A ancestralidade de matriz africana e a memória afetiva dos lugares onde viveu são as principais referências para os trabalhos de Rafael Pereira, que desde os 24 anos dedica-se exclusivamente à profissão de artista, vendendo seu trabalho nas ruas das diversas cidades Brasil afora. O artista atualmente é representado pela Galeria Estação. Foto: Patricia Rousseaux
Embora este também seja um sonho bastante distante, está muito mais próximo do que o sonho de uma idade de ouro. No entanto, o primeiro requisito é a memória. A memória fraca beneficia a nós mesmos, mas prejudica os nossos descendentes. A capacidade de esquecer permite que as pessoas abandonem passo a passo o sofrimento que um dia conheceram; mas a capacidade de esquecer também leva as pessoas a repetirem os erros de seus predecessores. Lu Xun (1881-1936), sobre o direito feminino à igualdade em relação aos homens (XUN, L., 2017, p. 259)
Para os gregos antigos, à certa altura os inventores da experiência democrática, falar grego era suficiente para ser considerado grego ou pelo menos não ser considerado bárbaro. Em um certo período da história daquele país a democracia estava ligada à fala e, portanto, à capacidade de persuasão. Ser cidadão, contudo, já era algo mais complexo, porque era um conceito associado à tomada de decisões que afetavam os rumos não só dos concidadãos como um todo, mas também da classe dirigente e de sua capacidade de perpetuar seus privilégios. O poder econômico, desde os gregos antigos, portanto, cuidou para que aqueles que tomassem as decisões que afetassem a tudo e a todos fossem exatamente os atores advindos de uma elite: uma raça de pessoas que defenderia seus conflituosos e, não raro, contraditórios interesses privados na polis (cidade), ou seja, no mundo político.
Por outro lado, nos momentos históricos em que as elites levaram autocrática ou oligarquicamente os rumos de todos ao caos ou à beira da destruição, foram os períodos em que se tornaram mais evidentes a presença nefasta de instâncias que se quiseram acima da política. Também no Brasil, uma certa afrodescendência jogada para debaixo do tapete devido à vergonha que significou a escravidão para a história do país, outrora escondida, hoje se escancara à luz de todos via internet, publicidade e meios de comunicação, auxiliando-nos, ambiguamente, a vermos a democracia concreta como a única luz no fim do túnel do capitalismo tardio.
O declínio grego antigo, que o historiador de filosofia Will Durant chamou de “suicídio da Grécia”, esteve ligado ao declínio da liberdade e da democracia. Durante o segundo Império Ateniense “graves denúncias costumavam ser imputadas aos mais preeminentes banqueiros, e o povo os encarava com a mesma inveja, admiração e desagrado com que os pobres favorecem os ricos em todos os tempos. A substituição da riqueza imóvel pela móvel produziu uma luta febril pelo dinheiro, e o idioma grego teve de inventar as palavras pleonexia, para classificar esse apetite por ‘mais e mais’ e outra, chrematistikê, para a feroz conquista da fortuna. Produtos, serviços e pessoas eram cada vez mais julgados à luz do dinheiro e da propriedade. Faziam-se e desfaziam-se de fortunas com rapidez nunca vista, e eram esbanjadas em toda sorte de extravagâncias, num exibicionismo que teria escandalizado a Atenas de Péricles.” (DURANT, 1957, p. 148)
A igualdade perante a lei, a participação direta nos rumos da nação, bem como a garantia legal de expor, discutir e votar as suas opiniões nas assembleias públicas não só são o suprassumo da democracia, como o acesso a isso é o suprassumo do que é ser cidadão. Aqueles que forem excluídos da igualdade estando acima ou abaixo das leis – sendo por coerção ou pela própria vontade alijados da participação política ou aqueles minimizados social, física ou psiquicamente a ponto de não poderem expor, discutir e votar as suas opiniões em público – são pessoas privadas, barradas da cidadania, alheios do que é ser cidadão.
No sistema democrático de consumidores, excetuando os sonegadores, aqueles que forem pagantes de impostos que se assumirem em suas responsabilidades cidadãs, independente da cor de pele, origem ou status social tendem a ser chamados cidadãos. No limite, mesmo quando se trata de grupos populacionais de extrema pobreza, eles compõem a economia do país quando participam da circulação de mercadorias, compra e venda ou prestação de serviços, compondo uma porcentagem do quadro econômico, ainda que muitas vezes não tenham nenhuma porcentagem na participação política.
Marginalizados são coagidos a não participarem do debate público. Porém, mesmo estes e seus ancestrais ajudaram a construir o conjunto que forma o Estado, o mercado e a sociedade. A taxa de homicídio dos negros trazidos pelos Atlas da Violência (IPEA, 2021), por exemplo, indicou que o número de óbitos por homicídio esteve em torno de 77% em 2021 (esse mesmo dado, em 2008, girava em torno de 64,55%). Ser negro significa ter duas vezes mais chances de morrer assassinado no Brasil atual. Porém, mesmo com esse chamado “genocídio”, segundo dados do IBGE, 54% da população é negra. Tal número pode ser ainda maior a considerar que esses dados são colhidos por meio de autodeclaração e uma grande parte dos afrodescendentes não se assumiram ainda como mestiços ou negros.
Para aqueles que duvidam da necessidade de reparação do processo escravagista que durou oficialmente cerca de 400 anos, lançamos a seguinte reflexão apenas para ficarmos nos campos profissional e educativo: o reino português foi o responsável direto pela escravização negra e indígena brasileira; foram milhões de pessoas escravizadas desde cerca de 1530 até a independência do Brasil em 1822. Eles proibiram que os africanos e seus descendentes se alfabetizassem e mesmo os brancos pobres, já que os portugueses jamais abriram uma universidade sequer no Brasil. Quantos negros são hoje chamados a frequentarem universidades com bolsas de estudo ou participarem de editais, projetos socioeducativos ou profissionalizantes em Portugal? Depois da independência, a realeza brasileira assumiu o controle escravagista até seu fim na Proclamação da República em 1889. Que responsabilização os herdeiros da família real luso-brasileira ou os governos que os sucederam na primeira e na segunda república atribuíram para si em relação a todo período exploratório afro-indígena anterior e o período de abandono posterior? Ou seja, os governos português e brasileiro e ainda outros foram os responsáveis diretos pela escravidão e pela inexistência de reparação social dos danos causados por ela aos seus descendentes; quais argumentos reais os absolveria desta e de outras responsabilidades junto aos afrodescendentes marginalizados?
Dando espaço para debates intermináveis, a grande mídia se mostra contra a reparação porque coloca em dúvida a existência da violência histórica naturalizando-a no dia a dia. Mas seriam inocentes os afrodescendentes que esperassem da grande mídia ou do Estado Brasileiro ou, pior ainda, do governo português essa reparação. Mas os jovens afrodescendentes têm demonstrado estar cientes disso pelo grande descontentamento que vem apresentando nas redes sociais. Eles sabem que o racismo histórico encontrou meios de se perpetuar e que a ampliação do fosso social e a criação de uma marginalidade cria também a ilusão de superioridade em certos grupos que se sentem diferenciados ou acima das leis – isto ainda é uma pedra no sapato do futuro da democracia no país.
Empurrar negros para a marginalidade, uma tática racista que funcionou por um certo espaço de tempo, não só é hoje disfuncional como se volta em grande onda contra aqueles responsáveis pela marginalização. A ampliação e o aprofundamento da cidadania é um dever cidadão; atitude indeclinável de quem vive em sociedade. Direito de ser, direito de existir, direito de ir e vir, entre tantos outros, são sempre direitos de tempos em tempos questionados aos marginais ou aos considerados “marginais da vez”. A ampliação e o aprofundamento cidadão moverá obrigatoriamente para dentro do corpo social toda “ovelha desgarrada”, porque simples e logicamente não há humano fora de seu gênero, bem como não há humano fora da política – ainda que seja aquele excluído de todos os direitos. O acesso a bens culturais, acesso à saúde, à ciência e às artes, acesso ao pensamento público, significa direito humano: o acesso à informação e à produção humana, acesso à educação, alimentação, trabalho e lazer etc. significa ser humano, simplesmente.
O marginalizado é desumanizado. Ele tem espaço na vida, por mais que esta seja limitante e limitada, mas o seu acesso ao bem-estar social, à produção cultural total é restrito ou bloqueado pela ausência do espaço que teria naturalmente na economia política. Mas mesmo que haja racionalidade na identificação de que há indiferenciação entre poder econômico e poder político num país de bases escravagistas, vivemos em um tipo de democracia formal que dá a entender ilusoriamente que qualquer cidadão tem acesso a participação política apenas pelo voto, o que não é verdade.
Pensemos mesmo assim, nos negros com poder econômico. Eu não me refiro aos negros músicos ou técnicos de empresa cujo poder aquisitivo lhes garante ter acesso aos carros de entrada das grandes montadoras. Sequer eu me refiro aqui aos negros produtores de grandes eventos ou os que seguiram carreira na medicina, advocacia (especialmente a criminal), engenharia ou que tiveram acesso a empregos técnicos em multinacionais e que lhes tornaram capazes de acessar com pagamento a prazo as suas SUVs e picapes – em suma, eu não me refiro ao negro de classe média. Eu me refiro a aqueles jogadores de alta performance que assim que se tornam milionários “embranquecem”, sonegam impostos, defendem interesses de classe, mas que continuam sendo chamados de “macacos” na Europa ou desprezados por juízes, ou ainda reduzidos a objetos por mulheres que são igualmente reduzidas a objetos por aqueles. O poder econômico desses atletas não os absolve de sua negritude – principalmente nos locais onde eles não podem se esconder atrás de seu suposto heroísmo. A humanização negra em um “mundo branco” é um aspecto que vai além da democracia formal e do poder econômico. Ser negro é ser pária dentro de seu país, mas também fora dele.
É por isso que as expressões do multiculturalismo com as suas revoltas de internet, reformas ortográficas oficiosas de superfície, infantilismos, “caça às bruxas” ou “cancelamentos” de espírito medievais, tentativa de auto-fundamentação do politicamente correto, o identitarismo carnavalesco e a guerra de palavras e palavrões são apenas o fim do túnel, não são expressões da democracia do fim do túnel.
Ainda que a juventude (mal)criada e (mal)educada pela internet (informados apenas pelo Facebook, Twitter, Instagram etc., e pelos pseudossábios que postam vídeos sobre quaisquer assuntos em troca de likes e superchats no Youtube) se sinta como maioria “empoderada” (narciso diante do espelho), a ditadura da maioria ainda é uma ditadura.
Particularmente os coachs e youtubers, estes que mais amplamente “nadam de braçada” no mar da ignorância e do autoritarismo, são aqueles antigos “especialistas” que apareciam na TV para moldar o “ser-informado” e sua sociabilidade. Ensinavam como se comportar, como ser asseado, isto é, ensinavam desde como tratar de unha encravada ou se livrar da caspa, até como o pobre conseguiria enriquecer apenas aplicando na bolsa de valores! A mesma indústria que, por meio da publicidade, intimida o ser social diz que irá salvá-lo da intimidação. Talvez um dos exemplos crassos seja o de como algumas mulheres são forçadas a se entupir de guloseimas e ao mesmo tempo são forçadas a não serem gordas; quem cria a gordofobia é quem cria a glutonaria e inventa que a felicidade “pode estar a seu alcance: basta clicar aqui”. O mundo da suposta facilidade é um dos mais tirânicos mundos possíveis. A pós-verdade aplicada à internet tem o mesmo objetivo que a publicidade tinha na televisão: formar internautas passivos, dóceis, submissos, moldáveis dentro do espectro de “consumidor de conteúdos”.
No embate entre a “expectativa versus realidade” (tornada meme para ser deglutida no universo do aceitável), a enorme diferença entre o título e miniatura caça-níqueis dos vídeos e seu verdadeiro conteúdo é naturalizada, tornada chiste, assimilada e aceita como “ossos do ofício”. Na sociedade publicizada o meio se tornou o fim, o sonho de classe média não é mais ter uma casa e um carro, mas sim ter seu vídeo recomendado, seu post viralizado, sua vida exposta para o maior número de pessoas. Pois assim é possível ser recomendado, ter seu post viralizado e poder recomeçar o ciclo vicioso que não levará a maioria dos “criadores” de conteúdo e seus (consumo)seguidores a lugar algum, nem mesmo, às vezes, à monetização de um lado ou entretenimento do outro – apenas perda de tempo e aumento do autoritarismo geral. Via de regra, com a invasão intrometida dos cookies – que impedem praticamente dar um passo sequer em qualquer site sem a captura de informações pessoais valiosas dos internautas – e com a atual forma de pesquisa do Google, entre outras – cada vez mais direcionada, mercantilizada e minimizada, porque já não entrega resultados livres e abrangentes sem que haja intermediação monetária de algum tipo -, a internet que já foi o espaço da liberdade é hoje o biscoitinho dirigido ao dragão e somos nós que o alimentamos, desavisados, com nossos cliques cheios de empolgação.
Nenhuma metáfora é melhor para a enorme perda de tempo de navegação nos smartphones do que a ideia de usar o dedo na telinha para “enxugar gelo” e trabalharmos como “cliqueiros” gratuitamente para empresas bilionárias que financiam o autoritarismo mundial. A ideia de ser produto à venda não se coaduna com a de viver ou trabalhar sob um sistema democrático e um regime republicano. Se o que é apresentado como entretenimento vira vício, trabalho ou manipulação, estamos falando de uma enfermidade do fim de uma era e não início de outra – pois não haveria futuro sem uma luz no fim do túnel.
Sendo jogados no meio da disputa atual entre interesses mercantis e interesses públicos, os afrodescendentes e seus defensores, agora munidos de seus smartphones, apareceram como fenômeno consistente na internet. Porém, contraditoriamente, devido à grande força raivosa da busca por direitos pelas redes sociais, como uma “luz no fim do túnel”, parecem querer fazer o exercício da democracia, em vez de aceitar passivamente “enxugar gelo” diante da emergência das modificações sociais que eles exigem. A percepção da afrodescendência na internet, nesse sentido, tem se tornado um alimento fértil para o exercício cidadão virtual promovendo um ponto de ebulição nesse exato momento de descenso democrático, avivado também pela internet. Na medida em que um grupo gigantesco é chamado a ancorar-se nessa “baía” tomada militarmente por forças retrógradas e antidemocráticas, ainda que sejam aceitos apenas como consumidores, esta inserção afro-brasileira pode também significar um ponto de inflexão: na aparência de democracia, a necessidade agora premente de inserção da diversidade no quadro publicitário também gera entre os jovens cultura e consciência negras – eles não parecem e não querem aceitar tão pouco!
Aqueles que foram chamados a participar do mundo mercantil e eram excluídos da cidadania e do consumo agora também desconfiam daqueles que os chamam. Aqueles que por meio de sua consciência negra vêm percebendo que ser chamado ao consumo significa apenas ser “consumidor” negará esta participação à sua própria maneira nesta esfera em que tudo tem preço, tudo se compra, tudo se vende. Ao contrário, este novo sujeito recentemente inserido sabe que a inclusão negra no mundo mercantil o torna mais uma entre outras mercadorias. Por isso ele também tem usado de sua própria capacidade e originalidade para encontrar meios de afirmar-se na esfera pública como cidadão e rejeitar o rótulo de mero consumidor de produtos direcionados a afrodescendentes.
Independente dos métodos que serão utilizados para a real inserção social dos afrodescendentes, essa inserção só será duradoura combatendo-se a condescendência e estimulando o protagonismo e a autogestão. Para isso – como foi indicado na epígrafe deste artigo, com a frase do escritor chinês Lu Xun -, exemplos históricos devem ser levados em consideração. Porque, quando ruíram ou foram minimizados historicamente os modelos sociais marginalizantes como o sistema de servidão feudal, a escravidão mercantilista, entre outros sistemas exploratórios seja do tipo latifundiário, comercial ou industrialista, as figuras marginalizadas trocaram de status, mas permaneceram as mesmas. O servo se tornou camponês, o proletário se tornou “precariado” (isto é, trabalhador “precário”, sem aqueles direitos trabalhistas conquistados tão duramente pelos proletários) etc. Ou seja, os ávidos por cidadania continuaram os mesmos que estiveram necessitados de cidadania em um mundo que ainda os marginalizava. Esses exemplos são tomados ao mesmo tempo em que podem ser levados em consideração os exemplos da luta de emancipação feminina, na qual as mulheres “ganharam, mas não levaram” – aprendendo a duras penas que a sua independência social não estava atrelada à sua independência no campo dos hábitos e dos costumes (inclusive dentro de casa). A experiência feminina mostrou que todos os seres sociais detêm os mesmos princípios de luta: a conjunta luta democrática e cidadã de inclusão política de todos os grupos marginalizados.
Será este processo de inserção social que começa agora pela internet será bem-sucedido em sua tentativa de se transferir do mundo virtual para o das relações políticas na esfera pública? Conquistarão os afrodescendentes o tão sonhado protagonismo e independência, sem os quais ninguém se emancipa do fardo de ser tratados por todos como mero número, mero consumidor? E ainda, os ativistas virtuais, agora alçados ao mundo da democracia formal, serão maduros o suficiente para transferir as suas forças para o campo da democracia real? Isto só o tempo nos dirá!
Pode-se não gostar muito da falta de modos dos recém inseridos ou de como esta inserção está sendo feita, mas não se pode dizer que a democracia não pode ser fortalecida com esta inserção inicialmente virtual e com isso transformar o veneno em remédio. Excetuando, portanto, aqueles casos em que pessoas ou grupos de privilégios são francamente ou dissimuladamente antidemocráticos, todos os outros grupos que têm consciência de que só há uma luz no fim do túnel aplaudirão a admissão negra, a autodeclaração afrodescendente do Brasil como um dos principais entre os novos fôlegos para a consistência, continuidade e aprofundamento da luta democrática.
Referências
DURANT, Will. História da Civilização. Segunda Parte: Nossa Herança Clássica (Tomo II). São Paulo: 3.ed. Companhia Editora Nacional; CODIL, 1957. XUN, LU. In: CHENG, Eileen J.; DENTON, Kirk A. (Ed.). Jottings under Lamplight. Cambridge: Harvard University Press, 2017.
"Pequena Manifestação", de Joana Amador e Mariana Lacerda, que esteve em cartaz no MuBE, em São Paulo. Foto: Patricia Rousseaux
Nos acostumamos a pensar o luto como processo finito, limitado e circunscrito no tempo. Quando se estendem por muito tempo tornam-se suspeitos e flertam com o patológico. Ainda assim há lutos que atravessam gerações em torno da escravidão, do desaparecimento político, da violência de Estado. Há lutos traumáticos que tocam cidades inteiras como Mariana ou Santa Maria. Há lutos pela perda da terra, do corpo e de nosso modo de vida, como o que afetou indígenas e ribeirinhos como os afetados pela barragem de Belo Monte em Altamira. Para Freud, o luto é um dispositivo de simbolização e um afeto normal. Mas o que seria exatamente um afeto normal?
Não seria melhor reservar para certas situações irreparáveis a noção de luto infinito? Reconhecendo que nelas a perda é indefinidamente não individualizável, não simbolizável nem substituível? Em Freud tais lutos incuráveis são marcados pela violação da ordem geracional dos desaparecimentos, por exemplo o luto de um filho. Lutos que não são superáveis pela força ou intensidade da dor, mas pela deliberação, mais ou menos consciente, de que neste caso, neste luto, não haverá fim. Ele se ligará perpétua e deliberadamente a outros lutos sem fim, sem corpo, sem túmulo. Um luto finito torna-se infinito por muitas razões: uma vida perdida elevada a dignidade de Coisa, valor comum para vidas vindouras, ideal heroico, santo, sábio ou guerreiro que mimetiza a imortalidade como figura do infinito.
Mas há também lutos que são patologicamente finitos. Aliás, este é a resposta neurótica diante da perda: individualizar culpados, odiar para esquecê-los, expedir regras na ilusão de “desacontecê-los”, finalmente, desimplicar-se de partilhar, coletivamente, as razões, causas e motivos da perda. Depois disso é só esperar por outra maldade do Outro, ou por outro vacilo do sujeito.
“A Logo For America (Miami Beach)”, Alfredo Jaar, 2018. Foto: Edouard Frapoint / Cortesia Galeria Luisa Strina
Perder uma pessoa, uma nação ou um ideal faz diferença, ainda que o luto se aplique aos três casos indistintamente. Quando perdemos pessoas e perdemos o espírito de uma nação, muitas vezes recorremos, ao longo da história, a um nome para o que foi perdido: democracia. Alguns dirão que a ideia de democracia originada na antiguidade realizou-se em instituições da modernidade. Outros argumentarão que esta é uma realização incompleta, pois a democracia permanece como ideal, ou seja, a ideia de uma comunidade por vir, capaz de ser-para-todos e a todos incluir[1]. Outros ainda consideram que a aplicação da ideia de democracia a pessoas e ideias é uma falsificação do termo. Democracia nunca existiu, logo nunca existirá. É só um nome que damos a certos regimes políticos não autocráticos. O Brasil dos anos 2013-2020 tem sido descrito como um país em democracia regressiva, ou seja, marcado pela precarização do funcionamento institucional, retração do uso livre da palavra e violação de direitos humanos. Perdas que demandam lutos locais, mas que se conectam com a cadeia de lutos infinitos que organiza e define uma determinada unidade simbólica.
Há artistas, como Anselm Kiefer, Alfredo Jaar, Nazareth Pacheco e Itamar Vieira que se dedicaram especificamente ao trabalho de luto e reparação, assim como há testemunhas éticas de desastres inomináveis, como Sojourner Truth, Primo Levi ou a compilação de sonhos feita por Charlotte Bernhardt, mas sua mensagem torna-se realmente um compromisso com o futuro quando nos implica uma espécie de trato entre viventes, morrentes e seres vindouros. Este compromisso fica aquém e além das formas jurídicas e das trocas econômicas. Assim como há vidas que nos aparecem como não inteiramente terminadas, como Marielle Franco, e mundos que ainda não foram criados, o ato ético-estético parece preencher o infinito daquilo que não tem preço e supera o nosso sistema de valores finitos.
A noção de luto infinito foi introduzida por James Godley[2] a partir de seus estudos históricos sobre o massacre de 20 mil pessoas na cidade americana de Buffalo, durante a guerra americana da Secessão (1861-1865). Examinando os relatos jornalísticos e testemunhais da ocasião ele chegou na ideia de que um número tão elevado de mortos, em relação à população sobrevivente, só podia despertar um sentimento de luto desindividualizado e infinito. Ou seja, a combinação entre o luto de um e o luto dos outros com os quais se vive é tão extensa e intensa que doravante o luto se tornará o sentimento dominante nesta comunidade. Os sobreviventes reconstroem suas vidas, o afeto de tristeza diminui, mas as narrativas remanescentes permanecem determinadas por esta perda coletiva. A indenização, reparação ou retorno ao laço social acaba acontecendo apenas e tão somente pela passagem de gerações e torna-se um dos problemas mais insidiosos na clínica do luto coletivo. Resta saber se teremos uma comunidade de origem ou uma comunidade de destino.
Melanie Klein introduziu o conceito de reparação em psicanálise a partir de duas conotações principais: retomar um lugar (Wiederherstellung) e tornar algo novamente bom (Wiedergutmachen). Tudo depende do conceito de objeto que se tenha em mente[[3]: ético, estético ou político. Recuperar um lugar, no sentido de se reestabelecer, responde ao luto como trauma, como “perda do chão” e como “saída de si” próprio no instante de dor e loucura transitória que acompanha os primeiros movimentos do luto. Um lugar é uma instância simbólica, referida a estrutura e a história que nos posiciona em relação ao Outro. Tornar novamente bom, é um processo relativo à recuperação do prazer, da satisfação e do gozo. Para Melanie Klein a reparação pode ser definida, opositivamente, pelos seguintes processos[4]:
Sentimento de segurança e gratificação ou complexo de inferioridade e voracidade por reconhecimento.
Sensação de responsabilidade, solidariedade genuína e capacidade de perdoar e ser perdoado ou sentimento de culpa, ânsia por sacrifícios.
Capacidade de compartilhar e restituir ou vontade de vingança e ressentimento.
Fantasias de reparação e sacrifícios amorosos ou incapacidade de amar, dar e receber, envelhecer e realizar-se através dos filhos.
A reparação é o antídoto para o luto, mas também para os processos que atacam nossa capacidade de amar e para o que Klein chamou de posição esquizo-paranoide. Entenda-se por tal posição o processo de cisão do objeto, que ocasiona a fragmentação ou parcialização do Eu. Super investido em seu lugar narcísico, perseguido com ódio e culpa por fantasias sádicas ou masoquista, o Eu tende a defender-se da angústia mobilizando estratégias como a identificação projetiva e a cisão (splitting), base sobre a qual surgem os fenômenos de negacionismo. O processo de recuperação do lugar do eu, com redução de idealizações e projeções envolve, portanto, uma integração do objeto. A partição entre bom-prazer e mal-desprazer dará origem a uma nova unidade, com a correlata aceitação do “mal-desprazeirozo” no interior do próprio Eu.
Autores pós-kleinianos observaram que esta reabilitação do objeto para o prazer e esta recomposição do objeto para a relação explicam uma certa disposição à sublimação estética, que faz acompanhar a posição depressiva. A escrita, a produção de imagens e a criação de efeitos sensoriais criam uma perspectiva convergente entre a linha mimética e a linha catártica da reparação, doravante associada com a posição depressiva. Neste sentido, o luto se resolve quando se transforma, por meio da reparação, em uma unidade ética e estética. Isso se poderá verificar empiricamente na simetria entre o quê se “diz-faz” e o modo como se “diz-faz”. Congruência entre forma e conteúdo que constitui critério esperado para monumentos, museus e obras de arte que se oferecem em função reparadora.
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"MOMENT", Nazareth Pacheco. Foto: Cortesia da artista e da Galeria Kogan Amaro
"MOMENT", Nazareth Pacheco. Foto: Cortesia da artista e da Galeria Kogan Amaro
"MOMENT", Nazareth Pacheco. Foto: Cortesia da artista e da Galeria Kogan Amaro
"MOMENT", Nazareth Pacheco. Foto: Cortesia da artista e da Galeria Kogan Amaro
"MOMENT", Nazareth Pacheco. Foto: Cortesia da artista e da Galeria Kogan Amaro
"MOMENT", Nazareth Pacheco. Foto: Cortesia da artista e da Galeria Kogan Amaro
Uma boa síntese deste argumento se encontrará na prática japonesa do katsugui, por meio do qual uma peça de cerâmica, geralmente um utensílio doméstico, pode ser consertado por meio de métodos tão especificamente implicados pelo reparador que o produto se torna ainda mais valioso e singular do que ele era antes. O katsugui tem sido usado por muitos estudiosos do luto[5] para exemplificar o processo de reparação que o luto demanda, especialmente o fato de que ao final o término do luto produz uma sensação e agradável libertação. Tal tipo de reparação requer uma ética específica para ser compreendida, por exemplo, a ética do whabi-sabi, onde a valorização da precariedade e da simplicidade na arte de viver são elementos centrais. A noção de resiliência é insuficiente, pois não se trata de saber se uma pessoa é capaz de voltar à situação inicial sem grande deformação, mas de saber se sua capacidade de sonhar e de transformar-se em matéria e forma diferente sobrevive ao processo da perda e de saber, no limite, se a própria perda nos ensinou algo sobre isso.
Assim como o conceito kleiniano de reparação enfatiza amor e gozo, mas não o desejo, o conceito de objeto a em Lacan começará referido ao desejo para depois tornar-se agalma amorosa e depois ainda objeto mais-de-gozar. Para Klein e Lacan reparar é concertar (em sentido estético) e consertar (em sentido ético), ou seja, reunir a capacidade de amar e ser amado, com a satisfação intrínseca obtida no processo. Contudo, isso não parece suficiente para pensar a dimensão de vida comum, superação do ressentimento e futuro reparador, para a qual a dimensão política do desejo é a expressão mais corrente. Veena Das ao estudar os massacres entre hindus e sikhs, durante a partição entre Paquistão e Índia, mas também ao pesquisar como os “reparadores” (healers) entendem sua tarefa como um dom e uma maldição[6], percebeu que o luto em contexto de injustiça, violência e suspensão de processos democráticos depende não apenas de como a comunidade define culpas passadas e responsabilidades presentes, mas fundamentalmente de como ela cria um futuro comum. A narrativa das crianças, assim como o testemunho dos sobreviventes tornam-se agentes fundamentais deste processo. A grande questão para os que vivem lutos infinitos não é de quem é a culpa ou responsabilidade, mas “como viver junto … com isso”.
[1] Dunker, C.I.L. Lacan e a Democracia: crítica e clínica em tempos sombrios. São Paulo: Boitempo, 2022. [2] Godley James (2018) Infinite grief: Freud, Hegel, and Lacan on the thought of death. Journal of the Theoretical Humanities. v. 23, n. 6, 2018 [3] Lima, Rafael Alves. Análise Reparável e Irreparável: o Conceito Psicanalítico de Reparação na Agenda da Transição Brasileira. Psicologia: Ciência e Profissão [online], v. 37, 2017. [4] Klein, M. (1937) Amor, culpa e reparação. In: KLEIN, Melanie. Amor, Culpa e Reparação e outros trabalhos (1921-1945). Rio de Janeiro: Imago, 1975. p. 347-384. [5] Fukumitsu, K. O. Vida, Morte e Luto: atualidades brasileiras. São Paulo: Summus, 2018. [6] Das, Veena. Affliction: health, disease, poverty. New York: Fordham, 2015.
Tunga desenhando uma Mandala, elemento pertencente a uma das obras da série “From 'La Voie Humide'”, 2014.
Foto: Gabi Carrera / Acervo Instituto Tunga
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Tunga desenhando uma Mandala, elemento pertencente a uma das obras da série “From 'La Voie Humide'”, 2014.
Foto: Gabi Carrera / Acervo Instituto Tunga
"Vênus de Âmbar", da série “From 'La Voie Humide'”, de Tunga, 2014. Foto: Gabi Carrera / Cortesia Mendes Wood DM São Paulo, Nova York e Bruxelas
Os escritos de artistas tornaram-se estruturas onipresentes no circuito internacional de arte por volta dos anos 1960, quando novas narrativas ganharam espaço e aprofundam a natureza do exercício da crítica. Essa atitude representou uma transformação significativa na articulação da teoria da arte. A retrospectiva Tunga: conjunções magnéticas, composta de aproximadamente 300 obras expostas no Itaú Cultural e no Instituto Tomie Ohtake – com correalização do Instituto Tunga – é permeada de pensamentos, curiosamente híbridos, revelados em texto ou na fala do artista. Seu imaginário ficcional é paradigma dos insights afetivos que potencializam a construção de mitologias individuais apoiadas na ciência, arqueologia, zoologia e, sobretudo, na literatura. A psicanálise emerge em pequenos apartes narrativos, como agente de um exercício da transitoriedade com doses de razão, humor e ironia. A linguagem de Tunga, repleta de metáforas em sua essência simbólica, vivencia desvios, penetra em estruturas precárias carregadas de prazer sensual e secreta provocação.
A curadoria de Paulo Venancio Filho promove boas e amplas escolhas e coloca em pauta obras/verdades de Tunga em uma exposição sem ordem cronológica e que mistura trabalhos de todas as épocas, até 2016, ano da morte do artista. O espaço torna-se exíguo para expor tamanha produção, mas a expografia é salva pelas vitrines e ilhas instaladas pelo espaço expositivo. A infinidade de objetos, aparentemente embaralhados e desconexos, confirma a organicidade do universo de Tunga. Ele sempre gostou de bagunça. Não de ordem nem desordem. “Bagunça!”, como ele dizia. “O que tenho na mão vou mexendo até perder, para depois achar de novo. Achando o que perdi, acho o novo de novo, reencontro o novo no velho – é como a luz, a velha luz, descansada e sempre nova de novo”. Essa narrativa, tão repetida por ele, abre o livro Barroco de Lírios (1997), editado pela Cosac & Naify.
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Sem título, Tunga, 2007. Foto: Jaime Acioli
Sem Título, Tunga, 1990. Foto: Gabi Carrera / Instituto Tunga
Sem título, da série "Gravitação Magnética", Tunga, 1980. Foto: Gabi Carrera / Instituto Tunga
Antônio José de Barros Carvalho e Mello Mourão (1952-2016), ou simplesmente Tunga, nasceu em Palmares (PE), cresceu e viveu no Rio de Janeiro. Morou numa mansão de Cosme Velho, de seu avô materno, o senador Barros de Carvalho, colecionador de arte brasileira moderna e barroca. Ele foi um dos responsáveis pelas leituras sistemáticas de Tunga sobre grandes filósofos, escritores e poetas. Nem por isso o artista projetou intelectualizar sua arte, ele escolheu e codificou visualmente os objetos, retirando-os do cotidiano ou não, fazendo-os dialogar naturalmente com o espaço. Os textos ficcionais de Tunga são desenvolvidos com escritas que surgem a partir de mitologias pessoais com as quais ele constrói, desconstrói, reconstrói sua obra, em releituras permanentes. A palavra e a imagem, segundo ele, tocam-se intimamente, sem relação hierárquica entre elas, mas numa espécie de cópula, fricção que gera um terceiro elemento. Há muitas histórias diluídas em suas “instaurações”, termo que ele cunhou para substituir “instalações”, como em From ‘la voie humide’, (2014), considerada sua última série de esculturas. Essa composição espacial se dá por meio das possíveis configurações entre os objetos trabalhados em gesso, terracota e cristais, sustentados por uma espécie de tripé, com caldeirões e partes de corpos em referência direta à alquimia.
Como define Nicolas Bourriaud, cada exposição contém o enredo de outra, cada obra pode ser inserida em diversos programas e servir como enredo múltiplo. O conceito se encaixa na remontagem da enorme escultura Gravitação magnética, composta de chapa de aço, limalha de ferro, e longos fios de aço que em 1987 alcançavam todos os andares do pavilhão da 19ª Bienal de São Paulo, sob a curadoria de Sheila Leirner. Agora, no Tomie Ohtake, a peça não causa o mesmo impacto devido à interferência visual no espaço, aberto a outros departamentos. No entanto, vale a pena revê-la.
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"Gravitação Magnética", Tunga, 1987. Exposta na 19ª Bienal Internacional de São Paulo
Foto: Rômulo Fialdini / Tempo Composto
Still de "Ão", Tunga, 1981. Foto: Murilo Salles / Acervo Instituto Tunga
"Objeto do Conhecimento Infantil", Tunga, 1974. Foto: Jaime Acioli
Outro momento especial é a videoinstalação Ão, de 1981, que marcou a estreia de Tunga no audiovisual, filmada em 16mm e looping. A projeção agigantada em uma sala no Tomie Ohtake fixa-se na curva de um túnel, como se não houvesse entrada nem saída e fosse impossível sair de dentro. Lugar, corpo, ação e movimento abrem espaço para reflexões sobre tempo/memória, elemento primordial nessa obra, cuja trilha sonora Night and Day tem interpretação de Frank Sinatra. Segundo Paulo Venancio, o espectador se vê envolvido por dois movimentos contínuos: o do filme que circula pela sala e o da imagem projetada na tela, tal como se fosse colocado “dentro” de uma escultura visual. A obra impactou Walter Zanini, que a exibiu na 16ª Bienal de São Paulo de 1981, quando foi o curador-geral.
Corpo e erotismo permeiam a produção do artista por suas significações. Segundo a psicanalista Suely Rolnik, as obras de Tunga são vibráteis por meio de atrações estranhas, de tensão erótica, de montagens inusitadas. A emblemática instalação Piscina, mostrada uma única vez em 1975, e desaparecida na mesma época sem deixar rastro, foi remontada. O trabalho exibe um tripé, sobre ele um boné com o título da obra grafado em letras de chumbo, enquanto uma bomba de ar é pendurada por corrente e uma fotografia submersa flutua em suspensão. O trabalho foi feito em 1975, nos piores momentos da ditadura no Brasil, e deixa latente o pensamento de Tunga sobre a natureza política da imagem. Esse é considerado por Paulo Venancio Filho como um dos primeiros experimentos de Tunga com objetos, que se tornaram recorrentes em sua produção. A exposição ainda resgata raridades como Desenhos Protuberantes, Vê-nus, que Tunga chama de obras decorrentes de histórias ou histórias decorrentes de obras. As narrativas são uma forma de desenho que usa como linguagem, como na série Objeto do Conhecimento Infantil, composta por aquarelas e nanquim, dos anos de 1970. Nesse sentido, a exposição se vale de registros e da preocupação do artista com a formação de um arquivo. Nessa linha evolutiva, a retrospectiva traz projetos em cerâmica e metal, esboços para futuras obras, joias desenhadas por ele, vídeos, fotografias, textos. Enfim, um resumo dos enigmas deixados por Tunga que colocam em xeque o que se anuncia, o que se vê, o que se compreende e o que permanece.
"A Criação n. 2: Obatalá e Exu", 1973, de Abdias Nascimento, número 58
março abril maio
2022
artebrasileiros.com.br
Capa: Abdias Nascimento. Coleção Museu de Arte Negra | IPEAFRO. Foto: Fabio Souza / MAM Rio
A diretora editorial da arte!brasileiros, Patricia Rousseaux. Foto: Reprodução
Existe hoje um desafio para a cultura como um todo, que entendemos que passa pelo aprofundamento da discussão sobre como a cultura pode avançar no Brasil e no mundo, no escopo de um ambiente democrático.
Porque, de que ambiente democrático falamos? Que democracia defendemos após ter confirmado que prevalece uma “democracia” que continua não reconhecendo o papel devastador de séculos de racismo, de opressão e autoritarismo, e onde os resultados do colonialismo continuam excluindo apenas com novas máscaras?
Que democracia é essa que permite aparelhar instituições com grupos repressivos, que faz questão de cercear a cultura e a palavra e estimula certos grupos religiosos para se instalarem em cargos de poder, num estado supostamente laico.
De dez anos para cá, se intensificaram os debates sobre várias das lutas identitárias e das grandes minorias do nosso país e no mundo. A participação cada vez mais relevante do papel da mulher na sociedade, em defesa do direito inalienável ao seu corpo, seja na defesa do aborto, seja contra o assédio; seu direito à igualdade de reconhecimento econômico e de participação politica. Seu empoderamento cada vez maior tem sido amplamente debatido e noticiado. Tudo isso coloca em pauta a necessidade de maior presença da mulher nos diferentes estamentos da sociedade.
Exposições como Mulheres Radicais na Pinacoteca (Radical Women, nos EUA), representantes na literatura como Paul Preciado e Judith Butler; ganhos constitucionais em defesa do aborto em vários países, possibilitaram enormes avanços na defesa desse papel.
A discussão em defesa da liberdade de escolha de gênero, liderada pelas comunidades LGBTQIA+, as questões ambientais, a luta pela autonomia das comunidades indígenas e pelo reconhecimento das suas terras e, por fim, uma verdadeira aceitação por parte da sociedade sobre a necessidade de encarar o debate, no Brasil, sobre a brutal história do racismo – negado e apagado por séculos no passado e persistente em nosso presente colonial, capitalista – trouxeram um fortíssimo movimento paralelo às tradicionais governanças institucionais e corporativas.
Museus se viram pressionados a encarar a contratação de profissionais negros e negras, curadorias e temáticas estudaram artistas e escritores. Foram excepcionais as exposições coletivas Histórias afro-atlânticas no Instituto Tomie Ohtake e no MASP.
Editoras começaram a publicar verdadeiras joias literárias que tinham sido esquecidas, como os livros de Carolina Maria de Jesus, que também ganhou mostra no Instituto Moreira Salles, em São Paulo. Também são exemplos Pele Negra, Máscaras Brancas, do psiquiatra e escritor francês-caribenho, Frantz Fanon; Tornar-se negro, de Neusa Santos Souza; ou Torto Arado, o romance do escritor Itamar Vieira Junior que acabou de ser adotado pela secretaria de educação da Bahia.
O mercado de arte, claro, “descobriu” a importância da arte negra brasileira e começou a prestar atenção em excepcionais artistas nacionais que foram rapidamente reconhecidos ao serem descobertos pelo público internacional e hoje estão em coleções como Inhotim, em Minas Gerais, ou Pinault, em Paris.
O professor e escritor Márcio Seligmann-Silva afirma em seu artigo nesta edição:
“Não existe violência física que não esteja acompanhada de violência simbólica. Estudar a história da arte afro-brasileira implica se emaranhar em continuidades centenárias de histórias de violência simbólica e física. Implica também uma possibilidade de se vislumbrar de modo claro não só a “dialética da colonização”, de que nos fala o dramaturgo e diretor teatral paulista José Fernando Peixoto de Azevedo na epígrafe, mas a própria “dialética do esclarecimento”, que Theodor Adorno e Max Horkheimer procuraram descrever enquanto a Europa ardia em chamas na primeira metade dos anos 1940.” (Adorno & Horkheimer 1986)
Após anos de ditadura, votar, claro, foi uma conquista, mas parece não ser suficiente. É necessário criar ferramentas de controle para a participação dos corpos, sugerir sistemas e debates em cima da importância de criar mecanismos econômicos para uma sociedade mais igualitária, criar ferramentas de reparação.
Uma das maiores ensaístas e pensadoras latino-americanas, Beatriz Sarlo, que neste mês faz 80 anos, falou em entrevista à Ñ REVISTA DE CULTURA, 964, do Jornal Clarín da Argentina:
“O julgamento das três Juntas Militares, que foi encarado por pouquíssimos países após as ditaduras militares, foi um momento fundamental e de grande fortaleza ética da democracia, e requereu grande valor cívico, ético e subjetivo.”
A função do testemunho tem uma dimensão reparatória, na medida em que verbaliza e produz o reconhecimento social de uma história traumática. No Brasil, depois de dez anos, demonstrou-se que a criação de cotas na universidade deu certo, permitindo que grandes setores da população negra conquistassem melhoras no ensino e nas suas condições de emprego e salários.
Ao mesmo tempo iniciou-se um movimento em vários países europeus restituindo obras que foram levadas de seus países de origem:
“Em novembro passado, por exemplo, 26 obras de arte do antigo Reino de Dahomey, que estavam expostas no Museu du Quai Branly, em Paris, foram devolvidas ao Benim. Desde 2020, por iniciativa do presidente francês Emmanuel Macron, está em vigor uma lei que facilita a devolução de obras apreendidas no período colonial.” Paris, restauro e cultura da memória, edição 57, arte!brasileiros.
A Smithsonian Institution em Washington, D.C concordou em devolver a maior parte de sua coleção de bronze de Benin para a Nigéria como parte de um importante acordo de restituição, pressionando outros museus em todo o mundo a seguir o exemplo.
arte!brasileiros dá a largada então, para incentivar este debate no Brasil. Nesta edição, escolhemos um elenco especial de pensadores, críticos de arte, historiadores, psicanalistas e jornalistas que trazem, a partir de diferentes perspectivas, elementos para esta discussão e que tem como objetivo convocar desde já para a realização do nosso VII Seminário: Cultura, Democracia e Reparação, a ser realizado na terceira semana de setembro.
"Bahia de Sangue (Luanda)", de Abdias Nascimento, exposta em "Abdias Nascimento: um artista panamefricano", no MASP. Foto: Acervo Ipeafro/ Cortesia MASP
Dedico este texto a João Pedro Mattos[1]
“A escravidão foi o corpo real da modernidade, sua carne, sua energia, uma tecnologia. Sua herança define, certamente, muito de nossa atualidade, uma efetiva dialética da colonização. […] Mas na minha carne crioula há horrores cravados. E esses horrores, não os posso compartilhar. E, eu sei, horrores não se relativizam.”
José Fernando Peixoto de Azevedo, 2018, p. 17, 23.
Não existe violência física que não esteja acompanhada de violência simbólica. Estudar a história da arte afro-brasileira implica se emaranhar em continuidades centenárias de histórias de violência simbólica e física. Implica também uma possibilidade de se vislumbrar de modo claro não só a “dialética da colonização”, de que nos fala o dramaturgo e diretor teatral paulista José Fernando Peixoto de Azevedo na epígrafe, mas a própria “dialética do esclarecimento”, que Theodor Adorno e Max Horkheimer procuraram descrever enquanto a Europa ardia em chamas na primeira metade dos anos 1940 (Adorno & Horkheimer 1986). A história da arte negra afrodescendente brasileira é uma história que envolve repetições traumáticas de violências que muitas vezes se escamoteiam como “conquistas da civilização”. Nessa história, a ciência, a academia e todo o campo cultural se apresentam como partes estruturantes do sistema colonial.
O sistema de escravidão penetrou tão fundo nessa cultura que suas vítimas até hoje são em grande parte submetidas a uma série de violências que dão continuidade à violência escravocrata. A escravização como movimento de submissão do “outro” não se encerrou em 1888 e, pelo contrário, hoje ganha uma nova força, a partir de novas ou não tão novas biopolíticas. De dentro desse momento de retorno brutal das políticas coloniais no Brasil, com a redução do sistema econômico à exportação de commodities, com a suspensão dos direitos trabalhistas, com a imposição de um racismo descarado e oficial, com a política de destruição das florestas e de suas populações originárias, com o desmonte do sistema educacional que, finalmente, neste século havia se aberto às populações negras, o governo atual do Brasil impõe uma revisão da história brasileira e, especificamente no nosso caso, uma revisão da história da arte afrodescendente. Afinal, uma das pedras de toque da campanha e do atual governo é a edulcoração da história colonial e do período da ditadura de 1964-1985.
“Baía de Sangue (Luanda)”, de Abdias Nascimento, em cartaz no MASP. Foto: Acervo Ipeafro/ Cortesia MASP
Em nenhum outro país da América Latina ocorreu que políticos nostálgicos da escravidão e da tortura conseguissem galgar os degraus mais altos da hierarquia estatal por meio do voto. O que ocorre atualmente no Brasil é uma espécie de campo de provas para uma política fascista radical que pretende devolver o país à era pré-República. Nunca o culto dos bandeirantes foi tão longe junto com o desprezo e a violência policial e dos políticos contra populações negras e indígenas. A pobreza, junto com esses grupos étnicos, é criminalizada e um genocídio negro é produzido a cada dia nas cidades e no campo. É nesse contexto que percebemos a história do Brasil agora. A história da arte negra deve ser revista dentro dessa macro história, como parte de um longo embate colonial que não se fechou, muito pelo contrário.
Arte negra, afrodescendente ou afro-brasileira e o dispositivo estético
É bom começar com a questão dos conceitos de “arte negra”, afrodescendente ou afro-brasileira. Considero esses três conceitos legítimos e eles são utilizados pelos historiadores da arte muitas vezes de modo quase intercambiável. Mas esse debate nominalista possui um aspecto que não podemos perder de vista. Existiu durante muito tempo ao longo do século 20 e até bem recentemente, como veremos, uma tendência a tratar de modo indiferenciado artistas afrodescendentes e artistas não afrodescendentes como parte de uma “arte afro-brasileira”. Apenas a partir do final do século passado que esse procedimento começou a ser questionado.
Nesse momento, que estará no centro deste artigo, surge uma nova arte “do corpo”, com forte teor testemunhal (Seligmann-Silva 2016), que tornou impossível a separação entre os artistas, a construção de sua subjetividade e de suas obras. Esses artistas atuam sobre o que denomino “subjeto”, o sujeito que ao invés de tentar idealisticamente “representar” um mundo exterior, dá forma ao mundo a partir de sua subjetividade constituída no contexto de conflitos de classe e de raça. Não podemos esquecer que essa “virada subjetiva” também foi uma virada étnica e, como teóricos da arte como Hal Foster o detectaram já nos anos 1990, etnológica (Foster 1996). Nesse novo contexto das artes tornou-se necessária a relação entre a produção artística e a identidade étnica racial, sobretudo quando se tratava de um artista com origem afro. Pois as identidades afro se estabelecem dentro e em combate à episteme e ao sistema colonial, “provincializando a Europa”, na expressão já clássica de Dipesh Chakrabarty (2007).[2] Elas, desse modo, não puderam ou podem aceitar mais a ideia de uma “universalidade da arte”, tal como fora formulada por um platonismo na Antiguidade (com a sua doutrina dos Eide, os ideais transcendentes) e reformulada por Kant na modernidade (com a sua ideia de arte como prazer “sem interesse”, desprovido de envolvimento e volição). Por mais que Kant tenha sempre enfatizado que o universal na arte é sempre subjetivo (Crítica do juízo §8), ele submete a sua estética a uma epistemologia de cunho iluminista e eurocêntrico bem como a um padrão de beleza clássico.[3]
Essa relação umbilical entre a doutrina do universalismo nas artes e o projeto colonial é fundamental e muitas vezes foi deixada de lado pelos teóricos e historiadores da arte, isso mesmo com relação à arte afro, o que é inadmissível. Para Kant, o artista é um meio de construção do belo (ou do sublime), mas a sua subjetividade é na verdade apagada assim como todo e qualquer contexto político o é: “Todo interesse vicia o juízo de gosto e tira-lhe a imparcialidade” (Crítica do juízo, §13; 1959 p. 62). Com Kant estabeleceu-se o discurso moderno da universalidade da arte que é indissociável de sua, apenas aparente, “apoliticidade”. Digo apenas aparente, porque por detrás da universalidade existe uma poderosa política de apagamento do “outro” e das diferenças. Admite-se como arte apenas a “grande arte europeia”, da Grécia à modernidade.
O classicismo, que está na base do nascimento da história da arte, com Winckelmann, e também sustenta a teoria estética da arte de Kant, impõe-se como uma poderosa máquina ontotipológica (Lacoue-Labarthe & Nancy, 1991). Esse modelo clássico gera o “próprio” eliminando o “outro” que é produzido nesse mesmo gesto de aniquilação. Estamos diante de um dispositivo, o dispositivo estético, talvez o mais violento que a modernidade criou, pois é a partir dele que se produz a linha divisória entre os dignos de direitos e de compaixão e aqueles que são a “carne” da máquina colonial (Seligmann-Silva, 2019). O dispositivo estético é um aliado do dispositivo colonial, ambos produzem e aniquilam os seus “outros”. O “próprio” (europeu) para existir, necessita de seu não eu, o “outro”, seja a África ou o Oriente, como autores como Frantz Fanon (1952), Abdias Nascimento ([1976] 2016), Edward Said (1978), e Stuart Hall (2003) o constataram no século 20 e, mais recentemente, toda uma série de autores pós-coloniais desenvolveram em seus trabalhos, como Achille Mbembe (2017), Walter Mignolo (2011), Grada Kilomba (2019) ou Bell Hooks (2014).
Podemos dizer que a luta que se dá no campo das artes afrodescendentes no Brasil é a luta pelo reconhecimento do elemento violento, ideológico, de apagamento dos negros e de uma miríade de culturas, no bojo dessa ideologia estética “universal” e universalizante, antes de mais nada branca, eurocêntrica e racista. Portanto, quando se fala aqui em “arte negra”, afrodescendente ou afro-brasileira, refiro-me à arte produzida por artistas que se entendem como parte de uma continuidade daquelas populações submetidas à história da violência e de sua resistência a ela. Mas, vale insistir: trata-se, para esses artistas, de uma conquista dessa continuidade. Trata-se da superação de um apagamento imposto por poderosas políticas de esquecimento que, no Brasil, procuram de modo ambíguo, glamourizar nossa história na mesma medida em que negam qualquer continuidade entre a violência do sistema escravocrata e as violências biopolíticas e raciais de hoje.
“Pontes sobre Abismos #17”, Aline Motta, Foto: Cortesia da artista
A história da arte negra é a história da construção de pontes e de veios de comunicação com o passado (um passado traumático que não passa, que está em suspenso), é a história de ruptura da camada de concreto com a qual a ideologia colonial branca procurou enterrar a história da violência de classe e racial nesse país, bem como a história de lutas e resistências. Basta ver nossos cemitérios negros, literalmente sob o concreto de nossas cidades, seja no Valongo, no Rio de Janeiro, seja no bairro da Liberdade[4] em São Paulo. Na medida em que o magma dessa história de violência jorrou, a virada na história da arte negra levou também a uma ruptura radical com a ideologia do estético: a nova arte negra que nasceu desse banho no líquido amniótico do horror mas também da luta resistente, é eminentemente política e crítica do discurso do universalismo amnésico, assimilador e destruidor da identidade negra, na mesma medida em que procura estabelecer as bases de uma cultura afro-atlântica.
A luta negra também institui novos calendários e estabelece novas conexões com passados instituidores de novos presentes. A arte negra brasileira manifesta essa irrupção do passado recalcado que é libertado no curso de sua construção. Ela rompe com a falsa narrativa da historiografia colonial que relega a história negra ao campo de trabalho ou aos pelourinhos. Tratarei mais adiante dessas imagens que funcionam como verdadeiras imagens encobridoras (Deckerinnerungen, outro conceito de Freud, precioso aqui, como veremos).
Uma história da arte pacificadora
No entanto, é essencial, antes de nos aproximarmos de alguns exemplos dessa nova arte negra brasileira, que frequentemos a história de sua história, ou seja: como os construtores de narrativas da história da arte afro-brasileira se localizam nesse embate político-epistemológico entre a história da arte dita “central”, eurocêntrica, e a construção da especificidade da arte negra, seja ela vista como brasileira ou ocupando seu lugar no espaço afro-Atlântico como local multi-tópico da diáspora. Não nos surpreende que boa parte dessa história reafirmou um local excepcional, ou seja, marginal, dessa história da arte negra, reproduzindo uma série de padrões do modelo colonial da narrativa histórica. A força monstruosa do dispositivo estético em sua versão colonial não pode ser desprezada. Esse dispositivo também é reforçado por boa parte da história que narra a arte negra brasileira.
A mão Afro-Brasileira
Assim, mesmo em uma obra fundamental no processo de autoafirmação da arte negra brasileira, como foi o volume A mão Afro-Brasileira. Significado da Contribuição Artística e Histórica, organizado por ninguém menos que o artista, colecionador e fundador do Museu Afro Brasil, Emanoel Araújo (1988), podemos detectar esse fato. Esse catálogo veio à luz junto com a exposição no MAM com o mesmo nome e que, em 1988, aos 100 da Lei de Abolição, pretendia resgatar o papel dos negros na história da arte nacional. Mas já no título percebemos que a visão dominante na exposição e no catálogo reproduzia a ideia de que temos uma história da arte única, como um grande rio que flui, com seus afluentes secundários o alimentando, um deles sendo a “contribuição” da mão afro-brasileira. Temos aqui o poderoso modelo historicista de uma formação orgânica composta por partes, sendo que caberia agora reconhecer essa “contribuição” específica até agora pouco destacada. O organizador do volume recorda o longo processo de pesquisa para a construção desse importante volume e exposição visando recuperar “ao menos parcialmente, a participação do homem negro e mestiço na formação da cultura nacional” (1988, p. 9) A ideia de uma “cultura nacional” em formação reproduz um modelo colonial de formação da nação a partir de suas contribuições das diferentes etnias ou raças.
É importante que Araújo destaque já no título do livro a questão do afrodescendente e não da arte afro-brasileira, mas os textos não manterão essa fidelidade ao título, já que, em sua maioria, misturam análises de contribuições de artistas afrodescendentes ou não, mas que estariam todos valorizando a contribuição de uma certa origem africana, que havia sido até então pouco valorizada. Araújo escreve: “Não existe hoje uma arte legitimamente brasileira sem a criativa e poderosa influência do negro”. Nem vou discutir aqui a questão de gênero que perpassa essas colocações, já que sempre fala-se no “negro”, no masculino, a saber, ocorre o apagamento daquelas mãos afro-brasileiras que não seriam de homens, mas destaco novamente a ideia de um veio principal de uma arte legitimamente brasileira (o que seria isso?) que em sua formação recebe “influências” do “negro”. Araújo também elogia em sua apresentação a contribuição do médico psiquiatra e eugenista Nina Rodrigues: “Pioneiro dos estudos antropológicos no Brasil, foi quem primeiro chamou a atenção para arte dos colonos africanos” (1988, p. 10), referindo-se ao ensaio de 1904 de Rodrigues, que também faz parte da coletânea de 1988.
Arte, documento, testemunho: a crise do estético
A noção de arte como documento etnográfico, colocada por Nina Rodrigues, tem produzido muita confusão no debate estético dos últimos anos e é bom não deixar passar a oportunidade de tentar lançar luz nessa questão. Como me referi acima ao mencionar Hal Foster, ele detectara uma virada etnológica na produção artística no final do século 20. Essa virada tem a ver com o que denominei de virada testemunhal na produção cultural. (Seligmann-Silva, 2019, p. 28) Esse movimento em direção ao “documentário” (daí, aliás, a alta valorização nesse gênero desde então e que só aumentou em prestígio até hoje) levou a uma relação cada vez mais estreita da produção e da recepção de obras de arte com o campo da etnologia.
Para voltarmos a Benjamin, podemos ver essas suas teses redigidas em plena guerra como um marco na construção dessa sensibilidade da leitura documental das obras de arte. Na sua sétima tese ele escreveu de modo lapidar: “Não há um documento da cultura que não seja ao mesmo tempo um documento da barbárie.” (2020, p. 74; “Es ist niemals ein Dokument der Kultur, ohne zugleich ein solches der Barbarei zu sein”, 2010, p. 86). Trata-se aqui, portanto, de um aprendizado que implica perceber por detrás de qualquer obra cultural uma violência estrutural que sustentou a sociedade e que permitiu que nela se produzisse seus documentos de cultura. Com isso rompe-se com o mencionado esteticismo pretensamente inofensivo (que tanto mal faz) que pretendeu cortar os laços das obras de arte com a história e a política. Existe, portanto, algo de crítico e emancipador tanto na virada subjetiva-etnológica das artes no final do século 20 como nessa teoria benjaminiana da cultura como documento. Aprender a ler o teor testemunhal das artes implica abrir-se a essa leitura a contrapelo da história, cuja narrativa tradicional procurou sempre, em suas grandes construções teleológicas e triunfais, ocultar esse elemento de barbárie.
Ou seja, para deixar claro, ao falar-se do teor testemunhal de uma obra, não se está “reduzindo-a” ao seu “mero” elemento histórico e etnológico. Antes, está se rompendo com a hegemonia da ideologia do estético-colonial que ocultava esse elemento testemunhal da inscrição cultural.
“Não existe na arte brasileira contemporânea uma arte negra…”
Mas voltemos à construção histórica da arte negra brasileira. Aracy Amaral, ainda na coletânea de 1988, uma das mais destacadas críticas de arte do país, propõe-se a refletir em seu ensaio A busca da Forma de Expressão na Arte Contemporânea sobre essa busca “na arte contemporânea por parte de artistas epidermicamente não tão brancos” (1988: 247). Ou seja, de um modo um tanto atravessado, ela coloca a questão da afrodescendência como importante em sua proposta, mas acaba, ao longo de seu trabalho, mencionando também artistas que trataram de modo apenas “temático” de questões associadas à cultura afro-brasileira. Ela recorda com razão que:
Se no período colonial a maior parte de nossos tesouros artísticos vem de mãos escravas ou libertas – mestiços de índios, negros ou mulatos – por evidente tradição preconceituosa por parte dos portugueses brancos, muito recessivos no dedicar-se a atividades manuais, e se sobretudo aos artistas e artífices de origem africana devemos, por essa mesma razão, em grande parte do país, nosso patrimônio artístico, vemos que a situação parece alterar-se no século 19. (Id., 1988).
Com a Academia Imperial de Belas Artes durante o primeiro e segundo impérios, com a pintura de paisagens e naturezas mortas e sobretudo a partir do indigenismo (o culto romântico das populações originais da América), introduz-se também o negro e o caipira como temas nas telas dos pintores acadêmicos, como Almeida Junior, Abigail de Andrade e mesmo do espanhol Modesto Brocos, que com sua tela “A Maldição de Cã” (1895) comemora o branqueamento da população brasileira, um tema caro ao mencionado médico Nina Rodrigues. Amaral recorda dois acadêmicos que foram discriminados por sua origem étnica, Estevão Roberto da Silva e Antônio Rafael Pinto Bandeira, sendo que este último foi levado ao suicídio por conta desse constrangimento. Não cabe aqui refazer o percurso desse ensaio, mas apontar como ele encontra-se ainda antes da mencionada virada testemunhal na concepção das obras de artistas que, no contexto da história da produção de arte afrodescendente equivale também à virada decolonial. Isso mesmo Aracy Amaral ressaltando a violência a que os negros foram submetidos no século 19 e recordando a relação entre as políticas de branqueamento, o apagamento e esquecimento. Após apresentar em uma sequência rápida os nomes de artistas como Antônio Bandeira, Rubem Valentim, Almir Mavignier, Edival Ramosa, Genilson Soares, Maria Lidia Magliani, Octávio Araújo, entre outros, Amaral escreve: “Na apreciação da obra desses artistas, bem como de seus percursos, pode-se afirmar que, salvo exceções, não existe na arte brasileira contemporânea uma arte negra, com uma preocupação de afirmação como tal, pois tendências as mais diversas se assinalam nestes artistas de cor ou naqueles que nem sequer essa característica fora definidora em suas carreiras.” (1988, 248).
Até aqui, portanto, estamos muito longe do que logo aconteceria com o boom da arte negra no início do século seguinte. A autora acha inclusive questionável fazer uma “exposição da produção plástica de artistas pela exclusiva razão da cor de sua pele ser mais morena”. Estar-se-ia apenas apontando para algo esquecido, ou seja, a origem desses artistas, já que “o avançado […] estágio de branqueamento faz com que no Brasil nem atentemos para a sua origem”. (1988, 272) Desse ponto de vista, o projeto eugenista de branqueamento teria triunfado e não haveria lugar para se pensar uma arte negra no Brasil. Mas Aracy Amaral acrescenta algo em seu raciocínio que deixa antever uma virada, ainda que siga não distinguindo artistas afrodescendentes daqueles que se inspiram na cultura afro:
As exceções, por isso mesmo do maior interesse, são artistas que deixam em suas criações transpirar a ancestralidade do rito afro-brasileiro, em afirmação de busca de identidade, como no caso de Rubem Valentim, ou no barroquismo generoso em sua construção acumulativa de um Emanoel Araújo, no misticismo da gravura de Hélio Oliveira, e na cerâmica e pintura de Miguel dos Santos (1988, 248).
Vejamos a contribuição intelectual de Rubem Valentim que nos anos 1970 formulou de modo claro uma proposta de revisão do campo estético e da colonialidade a partir da arte negra.
“Brasília”, 1970, de Rubem Valentim. Foto: Sergio Guerini | Cortesia Almeida e Dale Galeria de Arte.
O Manifesto Tardio de Rubem Valentim: a luta “contra o colonialismo cultural”
Surpreende na coletânea de 1988 de Emanoel Araújo o pequeno e contundente Manifesto Tardio que veio justamente da pena de Rubem Valentim, uma das exceções destacadas por Aracy Amaral, como um dos poucos representantes de uma arte negra. Esse manifesto de 1976 é adjetivado como sendo “tardio” por seu autor e de fato o é, se pensarmos na longa história da produção artística negra no país. Não podemos esquecer que o tempo, quando estamos no campo dos traumas, é o tempo do “tarde demais”, do despertar “atrasado”, après coup. Mas ele também se adianta em muitos aspectos à virada étnica que viria a acontecer apenas após 1988, com a nova constituição pós-ditadura e com suas cláusulas de reconhecimento das culturas indígena e quilombola, incluindo o direito à demarcação de suas terras. Cláusulas estas, é sempre importante destacar, conquistadas por conta de muita luta por parte dos indígenas e dos movimentos negros. Valentim abre seu manifesto afirmando:
Minha linguagem plástico-visual-signográfica está ligada aos valores míticos profundos de uma cultura afro-brasileira (mestiça-animista-fetichista). Com o peso da Bahia sobre mim – a cultura vivenciada; com o sangue negro nas veias – o atavismo; com os olhos abertos para o que se faz no mundo – a contemporaneidade; criando os meus signos-símbolos procuro transformar em linguagem visual o mundo encantado, mágico, provavelmente místico que flui continuamente dentro de mim (1988, 294).
Em diálogo com os concretistas paulistas, seus contemporâneos, Valentim busca fazer dessa linguagem a referida ponte entre o mundo da africanidade recalcado e o seu presente. Ele vê no seu projeto uma luta política: “A arte é tanto uma arma poética para lutar contra a violência, como um exercício de liberdade contra as forças repressivas: o verdadeiro criador é um ser que vive dialeticamente entre a repressão e a liberdade.” (Id., 1988) Essas palavras, escritas em meio à repressão da ditadura militar, e sob o signo da luta “contra o colonialismo cultural” (Id., 1988), voltam a ecoar nas lutas que se organizam hoje, em 2020, quando esse campo da resistência negra, armada pelas artes e que se desenvolveu nos últimos 20 anos, está sendo novamente assediado por poderosas forças aniquiladoras. Note-se de passagem que o fato dessas palavras de Valentim não serem mais reproduzidas e recordadas é um sintoma de que essas forças aniquiladoras estão vencendo a batalha.
Por fim, não posso deixar de destacar no catálogo de Araújo de 1988 o capítulo da fotógrafa e crítica de arte Stefania Bril sobre o Olhar Fotográfico em preto e branco, que retoma o trabalho de fotógrafos como José Medeiros (1921-1990), Januário Garcia (1943), e Walter Firmo (1937). Esses fotógrafos também dão prova de uma nova arte negra feita por artistas negros e voltada para redesenhar as geopolíticas, permitindo se imaginar outras constelações de vida em comum. Os artistas negros destacados por Aracy Amaral e esses fotógrafos levantados por Stefania Bril são a prova de que ao longo do século 20 foi se constituindo uma arte negra feita por negros no Brasil voltada para uma política da negritude, que emanciparam os artistas afrodescendentes dos modelos acadêmicos e também libertaram o corpo negro do papel de objetos de representação.
Abdias Nascimento
Um autor-chave nesse processo foi Abdias Nascimento. Em 1944 ele criou o Teatro Experimental do Negro, que marcou gerações de artistas, produziu uma importante obra como artista plástico e foi um dos primeiros a formular de modo claro a importância de uma resistência negra, contra a necropolítica, por meio da arte. Seu livro O genocídio negro brasileiro: Processo de um racismo mascarado foi publicado em 1976 em inglês, próximo, portanto, do manifesto de Rubem Valentim. Como ocorre com este último, também Nascimento reconhece seu “lugar de fala” como constituinte de seu saber, como se passara também em Frantz Fanon no seu primeiro e revolucionário livro, Pele negra, máscaras brancas. Escreve Abdias Nascimento:
Quanto a mim, considero-me parte da matéria investigada. Somente da minha própria experiência e situação no grupo étnico-cultural a que pertenço, interagindo no contexto global da sociedade brasileira, é que eu posso surpreender a realidade que condiciona o meu ser e o define. Situação que me envolve qual um cinturão histórico de onde não posso escapar conscientemente sem praticar a mentira, a traição, ou a distorção da minha personalidade. (Nascimento 2016, p. 47)
“A Criação n. 2: Obatalá e Exu”, 1973, de Abdias Nascimento. Coleção Museu de Arte Negra | IPEAFRO. Foto: Fabio Souza / MAM Rio.
Esse passo fundamental permitiu a ele repaginar a história do Brasil do ponto de vista do “genocídio”, um termo criado por Rafael Lemkin em 1944 no contexto das descobertas do que se passava com a população judaica na Europa nazista, mas que aos poucos foi empregado para outros assassinatos em massa de etnias, como a dos armênios durante a Primeira Guerra Mundial. O livro de Nascimento se abre com duas definições de genocídio extraídas de dicionários, um em inglês, outro em português. Ele, no capítulo “O embranquecimento cultural: outra estratégia de genocídio”, analisou criticamente o mito da “democracia racial” no Brasil destacando o compromisso entre racismo e capitalismo: “A palavra-senha desse imperialismo da brancura, e do capitalismo que lhe é inerente, responde a apelidos bastardos como assimilação, aculturação, miscigenação; mas sabemos que embaixo da superfície teórica permanece intocada a crença na inferioridade do africano e seus descendentes.” (2016, p.111)[5] Nessa mesma linha de pensamento, ele recorda a criação dos museus etnográficos ao longo do século 19 como parte do projeto colonial: “Essas instituições se mancomunaram aos cientistas, teóricos de toda espécie, e scholars na manipulação cabalística de teoremas baseados no suposto exoticismo e pitoresquismo dos povos selvagens, primitivos e inferiores que habitavam a África.” (2016, p.197) As ciências e dentre elas também a etnologia colonial, como afirmei acima, e os museus andaram inicialmente de mãos dadas com o projeto colonial genocida. Abdias do Nascimento nos anos 1970 denunciava ainda a estratégia de controle da população negra por meio da “redução da cultura africana à condição de vazio folclore” (a acima mencionada “cultura popular”), o que revelaria ao mesmo tempo desprezo e avareza, pois do estereótipo passa-se à comercialização das peças de cultura desinvestidas de força vital e fossilizadas, prática que descreveu corretamente como sendo de etnocídio. Daí o passo seguinte que foi dado já no final do século 20, como vimos, no sentido de se criticar a própria ideologia e máquina biopolítica da estética.
Apesar de não utilizar o conceito psicanalítico de Unheimlich (o estranho, familiar e não-familiar ao mesmo tempo), Abdias do Nascimento percebe a necessidade de se tratar desse conceito psíquico e utiliza termos que traduzem esse conceito freudiano para tratar da situação do negro: “O negro e sua cultura sempre tinham sido mantidos como estranhos dentro da sociedade brasileira vigente, cujo único propósito, como o do próprio [Waldir Freitas] Oliveira, é que as populações afro-brasileiras desapareçam, sem deixar rastro, do mapa demográfico do país.” (2016, p.115; eu grifo) Ele cita também o verbete “negro” de um dicionário inglês – português de A. Houaiss e C. Avery de 1967: “negro, -gra (negru, -gra). I. a., black (also fig.); dark; (anthropol.) Negro; somber, gloomy, funeral; shadowy, tenebrous; sinister, threatening; cloudy, obscure, stormy; ominous, [eu grifo] portentous; horrible, frightening; adverse, hostile; wretched, odious, detestable.” (Houaiss e Avery apud Nascimento, 2016, p.55). O “negro” surge como o protoelemento recalcado da cultura colonial moderna, que ainda é a nossa cultura. Como “horrible” ele representa o oposto do corpo clássico a que as belas-artes classicizantes se dedicam em dar forma. Mais adiante reencontraremos esse tema.
Seu livro também trata especificamente da arte negra brasileira. Em uma passagem cheia de significado, lemos:
Na concepção de meu colega Olabiyi Babalola Yai, da Universidade de Ifé, o candomblé, cuja mensagem no Brasil é essencialmente a mesma, como na África, significa: “Uma religião na qual nem o inferno nem o diabo têm lugar e que não aflige a vida do homem com um pecado original do qual se deve purificar, mas que convida o homem a sobrepujar suas imperfeições graças ao seu esforço, aos esforços da comunidade dos orixás.” Constituindo a fonte e a principal trincheira da resistência cultural do africano, bem como o ventre gerador da arte afro-brasileira,[6] o candomblé teve que procurar refúgio em lugares ocultos, de difícil acesso, a fim de suavizar sua longa história de sofrimentos às mãos da polícia (2016, p. 125).
Ele também já formulava palavras de ordem fortes com relação ao tema da arte negra roubada por instituições policiais e mantidas também em instituições de psiquiatria, história e etnografia. Sua ideia era a de criar um Museu de Arte Negra para valorizar a cultura afro-brasileira. (2016, p. 173) No capítulo “Arte Afro-Brasileira: Um espírito Libertador” ele pensa essa arte a partir do genocídio de africanos nas três Américas, rompendo, portanto, com as fronteiras nacionais e com a narrativa tradicional da formação da arte brasileira que reservava à arte afro-brasileira apenas um papel secundário de fonte de influência.
É verdade que Abdias algumas vezes (2016, p. 197) mostra estar ainda vinculado a um projeto de valorização estética da produção artística afro, não percebendo o colapso dessa tradição estética, o compromisso entre o estético e o colonial, e que na verdade é a arte estetizada que está se dirigindo ao leito da arte afro, LGBTQIA+, feminista etc., produzida por artistas agentes autoconscientes, que não “representam” mais mundos externos, pacificados, com geografias sempre vistas a partir de instrumentos eurocêntricos, a começar pela técnica da perspectiva e passando pelos gêneros clássicos que dominaram a história da arte do século 15 ao 19. Antes, esses novos agentes produzem uma arte que rompe com a divisão entre o sujeito e seu objeto, gerando uma fusão, como afirmei no início, um “subjeto”, com o perdão do neologismo. Mas Abdias também procurou romper com a “definição elitista de ‘belas-artes’ que envolve exclusivamente a arte branco-ocidental” (2016, p. 201) no que ele tinha razão, pois se tratava e se trata de “desoutrizar” as artes e culturas tendencialmente “outrificadas” pelo Ocidente (Ndikung 2019; Seligmann-Silva 2019). Romper com essa definição elitista de belas-artes significa desmascarar a cumplicidade entre o dispositivo estético e o colonial.
Portanto, suas palavras são extremamente válidas ainda hoje no contexto dos movimentos artísticos negros contemporâneos, não só no Brasil. Sua concepção, como a de Rubem Valentim, é da arte como parte de uma técnica de luta. Indo mais longe, ele formula uma arte negra da diáspora:
Pois a arte africana é precisamente a prática da libertação negra – reflexão e ação/ação e reflexão – em todos os níveis e instantes da existência humana. […] A arte dos povos negros na diáspora objetifica o mundo que os rodeia, fornecendo-lhes uma imagem crítica desse mundo. E assim essa arte preenche uma necessidade de total relevância: a de criticamente historicizar as estruturas de dominação, violência e opressão, características da civilização ocidental-capitalista. Nossa arte negra é aquela comprometida na luta pela humanização da existência humana, pois assumimos com Paulo Freire ser esta “a grande tarefa humanística e histórica do oprimido – libertar-se a si mesmo e aos opressores” (2016, p. 203-204).
Não por acaso, no início da mencionada encenação da peça Black Brecht – E se Brecht fosse negro, lia-se em um estandarte com desenhos de obás e de formas geométricas inspiradas em um imaginário afro as letras garrafais: “RE-EXISTÊNCIA NEGRX”.
“Quarteto ritual nº6”, de Abdias Nascimento, exposta em “Abdias Nascimento um artista panamefricano” no MASP. Foto: Acervo Ipeafro Cortesia MASP
Essa luta é calcada também na desconstrução daquilo que Abdias denomina de “mito do ‘africano livre’” (2016, 79):
Depois de sete anos de trabalho, o velho, o doente, o aleijado e o mutilado, aqueles que sobreviveram aos horrores da escravidão e não podiam continuar mantendo satisfatória capacidade produtiva – eram atirados à rua, à sua própria sorte, qual lixo humano indesejável; estes eram chamados de “africanos livres.” (Id.)
Ou seja, essa libertação era um gesto genocida, a última etapa no processo: e o mesmo o foi a chamada abolição ou Lei Áurea de 1888: “Não passou de um assassinato em massa, ou seja, a multiplicação do crime, em menor escala, dos ‘africanos livres.’” (Id.) As artes afro-brasileiras aos poucos se entenderam como esse espaço de luta pela efetiva liberdade, revertendo esse gesto genocida cujas consequências se desdobram mais de cem anos depois daquele teatro da libertação sintomaticamente aclamado ainda hoje por nossos políticos bandeirantes, a saber, a edição da Lei Áurea.
Musa Michelle Mattiuzzi: Habitar as ruínas da colonialidade
Impossível apresentar aqui outras tentativas de se construir a narrativa acerca da história da arte negra no Brasil. Em termos de conceituação, nenhuma no século 20 foi tão radical quanto as formulações de Abdias Nascimento, ainda que algumas vezes seu trato do tema caia para uma espécie de hagiografia condescendente de artistas. Menciono apenas mais duas obras.
O historiador da arte Roberto Conduru tem um livro de caráter introdutório voltado para a escola, mas nem por isso menos interessante e cheio de informações, o seu Arte afro-brasileira, de 2007. Ele não se limita a artistas afrodescendentes e tampouco se alinha a uma leitura decolonial da questão, contentando-se em fazer uma história da arte mais escolar. Já o livro de 2013 de Kimberly L. Cleveland, Black art in Brazil. Expressions of Identity, apesar de não romper com a tradição brasileira, que tem sua origem na ideologia da “democracia racial”, de tratar sob o conceito de arte negra e afro-brasileira artistas que não são afrodescendentes, discute com muita ponderação esse tema trazendo o enorme aporte dessa discussão nos Estados Unidos. Sua obra é uma importante contribuição e deveria ser traduzida no Brasil para poder enriquecer o debate sobre esse tema. A autora trata explicitamente em capítulos das obras dos seguintes artistas: Abdias Nascimento, Ronaldo Rego, Eustáquio Neves, Ayrson Heráclito e Rosana Paulino.
Por sua vez, o volume de textos críticos fruto da exposição ocorrida em São Paulo, em 2018, Histórias afro-atlânticas, nos capítulos introdutórios de Adriano Pedrosa, Heitor Martins, Amanda Carneiro e André Mesquita localizam a tarefa de repensar a arte brasileira a partir do prisma decolonial. Além disso, o catálogo contém textos de Achille Mbembe (p. 125-144) e a contribuição de Okwui Enwezor (p.145-158), que também nascem dentro do atual debate de reconstrução pós-colonial do campo estético. Mas nem todos os textos do catálogo seguem essa perspectiva, pois a intenção era mostrar também um panorama do debate sobre as histórias afro-atlânticas no Brasil. O antropólogo Kabengele Munanga, em Arte afro-brasileira: o que é afinal?, inclusive localiza a sua leitura da arte afro-brasileira na chave do belo, do “universal e necessário” (2018, p. 113, 120) e comemora o “trabalho pioneiro de Nina Rodrigues” na fundação da história da arte afro-brasileira (2018, p. 118). Ele se distancia da expressão “arte negra no Brasil” por desconfiar de existir aí um “certo biologismo” e defende que seria a partir de uma noção “mais ampla, não biologizada, não etnicizada e não politizada, que se pode operar para identificar a africanidade escondida numa obra” (2018, 122). Por que a africanidade se esconderia numa obra? Estamos a quilômetros, aqui, do manifesto de Rubem Valentim e da postura combatente e abertamente política também defendida por Abdias Nascimento. Nessa linhagem desses dois autores, o pequeno texto da artista performática Musa Michelle Mattiuzzi, ao final do catálogo, tem um caráter quase de manifesto decolonial. Ela escreve:
Na história contada pela branquitude – que ainda hoje apresenta facetas de um Brasil colonial – a noção compulsória sobre o “outro” é o que qualifico de mirada folclórica branca sobre aspectos da estética negra e indígena. É um olhar e uma prática construídos a partir do uso de signos que engendram a necropolítica como possibilidade de inclusão e de representatividade, em um jogo perverso da linguagem branca de captura e visibilidade. Penso isso quando investigo as narrativas que fazem parte desse imaginário supremacista. Penso isso de Tarsila do Amaral (1886-1973), artista que pintou a obra A negra que, se analisada friamente, é de cunho racista, embora tenha conseguido fazer-se creditada por uma falsa narrativa de que a representatividade importa e tenha sustentado durante muito tempo o mito da diversidade racial e cultural desse país. Há uma tecnologia política dos colonos herdeiros de criar soterramentos. […] A “arte” destas terras que nunca deixaram de ser colônia, uma “arte” instituída aqui com o violento processo de inserção na modernidade ocidental. “Arte” como o meio privilegiado por onde circulam as ideias escritas e a criação visual realizadas por colonos herdeiros, estes que fazem parte de uma classe social abastada, que operam os signos na onda de apropriação e tratam as suas ideias como universais. Na representação do discurso de que somos todos iguais eles nos expropriam. Vejo a etnografia como parte e como exemplo de agenciamento do poder dessas elites aplicado por meio de um método científico. […] Se não vamos mudar nada, que ao menos possamos habitar as ruínas da colonialidade e sobreviver de alguns encontros. […] Escurecer com o meu negrume. […] Saber habitar e reviver as ruínas dessa pluralidade afro-atlântica (2018, 607-609).
Podemos pensar nessas palavras finais do texto de Mattiuzzi como um acompanhamento e trilha epistêmica das obras de afrodescendentes que têm sido feitas nos últimos 20 anos no âmbito afro-atlântico, brasileiro ou não. Sua coragem de desconstruir a famosa obra de Tarsila é um gesto que felizmente encontramos em outras artistas. Na arte deste século no Brasil, artistas e agentes do mundo das artes estão se dando cada vez mais conta da relação entre modernidade, modernismo e colonialismo. O “cubo branco” modernista é uma prisão higienista que corresponde ao modelo da propalada “autonomia” das artes. Lembro aqui apenas dos trabalhos das artistas Clara Ianni e Lais Myhrra, que tem mostrado a violência do projeto modernista brasileiro em algumas de suas obras dos últimos anos: O instante interminável (2015) e Projeto Gameleira, 1971 (2014), de Myhrra e Forma livre (2013) e Do figurativismo ao abstracionismo (2017), de Ianni. Que fique claro, essas duas artistas não fazem parte da produção de arte afrodescendente, mas suas obras incidem criticamente sobre o dispositivo colonial. A virada política decolonial não está de modo algum restrita a artistas afrodescendentes.
Artistas afrodescendentes decoloniais
A referida exposição que ocorreu no MASP e no Instituto Tomie Ohtake em São Paulo em 2018, Histórias Afro-Atlânticas, com curadoria de Adriano Pedrosa, Ayrson Heráclito, Hélio Menezes, Lilia Schwarcz e Tomás Toledo, foi uma das mais importantes sobre o tema da negritude já feitas no Brasil, mas é importante ver como ela faz parte de um percurso que pode ser traçado desde a exposição A mão afro-brasileira, de 1988, passando por muitas outras também essenciais. Inspirado no levantamento feito por Hélio Menezes para seu texto no catálogo de Histórias Afro-Atlânticas eu destaco as seguintes exposições: Incorporações – Arte afro-brasileira contemporânea (2011/2012), no International Arts Festival Europalia, Bruxelas, curadoria de Roberto Conduru; Afro como ascendência, arte como procedência (2013-2014), no Sesc Pinheiros, São Paulo, com curadoria de Alexandre Araújo Bispo; Histórias Mestiças (2014), no Instituto Tomie Ohtake, com curadoria de Adriano Pedrosa e Lilia Schwarcz; Territórios: artistas afrodescendentes no acervo da Pinacoteca (2015-2016), na Pinacoteca de São Paulo, com curadoria de Tadeu Chiarelli; A cor do Brasil (2016-2017), no Museu de Arte do Rio, com curadoria de Paulo Herkenhoff e Marcelo Campos; Diálogos ausentes (2016-2017), no Instituto Itaú Cultural, São Paulo, com curadoria de Rosana Paulino e Diane Lima; Agora somos todxs Negrxs? (2017), no Galpão VideoBrasil, com curadoria de Daniel Lima; PretAtitude (2018), no Sesc Ribeirão Preto, com curadoria de Claudinei Roberto (Menezes 2018, p.591-592); e acrescento a exposição mais recente de Rosana Paulino, A costura da memória (2018-2019), ocorrida na Pinacoteca de São Paulo, com curadoria de Valéria Piccoli e Pedro Nery. Também incluiria nesse hall de exposições as Bienais Videobrasil, com curadoria de Solange Farkas, e a exposição A empresa colonial (2015-2016). Farkas é curadora geral do Festival de Arte Contemporânea Videobrasil que acontece desde 1983. Sua perspectiva voltada para o eixo sul-sul tem participado de modo muito importante na afirmação de uma arte mais comprometida com os temas da decolonialidade. Em 2000 ela foi curadora, ao lado do crítico sul-africano Clive Kellner, da exposição Mostra Africana de arte contemporânea, que ocorreu no Sesc Pompeia, em São Paulo. A exposição A empresa colonial, ocorrida na Caixa Cultural São Paulo, com curadoria de Tomás Toledo, apesar de não ser uma exposição com proposta curatorial étnica, tratou com muita propriedade do tema da continuidade do poder colonial no Brasil contemporâneo.
“República (democracia racial)”, 2015, de Jaime Lauriano. Foto: Divulgação
Jaime Lauriano, um dos mais importantes artistas negros no Brasil hoje, emprega em uma de suas obras dessa última exposição uma “pemba branca”, giz utilizado em rituais de umbanda, sobre “algodão preto”. Com esse material, Lauriano retraçou o mapa do Brasil, essa linha política, como parte de uma política do corpo e de autoafirmação. Usurpando o poder de traçamento dos agentes cartógrafos a serviço do poder, ele inscreve com pemba branca limites ressignificados: o branco da pemba vira agente de inscrição das populações historicamente oprimidas. Seu título estampa em tom irônico: República (democracia racial) (2015). E, tensionando a imagem com um texto, Lauriano inscreve ao pé do mapa do Brasil uma estrofe do “Hino à Proclamação da República”, um verdadeiro monumento ao esquecimento, já que suas palavras (de autoria de Medeiros de Albuquerque) perpetram: “Nós nem cremos que escravos outrora/ Tenha havido em tão nobre País…/ Hoje o rubro lampejo da aurora/ Acha irmãos, não tiranos hostis”. Esse texto foi escrito em 1889, apenas um ano, portanto, após a “abolição” oficial do sistema de escravidão. A abolição revela-se, como lemos com Abdias Nascimento (2016), um modo de aniquilamento, de morte e de política do esquecimento. Lauriano tem outras importantes obras feitas com pemba sobre fundo negro que traçam os contornos do mapa do Brasil para repensar esses limites do ponto de vista decolonial. Recordo aqui seu impressionante Invasão, etnocídio, democracia racial e apropriação cultural, de 2017, que esteve na mencionada exposição Agora somos todxs Negrxs?
O que corre nessas exposições, curadorias e com essa multiplicação de artistas negrxs? Antes de mais nada, a ruptura da cumplicidade entre o dispositivo estético e o colonial. Não se pode mais falar de modo inocente de “democracia racial” ou comemorar nossa cultura “sincrética” e a “miscigenação” sem perceber o trauma que está na origem dessa hibridização. Com as mudanças profundas ocorridas no campo das artes nas últimas décadas do século XX ocorreu uma ascensão, como vimos, do sujeito, do agente da arte, que antes estava em parte submetido ainda ao campo da representação. Uma série de artistas afrodescendentes, quase todos formados em artes visuais, e coletivos artísticos passaram a interagir na cena cultural brasileira desse ponto de vista da virada decolonial. Eles vão imaginar a negritude nos espaços da diáspora. Imaginar no sentido de criar imagens, mas também de criar um campo de ação lúdico e político.[7] Com a entronização do sujeito e o deslocamento do campo estético em direção à política e micropolíticas, essa repolitização da arte implicou novas costuras da memória, para jogar com o título da exposição de Rosana Paulino na Pinacoteca. O elemento testemunhal se torna central. Ao mesmo tempo, no Brasil ocorre na primeira década deste século um aumento do apoio às artes, com mais prêmios, bolsas e opções de espaços expositivos, fruto de uma expansão econômica acompanhada de uma democratização que se refletiu também nas Universidades e na cultura como um todo. Esse movimento começou a oscilar de volta em direção à crise econômica e política a partir de 2013. Mas nem por isso as exposições deixaram de ocorrer: o campo estético já estava por demais ocupado por essas novas políticas e modos de imaginar e costurar a memória. O programa do atual governo (2020) visa, via censura e cortes profundos no investimento na área cultural, asfixiar esse boom de arte crítica no qual a arte negra se inseriu. Teremos que acompanhar que tipo de efeito essas políticas de opressão vão ter.
Para finalizar esse painel reflexivo sobre a arte negra contemporânea no Brasil me deterei na produção de duas artistas, mesmo que de modo breve, para indicar a força dessa produção.
Rosana Paulino: anarquivando o arquivo da colonialidade
Rosana Paulino é reconhecida como uma pioneira na nova arte negra brasileira. Sua obra Parede da memória, de 1994, é uma referência dentro dessa produção. Essa obra é composta por 11 fotografias de sua família que se repetem atingindo diferentes números, chegando a atingir 1500 dessas fotos, que são impressas sobre tecido em tamanho de cerca de 8x8x3cm cada, formando patuás, ou seja, um elemento da religiosidade afro que tem um valor de amuleto no candomblé. Cada patuá leva cores específicas, associadas a Orixás que irão então proteger aquele que porta o talismã. Lembremos do que Abdias Nascimento escreveu sobre o candomblé como “o ventre gerador da arte afro-brasileira”. É importante pensar que a própria Rosana Paulino narra a sua carreira a partir dessa obra emblemática que esteve também presente na sua recente exposição na Pinacoteca de São Paulo de 2018-2019.
Parede da memória, na sua apresentação aparentemente simples, sintetiza na verdade o encontro de vários gestos: o fotográfico, o da costura, o da rememoração tanto da família como de uma origem afro. A obra também alude aos universos da religiosidade, do jogo (jogo de memória) e da montagem, já que se trata de um arranjo que está sempre em movimento, sendo remontado, sem nunca deixar de ser a Parede da Memória. Essa parede com uma série de patuás, não deixa de ser uma versão contemporânea afro dos loci memoriai, os lugares de memória da mnemotécnica. Nessa tradição une-se a memoria rerum, memória das coisas, com a memoria verborum, memória das palavras. Os imagnines agentes, ou seja, agentes da memória, são colocados em certos locais para se narrar imageticamente histórias(Yates 1966). Existe um movimento nessa obra de Paulino de apropriação de elementos da memória, de uma memória próxima, familiar, mas também distante, associada a uma ruptura, a uma deriva, de um saber e de um modo de estar no mundo o qual, de certa forma, a artista reconhece como seu. Como nas palavras de Musa Michelle Mattiuzzi, Rosana Paulino parece de fato “habitar as ruínas da colonialidade”, ela se apresenta como alguém que sabe “habitar e reviver as ruínas dessa pluralidade afro-atlântica”.
“Parede da memória”, 1994, de Rosana Paulino. Foto: Isabella Matheus/ Acervo Pinacoteca do Estado
A fotografia se tornou uma metáfora fundamental na arte contemporânea e no Brasil tem estado na base da produção de artistas que lidam com a memória e, mais ainda com o esquecimento. Recordo Hélio Oiticica, com seu Bólide Caixa 18 “Homenagem a Cara e Cavalo, de 1966 ou o seu famoso seja herói, seja marginal de 1968.[8] A fotografia, sobretudo a analógica, tem um momento de “impressão” (vale lembrar que Rosana Paulino é bacharel e especialista em gravura; Lopes 2018, p. 171). A fotografia reatualiza outras metáforas da memória, como a escritura, metáfora também fundamental na referida tradição da arte da memória com sua ideia de inscrições mnemônicas. Afinal, a fotografia é literalmente uma escrita de luz. Mas ela também remete à concepção psicanalítica de nossa memória como camadas, umas mais outras menos conscientes. A inscrição do trauma também já foi comparada ao flash fotográfico. A fotografia enquanto retrato tem também um elemento corpóreo e fantasmático: o retrato fotográfico literaliza ambiguamente o aparecer e o desaparecer, a presença e a ausência, o desejo de ver e o evanescer da imagem. Paulino se torna também nessa sua obra/jogo quem dá as cartas na cena da apresentação dos corpos negros. Como Eustáquio Neves e seus retratos, ela afirma-se como agente de suas imagens e não mais como objeto representado e sem fala própria. A obra consegue ser ao mesmo tempo extremamente contemporânea e citar passados mais ou menos próximos. Ela é um buraco no tempo, cria uma metaespacialidade e outros cronotopoi. A fotografia é tratada como fragmento, escombro, sobrevivência de um naufrágio e é em torno de fotografias apropriadas, suas cópias, recortes e inversões, que boa parte da obra de Paulino se constrói. Isso sem, no entanto, romancear alguma origem perdida, ou estabelecer alguma ontologia identitária. Antes, a reprodução técnica das fotografias desconstrói qualquer visada essencialista. Trata-se de abrir espaço para se imaginar origens e narrativas alternativas às construídas pelos discursos coloniais.
Na sua série de 1997 de Bastidores, ela costura os olhos, a garganta, a boca e a fronte de retratos fotográficos de mulheres negras colecionadas por ela nos álbuns de sua família. Como em muitas obras da mencionada Rosangela Rennó, essas fotografias são precarizadas, para indicar apagamentos, perdas, subtrações, mas também para indicar que essas mulheres são ao mesmo tempo um indivíduo singular e todas aquelas que se identificam com elas. O ato da artista é sempre duplo: ao costurar a boca e o pescoço ela se assume como agente da fala, descosturandoa sua boca e a de quem admira o seu trabalho. Ao costurar os olhos ela se institui como agente na construção das imagens e do imaginário contracolonial, descosturando os seus olhos e os dos que veem sua obra. Ao costurar a fronte ela se assume como agente pensante e não como objeto pensado, dissecado pela ciência e esmagado pelo trabalho servil, descosturando o seu cérebro e do seu espectador. Em uma palavra, ela afirma: sou dona do meu corpo, a mulher negra manda em seu corpo, isso em uma sociedade ainda colonial, falocêntrica e racista que oprime tanto corpos negros como femininos ou que não correspondam ao padrão cisgênero. Ao denominar sua obra Bastidores ela joga com o significado múltiplo do termo: por um lado, ela explicita os bastidores dessa sociedade com seu gesto de costurar nos rostos desses retratos. Mas, bastidor remete aqui também ao suporte da tecelagem que é onde essas fotografias foram impressas. Ao invés de costurar “comportadamente” e fazer as suas tecelagens cumprindo o papel “feminino” que a sociedade impõe às mulheres, Paulino desloca o bastidor, rompe com seu papel de instrumento de controle de gênero e transforma-o em dispositivo de sua arte eminentemente política.
Mais recentemente a artista tem trabalhado com a costura de fragmentos de tecido, que chamarei de “retalhos” para enfatizar o seu elemento de fragmentação e de precarização, nos quais se vê impressas algumas das fotografias e gravuras mais icônicas realizadas por fotógrafos e artistas, na sua maioria viajantes ou emigrados, feitas no Brasil no século 19. Em alguns desses “retalhos” estão impressas imagens de azulejos, representativos da arquitetura e da cidade colonial portuguesa (como ocorrem também em muitas obras de outra importante artista brasileira que tematiza a violência colonial, Adriana Varejão). A obra de Paulino Musa paradisíaca, de 2018, reproduz três vezes a mesma fotografia de Marc Ferrez (“o mais importante dos fotógrafos atuantes no Brasil no século 19”; Lago, 2001, p.14), conhecida como “Uma vendedora de banana” (Ermakoff 2004, p. 116), ao lado de reproduções de três representações “científicas” de temas da botânica, uma radiografia de uma bacia e um retalho branco com inscrições em letras maiúsculas em vermelho, de diferentes tamanhos, citando a conhecida marchinha de carnaval “YES, NÓS TEMOS BANANA”. Aqui vemos um traço irônico na obra de Paulino. Irônico, mas sarcástico também, com relação aos clichês que constituem a “brasilidade”. Ao costurar esses “retalhos”, cacos da história montados pela artista, novamente ela descostura as estruturas do imaginário colonial realizando o que eu gostaria de chamar de um anarquivamento do arquivo colonial. As fotografias e imagens coloniais dos negros os enquadram em um imaginário que busca reproduzir a opressão. Essas imagens são imagens encobridoras, Deckerinnerungen, nos termos de Freud. Essa mulher anônima fotografada por Marc Ferrez em torno de 1885 também foi enquadrada por ele em uma moldura dupla, ao lado de outra negra vestida como “baiana”. Estamos, portanto, da baiana à “mulata do samba”, em pleno nascedouro de uma poderosa construção da imagem da mulher brasileira negra, de seu corpo e de seu comportamento. Esse clichê (fotográfico e de papel social) vai aos ares com a montagem costurada por Paulino.
Outra obra com recursos semelhantes é A ciência é luz da verdade 3?, de 2016. Ela é composta por três “retalhos” costurados um ao lado do outro. Os dois da ponta reproduzem com as mesmas letras vermelhas da obra anteriormente comentada a frase que dá título a esta obra: A ciência é luz da verdade? No centro vemos uma fotomontagem que sobrepõe a uma imagem de azulejo duas caveiras, uma acima da outra. O tema da ciência é recorrente na obra de Paulino e remete em grande parte às doutrinas eugenistas (defendidas por Nina Rodrigues, assim como por alguns dos fotógrafos e artistas que circularam no Brasil no século 19). Assim, sua obra Atlântico vermelho, de 2017, monta 11 pedaços de tecido, sendo que no do canto superior esquerdo temos uma das famosas fotografias antropométricas realizadas por August Stahl.
Stahl foi um fotógrafo de origem alemã que chegou a Recife em 1853, tendo se instalado a partir de 1870 no Rio de Janeiro. Em 1865 chegou ao Brasil a Expedição Thayer, financiada por um milionário norte-americano Nathaniel Thayer, e que tinha por função fazer fotografia de negros, indígenas e asiáticos tendo em vista alimentar as pesquisas do professor suíço naturalizado norte-americano Louis Agassiz. Posteriormente Agassiz fará referência a esse trabalho fotográfico de Stahl em seu livro onde apresenta a sua visão antropométrica das raças humanas e que deveria revelar como falsa a teoria de Darwin sobre a origem das espécies, mas sem imprimir no livro as fotografias feitas por Stahl. Esse livro, redigido junto com a sua esposa, se chamava Permanence of characteristics in Different Human Species. Segundo nos conta Sérgio Burgi em sua apresentação das fotografias de Stahl, como Agassiz havia solicitado as fotos a Stahl no ano da abolição da escravidão nos Estados Unidos, essas imagens depois não puderam ser aproveitadas, pois depois da Guerra Civil Americana “não permitiram mais especulações antropométricas que tivessem um caráter discricionário, como mostram as imagens comparativas encontradas nos álbuns [com as fotografias de Stahl], provavelmente inseridas por Agassiz, comparando a estatuária greco-romana clássica com os retratos produzidos por Stahl, para fins de comparações de raças.” (Lago 2001, p. 11) D. Pedro II, o imperador do Brasil então, apoiou com entusiasmo essa expedição de Agassiz.
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Obra da série "Bastidores", de Rosana Paulino. Foto: Cortesia da artista
"Paraíso tropical", Rosana Paulino. Foto: Pinacoteca de São Paulo
Voltando ao Atlântico vermelho de Paulino, além da mencionada foto de Stahl para Agassiz, com um negro de perfil nu, vemos nessa obra também uma fotografia de João Gaston (um fotógrafo da Bahia), Negra posando em estúdio, de 1870 (Ermakoff, 2004, p. 158), que apresenta uma negra com um barril na cabeça. E ainda temos três azulejos impressos em tecido, um deles com o título da obra inscrito em vermelho, um “retalho” com a imagem de um fêmur humano, dois com imagens de embarcações que lembram caravelas e um último com escravizados trabalhando no canavial. As fotografias de Gaston são reveladas uma de modo padrão, positivo, outra com a luminosidade de um negativo, invertendo os preto e branco, o mesmo ocorrendo com as imagens das “caravelas”. Os rostos de uma das fotos da negra com um barril na cabeça e a da mulher na imagem na plantação de cana de açúcar estão vazados.
Esse procedimento de retirar os rostos das imagens apropriadas acontece em outros de seus trabalhos a partir do relativamente vasto acervo da fotografia de escravizados e “negros libertos” do século 19. Isso acontece com a fotografia, também de August Stahl, Mina Ondo, de 1885 (Ermakoff 2004, p. 240), parte central da prancha As gentes, do livro-obra ¿História natural?, 2016. Nessa mesma prancha, Paulino reproduz flanqueando a Mina Ondo a imagem famosa do indígena Muxuruna do volume de 1823, Reise in Brasilien, de Johann Spix e Carl Friedrich Philipp von Martius. O indígena também está sem rosto. O mesmo acontece na série Paraíso tropical, de 2017, com fotografias de Marc Ferrez, com a mesma vendedora de bananas que vimos acima; ocorre ainda com uma foto de Albert Henschel, de 1870, de uma “negra posando em ateliê” (Ermakoff 2004, p. 117) e com outra de August Stahl de Mina Bari, de 1865, de uma mãe com o filho às costas (Ermakoff 2004, p. 233), entre outras. Em Paraíso tropical essas imagens são associadas a caveiras e imagens de tipo representação botânica “científica” dos viajantes. Esses rostos ausentes podem ser lidos tanto como uma metáfora do vazio, como o faz Juliana Ribeiro da Silva Bevilaqua no catálogo da exposição na Pinacoteca de 2018, como também podem remeter ao processo de desumanização pelo qual essas pessoas fotografadas passaram, do qual fez parte e foi cúmplice o próprio dispositivo fotográfico. Esse dispositivo estava aliado aos dispositivos colonial e ao estético. A fotografia sempre esteve, como qualquer aparelho técnico, eivada de ambiguidades; serviu à arte, à memória, mas também aos órgãos de polícia, aos projetos de eugenia e de genocídio, como na Alemanha nazista, no Camboja de Pol Pot e nos cárceres das ditaduras latino-americanas, como nas conhecidas fotografias da ESMA, em Buenos Aires. Paulino explora essa ambiguidade da fotografia, como, por exemplo, Harun Farocki o fez em muitas de suas obras, apontando a cumplicidade entre fotografia e guerra, destruição. Assim, como lemos no catálogo sobre as fotografias antropométricas de Stahl, essas imagens foram colocadas pelo cientista Agassiz em um álbum ao lado de representações da beleza clássica. Os rostos deveriam ser confrontados, para provar a suposta superioridade de uma raça sobre as demais. Estamos em plena cena não só de eugenia, mas de genocídio, como o formulou Abdias Nascimento.
Essa ausência de rosto significa também o tornar-se anônimo dessas pessoas objetificadas por um trabalho que as matava e por uma fotografia que as reduzia a peças de um teatro macabro da ciência. O rosto, para o filósofo Lèvinas, vale lembrar, é a nossa parte mais exposta e mais frágil e também a portadora do nosso ser para o outro. “A epifania do rosto é ética”, ele escreveu. (1988, p. 178) E ainda: “O rosto onde se apresenta o Outro – absolutamente outro – não nega o Mesmo, não o violenta […]. Fica à medida de quem o acolhe, mantém-se terrestre. Essa apresentação é a não violência por excelência, porque em vez de ferir a minha liberdade, chama-a à responsabilidade e implanta-a.” (1988, p. 181) O trabalho escravo, a violência de ser reduzido a corpo-instrumento, corpo carregador de fardos, corpo torturado, corpo fotografado, destitui o indivíduo dessa outridade que institui a ética a partir da outridade absoluta do rosto. Ao retirar o rosto dessas mulheres ou do indígena, Paulino apaga o rosto para mostrar que esses grupos de pessoas tiveram seus rostos anulados. Ao invés do infinito que todo rosto guarda, eles eram reduzidos a fachadas de seres sem outridade e sem ipseidade. Paulino nos chama novamente à responsabilidade diante dos rostos na medida em que ela os apaga para os restituir.
A cena retratada em Atlântico vermelho é uma poderosa síntese das narrativas da arte afrodescendente contemporânea brasileira. Dessa obra pendem ainda fios vermelhos, que extravasam os “azulejos” e escorrem pela parede como sangue. Esses corpos sem rosto, mas que sangram remetem também à obra anterior de Paulino, em nanquim sobre papel, Autorretrato com máscara para comedores de terra, de 1997. Nela, uma mulher “posa” como as escravas fotografadas no século 19, portando essa máscara tão emblemática da violência colonial. Debret, entre outros artistas que passaram pelo Brasil naquele século, registrou imagens do emprego dessas máscaras. Comer terra era um meio de se suicidar, buscando a liberdade da escravidão na morte. O acima mencionado artista mineiro Paulo Nazareth, na sua série Para venda, realizou um autorretrato de perfil portando uma caveira bovina que faz às vezes de uma máscara para comedor de terra (2011). Nessa performance de Paulo Nazareth ele coloca a máscara para que consigamos finalmente ver aquilo que parece estar para além do visível e nos cega diante da violência que essas imagens friamente descritivas de Debret apresentam.
A série Assentamento, de 2013, de Paulino, retoma um dos grupos de fotografias de Stahl de 1865 para o projeto de Agassiz que se encontra hoje no Peabody Museum of Archeology and Ethnology de Harvard (em um bairro de Cambridge, aliás, que se chama Agassiz). (Ermakoff 2004, p. 252) As três fotografias, em tamanho natural, recuperando a sua dimensão humana, foram recortadas cada uma em cinco tiras e recosturadas de modo irregular. Na fotografia frontal da mulher nua, Paulino insere um coração pintado, como um órgão externo, do qual escorrem, novamente, fios vermelhos “de sangue”. Na fotografia de perfil, ela introduz uma gravura de um nenê no útero, mas, novamente, como algo externo, transparente. Na fotografia da mesma personagem, sempre nua, de costas, a artista não remenda a parte de baixo da fotografia, correspondente ao final da perna e aos pés, e em seu lugar costura um tecido que possui uma costura de veios que lembram raízes que se ramificam, como se a retratada estivesse criando raízes. Essas três fotografias constituem uma instalação da qual fazem parte também pedaços de lenha empilhadas, como se fossem para uma fogueira. Ao chão, do lado das duas “fogueiras”, dois pequenos monitores apresentam ondas em um oceano se quebrando na praia. É importante lembrar aqui também o duplo sentido do título da obra: assentamento, entre outras coisas, é o ato de se assentar azulejos ou ladrilhos, ato de construção, portanto, que remete ao corpo dos que constroem no Brasil desde o século 16 – que assentaram, entre outros, os azulejos aos quais algumas das obras de Paulino se referem. Por outro lado, assentamento pode ser também um local que recebe os sem-terra, categoria de muitos negros expelidos da força de trabalho no Brasil, herdeiros do fardo da “libertação” dos escravizados de 1888. No candomblé, por fim, assentamento é um conjunto de objetos colocados em um lugar específico para homenagear um Orixá. Nesse local assenta-se a força do Orixá. Podemos pensar como em Assentamento circulam esses significados. Essa obra, de modo explícito, trata dos traumas, das feridas abertas pela escravidão. Feridas que não se fecham. Trauma vem do grego e significa ferida. Não existe suturação possível para quatro séculos de regime escravocrata ou para a violência do tráfico de pessoas escravizadas. Paulino nos fala dessa violência, no entanto, não reproduzindo as famosas imagens de Rugendas e Debret que retrataram os gestos de tortura dos colonizadores e de seus algozes sobre os corpos negros, que povoam os livros didáticos no Brasil (produzindo uma associação que naturaliza a relação entre “corpo negro” e “corpo violentado”). Antes, ela opta pela costura inexata, por mostrar a fragilidade desse corpo de pessoas que foram objetificadas pela escravidão, pela fotografia, pela ciência e pelo voyeurismo.[9] As imagens dos “corpos escravizados” no século 19 colocam-nos apenas nesses dois lugares: do trabalho ou do sofrimento. Rosana Paulino opta por fazer um assentamento, um ritual de homenagem, de religadura, impossível, mas necessária, com o passado que não passa. Coração, útero e raízes não restituem a vida ou curam as feridas, mas servem para deslocar nosso modo de nos aproximar dessas imagens fantasmáticas do passado, permite iniciar um diálogo com os mortos, abre uma varanda sobre o oceano, contextualizando a escravidão no mundo afro-atlântico. Restituir raízes aos que foram cortados delas, dar-lhes descendência e vida, mesmo que uma sobrevida, é um trabalho delicado ao qual a arte de Paulino tem se dedicado de modo original e poderoso.
Cena de “(Outros) Fundamentos #1”, de Aline Motta. Foto: Cortesia da artista
Aline Motta: reflexos de um (des)encontro
Estabelecer uma corrente de memória que ao mesmo tempo costure com sua nervura o território brasileiro na sua longa história de escravidão e nunca realizada libertação e, ao mesmo tempo, abra uma varanda sobre o oceano são partes de um mesmo projeto mais ou menos explícito dentro da produção da arte afrodescendente. No caso da artista niteroiense Aline Motta, por exemplo, com sua trilogia de videoinstalações, isso fica evidente. Suas obras Pontes sobre Abismos (2017), Se o mar tivesse varandas (2017) e (Outros) Fundamentos (2017-2019) apresentam, a partir de uma narrativa em off da autora, com imagens captadas em Serra Leoa, na Nigéria e em diversos locais de sua origem no Brasil, a história de uma busca por fragmentos de passado visando instituir um “assentamento” (para retomarmos a imagem de Paulino) no presente. Suas obras nascem a partir de um momento de ruptura, de quebra de um “segredo”, de uma camada de silêncio dura que manteve na penumbra a sua origem, ainda no século 19, na prática de um filho de aristocrata que violou a sua bisavó. Sua avó porta em sua certidão de nascimento apenas o nome de sua mãe e a qualificação de “filha natural”. A partir dessa descoberta, da violência recalcada, dessa origem negativa, a obra de Aline se desdobra como um enorme rio caudaloso que jorra, repleto também de fotografias de família que, em seus vídeos, navegam literalmente boiando pelas águas do oceano Atlântico e por rios do Brasil e da África. Nessas obras plenas de transparência, de água e de espelhos, de superfícies que (se) refletem para nós refletirmos, a artista busca os caminhos que podem religar os fios quebrados, de sua história de família e os que ligam, também, os continentes das duas margens do Atlântico sul.
No final de sua obra (Outros) Fundamentos assistimos a cenas na cidade de Lagos com pessoas sobre canoas e à beira do rio portando pequenos espelhos em suas mãos. A narradora fala: “Se pertencer é uma ficção, posso apontar um espelho para a Nigéria e ver o Brasil? O inverso também é possível? Para além do oceano, um aponta o dedo para o outro e pergunta: é você mesmo? Por que demorou tanto?”.
Palavras finais
Como no Manifesto Tardio, de Rubem Valentim, também Aline Motta pontua essa temporalidade do “demorar”, o après coup que, como vimos, não é nada mais do que a temporalidade do trauma, com o seu retardamento característico. O tempo do trauma é um tempo que nos atravessa, que faz com que o tráfico negreiro, a violência de quase quatro séculos de escravidão e as políticas eugenistas e genocidas contra os negros que existem até hoje sejam parte de um mesmo presente. Trata-se de um passado que não passa. A arte negra contemporânea brasileira, que procurei apresentar aqui a partir de seu difícil nascimento, que se ergueu contra tantos apagamentos, recalcamentos e tantas mortes e violência, essa arte de certa forma mora nesse “demorar” de que Aline nos fala. Habitar a demora implica sempre uma urgência de falar, de inscrever infinitas histórias não simbolizadas, não imaginadas, ainda não traduzidas em imagens. As obras de tantos artistas aqui mencionados e dos não mencionados são verdadeiras construções híbridas, marcadas pela montagem, pela costura, por serem coletas de cacos e escombros, por serem instalações, impressões gráficas ou fotográficas, performances e cenas teatrais. A força desses dispositivos artísticos consiste em serem trabalhos de memória que lançam e abrem diante de nós novos territórios, ajudam a erguer novas casas para habitarmos para além do desabrigo e do mal-estar. Esses dispositivos rompem como picaretas muros de esquecimento e de silenciamento forçado. Como afirmei na abertura deste texto, a impressionante força e originalidade da arte negra brasileira contemporânea também responde à terrível ascensão de neo-fascismos que repetem hoje seus desígnios genocidas.
A arte negra existe apenas em um devir, em um construir-se que é paralelo ao devir negro. Para ela existir, artistas, críticos e curadores precisaram desvencilhar-se de séculos de uma historiografia brancocêntrica que invisibiliza a arte negra. Curadores precisaram desvencilhar-se de sua cegueira colonial para perceber que a arte negra não é apenas um afluente da “arte brasileira”, mas constitui um campo cultural e simbólico que, pelo contrário, deve ser lido no contexto da diáspora negra, para além da máquina trituradora das diferenças do dispositivo da nacionalidade. Pensar em uma arte afro-brasileira só tem sentido se o termo “brasileira” servir para localizar o espaço da diáspora, o seu contexto, e não para impor limites nacionais no sentido da construção de uma ilusória grande “arte brasileira”. A arte negra transcende as fronteiras da colonialidade, ela explode o código usual da história da arte com suas histórias nacionais, lineares e ascendentes, pontuada por seus “grandes vultos”. Ao construir seus teatros de memória que possibilitam a imaginação de outros espaços de ação lúdica, essa arte negra aqui tratada nos instiga a repensar o próprio sentido da arte e de suas fronteiras.
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[1] Adolescente de 14 anos baleado por forças policiais em meio a uma ação realizada, contra qualquer razoabilidade, durante a quarentena devido à pandemia de covid-19. O crime cometido por forças do Estado se deu no dia 18/05/2020 no município de São Gonçalo, região metropolitana do Rio de Janeiro, quando João Pedro brincava dentro de sua casa com outras crianças.
[2] No contexto dos estudos subalternos, Chakrabarty repensou a história do ponto de vista dos grupos subalternos, procurando redimi-la da visão colonial. Com ele, os agentes passaram a ser reconhecidos nesses grupos subalternizados. Esse ponto de vista encontra um antecessor em Walter Benjamin que em suas teses “Sobre o conceito da história”, de 1940 afirmou: “O sujeito do conhecimento histórico é a própria classe oprimida combatente. Em Marx, ela aparece como a última classe escravizada, como aquela que se vinga, que vai consumar o trabalho de libertação em nome de gerações [inteiras] de massacrados.” (2020, p. 46) Mas, além dessa virada copernicana do conhecimento e da ação históricas, Chakrabarty pensa criticamente a estrutura de dominação na Índia moderna, com suas camadas de domínio político nacional associado ao uso de códigos e instituições britânicos. Ele propõe desconstruir a teleologia do historicismo (também presente em Marx e nos marxismos) e a ideia de Modernismo como modelo universal. Sua proposta dá-se no contexto não apenas a virada epistemológica do ponto de vista subalterno, mas também do pós-colonial. Ele propõe escovar a história a contrapelo, restituindo elementos empoderadores de memórias coletivas que são heterogêneos ao modelo europeu, passando-se a valorizar passados subalternos. Trata-se de uma veemente recusa do modelo colonizador da episteme iluminista, universalizante e que se considera o único capaz de portar a “objetividade”. Trata-se também de uma denúncia da violência das práticas coloniais, tanto em termos da violência física como da simbólica. Seu apelo por um mundo plural e não monolíngue é fundamental em nossos dias de fundamentalismo supremacista.
[3] Evidentemente não se trata aqui de criticar Kant por ter sido “eurocêntrico”, posto que não existia outra possibilidade na sua Königsberg do século 18, mas, antes, devemos criticar o uso não refletido e acrítico de sua obra estética hoje.
[4] Trata-se de um bairro central de São Paulo, mas que até meados do século 19 era ainda periférico e onde se concentrava o terror a que os escravos vindos da África eram submetidos: o pelourinho e a forca. O nome do bairro aparentemente é uma homenagem à abolição da escravidão oficialmente ocorrida em 1888.
[5] No seu artigo do catálogo da exposição de 1988, Aracy Amaral escrevia ainda de modo não crítico com relação à cumplicidade entre os dispositivos estético e o colonial: “os países novos da América se apresentam como uma real fonte de miscigenação e nova realidade. A identidade passa a ser baseada, assim, a partir de nosso meio-ambiente, ou melhor, de nossos processos tumultuados de deculturação, ou aculturação segundo os modelos dos centros hegemônicos de arte ocidental.” (1988, 272) Assim afirma-se a máquina colonial com seu trabalho de destruição do “outro”. A autora ainda enfatiza o mito da “ausência de memória” (1988, 272) dos brasileiros, quando se trata na verdade de reconhecer uma luta pelas memórias, na qual as histórias da violência contra os negros e da resistência negra são sistematicamente sufocadas.
[6] Com relação a essa origem da arte negra brasileira no candomblé é essencial lembrarmos da figura de Arthur Bispo do Rosário (1909 – 1989), um dos mais aclamados artistas negros brasileiros, com obras expostas nas Bienais de São Paulo e Veneza. Seu trabalho, marcado pelo colecionismo, pela montagem, pela costura, construção de narrativas e por serializações utilizava muitos códigos claramente derivados dos cultos afro-brasileiros. Na fusão de religiosidade e trabalho artístico ele criou um caminho original e incomparável no cenário da arte do país que ao mesmo tempo forçou e desconstruiu o dispositivo estético. (Hidalgo, 1996) As performances do artista Ayrson Heráclito, que unem religiosidade, rito e o campo estético deslocado, desdobram essa trilha aberta por Bispo do Rosário.
[7] Além dos aqui já mencionados artistas, poderíamos lembrar de Sidney Amaral, Charlene Bicalho, Dalton Paula, Janaína Barros, Antônio Obá, Juliana Santos, Priscila Rezende, Lídia Lisboa, Renata Felinto, o curador e artista Daniel Lima, Tiago Gualberto, Janaina Barros, Moisés Patrício, Marcio Marianno, Peter de Brito, Ana Lira, Ayrson Heráclito, Jota Mombaça, o bailarino e performer Luiz de Abreu, o quadrinista Marcelo D’Salete e a Frente 3 de Fevereiro.
[8] Recordo também de Eustáquio Neves, outro importante precursor da arte negra contemporânea, recordo Paulo Nazareth, figura chave na arte negra atual também e das fotografias de Ayrson Heráclito. A fotografia é igualmente fundamental nas obras de Rosângela Rennó, de Claudia Andujar, de Paula Trope, Miguel Rio Branco, entre tantos outros artistas contemporâneos não diretamente relacionados com a arte afrodescendente. (Diegues & Ortega 2013)
[9] É importante confrontar essa obra de Paulino com a obra impactante da artista norte-americana Carrie Mae Weems, From Here I Saw What Happened and I Cried, 1995-6, que também é feita a partir da apropriação de fotografias de negros do século XIX, submetidos por dispositivos científicos, fotográficos, sexistas, ao exército, como ama de leite etc. Isso mostra como as histórias afro-atlânticas se repetem para além das fronteiras nacionais. O sistema colonial era e é global.
Rio Jutaí. Estado do Amazonas, Brasil, 2017. Foto: Sebastião Salgado.
“Por que retornei à Amazônia?”, indaga Sebastião Salgado na apresentação de seu recente trabalho nomeado após “a floresta que estende-se ao infinito”. Agora, oito anos do início da sua empreitada na Amazônia, o fotógrafo consegue responder que voltou não pelo lado sombrio – os incêndios, o desmatamento, o envenenamento dos rios pelos garimpeiros, o tráfico de drogas -, mas para saborear a beleza incomparável da Amazônia e renovar seu vínculo com os povos nativos que cuidam da floresta com tanta diligência.
Vista da exposição no Sesc Pompeia, em São Paulo. Foto: Everton Ballardin/Cortesia Sesc
“Quando eu comecei a fotografar a Amazônia, ela não estava de nenhuma forma em evidência. Eu achei que eu tinha que fazer as fotografias. Eu senti o bioma ameaçado e vi uma diferença muito grande entre a Amazônia dos anos 1980 e depois a Amazônia do início dos anos 2000”. Sem um projeto específico em mente (fosse a publicação ou a mostra itinerária que agora se encontra no Sesc Pompeia, em São Paulo), a urgência de Salgado o levou a percorrer a floresta do estado do Pará ao Amazonas, do Acre a Rondônia, Maranhão ao Mato Grosso. As abrangentes movimentações eram sempre antevistas pela FUNAI – Fundação Nacional do Índio, a responsável por proteger os direitos dos povos indígenas de todo o território nacional. “Antes de finalizar os planos de visita a um grupo específico, eles consultavam a comunidade para saber se estaria disposta a receber alguém de fora. No meu caso, um fotógrafo”, conta. “Por intermédio da FUNAI, contratei um tradutor para cada viagem, geralmente alguém da etnia em questão, que havia passado um tempo fora e, por isso, aprendido o português”. Prévio à entrada na selva, Salgado e sua equipe se abasteciam de comida, já que parte do acordo para estar lá era não depender da comunidade para se alimentar. Outros ítens essenciais também viajavam com eles: soro antiofídico, painéis solares, solução para purificar a água, iPod. Para estarem justos e contratados era necessário também completar “quarentena” de dez dias quando chegassem ao designado posto da FUNAI, com o intuito de evitar a transmissão de doenças, vírus e bactérias de fora aos povos indígenas.
Família Asháninka. Estado do Acre, Brasil, 2016. Foto: Sebastião Salgado.
Desde a adoção da Constituição brasileira de 1988, 26% da Amazônia – equivalente a 13% de todo o território brasileiro – foram reservados exclusivamente às comunidades indígenas, lembra o fotógrafo. Nessa imensidão, Salgado registrou eventos naturais majestosos pelo ar, a exemplo dos rios aéreos e montanhas amazônicas, e água, através de semanas navegando o Rio Negro. De volta à terra acompanhou tribos na caça, pesca e nos rituais em que sua presença era permitida. “Na maioria das aldeias, a densidade do matagal bloqueia por completo a vista à distância. O próprio céu é emoldurado por árvores gigantes. Quando os membros das comunidades indígenas vão caçar ou pescar, eles desaparecem completamente em espaço de segundos. Portanto, sempre que os acompanhava, tinha o hábito de ficar colado aos seus calcanhares, não os perdendo de vista nem um segundo por medo de me perder”.
Dentro das aldeias, um estúdio móvel também era improvisado e chamava aqueles que se sentiam à vontade para ter seu retrato tirado. Apesar da artificialidade, a lisura da tela – em oposição à textura da vegetação – forneceu um campo mais apropriado para que objetos e costumes tradicionais viessem à tona, sem distrações. Enquanto isso, sua jornada pelo Rio Negro e através do Parque Nacional de Anavilhanas o levou à foz do rio Jaú, navegando em velocidade reduzida, a apenas alguns metros das árvores. “Pegamos chuvas tão densas que fizeram parar o barco por total falta de visibilidade. As formações de nuvens eram tão bonitas, tão volumosas e tão dramáticas que nos faziam sentir o tamanho da nossa insignificância”. Piranhas e jiboias gigantes impediram que ele mergulhasse no Rio Negro, mesmo assim, Salgado conseguiu banhar-se na umidade dos rios aéreos – torrentes de vapor que se formam sobre a floresta -, fotografá-los do seu interior. Do alto, o fotógrafo teve dimensão dos maiores massivos de montanha do Brasil: “A Amazônia com a qual estávamos acostumados era um território plano, com rios que a serpenteavam; uma parte da Amazônia realmente é uma grande planície, mas uma grande parte é uma quantidade de montanhas incrível”. Tais paisagens aéreas, raras em documentação fotográfica, foram exploradas com a ajuda do exército brasileiro, que permitiu a imersão de Salgado em suas missões. Segundo ele, as distâncias são tamanhas que somente os militares, que cobrem todo o país e que têm dezenas de bases disseminadas, podem chegar a esses locais.
Rio Jutaí. Estado do Amazonas, Brasil, 2017. Foto: Sebastião Salgado.
“O exército brasileiro tem uma característica muito interessante na Amazônia: a grande maioria do corpo, que são os soldados, a base do exército, é indígena”, conta Salgado. “Eles conhecem a floresta, eles vêm da floresta. E qual é a função de um exército? É defender a soberania nacional. E a Amazônia, o bioma amazônico, representa quase 50% [49.29%] do território brasileiro”. Para Salgado, o nível de banditismo na Amazônia atual é preocupante e faz imprescindível tal defesa. “O governo atual, que é um governo aparentado das milícias, facilitou e levou a violência para a Amazônia de uma maneira incrível”. Ele alerta, no entanto, para as diferenças entre os jovens oficiais que estão na floresta e os chamados militares da reserva. “O que é uma contradição, você vê, a participação de oficiais, principalmente oficiais da reserva do exército brasileiro, no governo predador atual – que são velhos generais ainda aparentados com a ditadura, velhos generais ainda muito próximos de uma determinada ideia de direita – tem uma diferença brutal com os novos oficiais, com a base, que são os soldados, que estão lá dentro da Amazônia defendendo ela”.
O fotógrafo lembra que, durante a carreira, seu contato com as tropas brasileiras se deu mais fora do país que dentro do território nacional, fosse em missões das Nações Unidas em Angola, ou na Guerra da Bósnia, onde os soldados participaram desarmados como observadores da própria ONU. Esse contato criou nele uma admiração que o compele a fazer o seguinte pleito politicamente: “Para mim, a esquerda brasileira vai ter que mudar [em relação ao exército]. A esquerda brasileira condena até hoje o exército brasileiro [por sua participação no Golpe de 1964], mas eu acho que ela teria que mudar, teria que fazer um movimento em direção ao exército, porque excluindo o exército e se excluindo do exército ela deixa o lugar para a extrema direita entrar lá dentro como entrou com o governo Bolsonaro”. Na visão de Salgado, a defesa desse movimento vem da essencialidade das forças armadas em todos os países do mundo; “sejam de esquerda, sejam de direita, não importa, é um corpo técnico que o país depende dele, que é uma instituição importante, forte e que tem que ser neutra”.
Voltar ao planeta
Aos 78 anos, Salgado acredita “na ideia de abrangência, de comunidade, de trazer dentro do seio do que você quer mostrar; o opositor, o opositor não é um inimigo que você tem que abater no radicalismo, eu acho que o opositor é um parceiro futuro que você tem que trazer, que conquistar”.
Por outro lado, uma injeção de certo tipo de ativismo mais radical pode ser substancial às questões do meio ambiente e sua preservação, afinal “a ecologia neutra torna-se cúmplice da injustiça de um mundo onde a comida sadia, a água limpa, o ar puro e o silêncio não são direitos de todos – mas, sim, privilégios dos poucos que podem pagar por eles”, como sugeriu Eduardo Galeano. Nesse sentido, a modernização desenfreada preocupa a ambos, “hoje nós não pertencemos mais ao nosso planeta…” lamenta Salgado destacando o nível de dependência da sociedade urbanizada ao mundo da via expressa. “Não sabemos viver sem a assistência que foi criada em volta da gente, nós perdemos essa habilidade em relação à terra, em relação ao planeta e eu acho que nós teríamos que organizar a volta ao planeta, nós tínhamos que aprender do planeta, que voltar espiritualmente ao planeta se a gente quiser sobreviver como espécie”.
Seria a crítica de Salgado suficientemente categórica? Ao escolher destacar apenas a vida na floresta, o fotógrafo corre o risco de apresentá-la imortal?
“A Amazônia ainda é um paraíso, ainda é um lugar dos mais maravilhosos do planeta, e que tem que ser divino. Amazônia é o paraíso e o paraíso tem que ser defendido, nós não podemos jogar o paraíso no inferno”, defende ele. Mas salvo o nobre mérito da questão, talvez o dilema resida na possibilidade de que as imagens – sublimes, de belíssimos contrastes marcantes, com céus atormentados e imponentes – não desencadeiem o impulso de fazer algo a respeito para que o bioma não percorra viagem contrária de Dante. Pode-se dizer que o perigo de apresentar o bioma como fatia do sagrado é que, nessa espécie de narrativa, mesmo após o fim dos tempos ainda há a segunda vinda do salvador. Cresce a ameaça do discurso messiânico. A passividade não se julga tão grave. A cobrança do compromisso é um acordo entre cavalheiros.
Já seu Instituto Terra, fundado em 1998 com a esposa e sócia, arquiteta e ambientalista Lélia Wanick Salgado, atende à urgência que outro bioma brasileiro requer, a Mata Atlântica. O instituto é situado na cidade mineira de Aimorés, onde se encontrava a antiga fazenda de gado da família do fotógrafo e, em pouco mais de 20 anos, viabilizou o plantio de mais de 2 milhões de mudas de árvores (utilizando mais de 290 espécies nativas de Mata Atlântica) dentro da Fazenda Bulcão, área reconhecida como reserva particular de patrimônio natural (RPPN). Nesse tempo, o instituto também investiu na recuperação de nascentes da Bacia Hidrográfica do Rio Doce e na produção de mudas nativas – 6 milhões até agora – para reflorestamento próprio e de terceiros. Além disso, até 2023, o Terra espera ter concluído a primeira fase do seu projeto de banco genético da Mata Atlântica. O programa foi iniciado em 2018 e seu objetivo é garantir a continuidade de espécies encontradas no Vale do Rio Doce, ressaltado pelo próprio instituto como “uma área de Mata Atlântica altamente degradada e com a ameaça de extinção de diversas espécies nativas”. As logísticas e o andamento da empreitada são atribuídos a Lélia, quem assina a expografia da recente mostra no Sesc Pompeia, como também a edição, concepção e realização do livro Amazônia. Inclusive, foi dela a ideia de que a exposição fosse repleta de música. “Amazonia é uma região muito musical, os indígenas são muito musicais, eles cantam muito, tem muitas festas e muitos instrumentos. Lélia viajou muito na Amazônia comigo e queria, absolutamente, que nós trouxéssemos música na exposição”.
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Vista da exposição no Sesc Pompeia, em São Paulo. Foto: Everton Ballardin/Cortesia Sesc
Vista da exposição no Sesc Pompeia, em São Paulo. Foto: Everton Ballardin/Cortesia Sesc
Vista da exposição no Sesc Pompeia, em São Paulo. Foto: Everton Ballardin/Cortesia Sesc
Vista da exposição no Sesc Pompeia, em São Paulo. Foto: Everton Ballardin/Cortesia Sesc
Com o propósito de criar a trilha sonora a servir como fio condutor da exposição, Jean-Michel Jarre, compositor e produtor popular na França (tido como um pioneiro da música eletrônica), teve acesso aos acervos do Museu de Etnologia de Genebra, que vem recuperando sons da Amazônia inteira durante anos. Os cantos e instrumentos indígenas aparecem também em outra experiência sonora, a projeção com os retratos dos integrantes das tribos que Salgado visitou. A música nesse espaço ficou a cargo do grupo Pau Brasil, de São Paulo, junto com Marlui Miranda. Uma última projeção de paisagens homenageia o maestro Heitor Villa-Lobos tocando “Erosão (Origem do rio Amazonas)”.
Ao fim de Amazônia, Salgado apela: “Para sobreviver como cultura, esses povos não podem ser simples objetos de interesse antropológico. [Eles] devem contribuir e também se beneficiar do desenvolvimento sustentável da Amazônia por meio de sua extraordinária riqueza botânica, renovável em especiarias exóticas, nozes ou plantas com propriedades medicinais e cosméticas”. Nessa última fala, a defesa dos direitos indígenas e pela preservação do bioma caminha junto com o pragmatismo, tendo em vista que “de acordo com imagens de satélite, em contraste com as terras privadas, com gigantescos parques nacionais ou terras públicas de propriedade do Estado, houve pouquíssima ocorrência de incêndio ou atos de desflorestamento dentro das reservas indígenas”. E como o próprio fotógrafo já havia constatado antes: “Quando se abate uma parte da floresta é como se essa floresta não tivesse valor… A gente joga no chão, põe fogo, destrói para implantar pecuária”. E quanto custa a floresta? “O preço que é necessário colocar para reconstruir esse hectare de floresta”, ele responde. “Se 10 mil hectares de floresta são derrubados, você está derrubando mais de 200 milhões de dólares. Jamais na história dessa propriedade rural – que vai se fixar onde a floresta foi destruída – produzirá a quantidade de capital que ela destruiu”.
Anita Malfatti, Mário de Andrade, Menotti del Picchia, Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral; o desenho “Grupo dos Cinco” não ilustra este artigo por conta do valor exorbitante cobrado para sua reprodução pública. Fotos: Reprodução
Grupo dos cincoé um desenho que Anita Malfatti produziu no segundo semestre de 1922, alguns meses depois da Semana de Arte Moderna. Nele, a artista, além de retratar a si mesma deitada em um divã no ateliê da amiga Tarsila do Amaral, registra também Mário de Andrade e Tarsila ao piano e, deitados sobre um tapete, Menotti Del Picchia e Oswald de Andrade. No desenho, portanto, foram representados cinco dos principais modernistas de São Paulo que, por um período breve, desenvolveram uma forte convivência. Observá-los reunidos poderia nos levar a imaginar uma coincidência de posicionamentos e de propósitos. Mas sabemos que as coisas não ocorreram dessa forma. Este texto, não sem alguma tristeza, anotará algumas questões ligadas aos integrantes desse time que no futuro poderão se transformar em estudos mais esclarecedores da realidade do ambiente artístico e cultural de São Paulo.
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O que chama a atenção no Grupo dos cinco (caneta e lápis sobre papel) é que tanto a delicadeza do traço e do uso da cor quanto a busca da síntese formal – que lhe confere um certo “primitivismo” proposital – nada têm a ver com a produção que Anita realizou entre o início dos anos 1910 até 1917. Aqui ela está bem longe de suas motivações estéticas derivadas das vanguardas históricas (expressionismos, futurismo etc.), agora mais atenta e aderente a um realismo sintético, ligado ao Retorno à Ordem[1].
O desenho afetuoso, mais interessado em ressaltar o companheirismo que envolvia os cinco amigos, faz com que Anita neutralize a suntuosidade fin-de-siècle do ateliê de Tarsila, mantida por toda a década de 1920. Encontram-se atenuados no desenho tanto o requinte das texturas das inúmeras almofadas e do tapete quanto o torneado sofisticado de uma cadeira ao fundo – como também os elementos decorativos do divã onde a retratista se representa deitada.
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Mario Amaral, violonista popular descrito no texto de Menotti del Picchia. Foto: Reprodução
Se Anita é delicada e sintética em sua descrição do ateliê, o mesmo não ocorreria com um texto de autoria de Helios (pseudônimo de Menotti Del Picchia) em que ele também discorre sobre uma reunião havida naquele mesmo ateliê. Porém, ao invés de cinco personagens do desenho de Anita, Helios descreve seis pessoas: as mesmas que formavam o grupo dos cinco, com exceção de Oswald, substituído por Jacques D’Avray – pseudônimo do senador Freitas Valle[2]. Por último, Mario Amaral, violonista popular, reverenciado no início dos anos 1920 em São Paulo, mas hoje pouco conhecido[3]. Os cinco primeiros estão ali reunidos para ouvir a música do violonista:
No largo atelier de almofadões búlgaros, onde gritavam as cores dos mantons de Manilla, riquezas do bric-á-brac fidalgo dessa esgalgada e linda artista Tarsila do Amaral, o violão de Mário evocava toda a música de raça…
Absortos, olhar vago, Jacques d’Avray, o poeta estranho das Baladas; Mário de Andrade, o longo Pierrot taciturno dos desvarios da Pauliceia; Anita Malfatti, a incompreendida criadora do Homem Amarelo; Helios, desalteravam sua sede de beleza no cascatear cristalino de harmonias que brotavam, como num jorro vivo do violão mágico e sonoro…
Fora andava uma tarde [ilegível], a esmaecer em lacas violetas, esmolando aos reflexos dos vidros uma esmola de luz, para seus olhos mortos. Nenhum rumor profano feria o religioso silêncio, cheio apenas pela música divina que as mãos nervosas de Mário Amaral acordavam.[4]
Se Anita zera o ambiente pesado e exótico do ateliê, parece que é justamente a dimensão meio inebriante desse clima quem dirige a escrita de Helios, totalmente marcada por um viés decadentista, repleto de uma adjetivação afetada, distante da objetividade moderna. Um pouco mais do texto:
A música, sugestiva, emotiva recortou, no crepúsculo que invadira o atelier, a paisagem brasileira, na hora parada do dia em transe de morte, dolente de melopeias, ciciante de favônios esfrolando as ervas macias. Depois, no “Céu Azul” alargou-nos na alma um firmamento vasto, uma região de paz e de eternidade… Parecia haver corações aos soluços, lá, no alto, onde as paixões desbordam livres de convencionalistas e de peias.
A grande arte de Mario Amaral tem, entretanto, todos os prismas. E, aos “pizzicatos” ingenuamente grotescos de “Melindres”, preciosos, saltitantes, sensitivos, pareceu-nos ver escorregarem no losango do vasto tapete persa figuras bizarras de bailarinas miúdas e lépidas, de pesinhos ariscos, de gestos dengosos, deslizando, sorriso na boca, deslizando, sorriso na boca, alma nos olhos, nua ciranda brincalhona e trepidante ritmada pelas sístoles dos nossos corações em festas…[5]
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Se Anita, no segundo semestre de 1922, se encontra conectada com questões próprias da arte internacional daquele período – uma época de refluxo das vanguardas e uma aderência a um realismo sintético efetivo, típicos do já mencionado Retorno à Ordem – percebe-se, tanto pela pintura que produzia à época quanto pelo décor de seu ateliê, que Tarsila do Amaral ainda possuía uma subjetividade atrelada ao período anterior à Primeira Grande Guerra, questão que a artista começaria a querer superar justamente a partir do conhecimento que adquirira com seus novos amigos brasileiros, Anita, Menotti, Mario e Oswald.
Porém, em 1922, seu ateliê estava mais próximo da descrição de Helios do que do desenho de Anita. E tanto Tarsila quanto Helios nunca abandonariam totalmente aquele apego à suntuosidade amaneirada e ao exótico. Fato que, no caso da pintora, pode ser percebido, tanto na manutenção daquele clima empolado do seu ateliê – ainda no final dos anos 1920 -, quanto pelos trajes extravagantes e vistosos que a artista adorava ostentar em determinadas ocasiões. Por outro lado, se quisermos perceber o quanto Tarsila também buscava, em sua produção, certo interesse pelo exótico e misterioso, basta lembrarmos sua “fase antropofágica”: à secura potente, estrutural de grande parte de sua produção pau-brasil, ela opõe a sensualidade e os enigmas da nova fase.
O ateliê de Tarsila do Amaral, em registro do final da década de 1920. Foto: Reprodução
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Em Helios permanecerá o gosto pelo amaneirado e pelo raro, uma vez que, tanto ele quanto seu “mentor”, Menotti Del Picchia, não superaram o pendor pelo excesso da linguagem finissecular, repleta de alegorias, malabarismos verbais e palavreado rebuscado. Representante do lado “B” do modernismo, Helios – Menotti -, adotará, depois daquele retrato conjunto, um nacionalismo extremo, aderindo aos regimes mais conservadores e restritivos, o que tenderá a intensificar seu discurso beletrista, antiquado. Por justiça, no entanto, seria importante também marcar que Menotti em certas ocasiões – sobretudo em suas crônicas sobre poesia e literatura brasileiras – assumirá muitas vezes uma estrutura de texto mais próxima dos outros modernistas (sobretudo de Oswald), às vezes “a sério”, às vezes com indisfarçável intuito trocista.
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Sem saber ao certo onde terminava a blague e principiava a seriedade, o fato é que Mário de Andrade – outro dos personagens do desenho de Anita e da crônica de Helios -, em 1922, já dá sinais de ter ingressado no Retorno à Ordem, como Anita. É o que fica claro em uma determinada parte do Prefácio Interessantíssimo que o autor escreveu para seu livro de poemas, lançado naquele ano, Pauliceia desvairada:
(…) Ora, segundo modernos, erro grave o Impressionismo.
Os arquitetos fogem do gótico como da arte nova, filiando-se, para além dos tempos históricos, nos volumes elementares: cubo, esfera etc. Os pintores desdenham Delacroix como Whistler, para se apoiarem na calma construtiva de Rafael, de Ingres, do Greco. Na escultura Rodin é ruim, os imaginários africanos são bons. Os músicos desprezam Debussy, genuflexos diante da polifonia catedralesca de Palestrina e João Sebastião Bach. A poesia… “tende a despojar o homem de todos os seus aspectos contingentes e efêmeros, para apanhar nele a humanidade”…Sou passadista, confesso (…)[6]
Como toda mentira tem um fundo de verdade, não estranho que, por trás da inteligente bruma jogada no texto (foi blague ou era a sério?), Mario de Andrade estava glosando o pensamento presente no manifesto Depois do Cubismo, escrito em 1918 pelos pintores Ozenfant e Charles-Edouard Jeanneret (Le Corbusier):
(…) O Cubismo tornou-se uma arte decorativa de ornamentalismo romântico.
Há uma hierárquica nas artes; a arte decorativa está na base, a figura humana no topo.
A pintura é boa quando as qualidades de seus elementos plásticos o são, não pelas suas possibilidades de representação ou de narrativa.
O PURISMO expressa o invariante, não as variações. O trabalho não deve ser acidental, excepcional, impressionista, inorgânico, protestador, pitoresco, mas, pelo contrário, geral, estático, expressão do invariável.
O PURISMO quer conceber claramente, executar lealmente, sem falsidades; ele abandona concepções desordenadas, execuções ásperas, sumárias. Uma arte séria deve banir toda técnica que não for fiel ao real valor da concepção.
A Arte consiste na concepção antes de qualquer outra coisa.
A Técnica é apenas uma ferramenta, subordinada à serviço da concepção.
O PURISMO teme o bizarro e o “original”. Ele procura o elemento puro no sentido de reconstruir pinturas organizadas que devem ser elas próprias fatos da natureza.
O método deve ser correto o suficiente para não obstruir a concepção.
O PURISMO não acredita que retornar à natureza signifique copiar a natureza.
Ele admite que toda deformação é justificada pela procura do invariável.
Todas as liberdades são aceitas na arte exceto aquelas que não são claras[7]
Em 1920, os dois pintores lançarão uma das revistas mais influentes do Retorno à Ordem francês e europeu: L´Esprit Noveau, publicada até 1925. Mário de Andrade a colecionava e parece ter tido a publicação como parâmetro. Para se ter uma ideia de como L´Esprit Noveau impregnou seu pensamento no “Prefácio Interessantíssimo”, basta atentar como ele, naquele texto, está impregnado de classicismo. Como a revista:
Este caráter “clássico” do purismo fica evidente já na primeira edição de L’Esprit Nouveau, quando seus editores publicam uma página com seis fotos de obras colocadas na vertical, em duas colunas contendo três reproduções. Ao lado das duas reproduções que encabeçam as colunas (a reprodução de uma pintura de Monet e de uma escultura de Rodin) está escrita a palavra mauvais (má). Ao lado das reproduções de pinturas de Juan Gris e Georges Seurat e das reproduções de uma escultura africana e de uma escultura arcaica grega está escrita a palavra bon (boa)[8].
As concepções estéticas de Mário de Andrade serão em grande parte moldadas pela publicação francesa. Já em 1922 é possível notar como, em sua crítica de arte, o autor vai tomando como parâmetro esses valores transmitidos por L Ésprit Noveau, atentando para artistas que até então não chamavam sua atenção, como Gastão Worms, Navarro da Costa, Tulio Mugnaini e Hugo Adami – todos muito distantes do experimentalismo vanguardista, e presos aos “valores eternos” da arte. Esse apego do crítico ao “realismo clássico” do Retorno à Ordem ganhará legitimidade total dentro do modernismo de São Paulo, quando Mário encontra a obra de Lasar Segall[9] – “finalmente um pintor realista! – e, na sequência, Candido Portinari[10].
Nu, 1934, de Gastão Worms, do Acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo
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Candidamente deitado no tapete com Menotti, Oswald de Andrade se transformaria, daquele ano em diante, numa das figuras mais controversas da cultura do país.
Filho único de um casal abastado, proprietário de parte significativa da zona oeste de São Paulo, Oswald seria talvez o primeiro dos cinco amigos de 1922 a romper com a subserviência acrítica dos modernistas à cultura vinda da Europa, o que não significou assumir qualquer tipo de nacionalismo cego. Pelo contrário: desde a poesia “de exportação” da primeira metade da década de 1920, até a explosão do movimento antropofágico, Oswald lutou pela devoração crítica do legado europeu, devolvendo uma cultura autóctone, mas jamais xenófoba.
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Como sabemos, aquela cena representada por Malfatti expressa a união de propósitos e expectativas presentes nas relações entre aquelas pessoas nos meses imediatamente posteriores à Semana. Logo, porém, esta situação começaria a mudar.
Se depois da produção daquele desenho Tarsila e Oswald principiam um romance que redundaria num breve casamento que mudou a fisionomia da arte no Brasil, o rompimento entre ambos significou o início de grandes transformações em suas vidas. De início, Oswald e Tarsila, separados, se inclinam ideologicamente à esquerda. Experiência breve para ela; para Oswald o início de um caminho com muitos obstáculos que o farão retornar à antropofagia enquanto projeto filosófico.
A recente publicação de seu Diário Confessional[11] apresenta um intelectual no final da vida, sofrendo com doenças reais e imaginárias, ao mesmo tempo em que buscava sobreviver, ele e sua família, à bancarrota financeira. Onde a paz e a tranquilidade para complementar sua obra exemplarmente? Não houve paz e serenidade no final da vida de Oswald.
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Amigas no início dos anos 1920, Anita e Tarsila também se distanciam com o passar do tempo, embora nos últimos anos de suas vidas tenham vivido situações semelhantes. Ambas, aos poucos, foram deixando a vitalidade de suas produções iniciais para entrarem num processo de desmoronamento que não permitiria que ambas constituíssem uma verdadeira obra.
Tal processo, iniciou antes com Anita que – saída dos experimentalismos alemão e norte-americano –, envereda por uma pintura de travo anacrônico, sem nenhum compromisso com uma “arte nacional”[12]. Esse não engajamento da artista ao nacionalismo dos temas de seus quadros fará com que a aceitação de seus trabalhos pelos outros modernistas se atenue cada vez mais, levando-a, como pintora, para uma situação de virtual apagamento dentro da cena paulistana. O reconhecimento de seu papel de “pioneira” do modernismo de São Paulo, que se inicia com alguma timidez após o final da Segunda Guerra Mundial, encontra uma artista já esvaziada, sem mais nada com que contribuir para o ambiente da arte local.
Mais dramático ainda foi o que ocorreu com Tarsila. Principal nome da pintura moderna durante os anos 1920, após meados da década seguinte sua carreira entra em franco declínio, agravado ainda mais pela tentativa de Tarsila, praticamente no final da vida, querer reviver a potência de sua pintura do início da carreira.
Anita e Tarsila, cada uma a seu tempo, pioneiras na renovação da visualidade do país; Anita e Tarsila, cada uma do seu jeito, no melancólico final de suas vidas, ícones da precariedade do meio artístico brasileiro.
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Mário de Andrade, o autor da principal obra do movimento antropofágico – Macunaíma – e de estudos e ensaios críticos valiosos para a cultura do país, falece sem os amigos de 1922, doente e amargurado. Como ele próprio declarou, já nos últimos anos de sua vida, dizia-se desconfiado do seu passado e dos rumos que dera para seu trabalho[13].
Rompera com Oswald havia anos e distanciou-se de Tarsila, Menotti e mesmo de Anita, com quem manteve por mais tempo uma próxima relação.
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Menotti Del Picchia, o Helios, sobreviveu a todos os amigos representados no desenho de Anita[14]. Até o final da vida aderente ao poder político e cultural do estado e do país, o intelectual tem uma produção poética e literária vasta, e uma produção jornalística – artigos e crônicas – que, apesar de já ter tido parte compilada e estudada[15], ainda aguarda novos estudos.
Durante sua trajetória, depois de ter sua imagem registrada no desenho de Anita, Del Picchia foi aumentando suas divergências estético/ideológicas com Mário de Andrade e com Oswald, sem, ao que parece, romper definitivamente com esse último. Inclusive, mereceria um estudo mais cuidadoso a relação conflituosa, mas quase sempre bem-humorada, que se estabelece entre os dois intelectuais durante os anos 1920, percebida em seus artigos publicados no Correio Paulistano, em que Del Picchia comentava e/ou glosava os textos de Oswald.
O espírito áulico que caracterizou a personalidade de Del Picchia, aliada à sua carreira política – sempre conectada ao poder, independentemente de onde ele emanava -, explicam como sua capacidade literária foi desperdiçada. Sua produção poética e literária, que nunca perdeu o acento passadista, poderia ter sido, quem sabe, melhor explorada, caso o intelectual se dedicasse mais a ela e não se dispersasse em agrados aos donos do poder.
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Grupo dos Cinco, obra que pertencia a Mário de Andrade, hoje faz parte do acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da USP – um dos centros de pesquisa mais significativos para o processo de institucionalização do modernismo de São Paulo.
Além do desenho de Anita, o Instituto preserva também obras fundamentais para a compreensão da arte no Brasil nas primeiras décadas do século passado. Faz-se necessário agora que mais estudiosos atentem para a importância de todas elas, para uma compreensão menos idealizada do movimento modernista e seus possíveis desdobramentos.
[1] – O Retorno à Ordem foi um fenômeno internacional ocorrido no período entre as duas guerras mundiais, em que artistas e críticos superaram a adesão total ou parcial às correntes das vanguardas históricas, percebendo-as como mais outros itens do passado.
[2] – O senador assinava seus poemas como Jacques D´Avray. Freitas Valle era uma figura importante na cena paulistana, não apenas por seu salon semanal, mas, sobretudo por ser o responsável pela bolsa de estudos que o estado de São Paulo concedia a jovens artistas plásticos e músicos.
[3] – Flávia Rejane Prando, em sua tese sobre o circuito do violão na primeira metade do século XX em São Paulo, faz referência a Mario Amaral Souza, como um importante violonista da cidade que teria morrido moço, entre 1925 e 1928. A autora cita uma obra de Mario Amaral – “Céu Azul” – que, por sua vez será mencionada na crônica de Helios. PRANDO, Flávia Rejane. O mundo do violão em S. Paulo: processos de consolidação do circuito do instrumento na cidade (1890-1932). São Paulo: Tese de Doutorado. PPG Música, ECA USP, 2021, pág. 186.
[4] – HELIOS (Menotti del Picchia). “Corações em êxtase…”. Correio Paulistano, 01 de setembro de 1922 p.5
[5] – Idem.
[6]ANDRADE, Mario. “Prefácio interessantíssimo”. Pauliceia desvairada, 1922. In ANDRADE, Mario. Poesia completa. Ed. crítica de Dileia Z. Mafio. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1987. Pág. 60.
[7] – Amédée Ozenfant, Charles-Edouard Jeanneret, Après le Cubisme,1918. Citato em: BALL, Susan L. Ozenfant and Purism. The Evolution of a Style 1915-1930). Yale University, 1978, pag.36.
[8] – Apud: CHIARELLI, Tadeu. Pintura não é só beleza. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2007, pág. 41 e segs.
[9] – Sobre como Mário de Andrade recebe a produção de Lasar Segall, consultar: “Segall realista: algumas considerações sobre a pintura do artista”. IN CHIARELLI, Tadeu. Um modernismo que veio depois. São Paulo: Alameda, 2012. Pág. 87 e segs.
[10] – Sobre como Mario de Andrade recebe a produção de Candido Portinari, consultar: CHIARELLI, Tadeu. Pintura não é só beleza. Op. cit. pág. 41 e segs.
[11] – ANDRADE, Oswald. Diário confessional (org. de Manoel da Costa Pinto). São Paulo: Companhia das Letras, 2022.
[12] – A preocupação com a produção de uma arte “nacional” era como que um prerrequisito para que os pintores fossem aceitos no universo modernista de São Paulo. Anita, quando deixou as experiências alemãs e norte-americanas, deu pouca atenção para esse problema, o que acabou deixando-a à margem de todo o processo.
[13] – ANDRADE, Mário de. “O Movimento modernista”. In Aspectos da literatura brasileira. 5ª. São Paulo, Martins, 1974.
[14] – Del Picchia faleceu em 1988; Mario de Andrade, em 1945; Oswaldo de Andrade, em 1954; Anita, em 1964 e Tarsila, em 1973.
[15] – Refiro-me a DEL PICCHIA, Menotti. O Gedeão do modernismo (org. Yoshie Sakiyana Barreirinhas). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983.
O Templo Beth El, que abriga o Museu Judaico de São Paulo, no centro da cidade. Foto: Fernando Siqueira/ Divulgação
Por cerca de 80 anos, o Templo Beth-El, no centro de São Paulo, serviu à comunidade judaica da cidade. Projetado em estilo bizantino pelo arquiteto russo Samuel Roder, abrigou de 1932 a 2010 a sinagoga da Congregação Beth El – hoje sediada nos Jardins -, fundada por imigrantes vindos do Leste Europeu no período entreguerras. Agora, após uma década fechado para reformas, o edifício se abriu de um outro modo para a capital paulista, direcionado a um público bastante mais amplo: “Desde o início esse projeto foi pensado para não ser um museu voltado para a comunidade judaica, mas um museu para a cidade, para o país, aberto a todos”, conta Felipe Arruda, 41 anos, diretor executivo do Museu Judaico de São Paulo (MUJ).
De algum modo, o edifício passa a fazer jus de modo mais evidente à frase que está grafada em sua fachada, em letras hebraicas: “Que esta seja a casa de oração para todos os povos”. Segundo Arruda, o escrito que lá está desde 1932 continua muito necessário em um mundo que lida com crescente preconceito, intolerância e uma série de violências contra minorias. Só no Brasil, conta o diretor, existem hoje cerca de 530 células nazistas em atividade.
Arruda, que foi Diretor de Cultura e Participação do Instituto Tomie Ohtake por seis anos, faz questão de ressaltar, neste ponto, que o foco do MUJ é a luta contra todos os tipos de preconceito, não só contra judeus: “O Brasil é um país que viveu quase 400 anos de escravidão, um genocídio indígena, algumas décadas de ditadura, e tem uma democracia muito recente e frágil, ainda em formação. Isso exige um fortalecimento das instituições democráticas e uma reparação a todos esses povos que foram oprimidos, subordinados, e que são vítimas de violências sistemáticas”.
Um dos caminhos para o combate aos preconceitos, para ele, é não reduzir as pessoas a uma só identidade, superficial, que cria simplificações e estereótipos. “Não existe ‘o judeu’, mas sim uma espantosa multiplicidade de judeidades. E os depoimentos que mostramos – de idosos, jovens, crianças, pessoas trans, pessoas de origem afrodescendente, de origem asiática, rabinos ortodoxos etc. – mostram como é diversa a expressão dessa judeidade”. E ele completa: “Você não vai sair do MUJ e falar: Ah, então isso é o judaísmo!”.
O diretor do Museu Judaico de São Paulo, Felipe Arruda. Foto: Beatriz Costa/ Divulgação
O visitante não vai deixar de se aprofundar, no entanto, em uma infinidade de aspectos da história e cultura de judeus no Brasil e no mundo. O museu, com cerca de 40 funcionários, inaugurou com duas mostras de longa duração – A Vida Judaica e Judeus no Brasil: histórias trançadas – e duas temporárias – Inquisição e cristãos novos no Brasil, até 31 de maio, e Da letra à palavra, até 10 de abril. Esta última, com a participação de 32 artistas contemporâneos, mostra a vontade do MUJ de trabalhar com os mais diversos tipos de linguagens e suportes – nas exposições estão expostos objetos, documentos, vídeos e depoimentos sonoros, entre outros.
Entre as próximas exposições programadas estão uma da artista e pesquisadora Giselle Beiguelman e uma de fotógrafas mulheres de origem judaica que chegaram ao Brasil na primeira metade do século passado – como Madalena Scwhartz, Hildegard Rosenthal, Alice Brill, Stefania Brill, Lily Sverner, Gertrudes Altschul e Claudia Andujar. Intitulada Modernas! – São Paulo vista por elas, a mostra é uma parceria com o Instituto Moreira Salles.
Em longa conversa com a arte!brasileiros, Arruda falou ainda da importância do setor educativo e do Centro de Memória do MUJ – que acolhe desde 2015 o valioso acervo do arquivo histórico da USP; da busca para desenvolver diálogos com outros espaços da região (da Ocupação 9 de Julho ao Parque Augusta); das dificuldades de captação financeira sob um governo federal que ataca a área cultural; e dos flertes do governo Bolsonaro com um “Israel imaginário” – “que é essa idealização de um povo branco, de um país armamentista e religioso”. Leia a íntegra abaixo:
ARTE!✱ – Podemos começar falando sobre como surge o Museu Judaico de São Paulo, um projeto de quase duas décadas que finalmente abre suas portas em dezembro de 2021…
Felipe Arruda – O museu é fruto de uma iniciativa da sociedade civil. Isso é importante de ser destacado, porque ele não surge nem de uma família com recursos, nem de uma empresa e também não é um museu público. É um museu privado e parte de uma associação de amigos que projeta esse sonho de ter um museu para representar a cultura judaica aqui no Brasil – um país que tem uma comunidade de mais de 120 mil judeus, sendo 80% deles aqui em São Paulo. Voluntariamente, esse grupo constrói um projeto que leva quase duas décadas para ser gestado, com uma mobilização de muitas pessoas. Esse período inclui primeiro a cessão do templo Beth-El, que é antiga sinagoga, para o museu; depois a captação de recursos para fazer o restauro do edifício, que é um patrimônio tombado pela prefeitura em 2013; e a construção do anexo, que está acoplado à sinagoga. Esse processo inclui também o acolhimento do acervo do arquivo histórico da Universidade de São Paulo (USP), que é o maior arquivo judaico no Brasil. Ele é o que chamamos hoje de Centro de Memória (CDM) do museu e virá fisicamente para cá este ano. Depois veio toda a etapa de museologia, expografia etc. E em maio do ano passado, após um processo de seleção, me fizeram o convite para vir para cá, quando, na verdade, ainda não havia nem uma equipe inteiramente formada. Aí começamos todo o processo de finalizar a implantação, as exposições, um plano de inauguração, um planejamento estratégico do museu, uma renovação do Conselho, fazer o site e a comunicação visual e assim por diante. Toda essa parte estrutural para poder inaugurar.
Área interna do museu onde ficava a antiga sinagoga. Foto: Divulgação
ARTE!✱ – O valor investido nesse processo todo foi de cerca de R$ 60 milhões de reais. Como se deu o processo de captação para um projeto desse porte?
Basicamente empresas, via Lei Rouanet ou doação direta, e doações de pessoas físicas (que representa um percentual menor). O interessante é que grande parte das doações vieram de pessoas de fora da comunidade judaica. Isso é importante de se dizer porque desde o inicio esse projeto foi pensado para não ser um museu voltado para a comunidade judaica, mas um museu para a cidade, para o país, aberto a todos. Na fachada do templo está escrito: “Que esta seja a casa de oração para todos os povos”, uma frase escrita em hebraico em 1932 e que continua muito necessária. Até mesmo a minha escolha como diretor executivo mostra essa abertura, sendo alguém que não é judeu na diretoria. Obviamente poderia ter sido uma pessoa judia, esse não é ponto essencial, mas me parece que o projeto já nasce com esse espírito, essa disposição para a conexão.
ARTE!✱ – Entrando então neste aspecto do pensamento que move o museu, é notável nas exposições a busca por um diálogo com o passado, mas também com o contemporâneo, com um judaísmo que não é estático, que se transforma junto com a sociedade, e que também tem peculiaridades no contexto brasileiro. Faz sentido?
O MUJ é um museu secular, não um museu religioso, e ele busca apresentar as múltiplas expressões da cultura judaica. Ele tem essa missão de cultivar as expressões da cultura judaica e mantê-las vivas – não como algo que está no passado e que pode ser entendido como algo fixo, monolítico. Pensamos a memória como algo que pertence ao presente, que está em movimento. E nós fazemos isso em diálogo com o contexto brasileiro, em diálogo com o debate contemporâneo e com as aspirações dos diferentes públicos, através da ideia de que um museu se constrói com as pessoas, com a participação de seus públicos. Isso é fundamental para qualquer instituição cultural hoje.
Então aqui, na mostra de longa duração, buscamos apresentar aspectos basilares da cultura judaica, que tem a ver com tradições, festas, valores… Mas é interessante que antes disso, logo na entrada, o visitante se depara com vídeos em que pessoas respondem sobre o que é ser judeu. E essa é uma pergunta fundamental para o MUJ, porque não existe “o judeu”, mas sim uma espantosa multiplicidade de judeidades. E os depoimentos – de idosos, jovens, crianças, pessoas trans, pessoas de origem afrodescendente, de origem asiática, rabinos ortodoxos etc. – mostram como é diversa a expressão dessa judeidade, ela não pode ser reduzida a uma só coisa. O próprio [Emmanuel] Levinas fala que o judeu é sempre um ser inacabado, que tem a ver com o devir, com o vir a ser judeu, com a impossibilidade de ser sempre o mesmo, com uma constante busca. E é fundamental destacar que o judaísmo não é apenas uma religião. Ele é também um religião, mas é antes um povo, uma cultura e uma gama de expressões – algo milenar, mas em transformação. Então esse não é um museu que busca afirmar uma identidade, mas sim cultivar uma cultura.
Na fachada original do templo, a frase “Que esta seja a casa de oração para todos os povos”. Foto: Divulgação
ARTE!✱ – Esse aspecto da multiplicidade e da alteridade está muito presente nas mostras…
No depoimento que colhemos da Deborah Colker, ela diz: “Quanto mais eu me misturo, mais judia eu sou”. Ou seja, que quanto mais se aproxima da cultura afrobrasileira, da cultura árabe, da cultura japonesa, mas judia ela se sente. Porque segundo vários teóricos a identidade judaica é fundada na ideia da alteridade. E nós acreditamos que essa pode ser uma contribuição do MUJ para o debate identitário hoje: que é menos uma propensão à afirmação isolada de uma determinada identidade – de um povo que é historicamente alvo de perseguições e opressões -, mas mais uma perspectiva de alteridade de alguém que está interessado em fazer relações, diálogos, que seja porosa e interessada no outro. Um museu que se insere no mundo com seus desafios e temas importantes a serem debatidos – e acreditamos que existem valores e experiências dentro da cultura judaica que podem contribuir para o debate contemporâneo.
Então, falando sobre nossos eixos, há essa dimensão mais ligada às festas e tradições; a dimensão mais histórica, sobre a presença judaica no Brasil nestes mais de 500 anos; e nas exposições temporárias temos mostras de caráter mais documental, que vão beber muito no Centro de Memória, e também um espaço voltado à produções contemporâneas. Este último é um espaço que vai movimentar bastante o MUJ, porque traz debates atuais em produções principalmente de arte, mas não só. Temos a ideia, por exemplo, de fazer uma mostra ligada à psicanálise. Existe uma autora, Betty Fuks, que defende que o nascimento da psicanálise está intrinsecamente ligado à judeidade do Freud – porque se a judeidade é essa relação com a alteridade, a busca por tornar-se alguém a partir da relação com o outro, a psicanálise também nasce dessa procura, de se precisar do outro para se reconhecer.
ARTE!✱ – Você falou anteriormente que um museu se constrói com a participação de seus públicos. Eu queria que você falasse um pouco mais desse aspecto e de como entram aí o trabalho educativo, o acervo e o espaço para pesquisa.
O Centro de Memória do Museu é um arquivo riquíssimo de pesquisa: tem 1 milhão de páginas de documentos, 100 mil fotografias, 20 mil livros – sendo 8 mil em ídiche -, discos, objetos e depoimentos de história oral de famílias que migraram para o Brasil. O arquivo do rabino Henry Sobel também está com a gente e o da professora Anita Novinsky – uma das maiores especialistas em Inquisição no mundo – está vindo para o MUJ. Temos esse tesouro que já é hoje acessível, mas o MUJ vai abrir um edital para pesquisadores do Brasil inteiro poderem realizar suas pesquisas no arquivo com apoio e bolsas. E não só pesquisas de interesse judaico, porque você pode, por exemplo, pesquisar a história da indústria têxtil no Brasil ou em São Paulo a partir de uma série de documentos que tratam dessas indústrias, lojas etc. Existem muitos caminhos possíveis para esse arquivo, com o qual inclusive já fizemos exposições itinerantes em bibliotecas e escolas.
Mostra de longa duração do museu, com material de acervo do Centro de Memória. Foto: Divulgação
E na parte educativa já temos uma equipe formada que atende diariamente os visitantes e os grupos de escolas e instituições. Temos visitas mediadas, visitas em libras, visitas teatralizadas, contação de histórias e mediação de leitura para crianças pequenas. E para essas visitas todas a nossa ideia de mediação não é de uma explicação, ela é sempre crítica, reflexiva, inclui o visitante, seu repertório, e mantém um campo de diálogo aberto. E o próximo passo do museu é fortalecer essa dimensão participativa, estabelecendo mais vínculos com o território: com a Ocupação 9 de Julho, com o Parque Augusta, com os coletivos de artistas da região e assim por diante. Então estamos começando essas costuras, porque na nossa visão é fundamental um museu inserido e com vínculos bem estabelecidos com o seu território, que esteja a serviço dele e onde o público tenha a possibilidade de criar, de produzir, de se expressar.
Temos que criar instâncias de participação e sair de uma posição hierarquizante que um museu pode ter, como se fosse uma autoridade máxima. O museu tem que praticar muito a escuta, aprender também com as pessoas de fora. Existiu um debate grande nas últimas décadas sobre a democratização do acesso aos equipamentos culturais, para que mais pessoas os frequentem. Isso é importante, ainda mais em um país como o Brasil – onde existe grande carência na área cultural -, mas é insuficiente. A ideia da participação está ligada a uma outra perspectiva, que é chamada de democracia cultural, que é quando as pessoas não só têm a possibilidade de ter acesso aos equipamentos, mas também à própria produção e à circulação de suas expressões. E é isso que queremos desenvolver melhor este ano, já que o MUJ ainda é muito novo. Então já estão nos planos de 2022, entre outras coisas, a realização de um festival literário, de debates, a exibição de filmes, o lançamento de livros; e já temos uma parceria iniciada com a São Paulo Companhia de Dança para fazer workshops de Gaga [técnica de dança criada pelo israelense Ohad Naharin].
ARTE!✱ – Pensando neste aspecto do diálogo com o território, com o entorno, muitos dos espaços ligados à comunidade judaica em São Paulo (e em outras cidades) têm uma dificuldade de se abrir para cidade, em geral por preocupações com a segurança. No MUJ percebe-se que as portas estão abertas para a rua, mas há também paredes de vidro blindado no entorno do museu e detector de metais na entrada para as exposições. Esses tipos de mecanismos criam um distanciamento do museu com a cidade e o espaço público?
Acho que a palavra aí é “equilíbrio”. Nós somos reconhecidamente uma instituição judaica, dentro de uma antiga sinagoga, e com o crescimento do antissemitismo no Brasil e no mundo é responsabilidade nossa garantir a segurança dos visitantes e dos colaboradores. Isso é premissa. E embora no Brasil não haja um histórico de atentados a instituições judaicas, não estamos imunes à isso, já ocorreu na Argentina, por exemplo. Hoje existem, mapeadas pela pesquisadora Adriana Dias, da USP, cerca de 530 células nazistas em atividade no Brasil, e claro que isso é motivo de preocupação. Por outro lado, somos um museu, que deve ser um espaço amigável, de acolhimento, o mais aberto possível. Então a gente busca equilibrar essas duas questões. As portas do museu estão sempre abertas e temos uma recepção acolhedora; o aparato de segurança, que é o detector de metal e o raio-x, é hoje bastante comum em várias instituições culturais da cidade, e está ali da forma menos intimidadora possível; e passando por ela temos um espaço como qualquer outro, inclusive com uma grande lateral de vidro que favorece a transparência com a cidade. E posso dizer que a conversa com a equipe de segurança vai nesse sentido, de que aqui é um lugar humanizador, onde as relações têm que ser cordiais e acolhedoras.
Ao centro, obra de Bispo do Rosário na mostra temporária “Da letra à palavra”. Foto: Divulgação
ARTE!✱ – Já tratamos aqui de educação, pesquisa e diversidade cultural, ou seja, ideias que vão em direção oposta ao que propõe o atual governo federal. Temos, entre outras coisas, ataques claros a instituições culturais, uma paralisação e controle inéditos da Lei Rouanet. Como enxerga o contexto e como se dá o financiamento do MUJ a partir de agora, dado esse quadro tão complexo?
Complexo, para dizer o mínimo. Porque estamos vivendo a sobreposição de várias crises no país: uma crise econômica, uma crise sanitária, uma crise institucional e vivemos também um momento emocionalmente desafiador, com um luto da pandemia e muitas vidas perdidas, principalmente de pessoas mais vulneráveis. E vemos o desemprego, pessoas na rua, um momento socialmente dramático. E no nosso setor a crise também é aguda, com a área cultural sendo muito fragilizada nas suas políticas públicas. Para o MUJ, uma instituição que nem é pública nem pertencente a empresas, é fundamental essa resiliência da sociedade civil, uma vez que não temos políticas públicas que possam sustentar ou apoiar a vida da instituição. Fazemos um esforço enorme para apresentar o projeto para pessoas e empresas que possam apoiar via Lei de Incentivo ou verba direta, mas nesse momento está especialmente desafiador, até por essa instabilidade no funcionamento da Lei de Incentivo.
ARTE!✱ – Um dos temas tratados na nova edição da arte!brasileiros (número 58) é o conceito de reparação, no sentido de que só é possível haver uma democracia verdadeira se houver algum tipo de reparação histórica em relação às violências perpetuadas contra os povos historicamente oprimidos. No Brasil isso se refere especialmente aos indígenas e afrodescendentes, mas a reparação é um tema que perpassa muito a história dos judeus. O caso judaico pode servir como algum tipo de exemplo, trazer ensinamentos nesse debate?
O Brasil é um país que viveu quase 400 anos de escravidão, um genocídio indígena, algumas décadas de ditadura, e tem uma democracia muito recente e frágil, ainda em formação. Isso exige um fortalecimento das instituições democráticas e uma reparação a todos esses povos que foram oprimidos, subordinados, e são vítimas de violências sistemáticas. Então esse é um compromisso nosso como sociedade, seja de museus, cidadãos, instituições, empresas ou governo. Precisamos criar um novo paradigma de país que entenda o tamanho da sua dívida e crie políticas de reparação. Nesse sentido, existe um conceito judaico que chama Tikun Olam, que é a “reparação do mundo”, uma melhoria, um aprimoramento. Porque as coisas não estão bem, não estão confortáveis, tem muito a ser feito. Então, do ponto de vista do MUJ, defendemos não só a reparação e a salvaguarda dos direitos do povo judeu e da cultura judaica, mas de todos os povos. Uma perspectiva de uma sociedade mais igualitária, mais solidária, menos violenta.
Entrada para a seção dedicada ao Holocausto. Foto: Divulgação
ARTE!✱ – Em uma das paredes da exposição, próxima à parte sobre o Holocausto, está grafado em letras grandes: “lembrar e não esquecer”…
Sim, e a gente fez questão ali neste ponto da exposição de lembrar de outras violências também, perpetuadas contra pessoas indígenas, negras, transsexuais… Porque isso é uma realidade, nós vivemos em um país muito violento, muito desigual, e não se trata aqui de excepcionalizar a questão judaica. Pelo contrário, entendemos muito mais numa perspectiva de aliança, de unir forças para que todo mundo possa existir com seus plenos direitos. Então antes de entrar na seção do Holocausto há esse destaque, para ressaltar que assim como aconteceu com o povo judeu, isso acontece com muitas outras identidades. Mas vale ressaltar que não se trata aqui de hierarquizar as dores, não se pode entrar num sistema de medida sobre isso.
ARTE!✱ – Tivemos recentemente o caso em que o então apresentador do Flow Podcast, Monark, falou que deveria ser permitida a existência de um partido nazista no Brasil. Em entrevista recente você afirmou que o nazismo não é um problema só dos judeus e que estamos vendo um crescimento do preconceito, de violências e opressões no mundo. Poderia falar um pouco sobre isso?
Eu acho que existe uma tendência da nossa sociedade a reduzir o outro a uma versão muito simplificada. As pessoas não podem ser reduzidas a uma só identidade, todos nós temos muitas camadas identitárias e elas estão sempre em movimento, são por vezes até contraditórias. E quando se reduz a pessoa a uma só faceta, anula-se várias de suas dimensões humanas, e isso é inclusive motivo de violência. O MUJ quer mostrar isso, que as identidades são complexas e multifacetadas. Espaços de educação e de cultura são fundamentais para se formar uma consciência de uma sociedade mais tolerante, que valorize a diversidade. E nós discutimos no museu que se alguma coisa pode ser tirada deste episódio tão lamentável do Monark é a oportunidade pedagógica. Foi importante que as instituições tenham se manifestado, que essa pessoa tenha sido criticada e que isso crie uma consciência de que a comunicação pública exige responsabilidade – não se pode permitir esse tipo de discurso, que acaba chegando a milhares de pessoas e que influencia a formação de uma cultura violenta. E, claro, onde houver crime é preciso que os encaminhamentos corretos sejam dados, mas não acreditamos apenas na punição, mas na necessidade de educação.
A exposição “Da Letra à Palavra”. Foto: Divulgação
ARTE!✱ – Neste sentido, temos um governo que de um lado se utiliza de símbolos do judaísmo – através de uma relação que passa pela comunidade evangélica e por uma suposta irmandade com Israel -, mas que por outro lado flerta com pensamentos fascistas, até nazistas. Tivemos o caso do Roberto Alvim, a visita de representantes neonazistas alemães e assim por diante. Como vê a situação e que papel o MUJ pode ter neste contexto?
É um assunto amplo e complexo. O que nós entendemos é que existe uma série de imaginários equivocados a respeito do que seria o judeu e também sobre o que seria a relação entre os judeus que vivem aqui no Brasil e o governo de Israel. Existem judeus em várias partes do mundo, uma grande parte em Israel, mas as políticas de um governo em Israel é uma outra coisa. O nosso governo buscou uma aproximação com o governo de Israel também motivado por um entendimento de um “Israel imaginário” e um “judeu imaginário” – como diz o professor Michel Gherman -, que é essa idealização de um povo branco, de um país armamentista e religioso. E isso é uma apropriação indevida de imaginários que não correspondem necessariamente à realidade e que servem para cooptar símbolos para um projeto político. E esse é um processo que vem acontecendo e que deixa tudo muito turvo… porque é um governo que não apoia minorias e ao mesmo tempo tem essa relação de admiração ou flerte com Israel. Pode parecer tudo muito confuso.
No caso do MUJ, trabalhamos muito mais com uma perspectiva cultural. Acho que existem outras instituições do país muito bem preparadas e que estão discutindo mais profundamente essa questão de ordem política, que passa também por Israel. E na nossa mediação e no educativo nós procuramos colocar as coisas nos seus lugares, porque é mesmo bastante complexo. Por fim, sobre os flertes que você falou do atual governo com o fascismo ou nazismo, isso é simplesmente inadmissível. Ainda mais, como no caso do Alvim, de um setor que se ocupa da cultura. Então é nosso papel fazer frente a esse tipo de manifestação.
Da esquerda para a direita, acima, Claudinei Roberto da Silva e Vanessa Davidson, abaixo, Cristiana Tejo e Cauê Alves. Foto: Divulgação
Fachada do Mam-SP, no Parque Ibirapuera. Foto: Karina Bacci/ Divulgação
“Sob as Cinzas, Brasa”: o título escolhido para a 37ª edição do Panorama da Arte Brasileira do Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo, que abre as portas no dia 23 de julho, já dá pistas claras do partido adotado pela equipe curatorial do evento. Além de evidenciar o interesse em iluminar as intensas contradições, ausências e paradoxos que marcam a cultura brasileira, a frase remete simultaneamente às pulsões conservadoras e às potências criativas, que convivem e marcam a cena artística nacional. Impossível não remeter às tragédias do Museu Nacional, Cinemateca Brasileira e também a outros incêndios mais metafóricos como o desmonte das estruturas culturais do país, nem tampouco ignorar que sob mantos de invisibilidades e interpretações mais sedimentadas e oficiais reside uma força incandescente que deve ser resgatada.
Há também nessa frase condutora uma referência evidente à centralidade da questão nacional para qualquer reflexão sobre os rumos das artes e para o debate em torno de temas como formação, desenvolvimento e cultura nacional. Afinal, advém do termo brasa (derivada da árvore pau brasil, primeiro produto explorado na região pelos colonizadores) o próprio nome do país. “As formas não estão separadas da política, da ideologia”, afirma Cauê Alves, atual curador-chefe do MAM-SP e que juntamente com Cristiana Tejo, Vanessa Davidson e Claudinei Roberto da Silva concebeu o projeto da exposição.
Da esquerda para a direita, acima, Claudinei Roberto da Silva e Vanessa Davidson, abaixo, Cristiana Tejo e Cauê Alves. Foto: Divulgação
A seleção de artistas concebida ao longo do último ano, em encontros semanais e intenso diálogo entre os participantes, ainda é segredo. Os nomes dos convidados a participar da exposição só serão divulgados em abril, porém já é evidente a busca pela diversidade e a proposição de um olhar ao mesmo tempo histórico e prospectivo. A força simbólica das celebrações do bicentenário da Independência e do centenário da Semana de 22 cria uma oportunidade incontornável de rever mitos assentados e propor novas leituras sobre o nosso passado. “É um ano paradigmático, um momento interessante para repensar nossos ciclos históricos”, afirma Cristiana. “É importante saber de que tradição estamos falando e nosso desejo é dialogar com tradições silenciadas, negligenciadas”, complementa Claudinei Roberto. “A proposta incorpora também a ideia de renascimento, algo que renasce como fênix das cinzas”, acrescenta Vanessa.
Segundo a curadora norte-americana, que há anos pesquisa a arte da América do Sul, a mostra será estruturada em torno de diferentes núcleos temáticos, que compõem um percurso muito interessante e diverso, abordando diferentes aspectos da produção passada e recente, como a questão das simbologias políticas das cores; a forte relação da produção artística nacional com a terra, o solo, o barro e a busca por artistas que têm saberes de um Brasil profundo; ou ainda a reflexão a partir dos símbolos de poder e opressão, como o Borba Gato. Há também no projeto do Panorama uma intenção clara de recuperar o caráter panorâmico da evento, que desde 1969 se esforça em mapear a produção artística contemporânea e dar espaço para reflexões curatoriais bastante diversas. “Buscamos resgatar uma visada ampla e generosa para o entorno, para a paisagem humana e cultural do país”, sintetiza Cauê.
O MAM-SP durante o 36o Panorama da Arte Brasileira. Foto: Karina Bacci/ Divulgação
Evidentemente, a prospecção de novas poéticas foi dificultada pela pandemia (que também forçou o adiamento por um ano da mostra bienal), mas segundo os curadores foi possível criar outras possibilidades de circulação e diálogo e o fato de atuarem em conjunto, de forma horizontalizada, contribuiu para isso, ampliando as referências, já que cada um deles parte de um ponto de vista particular. “Nesse caso dois mais dois é mais do que quatro”, brinca Cauê.
Claudinei Roberto, por exemplo, traz para o grupo uma experiência potente de investigação, como artista e curador da arte negra, periférica, que coloca em questão os cânones estabelecidos. “Precisamos ir para a periferia para aprender e não para colonizar”, afirma ele, lembrando as gritantes diferenças encontradas nesse leque amplo de poéticas. Como atesta o terrível fato de que um dos artistas negros selecionados tenha precisado trabalhar durante as madrugadas envasando álcool gel e de dia como motoboy, enquanto muitos se resguardavam em quarentena.
Cauê Alves e Cristiana Tejo, curadora independente pernambucana e que atualmente reside em Lisboa já fizeram conjuntamente a curadoria do 32º Panorama, em 2011, que tinha por tema a ideia de deslocamento, de viagem, algo ironicamente impossível nos dias atuais. Uma certa desaceleração impôs-se, com reflexos inclusive sobre o calendário da mostra, que terá uma duração estendida, de seis meses, para ampliar o público, permitir um trabalho mais aprofundado com o educativo e de disseminação virtual do evento.
Capa da revista Internazionale, com foto de Gleb Garanich.
Nenhuma guerra é ética. Mas todas as imagens da guerra são estéticas. Dois lados de uma mesma moeda. Para o filósofo francês Jacques Rancière, arte e política tem uma origem em comum, ou seja, ambas estão fundadas sobre um mundo sensível. Há tempos venho acompanhado imagens de guerra. Desde a primeira, por coincidência na Crimeia fotografada pelo fotógrafo inglês Roger Fenton entre 1854 e 1855, até a atual guerra entre Rússia e Ucrânia. Sigo estas imagens porque alguns historiadores da fotografia afirmam que é nas imagens de conflito que se encontra a raiz do surgimento do fotojornalismo. Com o tempo fui acompanhando como foi se desenvolvendo uma estética da fotografia de guerra e como ela foi se repetindo. Claro, guerras são diferentes, armas são diferentes, contextos sócio-históricos são diferentes. Mas é na estética que reside a construção de um significado e não no seu conteúdo. No final dos anos 1980 começou-se a se discutir na academia, na crítica e nos museus a estetização da miséria e da dor, a se questionar o valor das fotografias de conflito. E desde então esta tem sido uma discussão que preocupa muitos pensadores da imagem. Mas sempre me pareceu uma discussão mais acadêmica do que da vida real, ou seja dos fotojornalistas que estão lá olhando direto para o conflito.
Podemos começar com Susan Sontag, que decidiu criar regras entre ética e estética. Achar que havia uma divisão entre político e estético, como se isso fosse possível. E na esteira de seus colegas pós-modernos e pós-estruturalista nos incitou a desconfiar da imagem. Ela afirmava que a fotografia nos apresentava cenários de catástrofes, sem explicar as causas ou efeitos, por isso não acreditava na sua eficácia política ou ética.
Conceitos estes que foram discutidos anos depois por Susie Linfield em sua fundamental obra The Cruel Radiance (sem tradução em português): “Estou escrevendo contra as ideias pós-modernas e pós-estruturalistas e seus herdeiros e pelo seu arrogante e azedo desdém pela tradição, a prática e as ideias da fotografia documental”. Tempos mais tarde outra autora surge e se declara contra esta dicotomia criada por Susan Sontag. A pesquisadora israelense Ariella Azoulay, que em seu livro Civil Imagination (também ainda sem tradução no Brasil) afirma: “Pensar desta forma é uma armadilha. Toda foto é estética e toda foto é política. A criação ou a imaginação não são o oposto de político. E propõe: “Vamos falar de imaginação política”. E aqui retornamos ao Rancière, que em seu livro Tempos Modernos: arte, tempo e política escreve: “A ficção é necessária onde quer que certo senso de realidade precise ser produzido. É por isso que a política, as ciências sociais e o jornalismo se utilizam de ficções tanto quanto romancistas ou cineastas”.
Como se uma obra estética fosse livre e uma obra política seguisse regras de um manual. O que acontece é que as imagens nos incomodam. O que devemos ver em determinadas imagens? É preciso olhá-las?
Este mesmo tema também vai intrigar o filósofo e historiador de arte Jean Galard, que no livro Beleza Exorbitante afirma: “O que é feito da ética dessa atenção quando, através da imprensa, da televisão, das mídias eletrônicas, ela incide, de modo acidental ou deliberado, sobre as imagens da realidade sangrenta, terrificante, bárbara, da qual nós somos o público cotidiano?”. Em sua reflexão, Galard afirma que “numerosos espectadores expressam o mal estar que suscitam, que deveriam suscitar tais imagens em que a beleza, diz-se, combina demais com a dor”.
Capa do livro “War is Beautiful”, de David Shields.
Continuando nesta linha, em 2015 o autor best-seller David Shields analisou mais de uma década de fotos de guerra de primeira página do The New York Times e lançou o livro War Is Beautiful (também sem tradução em português) e chegou a uma conclusão chocante: “O processo de edição de fotos do ‘jornal oficial’ por meio de uma estética bonita, heróica, nos força a enfrentar não só a cumplicidade da mídia em duvidosas e catastróficas campanhas militares, mas também a nossa. Este poderoso porta-voz da mídia, o Times, longe de ser um freio ao poder governamental, é na realidade um grande amplificador de suas forças sombrias em virtude da maneira como estetiza a guerra”. Ele divide o livro em temas: Natureza, Playground, Pai, Deus, Pietá, Pintura, Cinema, Beleza, Amor e Morte. Temáticas que o autor acredita que se repetem constantemente como uma estética de guerra.
Sempre me perguntei o porquê das fotografias de guerra remeterem iconograficamente a outras guerras, não só como memória, mas como uma estética de convencimento. Os refugiados sírios foram tratados de forma diferente nas imagens da maior parte dos jornais tradicionais – não em todos, ainda bem – dos refugiados da Ucrânia, especialmente pela imprensa norte-americana e europeia. Tantos sírios como os ucranianos estão fugindo de uma guerra. Pelas imagens os primeiros deveriam ser repelidos, os segundos acolhidos.
A guerra do Kosovo estampada por Damir Sagolj na capa da revista Time de abril de 1999.
Capa da revista Internazionale, com foto de Gleb Garanich.
Acredito que devemos pensar na fotografia como uma signo carregado de ideologia e representações. Como diz o pesquisador Boris Kossoy em seu livro Os tempos da fotografia: “Ficções documentais: conteúdos imagéticos transferidos de contextos. Situação típica do processo criação/construção de realidades”.
Para esta coluna escolhi duas capas de revista: a Time, norte-americana, e a revista de jornalismo independente Internazionale, italiana. A primeira retrata uma fugitiva albanesa e ganhou o World Press Photo de 2013; a segunda uma refugiada ucraniana.
Para terminar esta coluna trago uma última declaração, desta vez da pesquisadora Martine Joly:
“A percepção das formas e dos objetos é cultural e como o que chamamos semelhança ou analogia corresponde a uma analogia perceptiva e não a uma semelhança entre a representação e o objeto: quando uma imagem nos parece semelhante é porque é construída de uma maneira que nos leva a decifrá-la como deciframos o próprio mundo.”
Talvez devamos refletir mais sobre as imagens que recebemos!