"Lute", de Rubens Gerchman, no Instituto Vladimir Herzog. Foto: Reprodução.
Os vetos do presidente Jair Bolsonaro à Lei Aldir Blanc 2 e à Lei Paulo Gustavo, as duas principais novidades no fomento à cultura no país, representam, além de um evidente esforço de perseguição ao setor artístico, uma demonstração de admirável burrice administrativa. E essa ignorância já pode ser demonstrada com números. Em vigor em 2020 e 2021 ainda como uma legislação de emergência cultural, a Lei Aldir Blanc injetou R$ 3 bilhões no setor e tornou-se uma das responsáveis pela criação de 855,5 mil postos de trabalho no segmento da cultura no ano passado – o crescimento do número de vagas, de 13% no ano (acima, portanto, dos 11% da economia em geral) foi detectado este mês pelo Painel de Dados do Observatório Itaú Cultural a partir de dados da PNAD Contínua.
O forte impulso à oferta de emprego na economia criativa no 4º trimestre de 2021 pode ser atribuído, parcialmente, ao arrefecimento da pandemia, mas isso só se consolidou mesmo em 2022 e não haveria um princípio de retomada no setor se ele já não estivesse sendo oxigenado durante os meses anteriores: uma peça, um show ou um filme não surgem do nada. A única fonte contínua e consistente de investimento público no setor veio da Lei Aldir Blanc, que criou nichos produtivos novos por todo o País – como o novo cinema da Amazônia.
Conforme o levantamento do Observatório Itaú Cultural, 2021 se encerrou com 7,5 milhões de trabalhadores empregados na economia criativa (que engloba atividades como cultura, design, moda, gastronomia, comunicação, arquitetura, entre outras), quase um milhão a mais do que emdezembro de 2020, quando eram 6,6 milhões de trabalhadores alocados.
Em 2019, cerca de 6% do total de ocupados no País (por volta de 5,5 milhões de pessoas) atuavam no setor cultural (segmento responsável, àquela altura, por 2,7% do PIB nacional). Segundo especialistas como Bruno Moretti e Marcos Souza, somente o período de vigência da Lei Aldir Blanc de emergência cultural, em um cenário de estagnação geral, é capaz de explicar essa bolha de virtude.
É possível, caso Bolsonaro (felizmente) fracasse, projetar uma espécie de renascimento para o setor cultural nos próximos anos com a adoção das duas leis. Historicamente, os recursos para o setor sempre foram ínfimos, nunca passando de 1% do Orçamento da União. Com a derrubada dos vetos de Bolsonaro, a ação emergencial que já deu alento à área ganhará agora o escopo de permanente por meio da Lei Paulo Gustavo (que direciona R$ 3,86 bilhões do superávit financeiro do Fundo Nacional de Cultura a estados e municípios para fomento do setor) e da Lei Aldir Blanc 2 (que destina outros 3 bilhões para a cultura em uma política de caráter permanente). Nunca se viu nada parecido em termos de política de Estado no Brasil.
Os gastos diretos do governo federal com cultura, segundo o Portal da Transparência, vêm desabando progressivamente desde 2018, quando representaram cerca de R$ 1 bilhão. Caíram para aproximadamente R$ 600 milhões no ano passado. Este ano, 2022, estão até agora em R$ 109 milhões. É uma clara política de desarticulação de um setor produtivo e a base dessa política é simplesmente a da guerra ideológica, não há nenhum fundamento econômico ou estratégico nisso.
A blitz de guerra cultural do bolsonarismo levou os mais diferentes setores a um colapso quase completo. Mesmo as áreas mais organizadas, como era o setor audiovisual, estão em situação de calamidade, embora a publicidade tente fazer parecer o contrário, o cenário aponta para uma devastação. As pequenas iniciativas, abandonadas pelas políticas públicas, definham – por exemplo, o projeto Ponto Cine Guadalupe, na Estrada do Camboatá, no Rio de Janeiro, que está com as portas fechadas após 16 anos atuando como a primeira grande sala popular de cinema digital do Brasil exibindo apenas filmes brasileiros. O Ponto Cine chegou a exibir cerca de 550 filmes para 350 mil pessoas, mas a política de cabide da Ancine bolsonarista não o alcançou.
Nenhuma das duas leis, Paulo Gustavo e Aldir Blanc 2, aprovadas por ampla maioria nas casas legislativas, tira recursos de ou pressiona gastos com saúde, educação, Santas Casas, agronegócio ou investimentos públicos. Suas fontes de recursos já são pré-existentes, mas agora deverão ser recursos carimbados, com destinação correta. Esse é o grande temor de um Estado que trata de forma displicente aquela atividade que representa seu próprio espírito, sua alma, seu elã fundamental.
"Anna", Anna Maria Maiolino, 1967. Foto: Coleção da Artista
Psssiiiuuu… A onomatopeia – que pode ser assobio, chamado, flerte, pedido de silêncio, segredo, ou sinal – dá nome à nova mostra individual de Anna Maria Maiolino, em cartaz no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo. Uma seleção de cerca de 300 obras compõe a antologia curada por Paulo Miyada, e nos convida a uma caminhada pela ‘vida-obra’ de Maiolino – para utilizarmos um termo cunhado pela própria. A arte!brasileiros visitou a mostra e conversou com o curador. Confira:
Inaugurada em maio, mês em que a artista completou 80 anos, a mostra reúne pinturas, desenhos, xilogravuras, esculturas, fotografias, filmes, vídeos, peças de áudio e instalações de diferentes períodos de sua carreira. Para isso, a instituição reserva as três grandes salas do andar superior – raramente destinadas a uma mesma exposição, tendo sido antes dedicadas conjuntamente apenas às individuais de Yayoi Kusama e Louise Bourgeois.
Apesar de seu caráter antológico, Anna Maria Maiolino – psssiiiuuu… não se organiza como retrospectiva linear. É concebida como uma espiral que circula entre todas as fases e suportes da carreira da artista. “Vai-se adiante para se reencontrar o princípio, consome-se energia para devolver as coisas ao que sempre foram”, destaca Miyada. Em entrevista à arte!brasileiros, completa: “como nós não estamos lidando com a cronologia do calendário, nós fomos traçando espirais que se refletem em cada sala, que não são exatamente fases, mas são ênfases recorrentes na obra da artista”. São esses, os núcleos ANNA, Não Não Não e Ações Matéricas.
O primeiro nos convida a compreender como vida, biografia, desejo e multiplicidade convergem no corpo de obras da artista. Maiolino sobrepôs múltiplos papéis – como filha, artista, mãe, cidadã, mulher, amante, escritora, latino-americana, europeia e imigrante -, e assim mapeou seus deslocamentos físico e psíquico durante a vida, construindo uma compreensão de identidade como constante fluxo que vai e vem entre um e o outro, entre o eu e a multidão. Em ANNA, ficamos diante desses gestos de uma mulher que pode ser uma ou muitas, que deseja e é desejada, que cuida, que desaparece e abruptamente emerge novamente.
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"SOS no Trópico de Capricórnio", da série "Mapas Mentais", Anna Maria Maiolino, 1974. Foto: Coleção da artista
"O Herói", Anna Maria Maiolino. Foto: Acervo Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand
"Schhhiiii...", Anna Maria Maiolino, 1967 Foto: Coleção da artista
Sem título, da série "Ações Matéricas", Anna Maria Maiolino, 1999. Foto: Everton Ballardin / Coleção da artista
“A trajetória da artista encontra problemas macropolíticos como a fome, a ditadura, a censura, a repressão e a violência de estado” em Não Não Não, explica Miyada. Assim, a seção abrange obras como a instalação O amor se faz revolucionário – baseada em um projeto de 1992 que homenageava as mulheres que se organizaram para perseguir a verdade e a justiça depois de terem perdido seus filhos durante a ditadura militar argentina – e a remontagem de Arroz e Feijão (1979), que trata da aparente normalização da pobreza e da fome numa escala global.
Pressionar, moldar, cortar, agarrar, escorrer e rolar. Talvez esses verbos sejam os mais latentes em Ações Matéricas. É a partir dessas ações que Maiolino lida com argila, tinta, vidro, concreto e outros materiais, resultando em uma prática visual e escultural fortemente ancorada na escala do corpo. A seção inclui obras feitas há mais de 50 anos ao lado de trabalhos recentes, compondo uma espécie de paisagem com múltiplas peças que se relacionam de modo táctil e visual.
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"Entrevidas" (tríptico), da série "Fotopoemação", Anna Maria Maiolino, 1981. Foto: Henri Virgil Stahl / Coleção da artista
"Por um fio", da série "Fotopoemação", Anna Maria Maiolino, 1976. Foto: Regina Vater / Coleção da artista
Sem título, da série Marcas da Gota nº 2, nº 3 e nº 4, 2002 Nanquim sobre papel (total de 123 desenhos). Foto: Livia Gonzaga / Coleção da artista
Os três anos de contato intenso e longas conversas entre Miyada e Maiolino resultam na mostra que poderá ser visitada até 24 de julho, e em ensaio aprofundado do curador sobre a produção da artista, publicado no catálogo – juntamente a reproduções de todas as obras expostas e de uma seleção inédita de escritos da artista ao lado de documentos, projetos, fotografias e esboços.
SERVIÇO
Anna Maria Maiolino – psssiiiuuu…
Instituto Tomie Ohtake | Av. Faria Lima, 201 – Pinheiros, São Paulo (SP)
7 de maio (inauguração das 12h às 15h) a 24 de julho de 2022
Terça a domingo, das 11h às 20h
Rosaria Schifani no funeral do marido, 1993. Crédito: Letizia Battaglia.
Sabe-se há muito que uma fotografia não transforma o mundo, mas ajuda sim a reflexão e a consequente transformação de uma situação. Especialmente quando falamos de fotojornalismo ou da fotografia documental. Perceber o que acontece ao nosso redor, deixar nosso olho passear livremente pelas imagens que escorregam diante de nós. Perceber na sua dureza, não um olhar privo de sensibilidade ou de poesia, mas um olhar que decidiu, intencionalmente, nos contar uma história. Como afirmava o filósofo norte-americano Nelson Goodman (1906-1998), “se a arte cria mundos para se conhecer e visitar, eles não são apenas mundos de formas e de símbolos, são também mundos de emoções e de sensações misturadas”. Emoções ligadas à percepção de mundo, e que o artista nos transmite. Ou como afirma o neurocientista António Damásio “Nós, humanos, somos contadores de histórias natos, e muito nos satisfazemos contando histórias sobre como tudo começou”.
A fotógrafa Letizia Battaglia. Crédito: Shobha/Divulgação IMS
Estas colocações por parte destes cientistas me ligam muito à fotógrafa italiana Letizia Battaglia, que faleceu recentemente, no último dia 13 de abril. Esta coluna é portanto uma homenagem a esta mulher que encontrou na fotografia, no jornalismo uma maneira de contar seu mundo, a dura cidade de Palermo, na Sicilia, Itália – durante anos dominada pela Máfia. A força das suas imagens em contar sua cidade está diretamente ligada ao que escreveu Agner Heller, em seu livro Teoria dos Sentimentos: “Quando não estamos envolvidos sentimentalmente com alguma coisa, perdemos o interesse, a força e aparece o tédio”. Letizia estava totalmente imersa em seu desejo de fotografar não a Palermo contada nas páginas policiais, mas a Palermo das belezas. E por meio de suas fotografias dos crimes da Máfia ela também narrou a beleza dos personagens, das pessoas que andavam por aquelas ruas. Quando, em 2019, o Instituto Moreira Salles trouxe uma retrospectiva de suas imagens, ao escrever o texto para o jornal Estadão, pensei: “São fotografias cruas, duras, mas em nenhum momento sensacionalistas. São imagens que também fogem do estereótipo muitas vezes romantizado do mafioso,seja pelo cinema ou pela literatura. Imagens que narram a vida naqueles anos dominados pela Máfia. Muitos primeiros planos, imagens que chegam perto, que não se calam diante do horror”.
Foi a primeira fotojornalista italiana, abrindo espaço para gerações que a seguiram e reverenciaram. Suas imagens são silenciosas, contidas, não contém nada além do que ela quer mostrar, apresentar. São precisas. Imagens que tiveram um impacto na história. Se aparentemente são mudas, as fotografias, no entanto, são de um silêncio perturbador.
Jovem com bola de futebol no bairro de La Cala, Palermo, Sicília, 1980. Crédito: Letizia Battaglia.
Letizia sempre recusou ser reconhecida como a fotógrafa da Máfia, sempre foi contra os crimes da Máfia, mas sem medo, já aos 30 anos,em 1971, já mãe, abandonou a vida siciliana e foi morar em Milão, atraída pela vida cultural, pelo teatro, pela literatura. Lá ela começou aescrever e colaborar para vários periódicos. Instigada por amigos que além da narrativa queriam ver imagens dos lugares que ela referia, descobriu a fotografia e se tornou correspondente do jornal L’Ora di Palermo, relatando como viviam os sicilianos no norte. Em 1977 retornou a Palermo para ser editora do jornal. Única mulher num mundo masculino, Battaglia foi muitas vezes hostilizada pelos “colegas”,mas nunca se deixou vencer e continuou à frente, fotografando de perto, muito de perto, os mortos e seus algozes, as crianças e as mulheres. A dor e o amor de uma cidade passionária.
Letizia Battaglia nunca nos deixou esquecer da importância de relatar o mundo, de se colocar em cena e de assumir uma posição ao registrar uma foto: “Vivi a fotografia como documento, como interpretação. A vivi como uma forma de salvação e de verdade”. Letizia acreditava que só a cultura poderia nos salvar da barbárie.
Nos tempos que estamos vivendo nunca o olhar do fotojornalista foi tão importante. As imagens produzidas hoje estarão sem dúvida nos livros de história amanhã. Nunca foi tão importante voltar a pensar na fotografia como protagonista de uma narrativa e não como apêndice ilustrativo de um texto.Nunca foi tão importante reaprender a contar histórias. Iniciei está coluna dizendo que uma imagem não transforma o mundo. Mas pode servir para reflexão. Em 1992 Palermo ficou conhecida como a “Cidade da Máfia”, em 2018 se tornou capital da cultura. Muito graças a este olhar inquieto de uma mulher chamada Letizia Battaglia! Obrigada por nos ensinar a exergar.
Pôster de "Deus e o Diabo na Terra do Sol", de Glauber Rocha. Crédito: Reprodução.
Pôster de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, de Glauber Rocha. Crédito: Reprodução.
Uma restauração em 4K de Deus e Diabo na Terra do Sol, clássico de Glauber Rocha e uma das principais obras do cinema brasileiro, foi selecionada para participar do 75º Festival de Cannes (17 a 28 de maio) e será exibido na seção Cannes Classics, dedicada à preservação do patrimônio cinematográfico mundial. A escolha faz do longa o primeiro e – até agora único – filme brasileiro a integrar Cannes neste ano.
Em sua estreia, em 1964, o segundo filme de Glauber Rocha participou do festival francês em competição oficial, tendo sido indicado à Palma de Ouro – um dos prêmios mais importantes do festival. A mais nova restauração foi realizada na Cinecolor, empresa parceira da Cinemateca Brasileira, onde estava armazenada a cópia em película. Parte da obra do cineasta foi perdida no incêndio que atingiu um dos galpões da Cinemateca, em São Paulo, em julho de 2021.
A ida de Deus e o Diabo na Terra do Sol ao Festival de Cannes também marca uma nova fase para a Cinemateca Brasileira, que será reaberta agora no dia 13 de maio. O anúncio foi feito por Maria Dora Mourão, presidente da Sociedade Amigos da Cinemateca (SAC), que assumiu a gestão da instituição no ano passado, após recorrentes denúncias de abandono nos últimos anos; o galpão da Vila Leopoldina – atingido pelas chamas em 2021 – também havia sofrido com um alagamento no ano anterior, por exemplo, o galpão da Vila Mariana também sofreu com o fogo em 2016. Após ter vencido o edital para a gestão da Cinemateca nos próximos cinco anos, a SAC pretende agora retomar exibições de quinta a domingo, na sua sala principal de cinema – com capacidade para 210 pessoas.
Legado de Glauber Rocha
Tendo sido um dos representantes da primeira fase do Cinema Novo, junto a Nelson Pereira dos Santos e Ruy Guerra, é importante ressaltar a definição do Cinema Novo como descrita por pelo próprio Glauber Rocha. Em Estética da fome, sua tese de 1965, o diretor escreve que o Cinema Novo seria “um fenômeno dos povos colonizados e não uma entidade privilegiada do Brasil”. Para Glauber, “onde houver um cineasta disposto a filmar a verdade, aí haverá um germe vivo do Cinema Novo. Onde houver um cineasta disposto a enfrentar o comercialismo, a exploração, a pornografia, o tecnicismo, aí haverá um germe do Cinema Novo. Onde houver um cineasta, de qualquer idade ou de qualquer procedência, pronto a pôr seu cinema e sua profissão a serviço das causas importantes de seu tempo, aí haverá um germe do Cinema Novo. A definição é esta e por esta definição o Cinema Novo se marginaliza da indústria porque o compromisso do Cinema Industrial é com a mentira e com a exploração”.
O legado do diretor inclui longas-metragens como Barravento (1962), Terra em Transe (1967), O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro (1969), O Leão de Sete Cabeças (1970), entre outros.
Uma pintura em miniatura ilustrando uma cena do "Gita Govinda". Crédito: Reprodução Museu de Arte de Cleveland.
Em formato de enciclopédia, a plataforma em inglês reúne milhares de artigos sobre artistas, movimentos, disciplinas, técnicas e outros tópicos da história artística da Índia. A iniciativa vem de um time de 20 pesquisadores do Museu de Arte e Fotografia de Bangalor. “Antes disso, as pessoas obtinham informações sobre arte indiana de instituições ocidentais ou do mercado ou de acadêmicos muito especializados que escrevem livros que a maioria das pessoas não consegue entender”, Nathan Gaskell (que atua como diretor do braço educacional da instituição, MAP Academy) disse ao jornal New York Times. Gaskell ressalta eles se concentraram não apenas na precisão factual, mas também na linguagem, para que não fosse excludente, mas sim clara e concisa.
Segundo o pesquisador, outro estímulo para iniciar o projeto foi a falta de público frequentador de museus e a ausência de interesse geral pela disciplina de história da arte na Índia. “Mesmo no nível de graduação, quase não há cursos”, disse Gaskell ao portal Hyperallergic, acrescentando que, apesar de cerca de 1.600 escolas de arte no país, poucas oferecem história da arte. A equipe liderada por Gaskell redigiu cada uma das cerca de 2.000 entradas da enciclopédia nos últimos três anos, após os quais seu trabalho foi revisado por um painel de acadêmicos. A maior parte do conteúdo da plataforma atualmente se concentra na arte da Índia, mas o recurso será expandido para incluir “histórias mais amplas do sul da Ásia”, afirmou.
Há também a preocupação com a ligação entre a história da arte – segundo moldes ocidentais – e colonização. Gaskell revelou à CNN que a equipe de pesquisa esperava corrigir os vários preconceitos que existem na literatura artística histórica; o que teria afetado tanto a forma como as entradas são escritas quanto o que foi incluído em primeiro lugar. “Os preconceitos das instituições ocidentais são que eles olharam apenas para certas coisas e negligenciaram muitas obras de arte regionais”, disse o autor do livro Photography in India: A Visual History From the 1850s to the Present. “Ao incluir coisas regionais estamos imediatamente começando a resolver isso.”
Registro da última edição de "Germinadora", residência do MAM Rio voltada a estudantes de 16 a 18 anos, das redes pública e privada. Foto: Fabio Souza
Buscando pluralizar os discursos no mundo das artes e repensar o fazer artístico e as relações com os espaços expositivos, instituições e projetos de diferentes regiões do Brasil lançam editais com oportunidades para profissionais da área. A arte!brasileiros selecionou alguns programas na Bahia, no Rio de Janeiro, no Rio Grande do Norte e em São Paulo.
MAM Rio
No dia 2 de maio, o museu carioca lança a terceira edição do Programas de Residências. A iniciativa oferecerá bolsas remuneradas de até R$ 5 mil a cada artista, curador, professor ou pesquisador selecionado. Neste primeiro momento, serão abertas as convocatórias para os projetos Germinadora, voltado a estudantes de 16 a 18 anos, e Incluir, direcionado a pessoas com deficiência. Ao longo do ano, outras chamadas serão abertas. “É bonito pensar que o MAM Rio, que traz a educação como elemento fundador, permanece como um lugar de formação e aprendizado, interessado em escutar novos agentes, em apoiar e fomentar o pensamento crítico enquanto forma saudável de ação e relação no mundo”, declara Renata Sampaio, gerente de Educação e Participação.
Registro da Residência Pesquisa em Artes no MAM Rio. Foto: Fabio Souza
Como a instituição pode dialogar com os jovens? O que as juventudes esperam/desejam de um museu de arte? Essas são algumas das perguntas que impulsionam a Residência Germinadora, que acontecerá em formato híbrido de 18 de junho a 9 de dezembro de 2022. Serão selecionadas quatro duplas de estudantes oriundas da rede pública e uma dupla da rede privada, todas formadas por residentes da capital carioca. Cada participante receberá uma bolsa mensal de R$ 500. Os laboratórios da residência contarão com processos de formação, imersão, mapeamento, inspiração, levantamento de problemas, idealização de soluções e apresentação pública das propostas desenvolvidas.
Já a Residência Incluir selecionará duas pessoas com deficiência que tenham vínculos formais ou informais com os campos da arte, educação, cultura e museus, bem como interesse em pensar metodologias para inclusão e construção de políticas de acessibilidade. Serão dois meses de envolvimento – sendo a primeira residência de 13 de junho a 12 de agosto e a segunda de 1 de agosto a 30 de setembro – em formato híbrido, com bolsas de R$ 2.500 mensais (totalizando R$ 5 mil por participante). “O objetivo é ampliar o acesso ao MAM Rio, a seus conteúdos e linguagens, e criar meios para pensar e produzir processos inclusivos e acessíveis de educação, arte e cultura, no intuito de democratizar e fortalecer o diálogo do museu com os seus públicos e com a cidade”, destaca o edital.
Ambas as residências têm inscrições abertas até 23 de maio. Confira o edital completo para saber mais (clique aqui).
Complexo Cultural Rampa. Foto: Divulgação
Estado de Luta
Visando a aquisição de oito trabalhos para compor exposição no Complexo Cultural Rampa, o equipamento cultural potiguar tem inscrições abertas no período de 15 de abril a 30 de maio. Serão aceitas obras produzidas através de todas as mídias e suportes – como esculturas, instalações, objetos, fotografias, vídeos, multimídias, pinturas e performances – a serem adquiridas pelo valor (bruto) de R$ 20 mil cada. Ao menos três dos trabalhos selecionados deverão ser de artistas ou coletivos norte-rio-grandenses ou residentes no Estado há pelo menos dois anos, e os de âmbito nacional deverão ser de autoria de pessoas brasileiras ou que possuam Registro Nacional de Estrangeiros com residência no país nos últimos dois anos.
As inscrições poderão ser realizadas por meios não escritos, através de propostas em áudio ou vídeo, visando um acesso mais plural. “As obras deverão refletir o conceito museológico estabelecido para a sala do Complexo Cultural Rampa – ‘Estado de Luta’ -, que se propõe a promover a conexão entre a natureza, a paisagem e o território para estimular a reflexão sobre as possibilidades de luta como um processo compositivo, regenerativo e de aproximação com a diversidade humana”, explica a instituição. “O edital reforça nosso objetivo de ocupação artística, de forma a pluralizar discursos e trazer novas narrativas que possam contribuir para ressignificar o presente e imaginar o futuro a partir das referências históricas e sociais do território”, detalha Gustavo Wanderley, curador do projeto Rampa – arte museu paisagem. O edital completo e formulário de inscrições podem ser acessados através do site da instituição (clique aqui).
Instituto Tomie Ohtake
Com o objetivo de reconhecer e promover a produção de jovens artistas, a 8a edição Prêmio Artes Tomie Ohtake selecionará 10 artistas mulheres para participar de exposição coletiva no instituto. As pessoas e coletivos selecionados receberão acompanhamento crítico e repasse financeiro de R$ 5 mil (por projeto) para produção e transporte das obras. Podem participar mulheres brasileiras ou estrangeiras residentes no Brasil há pelo menos dois anos e que tenham produção na área das artes visuais (pintura, desenho, gravura, escultura, colagem, instalação, fotografia, vídeo, performance, som, novas mídias, entre outras), ou coletivos em que todas as integrantes se encaixem nesse perfil. As inscrições ficam abertas até 26 de maio, saiba mais acessando o site do Instituto Tomie Ohtake (clique aqui).
Voltado para artistas visuais, curadores, escritores, arquitetos, cozinheiros, ambientalistas e acadêmicos interessados em viver, criar ou ter uma experiência de imersão no Parque Nacional da Chapada Diamantina, as Residências de Pesquisa 2022/2023 do Mirante Xique-Xique (MXX) têm inscrições abertas até 1º de maio. Organizado pela entidade sem fins lucrativos, o programa busca através de atividades culturais, intercâmbios, educação ambiental, imersão e contato com a natureza auxiliar na salvaguarda do patrimônio arquitetônico e imaterial da região.
Sediado nas altas montanhas do sertão da Bahia, em uma pequena comunidade de 450 habitantes, o MXX está próximo às ruínas da antiga Xique-Xique e de outros povoados, “que juntos constituíam o mais importante polo diamantífero do início do século 20 no Brasil”, explica o edital. Hoje, essa região é conhecida como Igatu, um vilarejo construído de pedras, encravado no coração do Parque Nacional da Chapada Diamantina. Os selecionados poderão optar por dois períodos diferentes para realização da pesquisa, entre 12 de agosto e 31 de outubro de 2022 – no valor de R$ 2.800 – e entre 12 de janeiro e 31 de março de 2023 – no valor de R$ 3.500. Nos valores a serem pagos pelos selecionados já estão inclusas acomodação em suíte privativa e café da manhã. Mais informações e inscrições no site do Mirante Xique-Xique (clique aqui)
Jutai River. State of Amazonas, Brazil, 2017. Photo: Sebastião Salgado.
“Why did I return to the Amazon?”, asks Sebastião Salgado in the presentation of his recent work named after “the forest that extends to infinity”. Now, eight years after the start of his venture in the Amazon, the photographer manages to answer that he returned not for the dark side – the fires, deforestation, the poisoning of rivers by miners, drug trafficking – but to savor the incomparable beauty of the Amazon and renew his bond with the native peoples who care for the forest so diligently.
View of the exhibition at Sesc Pompeia, in São Paulo. Photo: Everton Ballardin/Courtesy Sesc
“When I started photographing the Amazon, the region was by no means in evidence. I thought I had to do the photographs. I felt the biome threatened and I saw a very big difference between the Amazon of the 1980s and then the Amazon of the early 2000s”. Without a specific project in mind (whether it was the publication or the traveling exhibition that is now at Sesc Pompeia, in São Paulo), Salgado’s urgency took him to travel through the forest from the state of Pará to Amazonas, from Acre to Rondônia, Maranhão to Mato Grosso. The comprehensive movements were always foreseen by FUNAI – Fundação Nacional do Índio, responsible for protecting the rights of indigenous peoples throughout the national territory. “Before finalizing plans to visit a specific group, they consulted with the community to see if they would be willing to receive an outsider. In my case, a photographer,” he says. “Through FUNAI, I hired a translator for each trip, usually someone of the ethnic group in question, who had spent some time abroad and, therefore, learned Portuguese”. Prior to entering the jungle, Salgado and his team stocked up on food, as part of the agreement to be there was not to depend on the communities for food. They also traveled with other essentials such as: antivenom, solar panels, water purification solution, iPod. In order to be fair and contracted, it was also necessary to complete a ten-day “quarantine” when they arrived at the designated FUNAI post, in order to avoid the transmission of diseases, viruses and bacteria from outside to indigenous peoples.
Ashaninka family. State of Acre, Brazil, 2016. Photo: Sebastião Salgado.
Since the adoption of the Brazilian Constitution of 1988, 26% of the Amazon – equivalent to 13% of the entire Brazilian territory – has been reserved exclusively for indigenous communities, recalls the photographer. In this immensity, Salgado recorded majestic natural events through air, such as aerial rivers and Amazonian mountains, and water, through weeks of navigating the Rio Negro. Back on land he accompanied tribes in hunting, fishing and in rituals where his presence was allowed. “In most villages, the density of the bush completely blocks the view from a distance. The sky itself is framed by giant trees. When members of indigenous communities go hunting or fishing, they completely disappear within seconds. Therefore, whenever I accompanied them, I had the habit of keeping close to their heels, not losing sight of them for a second for fear of losing myself”.
Inside the villages, a mobile studio was also improvised and called those who felt comfortable to have their portrait taken. Despite the artificiality, the smoothness of the canvas – as opposed to the texture of the vegetation – provided a more appropriate field for traditional objects and customs to surface without distractions. Meanwhile, his journey up the Rio Negro and through the Anavilhanas National Park took him to the mouth of the Jaú River, cruising at reduced speed, just a few meters from the trees. “We had such heavy rain that the boat stopped due to a total lack of visibility. The cloud formations were so beautiful, so voluminous and so dramatic that they made us feel the size of our insignificance.” Even though piranas and giant pythons prevented him from diving into the Rio Negro, Salgado managed to bathe in the humidity of the aerial rivers – torrents of steam that form over the forest –, photographing them from within. From above, the photographer beheld the dimension of the largest set of mountains in Brazil: “The Amazon we were used to was a flat territory, with rivers that snaked through it; a part of the Amazon really is a big plain, but a considerable part of it is formed by an incredible portion of mountains”. Such aerial landscapes, rare in photographic documentation, were explored with the aid of the Brazilian army, which allowed Salgado to immerse himself in their missions. According to him, the distances are such that only the military, who cover the entire country and who have dozens of scattered bases, can reach these places.
Jutai River. State of Amazonas, Brazil, 2017. Photo: Sebastião Salgado.
“The Brazilian army has a very interesting characteristic in the Amazon: the vast majority of the body, which are the soldiers, the army basis, is indigenous”, says Salgado. “They know the forest, they come from the forest. And what is the function of an army? It is to defend national sovereignty. And the Amazon, the biome, represents almost 50% [49.29%] of the Brazilian territory”. For Salgado, the level of banditry in the current Amazon is worrying and makes such a defense [from the army] essential. “The current government, which is related to the militias, has facilitated [the coming of] and brought violence [themselves] to the Amazon in an incredible way.” He warns, however, of the differences between the young officers who are in the forest and the so-called ‘reserve military’. “That is a contradiction, you see, the participation of officers in the current predatory government, mainly reserve officers of the Brazilian army – who are old generals still related to the dictatorship, to a certain right-wing idea. There is a brutal difference with the new officers, with the basis, which are the soldiers, who are there, inside the Amazon defending it”.
The photographer recalls that, during his career, his contact with Brazilian troops took place more outside the country than inside the national territory, whether in United Nations missions in Angola, or in the Bosnian War, where soldiers participated unarmed as observers of the UN itself. This contact created in him an admiration that compels Salgado to make the following political request: “For me, the Brazilian left will have to change [in relation to the army]. The Brazilian left still condemns the Brazilian army [for its participation in the 1964 coup and dictatorship], but I think it would have to change, it would have to make a move towards the army, because by excluding the army and excluding itself from the army, it leaves place for the extreme right to enter there as it did with the Bolsonaro administration”. In Salgado’s view, the defense of this movement comes from the essentiality of the armed forces in all countries of the world; “it’s a technical body that the country depends on, which is an important strong institution that has to be neutral”.
A return to the planet
At 78, Salgado believes “in the idea of comprehensiveness, of community; the opponent is not an enemy that you have to kill in radicalism, I think the opponent is a future partner that you have to bring, to conquer”.
On the other hand, an injection of a certain type of more radical activism can be substantial to the issues of the environment and its preservation, after all “neutral ecology becomes an accomplice of the injustice of a world where healthy food, clean water, pure air and silence are not the rights of everyone but the privileges of the few who can afford them”, as suggested by Eduardo Galeano. In this sense, unbridled modernization worried both of them, “today we no longer belong to our planet…” laments Salgado, highlighting the level of dependence of an urbanized society on the expressway world. “We don’t know how to live without the assistance that was created around us, we lost this ability in relation to the earth, in relation to the planet and I think we would have to organize the return to the planet, we would have to learn from the planet”.
In Amazônia, is Salgado’s criticism sufficiently categorical? By choosing to highlight only life in the forest, does the photographer run the risk of presenting it as immortal?
“The Amazon is still a paradise, it is still one of the most wonderful places on the planet, and it has to be divine. The Amazon is paradise and paradise has to be defended, we cannot throw paradise into hell”, he defends. But apart from the noble merit of the question, perhaps the dilemma lies in the possibility that the images – sublime, with beautiful striking contrasts, with tormented and imposing skies – do not trigger the impulse to do something about it so that the biome does not travel the opposite of Dante’s path. Possibly, the danger of presenting the biome as a slice of the Sacred is that, in this kind of narrative, even after the end of times there is still the second coming of the savior. Following this line, the threat of messianic discourse grows. Passivity is not thought to be so parlous. Commitment demanding becomes a gentleman’s agreement.
His Instituto Terra, founded in 1998 with his wife and partner, architect and environmentalist Lélia Wanick Salgado, meets the urgency that another Brazilian biome requires, the Atlantic Forest. The institute is located in the city of Aimorés, in Minas Gerais, where the photographer’s family’s old cattle farm was located and, in just over 20 years, it made possible the planting of more than 2 million tree seedlings (using more than 290 native species from the Atlantic Forest) within the Bulcão Farm, an area recognized as a private natural heritage reserve (RPPN). During that time, the institute also invested in the recovery of springs in the Rio Doce Hydrographic Basin and in the production of native seedlings – 6 million so far – for its own and third-party reforestation.
Furthermore, by 2023, Terra hopes to have completed the first phase of its Atlantic Forest gene bank project. The program started in 2018 and its objective is to guarantee the continuity of species found in Vale do Rio Doce, highlighted by the institute itself as “an area of highly degraded Atlantic Forest with the threat of extinction of several native species”. The logistics and progress of the enterprise are attributed to Lélia, who signs the expography of the recent show at Sesc Pompeia, as well as the editing, design and production of the book Amazônia. It was even her idea that the exhibition should be filled with music. “Amazon is a very musical region, the indigenous people are very musical, they sing a lot, there are many festivities and many instruments. Lélia traveled a lot in the Amazon with me and she absolutely wanted us to bring music to the exhibition”.
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View of the exhibition at Sesc Pompeia, in São Paulo. Photo: Everton Ballardin/Courtesy Sesc
View of the exhibition at Sesc Pompeia, in São Paulo. Photo: Everton Ballardin/Courtesy Sesc
View of the exhibition at Sesc Pompeia, in São Paulo. Photo: Everton Ballardin/Courtesy Sesc
View of the exhibition at Sesc Pompeia, in São Paulo. Photo: Everton Ballardin/Courtesy Sesc
With the purpose of creating the soundtrack to serve as the guiding thread of the exhibition, Jean-Michel Jarre, a popular composer and producer in France (considered a pioneer of electronic music), had access to the collections of the Museum of Ethnology in Geneva, which recovered sounds from the entire Amazon for years. Indigenous songs and instruments also appear in another sound experience, the projection with portraits of members of the tribes that Salgado visited. The Pau Brasil group, from São Paulo was in charge of the music in this space along with Marlui Miranda. A final projection of landscapes pays homage to maestro Heitor Villa-Lobos by playing “Erosão (Origin of the Amazon River)”.
At the end of Amazônia, Salgado appeals: “To survive as a culture, these peoples cannot be mere objects of anthropological interest. [They] must contribute and also benefit from the sustainable development of the Amazon through its extraordinary botanical wealth, exotic spices, nuts or plants with medicinal and cosmetic properties.” In this last address in Amazônia, the defense of indigenous rights and the preservation of the biome goes hand in hand with pragmatism, considering that “according to satellite images, – in contrast to private lands, or gigantic national parks and even public lands owned by the State – there were very few occurrences of fire or acts of deforestation within the indigenous reserves”. And as the photographer himself had brought to attention before: “When a part of the forest is cut down, it is as if that forest has no value… We throw it on the ground, set it on fire, destroy it to establish livestock”. And how much does the forest cost? “The price that is necessary to put in place to rebuild that hectare of forest”, he replies. “If 10,000 hectares of forest are cut down, you are cutting down more than 200 million dollars. Never in the history of this rural property – which will settle where the forest was destroyed – will it be produced the amount of capital that was destroyed”.
Fachada do pavilhão americano na 59ª Bienal de Veneza Foto: Timothy Schenck /
Cortesia da artista e Matthew Marks Gallery
Realizada este ano entre os dias 23 de abril e 27 de novembro, a 59ª Bienal de Veneza se apresenta, de saída, como uma edição histórica, tanto por sua realização após longo período de pandemia quanto por ser a primeira em que o número de mulheres participantes supera o de homens. Ao mesmo tempo, para o curador e escritor Gabriel Bogossian, colaborador da arte!brasileiros presente na cidade italiana, o atual evento apresenta uma mostra principal caracterizada por certo escapismo, sem enfrentar os conflitos, ruídos e dissonâncias latentes no mundo atual – o texto completo você pode ler aqui (leia também sobre o pavilhão brasileiro, com obras de Jonathas de Andrade, aqui).
Dentre a grande quantidade de trabalhos apresentados no evento italiano, entre os tradicionais pavilhões Arsenale e Giardini e as representações nacionais, Bogossian escreve agora sobre o que considera alguns dos destaques do evento. Leia abaixo:
Feeling her way, obra de Sonia Boyce ganhadora do Leão de Ouro de melhor representação nacional, é parte de seu projeto Devotional Collection, que documenta as contribuições da música negra realizada por mulheres para a cultura. No pavilhão britânico, a instalação de Boyce combina vídeos, objetos, papel de parede e itens de memorabilia relacionados a essa produção musical. Os vídeos foram realizados em colaboração com cinco cantoras negras do Reino Unido e mostram improvisações, vocalises e interações entre as cinco, em gravações límpidas e visualmente minimalistas.
Fora dos Giardini, em diálogo incidental com a instalação de Boyce, o pavilhão da Escócia traz obras de Alberta Whittle, primeira mulher negra a representar seu país na Bienal de Veneza. Partindo de bell hooks, Audre Lorde, Christina Sharpe e outras autoras que abordam a diáspora negra, em especial a produzida pelo Império Britânico nas suas possessões no continente americano, as obras de Whittle abordam de modo mais direto e documental o mundo forjado pelo capitalismo escravagista.
Vale destacar também a videoinstalação de Tourmaline, na saída do Arsenale. A ativista, escritora e artista trans queer norte-americana trouxe à Bienal um curta-metragem ficcional passado em Seneca Village, primeiro bairro afro-americano da ilha de Manhattan, destruído para a construção do Central Park. Sua protagonista é uma mulher trans negra com dons mediúnicos que, no século 19, desafia as autoridades locais para defender sua comunidade enquanto é assombrada por visões do futuro, antevendo uma Nova York repleta de carros e arranha-céus.
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Fachada do pavilhão americano na 59ª Bienal de Veneza Foto: Timothy Schenck /
Cortesia da artista e Matthew Marks Gallery
Simone Leigh, "Last Garment". Foto: Timothy Schenck /
Cortesia da artista e Matthew Marks Gallery
Vista da instalação de Simone Leigh, "Sovereignty",
no pavilhão americano na 59ª Bienal de Veneza. Foto: Timothy Schenck /
Cortesia da artista e Matthew Marks Gallery
Simone Leigh
Distribuída entre o pavilhão dos EUA e o Arsenale (dentro e no seu jardim, na parte externa), a participação de Simone Leigh chama atenção não só pela qualidade, mas pela escala contundente das obras, perfeitamente adequada para um evento do porte da Bienal de Veneza. Nos três espaços, Leigh mostra esculturas inspiradas no corpo ou em figuras femininas, trabalhando com técnicas e materiais tradicionalmente utilizados pela diáspora africana em sua produção de cultura material. A combinação de peças narrativas, como a lavadeira que recebe o público no interior do pavilhão norte-americano, com outras de caráter mais abstrato, ressalta a força política de suas obras e a dimensão ética contida em seu trabalho.
O jogo é uma coisa séria
Ocupando o pavilhão belga com uma série de pinturas em pequeno formato e outra de videoinstalações, Francis Alÿs é um dos grandes destaques desta edição. Artista belga radicado há muitos anos no México, Alÿs mostra, nas duas séries, crianças de diversas partes do mundo e suas variadas formas de brincar. Enquanto as pinturas recebem discretamente o público na entrada do pavilhão, as videoinstalações em grande formato registram de maneira documental e livre a algazarra de meninas e meninos se divertindo. Aqui, a simplicidade analógica da imaginação infantil e suas brincadeiras, com frequência desenvolvidas com materiais simples e baratos, responde de maneira eficaz a uma Bienal repleta de corpos fantásticos e sonhos tecnológicos.
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Vista da exposição "The Nature of the Game", de Francis Alÿs, no pavilhão belga da Bienal de Veneza. Foto: Roberto Ruiz
Vista da exposição "The Nature of the Game", de Francis Alÿs, no pavilhão belga da Bienal de Veneza. Foto: Roberto Ruiz
Vista da exposição "The Nature of the Game", de Francis Alÿs, no pavilhão belga da Bienal de Veneza. Foto: Roberto Ruiz
Intimidade e desejo
No pavilhão romeno, a artista e cineasta Adina Pintilie desdobra a investigação em torno das políticas e das poéticas da intimidade com a qual conquistou o Urso de Ouro no Festival de Berlim em 2018. A videoinstalação apresentada nesta Bienal, You are another me, toma seu título de empréstimo de um cumprimento maia, que lança a um só tempo uma posição ética de interdependência entre interlocutores e em relação ao contexto em que atuam. Na obra, três indivíduos relatam suas experiências em torno da sexualidade, da constituição da subjetividade e do contato físico a partir de seus corpos dissidentes, expondo espaços de intimidade para a câmera de Pintilie de maneira generosa e delicada. A gramática documental da obra ofusca seu aspecto tecnológico, sem, no entanto, nenhum prejuízo para sua fruição.
Fantasmas industriais
Depois de seguidas edições com presença pouco significativa para o conjunto da Bienal, o pavilhão da Itália nesta edição é ocupado pela primeira vez por um só artista. Gian Maria Tosatti apresenta uma instalação que toma todo o interior do espaço, evocando, na forma de fantasmagorias, os sonhos industriais italianos e sua decadência. As salas são ocupadas por diferentes expressões dessa queda: máquinas enferrujadas e em desordem, cobertas de poeira; espaços assépticos, com tubos de ventilação pendentes; um dormitório que remonta aos anos 1950, década de início do “milagre italiano”; e máquinas de costura paradas, observadas por um crucifixo na parede. Na última sala do pavilhão, uma singela homenagem ao cineasta Pier Paolo Pasolini e seus vaga-lumes, que, depois de tudo, enfim permanecem.
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Vista da exposição "Re-enchanting the World", de Małgorzata Mirga-Tas, no pavilhão polonês na 59ª Bienal de Veneza. Foto: Daniel-Rumiancew / Cortesia de Zachęta - Galeria Nacional de Arte
Vista da exposição "Re-enchanting the World", de Małgorzata Mirga-Tas, no pavilhão polonês na 59ª Bienal de Veneza. Foto: Daniel-Rumiancew / Cortesia de Zachęta - Galeria Nacional de Arte
Fachada do Pavilhão da Polônia na 59ª Bienal de Veneza. Foto: Daniel-Rumiancew / Cortesia de Zachęta - Galeria Nacional de Arte
Romani
Tal como ocorreu com o pavilhão Sámi, nesta edição a representação polonesa convidou para seu pavilhão nacional uma artista Romani, povo sem Estado historicamente alvo de ataques onde quer que se estabelecesse. Num hotel abandonado em Zakopane, sul da Polônia, a artista Małgorzata Mirga-Tas produziu uma série de 12 enormes obras em tecido, livremente inspiradas nos painéis do Palazzo Schifanoia, em Ferrara, na Itália. Cobrindo as paredes do pavilhão polonês de cima a baixo, e também parte de sua fachada, as obras de Mirga-Tas mostram as migrações dos Romani pela Europa e momentos de sua história vistos da perspectiva feminina, ressaltando a mútua influência entre as culturas romani, polonesa e as de outros países da Europa.
*Gabriel Bogossian é curador independente e escritor. Sua prática é baseada em colaborações com artistas, curadores e organizações de direitos humanos para a realização de publicações, exposições e outros projetos culturais, com frequência articulando produções de diferentes campos da cultura visual, como a arte, o cinema, o jornalismo e os movimentos sociais. Foi curador convidado da 21ª Bienal de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil | Comunidades Imaginadas (São Paulo, 2019), da Screen City Biennial 2019 – Ecologies: Lost, Found and Continued (Stavanger, 2019) e do Festival VideoEx (Zurique, 2019) e curador adjunto do Galpão VB (2016-2020). Foi autor da tradução de Americanismo e Fordismo, de Antonio Gramsci (ed. Hedra, 2008), e do capítulo O contato e o contágio, conversa realizada com Ailton Krenak que integra a publicação No tremor do mundo (2020).
Gaudêncio da Conceição durante Festa de São Benedito, Conceição da Barra, ES, c. 1989. Crédito: Walter Firmo/Acervo IMS.
A partir de 30 de abril, 266 fotografias do fotógrafo carioca Walter Firmo passam a ser exibidas por dois andares do Instituto Moreira Salles de São Paulo (IMS Paulista). As imagens datam do início da sua carreira, na década de 1950, até os dias de hoje, mostrando diversas regiões do Brasil, com registros de ritos, festas populares e cenas cotidianas. Grande parte das obras em Walter Firmo: no verbo do silêncio a síntese do grito provém do acervo do fotógrafo, que se encontra sob a guarda do IMS desde 2018 em regime de comodato. No dia da abertura (30/4), às 11h, haverá um debate presencial com o fotógrafo e os curadores da exposição no cineteatro do IMS Paulista.
A curadoria da mostra é de Sergio Burgi, coordenador de Fotografia do IMS, e da curadora adjunta Janaina Damaceno Gomes, professora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) e coordenadora do Grupo de Pesquisas Afrovisualidades: Estéticas e Políticas da Imagem Negra. A retrospectiva também conta com assistência de curadoria da conservadora-restauradora Alessandra Coutinho Campos e pesquisa biográfica e documental de Andrea Wanderley, integrantes da Coordenadoria de Fotografia do IMS.
A exposição apresenta a obra fotográfica de Firmo a partir de sete núcleos temáticos. No primeiro, o público encontra cerca de 20 imagens em cores de grande formato, produzidas pelo fotógrafo ao longo de toda sua carreira. Há fotos feitas em Salvador (BA), como o registro de uma jovem noiva na favela de Alagados, de 2002; em Cachoeira (BA), como o retrato da Mãe Filhinha (1904-2014), que fez parte da Irmandade da Boa Morte durante 70 anos; e em Conceição da Barra (ES), onde o fotógrafo retratou o quilombola Gaudêncio da Conceição (1928-2020), integrante da Comunidade do Angelim e do grupo Ticumbi, dança de raízes africanas; entre outras. A retrospectiva evidencia como, no decorrer de sua carreira, Firmo passou a se distanciar do fotojornalismo documental e direto, tendo como base a ideia da fotografia como encantamento, encenação e teatralidade. Sobre seu processo criativo, o artista comenta: “A fotografia, para mim, reside naqueles instantes mágicos em que eu posso interpretar livremente o imponderável, o mágico, o encantamento. Nos quais o deslumbre possa se fazer através de luzes, backgrounds, infindáveis sutilezas, administrando o teatro e o cinema nesse jogo de sedução, verdadeira tradução simultânea construída num piscar de olhos em que o intelecto e o coração se juntam, materializando atmosferas”.
Maestro Pixinguinha (Alfredo da Rocha Vianna Filho), Rio de Janeiro, RJ, 1967. Crédito: Walter Firmo/Acervo IMS.
Como um dos destaques, a exposição apresenta retratos de músicos produzidos por Firmo, principalmente a partir da década de 1970. Nas imagens, que ilustram inúmeras capas de discos, estão nomes como Dona Ivone Lara, Cartola, Clementina de Jesus, Paulinho da Viola, Gilberto Gil, Martinho da Vila, Maria Bethânia, Caetano Veloso, Milton Nascimento, Djavan e Chico Buarque. A mostra também traz fotografias realizadas para a matéria 100 dias na Amazônia de ninguém, publicada em 1964 no Jornal do Brasil, pela qual Firmo recebeu o Prêmio Esso de Reportagem. Para a matéria, que contou com textos e imagens de sua autoria, o fotógrafo percorreu cidades e povoações ribeirinhas do Amazonas e do Solimões, documentando as paisagens, disputas políticas da região e a população, que incluía alguns de seus familiares.
Nascido em 1937 no bairro do Irajá, no Rio de Janeiro, e criado no subúrbio carioca, filho único de paraenses – seu pai, de família negra e ribeirinha do baixo Amazonas; sua mãe, de família branca portuguesa, nascida em Belém –, Walter Firmo começou a fotografar cedo, após ganhar uma câmera de seu pai. Em 1955, então com 18 anos, passou a integrar a equipe do jornal Última Hora, após estudar na Associação Brasileira de Arte Fotográfica (Abaf), no Rio. Mais tarde, trabalharia no Jornal do Brasil e, em seguida, na revista Realidade, como um dos primeiros fotógrafos da revista. Em 1967, já trabalhando na revista Manchete, foi correspondente, durante cerca de seis meses, da Editora Bloch em Nova York.
Neste período no exterior, o artista teve contato com o movimento Black is Beautiful e as discussões em torno dos direitos civis, que marcariam todo seu trabalho posterior. De volta ao Brasil, trabalhou em outros veículos da imprensa e começou a fotografar para a indústria fonográfica. Iniciou ainda sua pesquisa sobre as festas populares, sagradas e profanas, em todo o território brasileiro, em direção a uma produção cada vez mais autoral. “Acabei colocando os negros numa atitude de referência no meu trabalho, fotografando os músicos, os operários, as festas folclóricas, enfim, toda a gente. A vertigem é em cima deles. De colocá-los como honrados, como homens que trabalham, que existem. Eles ajudaram a construir esse país para chegar aonde ele chegou”, explica.
Para mais informações sobre a visita à exposição basta clicar aqui.
"To See the Earth Before the End of the world", Precious Okoyomon. Foto: Roberto Marossi / Cortesia Bienal de Veneza
Pavilhão central da Bienal de Veneza. Foto: Francesco Galli / Cortesia Bienal de Veneza
A 59ª Bienal de Veneza, inaugurada para o público no dia 23 de abril, começa histórica. Não só é a primeira depois do adiamento imposto pela pandemia, mas a primeira em que, na exposição organizada pela curadora-chefe desta edição, Cecilia Alemani, a quantidade de mulheres supera a de homens.
Além disso, seus dois principais prêmios foram para mulheres negras: o Leão de Ouro de melhor pavilhão nacional foi para Sonia Boyce, representante da Grã-Bretanha, e o de melhor participação individual para a norte-americana Simone Leigh, por The Brick House, obra que integra a exposição curada por Alemani.
The Milk of Dreams, título desta Bienal, faz referência à obra de Leonora Carrington (1917-2011), artista e escritora britânica radicada no México com uma obra marcada pela influência do surrealismo. A exposição de Alemani, dividida entre o pavilhão principal da Bienal, os Giardini e o Arsenale, toma o diálogo com a obra de Carrington como disparador e guia de suas escolhas curatoriais. Nos dois espaços, a influência da vanguarda surrealista é notável, tanto nas poéticas de artistas contemporâneos quanto naquelas históricas, e resulta em uma mostra de grande coerência e de princípios nítidos.
Bem-sucedida no desenvolvimento de seu partido curatorial, Alemani realiza nos dois espaços um amplo inventário de formas oníricas, onde o humano é definido não pela sua diferença em relação à tecnologia e à natureza, mas pela proximidade a esses dois campos de sentido. Assim, convivem lado a lado androides, ciborgues e seres híbridos, com formas fantásticas ou grotescas, bem como animais antropomorfizados e figuras mitológicas e de fábula. Diante das inúmeras perdas e do mal-estar produzido pelos dois anos de pandemia, Alemani desejou oferecer um recuo a espaços de intimidade e de sonho.
Ao contrário de curadores como Moacir dos Anjos, que defende em seus textos a criação de fricções entre as obras no espaço expositivo como forma de expandir seus sentidos possíveis, Alemani optou aqui pela adição, investindo na compilação de poéticas afins como método de trabalho. Em que pese a qualidade de várias das obras trazidas e a consistência da pesquisa desenvolvida, o resultado é uma exposição de poucas dissonâncias, onde o sonho se desenrola em grande parte sem ser perturbado pelos ruídos do mundo.
“To See the Earth Before the End of the world”, Precious Okoyomon. Foto: Roberto Marossi / Cortesia Bienal de Veneza
Se confere coerência ao conjunto, a opção pela soma de afinidades produz, por outro lado, um resultado exaustivo e amorfo. Quer se comece a visita pelo Arsenale, quer pelo pavilhão principal, nos Giardini, a quantidade de humanóides, corpos seccionados e seres fantásticos, ao final do trajeto, torna em grande medida indiscernível as particularidades das obras expostas nos dois espaços. Enquanto o recurso a obras históricas tem o mérito de iluminar linhas de continuidade entre poéticas e entre passado e presente – sugerindo, talvez involuntariamente, um futuro sombrio para este nosso tempo –, ele ressalta a repetição de estratégias artísticas e também certo escapismo, perceptível no encantamento de tons futuristas com a tecnologia e na fuga rumo ao sonho como forma de solução ou alívio para os conflitos atuais.
Leite de tigre, leite de zebra
O desequilíbrio entre acolhimento e perturbação da exposição principal se reflete também em vários dos pavilhões nacionais, que desdobram de modo pouco ousado o partido curatorial desta edição. Seres mitológicos e formas dúcteis estão por todos os lados, como se o sono da razão não produzisse mais monstros, mas figuras familiares, com as quais fosse agradável estabelecer contato. As exceções, na exposição da curadoria ou nos pavilhões, oferecem outros leites, explorando o pesadelo e o despertar doloroso em busca de subir um pouco a temperatura desta edição. É o caso do vídeo de P. Staff (Grã-Bretanha, 1987), artista não binárie que retrata com cores ácidas a produção industrial de proteína animal, e as esculturas de Ali Cherri (Líbano, 1976), que remontam a divindades totêmicas de uma humanidade panteísta e agrária (pela sua participação, Cherri recebeu o Leão de Prata desta edição). No mesmo sentido caminham Rosana Paulino (Brasil, 1967), com desenhos de corpos femininos, também ligados à terra, carregados de memórias de grande carga política, e Julia Philips (Alemanha, 1985), cujas esculturas aludem a formas de controle psicológico e institucional exercido sobre nossos corpos humanos.
Entre os pavilhões, merecem destaque os de Áustria e Letônia, que trazem bem-vindas notas de kitsch e ironia para o conjunto desta edição. Com projetos desenvolvidos por duos – Jakob Lena Knebl e Ashley Hans Scheirl (Áustria, 1970 e 1956), pessoas trans, e Skuja Braden (1999), respectivamente – os dois abrem espaço para as dissidências do sonho e da fantasia insistentemente perseguidas por Alemani. De modo igualmente insolente e com título provocador – Peace is a corrosive promise –, o pavilhão do Peru traz um conjunto de obras de Herbert Rodríguez (Peru, 1959) plenas da sujeira do mundo e dos confrontos que esta edição da Bienal de Veneza tenta de algum modo evitar.
Obras de Rosana Paulino na Bienal de Veneza. Foto: Reprodução Mendes Wood DM
Em um evento anacronicamente marcado pelas representações nacionais, é preciso mencionar a participação Sámi, que ocupa o pavilhão dos países nórdicos (Noruega, Finlândia e Suécia), um dos mais bonitos dos Giardini. Povo tradicional transnacional – ocupam também uma península russa, além dos três países mencionados acima –, sua presença na Bienal foi descrita como um ato de “soberania indígena” pelos organizadores noruegueses da representação. Apesar de sua importância e da qualidade das obras apresentadas, o pavilhão falhou em contextualizar os conflitos – territoriais, ambientais, culturais – enfrentados pelos Sámi hoje, contra justamente os Estados que os patrocinam ali. Sua presença, de todo modo, assinala o anacronismo nacionalista da Bienal de Veneza e a urgência de se abrir o evento a povos sem Estado e outras formas de representação.
*Gabriel Bogossian é curador independente e escritor. Sua prática é baseada em colaborações com artistas, curadores e organizações de direitos humanos para a realização de publicações, exposições e outros projetos culturais, com frequência articulando produções de diferentes campos da cultura visual, como a arte, o cinema, o jornalismo e os movimentos sociais. Foi curador convidado da 21ª Bienal de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil | Comunidades Imaginadas (São Paulo, 2019), da Screen City Biennial 2019 – Ecologies: Lost, Found and Continued (Stavanger, 2019) e do Festival VideoEx (Zurique, 2019) e curador adjunto do Galpão VB (2016-2020). Foi autor da tradução de Americanismo e Fordismo, de Antonio Gramsci (ed. Hedra, 2008), e do capítulo O contato e o contágio, conversa realizada com Ailton Krenak que integra a publicação No tremor do mundo (2020).