eles não podem se esconder atrás de seu suposto heroísmo. A humanização negra em um “mundo branco” é um aspecto que vai além da democracia formal e do poder econômico. Ser negro é ser pária dentro de seu país, mas também fora dele.

É por isso que as expressões do multiculturalismo com as suas revoltas de internet, reformas ortográficas oficiosas de superfície, infantilismos, “caça às bruxas” ou “cancelamentos” de espírito medievais, tentativa de auto-fundamentação do politicamente correto, o identitarismo carnavalesco e a guerra de palavras e palavrões são apenas o fim do túnel, não são expressões da democracia do fim do túnel.

Ainda que a juventude (mal)criada e (mal)educada pela internet (informados apenas pelo Facebook, Twitter, Instagram etc., e pelos pseudossábios que postam vídeos sobre quaisquer assuntos em troca de likes e superchats no Youtube) se sinta como maioria “empoderada” (narciso diante do espelho), a ditadura da maioria ainda é uma ditadura.

Particularmente os coachs e youtubers, estes que mais amplamente “nadam de braçada” no mar da ignorância e do autoritarismo, são aqueles antigos “especialistas” que apareciam na TV para moldar o “ser-informado” e sua sociabilidade. Ensinavam como se comportar, como ser asseado, isto é, ensinavam desde como tratar de unha encravada ou se livrar da caspa, até como o pobre conseguiria enriquecer apenas aplicando na bolsa de valores! A mesma indústria que, por meio da publicidade, intimida o ser social diz que irá salvá-lo da intimidação. Talvez um dos exemplos crassos seja o de como algumas mulheres são forçadas a se entupir de guloseimas e ao mesmo tempo são forçadas a não serem gordas; quem cria a gordofobia é quem cria a glutonaria e inventa que a felicidade “pode estar a seu alcance: basta clicar aqui”. O mundo da suposta facilidade é um dos mais tirânicos mundos possíveis. A pós-verdade aplicada à internet tem o mesmo objetivo que a publicidade tinha na televisão: formar internautas passivos, dóceis, submissos, moldáveis dentro do espectro de “consumidor de conteúdos”.

No embate entre a “expectativa versus realidade” (tornada meme para ser deglutida no universo do aceitável), a enorme diferença entre o título e miniatura caça-níqueis dos vídeos e seu verdadeiro conteúdo é naturalizada, tornada chiste, assimilada e aceita como “ossos do ofício”. Na sociedade publicizada o meio se tornou o fim, o sonho de classe média não é mais ter uma casa e um carro, mas sim ter seu vídeo recomendado, seu post viralizado, sua vida exposta para o maior número de pessoas. Pois assim é possível ser recomendado, ter seu post viralizado e poder recomeçar o ciclo vicioso que não levará a maioria dos “criadores” de conteúdo e seus (consumo)seguidores a lugar algum, nem mesmo, às vezes, à monetização de um lado ou entretenimento do outro – apenas perda de tempo e aumento do autoritarismo geral. Via de regra, com a invasão intrometida dos cookies – que impedem praticamente dar um passo sequer em qualquer site sem a captura de informações pessoais valiosas dos internautas – e com a atual forma de pesquisa do Google, entre outras – cada vez mais direcionada, mercantilizada e minimizada, porque já não entrega resultados livres e abrangentes sem que haja intermediação monetária de algum tipo -, a internet que já foi o espaço da liberdade é hoje o biscoitinho dirigido ao dragão e somos nós que o alimentamos, desavisados, com nossos cliques cheios de empolgação.

Nenhuma metáfora é melhor para a enorme perda de tempo de navegação nos smartphones do que a ideia de usar o dedo na telinha para “enxugar gelo” e trabalharmos como “cliqueiros” gratuitamente para empresas bilionárias que financiam o autoritarismo mundial. A ideia de ser produto à venda não se coaduna com a de viver ou trabalhar sob um sistema democrático e um regime republicano. Se o que é apresentado como entretenimento vira vício, trabalho ou manipulação, estamos falando de uma enfermidade do fim de uma era e não início de outra – pois não haveria futuro sem uma luz no fim do túnel.

Sendo jogados no meio da disputa atual entre interesses mercantis e interesses públicos, os afrodescendentes e seus defensores, agora munidos de seus smartphones, apareceram como fenômeno consistente na internet. Porém, contraditoriamente, devido à grande força raivosa da busca por direitos pelas redes sociais, como uma “luz no fim do túnel”, parecem querer fazer o exercício da democracia, em vez de aceitar passivamente “enxugar gelo” diante da emergência das modificações sociais que eles exigem. A percepção da afrodescendência na internet, nesse sentido, tem se tornado um alimento fértil para o exercício cidadão virtual promovendo um ponto de ebulição nesse exato momento de descenso democrático, avivado também pela internet. Na medida em que um grupo gigantesco é chamado a ancorar-se nessa “baía” tomada militarmente por forças retrógradas e antidemocráticas, ainda que sejam aceitos apenas como consumidores, esta inserção afro-brasileira pode também significar um ponto de inflexão: na aparência de democracia, a necessidade agora premente de inserção da diversidade no quadro publicitário também gera entre os jovens cultura e consciência negras – eles não parecem e não querem aceitar tão pouco!

Aqueles que foram chamados a participar do mundo mercantil e eram excluídos da cidadania e do consumo agora também desconfiam daqueles que os chamam. Aqueles que por meio de sua consciência negra vêm percebendo que ser chamado ao consumo significa apenas ser “consumidor” negará esta participação à sua própria maneira nesta esfera em que tudo tem preço, tudo se compra, tudo se vende. Ao contrário, este novo sujeito recentemente inserido sabe que a inclusão negra no mundo mercantil o torna mais uma entre outras mercadorias. Por isso ele também tem usado de sua própria capacidade e originalidade para encontrar meios de afirmar-se na esfera pública como cidadão e rejeitar o rótulo de mero consumidor de produtos direcionados a afrodescendentes.

Independente dos métodos que serão utilizados para a real inserção social dos afrodescendentes, essa inserção só será duradoura combatendo-se a condescendência e estimulando o protagonismo e a autogestão. Para isso – como foi indicado na epígrafe deste artigo, com a frase do escritor chinês Lu Xun -, exemplos históricos devem ser levados em consideração. Porque, quando ruíram ou foram minimizados historicamente os modelos sociais marginalizantes como o sistema de servidão feudal, a escravidão mercantilista, entre outros sistemas exploratórios seja do tipo latifundiário, comercial ou industrialista, as figuras marginalizadas trocaram de status, mas permaneceram as mesmas. O servo se tornou camponês, o proletário se tornou “precariado” (isto é, trabalhador “precário”, sem aqueles direitos trabalhistas conquistados tão duramente pelos proletários) etc. Ou seja, os ávidos por cidadania continuaram os mesmos que estiveram necessitados de cidadania em um mundo que ainda os marginalizava. Esses exemplos são tomados ao mesmo tempo em que podem ser levados em consideração os exemplos da luta de emancipação feminina, na qual as mulheres “ganharam, mas não levaram” – aprendendo a duras penas que a sua independência social não estava atrelada à sua independência no campo dos hábitos e dos costumes (inclusive dentro de casa). A experiência feminina mostrou que todos os seres sociais detêm os mesmos princípios de luta: a conjunta luta democrática e cidadã de inclusão política de todos os grupos marginalizados.

Será este processo de inserção social que começa agora pela internet será  bem-sucedido em sua tentativa de se transferir do mundo virtual para o das relações políticas na esfera pública? Conquistarão os afrodescendentes o tão sonhado protagonismo e independência, sem os quais ninguém se emancipa do fardo de ser tratados por todos como mero número, mero consumidor? E ainda, os ativistas virtuais, agora alçados ao mundo da democracia formal, serão maduros o suficiente para transferir as suas forças para o campo da democracia real? Isto só o tempo nos dirá!

Pode-se não gostar muito da falta de modos dos recém inseridos ou de como esta inserção está sendo feita, mas não se pode dizer que a democracia não pode ser fortalecida com esta inserção inicialmente virtual e com isso transformar o veneno em remédio. Excetuando, portanto, aqueles casos em que pessoas ou grupos de privilégios são francamente ou dissimuladamente antidemocráticos, todos os outros grupos que têm consciência de que só há uma luz no fim do túnel aplaudirão a admissão negra, a autodeclaração afrodescendente do Brasil como um dos principais entre os novos fôlegos para a consistência, continuidade e aprofundamento da luta democrática.


Referências

DURANT, Will. História da Civilização. Segunda Parte: Nossa Herança Clássica (Tomo II). São Paulo: 3.ed. Companhia Editora Nacional; CODIL, 1957.
XUN, LU. In: CHENG, Eileen J.; DENTON, Kirk A. (Ed.). Jottings under Lamplight. Cambridge: Harvard University Press, 2017. 

Momento estético e o tempo ético da reparação democrática

Pequena Manifestação, de Joana Amador e Mariana Lacerda, que esteve em cartaz no MuBE, em São Paulo
"Pequena Manifestação", de Joana Amador e Mariana Lacerda, que esteve em cartaz no MuBE, em São Paulo. Foto: Patricia Rousseaux

Nos acostumamos a pensar o luto como processo finito, limitado e circunscrito no tempo. Quando se estendem por muito tempo tornam-se suspeitos e flertam com o patológico. Ainda assim há lutos que atravessam gerações em torno da escravidão, do desaparecimento político, da violência de Estado. Há lutos traumáticos que tocam cidades inteiras como Mariana ou Santa Maria. Há lutos pela perda da terra, do corpo e de nosso modo de vida, como o que afetou indígenas e ribeirinhos como os afetados pela barragem de Belo Monte em Altamira. Para Freud, o luto é um dispositivo de simbolização e um afeto normal. Mas o que seria exatamente um afeto normal?

Não seria melhor reservar para certas situações irreparáveis a noção de luto infinito? Reconhecendo que nelas a perda é indefinidamente não individualizável, não simbolizável nem substituível? Em Freud tais lutos incuráveis são marcados pela violação da ordem geracional dos desaparecimentos, por exemplo o luto de um filho. Lutos que não são superáveis pela força ou intensidade da dor, mas pela deliberação, mais ou menos consciente, de que neste caso, neste luto, não haverá fim. Ele se ligará perpétua e deliberadamente a outros lutos sem fim, sem corpo, sem túmulo. Um luto finito torna-se infinito por muitas razões: uma vida perdida elevada a dignidade de Coisa, valor comum para vidas vindouras, ideal heroico, santo, sábio ou guerreiro que mimetiza a imortalidade como figura do infinito.

Mas há também lutos que são patologicamente finitos. Aliás, este é a resposta neurótica diante da perda: individualizar culpados, odiar para esquecê-los, expedir regras na ilusão de “desacontecê-los”, finalmente, desimplicar-se de partilhar, coletivamente, as razões, causas e motivos da perda. Depois disso é só esperar por outra maldade do Outro, ou por outro vacilo do sujeito.

“A Logo For America (Miami Beach)”, Alfredo Jaar, 2018. Foto: Edouard Frapoint / Cortesia Galeria Luisa Strina

Perder uma pessoa, uma nação ou um ideal faz diferença, ainda que o luto se aplique aos três casos indistintamente. Quando perdemos pessoas e perdemos o espírito de uma nação, muitas vezes recorremos, ao longo da história, a um nome para o que foi perdido: democracia. Alguns dirão que a ideia de democracia originada na antiguidade realizou-se em instituições da modernidade. Outros argumentarão que esta é uma realização incompleta, pois a democracia permanece como ideal, ou seja, a ideia de uma comunidade por vir, capaz de ser-para-todos e a todos incluir[1]. Outros ainda consideram que a aplicação da ideia de democracia a pessoas e ideias é uma falsificação do termo. Democracia nunca existiu, logo nunca existirá. É só um nome que damos a certos regimes políticos não autocráticos. O Brasil dos anos 2013-2020 tem sido descrito como um país em democracia regressiva, ou seja, marcado pela precarização do funcionamento institucional, retração do uso livre da palavra e violação de direitos humanos. Perdas que demandam lutos locais, mas que se conectam com a cadeia de lutos infinitos que organiza e define uma determinada unidade simbólica.

Há artistas, como Anselm Kiefer, Alfredo Jaar, Nazareth Pacheco e Itamar Vieira que se dedicaram especificamente ao trabalho de luto e reparação, assim como há testemunhas éticas de desastres inomináveis, como Sojourner Truth, Primo Levi ou a compilação de sonhos feita por Charlotte Bernhardt, mas sua mensagem torna-se realmente um compromisso com o futuro quando nos implica uma espécie de trato entre viventes, morrentes e seres vindouros. Este compromisso fica aquém e além das formas jurídicas e das trocas econômicas. Assim como há vidas que nos aparecem como não inteiramente terminadas, como Marielle Franco, e mundos que ainda não foram criados, o ato ético-estético parece preencher o infinito daquilo que não tem preço e supera o nosso sistema de valores finitos.

A noção de luto infinito foi introduzida por James Godley[2] a partir de seus estudos históricos sobre o massacre de 20 mil pessoas na cidade americana de Buffalo, durante a guerra americana da Secessão (1861-1865). Examinando os relatos jornalísticos e testemunhais da ocasião ele chegou na ideia de que um número tão elevado de mortos, em relação à população sobrevivente, só podia despertar um sentimento de luto desindividualizado e infinito. Ou seja, a combinação entre o luto de um e o luto dos outros com os quais se vive é tão extensa e intensa que doravante o luto se tornará o sentimento dominante nesta comunidade. Os sobreviventes reconstroem suas vidas, o afeto de tristeza diminui, mas as narrativas remanescentes permanecem determinadas por esta perda coletiva. A indenização, reparação ou retorno ao laço social acaba acontecendo apenas e tão somente pela passagem de gerações e torna-se um dos problemas mais insidiosos na clínica do luto coletivo. Resta saber se teremos uma comunidade de origem ou uma comunidade de destino.

Vista da instalação de Anselm Kiefer na Hall Art Foundation no MASS MoCA, em Massachussets (EUA). Foto: Arthur Evans / © Hall Art Foundation / creative commons
Reparação

Melanie Klein introduziu o conceito de reparação em psicanálise a partir de duas conotações principais: retomar um lugar (Wiederherstellung) e tornar algo novamente bom (Wiedergutmachen). Tudo depende do conceito de objeto que se tenha em mente[[3]: ético, estético ou político. Recuperar um lugar, no sentido de se reestabelecer, responde ao luto como trauma, como “perda do chão” e como “saída de si” próprio no instante de dor e loucura transitória que acompanha os primeiros movimentos do luto. Um lugar é uma instância simbólica, referida a estrutura e a história que nos posiciona em relação ao Outro. Tornar novamente bom, é um processo relativo à recuperação do prazer, da satisfação e do gozo. Para Melanie Klein a reparação pode ser definida, opositivamente, pelos seguintes processos[4]:

  1. Sentimento de segurança e gratificação ou complexo de inferioridade e voracidade por reconhecimento.
  2. Sensação de responsabilidade, solidariedade genuína e capacidade de perdoar e ser perdoado ou sentimento de culpa, ânsia por sacrifícios.
  3. Capacidade de compartilhar e restituir ou vontade de vingança e ressentimento.
  4. Fantasias de reparação e sacrifícios amorosos ou incapacidade de amar, dar e receber, envelhecer e realizar-se através dos filhos.

A reparação é o antídoto para o luto, mas também para os processos que atacam nossa capacidade de amar e para o que Klein chamou de posição esquizo-paranoide. Entenda-se por tal posição o processo de cisão do objeto, que ocasiona a fragmentação ou parcialização do Eu. Super investido em seu lugar narcísico, perseguido com ódio e culpa por fantasias sádicas ou masoquista, o Eu tende a  defender-se da angústia mobilizando estratégias como a identificação projetiva e a cisão (splitting), base sobre a qual surgem os fenômenos de negacionismo. O processo de recuperação do lugar do eu, com redução de idealizações e projeções envolve, portanto, uma integração do objeto. A partição entre bom-prazer e mal-desprazer dará origem a uma nova unidade, com a correlata aceitação do “mal-desprazeirozo” no interior do próprio Eu.

Autores pós-kleinianos observaram que esta reabilitação do objeto para o prazer e esta recomposição do objeto para a relação explicam uma certa disposição à sublimação estética, que faz acompanhar a posição depressiva. A escrita, a produção de imagens e a criação de efeitos sensoriais criam uma perspectiva convergente entre a linha mimética e a linha catártica da reparação, doravante associada com a posição depressiva. Neste sentido, o luto se resolve quando se transforma, por meio da reparação, em uma unidade ética e estética. Isso se poderá verificar empiricamente na simetria entre o quê se “diz-faz” e o modo como se “diz-faz”. Congruência entre forma e conteúdo que constitui critério esperado para monumentos, museus e obras de arte que se oferecem em função reparadora.

Uma boa síntese deste argumento se encontrará na prática japonesa do katsugui, por meio do qual uma peça de cerâmica, geralmente um utensílio doméstico, pode ser consertado por meio de métodos tão especificamente implicados pelo reparador que o produto se torna ainda mais valioso e singular do que ele era antes. O katsugui tem sido usado por muitos estudiosos do luto[5] para exemplificar o processo de reparação que o luto demanda, especialmente o fato de que ao final o término do luto produz uma sensação e agradável libertação. Tal tipo de reparação requer uma ética específica para ser compreendida, por exemplo, a ética do whabi-sabi, onde a valorização da precariedade e da simplicidade na arte de viver são elementos centrais. A noção de resiliência é insuficiente, pois não se trata de saber se uma pessoa é capaz de voltar à situação inicial sem grande deformação, mas de saber se sua capacidade de sonhar e de transformar-se em matéria e forma diferente sobrevive ao processo da perda e de saber, no limite, se a própria perda nos ensinou algo sobre isso.

Assim como o conceito kleiniano de reparação enfatiza amor e gozo, mas não o desejo, o conceito de objeto a em Lacan começará referido ao desejo para depois tornar-se agalma amorosa e depois ainda objeto mais-de-gozar. Para Klein e Lacan reparar é concertar (em sentido estético) e consertar (em sentido ético), ou seja, reunir a capacidade de amar e ser amado, com a satisfação intrínseca obtida no processo. Contudo, isso não parece suficiente para pensar a dimensão de vida comum, superação do ressentimento e futuro reparador, para a qual a dimensão política do desejo é a expressão mais corrente. Veena Das ao estudar os massacres entre hindus e sikhs, durante a partição entre Paquistão e Índia, mas também ao pesquisar como os “reparadores” (healers) entendem sua tarefa como um dom e uma maldição[6], percebeu que o luto em contexto de injustiça, violência e suspensão de processos democráticos depende não apenas de como a comunidade define culpas passadas e responsabilidades presentes, mas fundamentalmente de como ela cria um futuro comum. A narrativa das crianças, assim como o testemunho dos sobreviventes tornam-se agentes fundamentais deste processo. A grande questão para os que vivem lutos infinitos não é de quem é a culpa ou responsabilidade, mas “como viver junto … com isso”.


[1] Dunker, C.I.L.  Lacan e a Democracia: crítica e clínica em tempos sombrios. São Paulo: Boitempo, 2022.
[2] Godley James (2018) Infinite grief: Freud, Hegel, and Lacan on the thought of death. Journal of the Theoretical Humanities. v. 23, n. 6, 2018
[3] Lima, Rafael Alves. Análise Reparável e Irreparável: o Conceito Psicanalítico de Reparação na Agenda da Transição Brasileira. Psicologia: Ciência e Profissão [online], v. 37, 2017.
[4] Klein, M. (1937) Amor, culpa e reparação. In: KLEIN, Melanie. Amor, Culpa e Reparação e outros trabalhos (1921-1945). Rio de Janeiro: Imago, 1975. p. 347-384.
[5] Fukumitsu, K. O. Vida, Morte e Luto: atualidades brasileiras. São Paulo: Summus, 2018.
[6] Das, Veena. Affliction: health, disease, poverty. New York: Fordham, 2015.

“Tunga: Conjunções Magnéticas” celebra uma obra que permanece

Tunga desenhando uma Mandala, elemento pertencente a uma das obras da série “From 'La Voie Humide'”, 2014. Foto: Gabi Carrera / Acervo Instituto Tunga

Os escritos de artistas tornaram-se estruturas onipresentes no circuito internacional de arte por volta dos anos 1960, quando novas narrativas ganharam espaço e aprofundam a natureza do exercício da crítica. Essa atitude representou uma transformação significativa na articulação da teoria da arte. A retrospectiva Tunga: conjunções magnéticas, composta de aproximadamente 300 obras expostas no Itaú Cultural e no Instituto Tomie Ohtake – com correalização do Instituto Tunga – é permeada de pensamentos, curiosamente híbridos, revelados em texto ou na fala do artista. Seu imaginário ficcional é paradigma dos insights afetivos que potencializam a construção de mitologias individuais apoiadas na ciência, arqueologia, zoologia e, sobretudo, na literatura. A psicanálise emerge em pequenos apartes narrativos, como agente de um exercício da transitoriedade com doses de razão, humor e ironia. A linguagem de Tunga, repleta de metáforas em sua essência simbólica, vivencia desvios, penetra em estruturas precárias carregadas de prazer sensual e secreta provocação.

A curadoria de Paulo Venancio Filho promove boas e amplas escolhas e coloca em pauta obras/verdades de Tunga em uma exposição sem ordem cronológica e que mistura trabalhos de todas as épocas, até 2016, ano da morte do artista. O espaço torna-se exíguo para expor tamanha produção, mas a expografia é salva pelas vitrines e ilhas instaladas pelo espaço expositivo. A infinidade de objetos, aparentemente embaralhados e desconexos, confirma a organicidade do universo de Tunga. Ele sempre gostou de bagunça. Não de ordem nem desordem. “Bagunça!”, como ele dizia. “O que tenho na mão vou mexendo até perder, para depois achar de novo. Achando o que perdi, acho o novo de novo, reencontro o novo no velho – é como a luz, a velha luz, descansada e sempre nova de novo”. Essa narrativa, tão repetida por ele, abre o livro Barroco de Lírios (1997), editado pela Cosac & Naify.

Antônio José de Barros Carvalho e Mello Mourão (1952-2016), ou simplesmente Tunga, nasceu em Palmares (PE), cresceu e viveu no Rio de Janeiro. Morou numa mansão de Cosme Velho, de seu avô materno, o senador Barros de Carvalho, colecionador de arte brasileira moderna e barroca. Ele foi um dos responsáveis pelas leituras sistemáticas de Tunga sobre grandes filósofos, escritores e poetas. Nem por isso o artista projetou intelectualizar sua arte, ele escolheu e codificou visualmente os objetos, retirando-os do cotidiano ou não, fazendo-os dialogar naturalmente com o espaço. Os textos ficcionais de Tunga são desenvolvidos com escritas que surgem a partir de mitologias pessoais com as quais ele constrói, desconstrói, reconstrói sua obra, em releituras permanentes. A palavra e a imagem, segundo ele, tocam-se intimamente, sem relação hierárquica entre elas, mas numa espécie de cópula, fricção que gera um terceiro elemento. Há muitas histórias diluídas em suas “instaurações”, termo que ele cunhou para substituir “instalações”, como em From ‘la voie humide’, (2014), considerada sua última série de esculturas. Essa composição espacial se dá por meio das possíveis configurações entre os objetos trabalhados em gesso, terracota e cristais, sustentados por uma espécie de tripé, com caldeirões e partes de corpos em referência direta à alquimia.

Como define Nicolas Bourriaud, cada exposição contém o enredo de outra, cada obra pode ser inserida em diversos programas e servir como enredo múltiplo. O conceito se encaixa na remontagem da enorme escultura Gravitação magnética, composta de chapa de aço, limalha de ferro, e longos fios de aço que em 1987 alcançavam todos os andares do pavilhão da 19ª Bienal de São Paulo, sob a curadoria de Sheila Leirner. Agora, no Tomie Ohtake, a peça não causa o mesmo impacto devido à interferência visual no espaço, aberto a outros departamentos. No entanto, vale a pena revê-la.

Outro momento especial é a videoinstalação Ão, de 1981, que marcou a estreia de Tunga no audiovisual, filmada em 16mm e looping. A projeção agigantada em uma sala no Tomie Ohtake fixa-se na curva de um túnel, como se não houvesse entrada nem saída e fosse impossível sair de dentro. Lugar, corpo, ação e movimento abrem espaço para reflexões sobre tempo/memória, elemento primordial nessa obra, cuja trilha sonora Night and Day tem interpretação de Frank Sinatra. Segundo Paulo Venancio, o espectador se vê envolvido por dois movimentos contínuos: o do filme que circula pela sala e o da imagem projetada na tela, tal como se fosse colocado “dentro” de uma escultura visual. A obra impactou Walter Zanini, que a exibiu na 16ª Bienal de São Paulo de 1981, quando foi o curador-geral.

Corpo e erotismo permeiam a produção do artista por suas significações. Segundo a psicanalista Suely Rolnik, as obras de Tunga são vibráteis por meio de atrações estranhas, de tensão erótica, de montagens inusitadas. A emblemática instalação Piscina, mostrada uma única vez em 1975, e desaparecida na mesma época sem deixar rastro, foi remontada. O trabalho exibe um tripé, sobre ele um boné com o título da obra grafado em letras de chumbo, enquanto uma bomba de ar é pendurada por corrente e uma fotografia submersa flutua em suspensão. O trabalho foi feito em 1975, nos piores momentos da ditadura no Brasil, e deixa latente o pensamento de Tunga sobre a natureza política da imagem. Esse é considerado por Paulo Venancio Filho como um dos primeiros experimentos de Tunga com objetos, que se tornaram recorrentes em sua produção. A exposição ainda resgata raridades como Desenhos Protuberantes, Vê-nus, que Tunga chama de obras decorrentes de histórias ou histórias decorrentes de obras. As narrativas são uma forma de desenho que usa como linguagem, como na série Objeto do Conhecimento Infantil, composta por aquarelas e nanquim, dos anos de 1970. Nesse sentido, a exposição se vale de registros e da preocupação do artista com a formação de um arquivo. Nessa linha evolutiva, a retrospectiva traz projetos em cerâmica e metal, esboços para futuras obras, joias desenhadas por ele, vídeos, fotografias, textos. Enfim, um resumo dos enigmas deixados por Tunga que colocam em xeque o que se anuncia, o que se vê, o que se compreende e o que permanece.

Editorial: Rumo ao VII Seminário Internacional “Cultura, Democracia e Reparação”

"A Criação n. 2: Obatalá e Exu", 1973, de Abdias Nascimento, número 58 março abril maio 2022 artebrasileiros.com.br Capa: Abdias Nascimento. Coleção Museu de Arte Negra | IPEAFRO. Foto: Fabio Souza / MAM Rio
A diretora editorial da arte!brasileiros, Patricia Rousseaux. Foto: Reprodução

Existe hoje um desafio para a cultura como um todo, que entendemos que passa pelo aprofundamento da discussão sobre como a cultura pode avançar no Brasil e no mundo, no escopo de um ambiente democrático. 

Porque, de que ambiente democrático falamos? Que democracia defendemos após ter confirmado que prevalece uma “democracia” que continua não reconhecendo o papel devastador de séculos de racismo, de opressão e autoritarismo, e onde os resultados do colonialismo continuam excluindo apenas com novas máscaras?

Que democracia é essa que permite aparelhar instituições com grupos repressivos, que faz questão de cercear a cultura e a palavra e estimula certos grupos religiosos para se instalarem em cargos de poder, num estado supostamente laico.

De dez anos para cá, se intensificaram os debates sobre várias das lutas identitárias e das grandes minorias do nosso país e no mundo. A participação cada vez mais relevante do papel da mulher na sociedade, em defesa do direito inalienável ao seu corpo, seja na defesa do aborto, seja contra o assédio; seu direito à igualdade de reconhecimento econômico e de participação politica. Seu empoderamento cada vez maior tem sido amplamente debatido e noticiado. Tudo isso coloca em pauta a necessidade de maior presença da mulher nos diferentes estamentos da sociedade.

Exposições como Mulheres Radicais na Pinacoteca (Radical Women, nos EUA), representantes na literatura como Paul Preciado e Judith Butler; ganhos constitucionais em defesa do aborto em vários países, possibilitaram enormes avanços na defesa desse papel.

A discussão em defesa da liberdade de escolha de gênero, liderada pelas comunidades LGBTQIA+, as questões ambientais, a luta pela autonomia das comunidades indígenas e pelo reconhecimento das suas terras e, por fim, uma verdadeira aceitação por parte da sociedade sobre a necessidade de encarar o debate, no Brasil, sobre a brutal história do racismo – negado e apagado por séculos no passado e persistente em nosso presente colonial, capitalista – trouxeram um fortíssimo movimento paralelo às tradicionais governanças institucionais e corporativas.

Museus se viram pressionados a encarar a contratação de profissionais negros e negras, curadorias e temáticas estudaram artistas e escritores. Foram excepcionais as exposições coletivas Histórias afro-atlânticas no Instituto Tomie Ohtake e no MASP.

Editoras começaram a publicar verdadeiras joias literárias que tinham sido esquecidas, como os livros de Carolina Maria de Jesus, que também ganhou mostra no Instituto Moreira Salles, em São Paulo. Também são exemplos Pele Negra, Máscaras Brancas, do psiquiatra e escritor francês-caribenho, Frantz Fanon; Tornar-se negro, de Neusa Santos Souza; ou Torto Arado, o romance do escritor Itamar Vieira Junior que acabou de ser adotado pela secretaria de educação da Bahia. 

O mercado de arte, claro, “descobriu” a importância da arte negra brasileira e começou a prestar atenção em excepcionais artistas nacionais que foram rapidamente reconhecidos ao serem descobertos pelo público internacional e hoje estão em coleções como Inhotim, em Minas Gerais, ou Pinault, em Paris. 

O professor e escritor Márcio Seligmann-Silva afirma em seu artigo nesta edição:

“Não existe violência física que não esteja acompanhada de violência simbólica. Estudar a história da arte afro-brasileira implica se emaranhar em continuidades centenárias de histórias de violência simbólica e física. Implica também uma possibilidade de se vislumbrar de modo claro não só a “dialética da colonização”, de que nos fala o dramaturgo e diretor teatral paulista José Fernando Peixoto de Azevedo na epígrafe, mas a própria “dialética do esclarecimento”, que Theodor Adorno e Max Horkheimer procuraram descrever enquanto a Europa ardia em chamas na primeira metade dos anos 1940.” (Adorno & Horkheimer 1986)

Após anos de ditadura, votar, claro, foi uma conquista, mas parece não ser suficiente. É necessário criar ferramentas de controle para a participação dos corpos, sugerir sistemas e debates em cima da importância de criar mecanismos econômicos para uma sociedade mais igualitária, criar ferramentas de reparação.

Uma das maiores ensaístas e pensadoras latino-americanas, Beatriz Sarlo, que neste mês faz 80 anos, falou em entrevista à Ñ REVISTA DE CULTURA, 964, do Jornal Clarín da Argentina: 

“O julgamento das três Juntas Militares, que foi encarado por pouquíssimos países após as ditaduras militares, foi um momento fundamental e de grande fortaleza ética da democracia, e requereu grande valor cívico, ético e subjetivo.”

A função do testemunho tem uma dimensão reparatória, na medida em que verbaliza e produz o reconhecimento social de uma história traumática. No Brasil, depois de dez anos, demonstrou-se que a criação de cotas na universidade deu certo, permitindo que grandes setores da população negra conquistassem melhoras no ensino e nas suas condições de emprego e salários.

Ao mesmo tempo iniciou-se um movimento em vários países europeus restituindo obras que foram levadas de seus países de origem:

“Em novembro passado, por exemplo, 26 obras de arte do antigo Reino de Dahomey, que estavam expostas no Museu du Quai Branly, em Paris, foram devolvidas ao Benim. Desde 2020, por iniciativa do presidente francês Emmanuel Macron, está em vigor uma lei que facilita a devolução de obras apreendidas no período colonial.”
Paris, restauro e cultura da memória, edição 57, arte!brasileiros.

A Smithsonian Institution em Washington, D.C concordou em devolver a maior parte de sua coleção de bronze de Benin para a Nigéria como parte de um importante acordo de restituição, pressionando outros museus em todo o mundo a seguir o exemplo.

arte!brasileiros dá a largada então, para incentivar este debate no Brasil. Nesta edição, escolhemos um elenco especial de pensadores, críticos de arte, historiadores, psicanalistas e jornalistas que trazem, a partir de diferentes perspectivas, elementos para esta discussão e que tem como objetivo convocar desde já para a realização do nosso VII Seminário: Cultura, Democracia e Reparação, a ser realizado na terceira semana de setembro.