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Nossa vulnerabilidade em pauta

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Após uma intensa pesquisa sobre a história de Lyon, os curadores Sam Bardaouil e Till Fellrath escolheram trazer à tona diversas expressões da nossa fragilidade, contada por obras de diferentes períodos da história e da contemporaneidade. Imagens e documentos relatam, na sua própria existência, como o homem reage a sua fragilidade através do tempo.

Manifesto da fragilidade coloca a vulnerabilidade como possibilidade de uma forma geradora de resistência, encorajada pelo passado, sensível ao presente e que prepara para enfrentar o futuro”, diz a historiadora da arte Isabelle Bertolotti, diretora artística da Bienal de Lyon. 

Simone de Beauvoir, uma das escritoras francesas mais famosas do século XX, escreveu lá atrás, em 1946, um clássico do existencialismo francês, Todos os homens são mortais. Nele, o protagonista Fosca é imortal e, em cada um dos personagens que vive ao longo dessa existência infinita, sofre, ao não ser vulnerável, por não poder viver cada momento como único. Por não poder amar, por saber que vai perder o ser amado ou lutar, porque sabe que vai ganhar ou perder, e tudo voltará a se repetir. Seu desejo ficou adormecido. Não lhe falta nada.

Não há anseio de imortalidade nas escolhas da Bienal de Lyon. Ela não nega nossa fragilidade, a encara. Escancara que somos seus reféns desde o dia em que nascemos, o que nos traz a certeza de não estarmos excluídos do tempo, do tempo da história, e do mundo. Onde criar e fazer em cada momento pode nos libertar da angústia da nossa própria morte.

“O manifesto imagina um mundo onde a vulnerabilidade é representada ativamente, uma realidade como base para o empoderamento, em vez de ser evitada como um sinal de fragilidade. Concebido como uma declaração coletiva, é sustentado por uma pluralidade de vozes resilientes que prosperam na ternura e florescem na adversidade”, escrevem os curadores, no Manifesto da fragilidade.

Criada em 1991, a Bienal de Arte Contemporânea de Lyon cresceu sistematicamente em visitação e fundamentalmente no conceito de ocupação da cidade. Ela nasce concomitante ao declínio da Bienal de Paris que, lançada em 1959, chamava-se também Manifestation Biennale et Internationale des Jeunes Artistes, ostentando o experimentalismo e permitindo a entrada só de jovens artistas, até 35 anos. Com o passar dos anos ela foi se abrindo para outras sugestões, perdendo sua originalidade e veio a encerrar suas atividades em 2008. 

Ailbhe Ní Bhriain, “Instrusions II”, 2022, tapeçaria jacquard de linho e algodão. Foto: Patricia Rousseuax

Lyon é a terceira cidade francesa em importância, pela sua história, e por ter exercido um papel preponderante na economia e industrialização na França. Criada na antiguidade pela vontade de Roma, pela sua posição estratégica, tornou-se a capital dos gauleses. Era um importante centro político e religioso, e sua cristianização se deu no século 2. 

“A própria cidade de Lyon também é protagonista: mergulhamos na história de Lyon, que fornece um conjunto emocionante de estratos, para extrair elementos que queríamos ver os artistas explorarem, depois focamos em três trajetórias concêntricas que destacam o tema”, diz Bardaouil. 

Como se tivessem atirado uma pedra no lago, os curadores criaram narrativas que vão se desenvolvendo em círculos concêntricos. O primeiro movimento, As muitas vidas e mortes de Louise Brunet, conta a história de um indivíduo, neste caso a história e resistência de Louise Brunet, uma tecelã (fiandeira), trabalhadora da poderosa indústria da seda em Lyon, e de sua participação na famosa Revolta dos Canuts, em 1834. 

Os canuts eram trabalhadores da seda lionesa do século 19, muitas vezes trabalhando em teares de jacquard, eram sujeitos a condições de trabalho extremamente precárias. Em 14 de fevereiro de 1834, os canuts se revoltaram pela segunda vez, ocupando as colinas de Lyon. A revolta durou seis dias, antes de ser reprimida por 12 mil soldados.

Segundo documentos oficiais encontrados no Ministério Francês de Assuntos Estrangeiros, em Paris e Nantes, Louise Brunet, após quatro anos na prisão, liberta teria sido recrutada por um grande marchand da seda, Nicolas Portalis, que lhe prometera uma vida digna numa Vila de Btetir, no Monte Líbano. A despeito de suas expectativas, encontra as mesmas dificuldades que existiam na França. Maus tratos, condições de trabalho insanas, que a levam a continuar lutando. 

Tomando como base estes dados reais, Bardaouil e Fellrath, num misto de documentação e fantasia, constroem o segundo movimento da narrativa para esta bienal: Beyrouth et les Golden Sixties, situando-a em Beirute, revisitando um capítulo tumultuado do modernismo no Líbano. Com a declaração de independência do Líbano da França, em 1943, Beirute vai se tornar um destino valorizado por artistas e intelectuais do Oriente Médio e da África do Norte de língua árabe. Ainda assim, com fluxo exacerbado de capitais internacionais, a partir de 1958, tensões internas eclodem e instalam um conflito que durará 15 anos e terminará em 1975 com a Guerra Civil Libanesa. 

Aqui foram explorados etnia, gênero, sexualidade e contexto socioeconômico como vários territórios em que o sofrimento individual e coletivo se sobrepõem, através das gerações.  Mais de 230 obras e documentos, de 34 artistas, trazem indícios de como a arte em tempos difíceis permaneceu ativa e relevante. “Beirute tem um microcosmo condensado de incoerências. É uma cidade por si só manifesto da fragilidade, e ela continua mostrando até hoje vulnerabilidade e determinação”, diz o Manifesto. 

Por último, desenvolvido durante a pandemia, no confinamento e num dos momentos em que o mundo e a sociedade global conviveram com uma provação limítrofe, o terceiro movimento: Um mundo de promessas infinita traz os limites e a inevitável fragilidade do nosso corpo. “Seja racializado, colonizado, generificado ou diminuído, ‘ele é a maior manifestação de onde todo começa e termina”, diz o Manifesto. 

No nosso atual estado de incerteza global, climática, socioeconômica e política, provocado pela ação do próprio homem, que depreda seu entorno e o do outro, olhando-se cada vez mais num espelho em que se afoga como Narciso, a arte acaba sendo um elemento de denúncia permanente, um grito sensível.  

Nesse sentido, a construção documental e fantástica a partir de mais de 125 artistas, perscrutando 3000 anos, reconsiderando a História, muitas vezes esquecida ou marginalizada, permite refletir sobre as dificuldades que persistem. 

As exposições e suas narrativas se expandem ao longo da cidade de Lyon, em quatro percursos. No Primeiro Percurso, no lado oeste da cidade, a visitação inclui o macLyon, o Musée Guimet e o Parc de la Tête d’Ór; na direção sul. O Segundo, o Musée des Beaux-Arts; o Musée de Fourvière, o Lugdunum Musée et théâtres romains, Parc LPA République, Pont de l’Úniversite e o MHL-Gadagne; ao leste, o Terceiro, a Usines Fagor e a Place des Pavillons. Por último, ao norte, o Quarto, a URDLA e a Gare SNCF Part Dieu. 

Uma das instalações significativas da Bienal foi montada num dos pavilhões da Usines Fagor, antiga fábrica de eletrodomésticos Fagor-Brandt, que hoje está parcialmente em reabilitação. Na década de 1980 a fábrica ainda empregava 1800 trabalhadores, após diferentes ciclos econômicos, entrou em declínio, até seu fechamento em 2015. O local, atualmente com mais de 29 mil metros quadrados, realiza eventos culturais.

“Experiências sensoriais, contemplação, memória, transposição. Todo o meu trabalho está ligado à ideia de “memento mori’ [lembre-se que você também vai morrer]” diz o artista belga, Hans Op de Beeck, em artigo para Yamina Benaï,  fundadora e editora-chefe da GESTES/S (Groupe Beaux Arts & Cie), “não como uma posição filosófica melancólica ou sombria, mas sim como um convite a considerar ser mortal como uma razão para exercer humildade e empatia, e para que se veja como essencial ser solidário com os outros”.

Em outro dos galpões da Fagor, Standing by the ruins of Aleppo, 2021, da artista Dana Awartani, nascida em Jeddah, Arabia Saudita, chama para outro momento de silêncio e contemplação. Uma instalação com mais de 22 metros de comprimento por 13 metros de largura, construída com tijolos de barro de diferentes regiões da Arábia Saudita.  Uma réplica do pátio da Grande Mesquita de Aleppo traz, a partir dos seus desenhos geométricos, característicos da cultura árabe, a memória dos grandes danos sofridos durante a Guerra Civil Síria.  

No Musée Guimet – um museu de história natural que esteve fechado nos últimos 15 anos –, o artista francês Ugo Schiave ocupa o salão central com a obra de técnicas mistas Grafted Memory System, 2022. Uma instalação com plantas, insetos, vídeos mostrando momentos de destruição da natureza, insetos, fósseis, ossos, LEDS sobre horticultura, reflete sobre o destino do ambiente.

Daniel de Paula, que mora no Brasil e em Maastricht, Holanda, ganhou destaque no segundo andar do Guimet com a instalação Veridical Shadows ou Unfoldings of a Deceptive Physicality, uma escultura contemporânea, composta por diferentes materiais emprestados ou comprados de instituições públicas e privadas após negociações. Ele coloca esse conjunto de coisas descartadas em diálogo com uma máscara funerária romana, preservada em Lugdunum – Museu e Teatros Romanos. O espaço e o tempo formam parte da rede complexa que atravessamos. 

Numa leitura completamente diferente, o sueco Tarik Kiswanson recorre a crisálidas que, quase levitando, desafiando a gravidade, são penduradas pelo avesso de mobiliários que pertencem à história do museu, criando uma sensação de incerteza. 

A brasileira Valeska Soares, nascida em Belo Horizonte que vive e trabalha entre Brooklyn (EUA) e São Paulo, criou para a Bienal de Lyon uma nova versão da sua instalação Folly, um cenário de espelhos, onde é projetado o vídeo Tonight, 2002, gravado em um antigo edifício, Cassino Pampulha, projetado por Niemeyer. “No espaço o espectador é cercado pelos bailarinos numa dança sem fim. A instalação fala de solidão. De um Outro distante, fugaz, mas não impossível”, reza o guia do Manifesto da fragilidade, publicado pela Bienal. A instalação foi concebida num espaço dedicado no Place des Pavillons. 

A Bienal de Lyon trouxe diferentes expressões, produto de pesquisa cuidadosa, e escolha de obras singulares, de qualidade ética e estética. Em conversa, permitiu que artistas de diferentes culturas criassem um ambiente de reflexão a partir de narrativas poéticas sobre nossa existência.

Colaboradores da edição #61

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FABIO CYPRIANO, crítico de arte e jornalista,
é diretor da Faculdade de Filosofia,
Comunicação, Letras e Artes da PUC-SP e
faz parte do conselho editorial da arte!brasileiros.
Neste número, escreve sobre as
iniciativas governamentais no universo das
artes no Ceará e faz uma crítica sobre a
exposição Histórias Brasileiras.


JOTABÊ MEDEIROS é repórter e escritor, biógrafo, entre outros, do cantor Belchior. Foi repórter de O Estado de S.Paulo e Folha de S.Paulo, editor-assistente da Veja SP, editor na TV Gazeta e da Carta Capital. É editor-chefe do site Farofafá. Neste número, faz uma análise sobre o colapso da cultura durante a gestão de Bolsonaro.

LEONOR AMARANTE é jornalista, curadora e editora. Trabalhou no Jornal O Estado de S.Paulo, na revista Veja, na TV Cultura e no Memorial da América Latina. Recebeu o prêmio do Ministério da Cultura de Cuba (2009) pela atuação cultural naquele país. Aqui, escreve sobre a mostra de Lenora de Barros, e uma reportagem sobre jovens artistas.



MARIA HIRSZMAN é jornalista e crítica de arte. Trabalhou no Jornal da Tarde e em O Estado de São Paulo. É pesquisadora em história da arte, com mestrado pela USP. Para este número, Maria escreve sobre a exposição A Parábola do Progresso, em cartaz no Sesc Pompeia.


TADEU CHIARELLI é curador e crítico de arte. É professor titular no curso de Artes Visuais da USP. Foi diretor da Pinacoteca de São Paulo e do Museu de Arte Contemporânea da USP (MAC-USP). Também já atuou como curador-chefe do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP). Colunista no site da arte!brasileiros, faz uma resenha sobre a autobiografia póstuma de Raphael Galvez.

Fotos: arquivo pessoal

Ambiente de resistência

A atual gestão do governo do Ceará está deixando como legado um impressionante patrimônio cultural em museus e equipamentos culturais que totalizam nada menos que mais de 100 mil m², somando-se a área da Estação das Artes, onde se encontra a Pinacoteca do Ceará, do Centro Cultural Cariri e do renovado Museu da Imagem e do Som Chico Albuquerque (MIS).

São números impressionantes especialmente após a política de terra arrasada na cultura empreendida pelo governo federal que se encerra em 2022, tendo reduzido a liberação de recursos na lei de Incentivo à Cultura da ordem de R$ 241 milhões por ano para R$ 36 milhões, segundo dados obtidos pelo governo de transição.

Essa conquista cearense é fruto de um “ambiente de resistência”, como define o secretário de Cultura do Estado do Ceará, Fabiano Piúba, há sete anos no cargo. Ele começou como secretario adjunto no início da primeira gestão de Camilo Santana, que teve início em 2015, e no ano seguinte já se tornou secretário. Após dois mandatos, Camilo foi eleito agora senador pelo Ceará e sua vice, Izolda Cela, inaugurou os novos equipamentos entregues, como a Pinacoteca, em dezembro.

Essa política começou a se definir já em 2016, quando Juca Ferreira era ministro da Cultura, em meio ao golpe contra a presidenta Dilma Rousseff. “O último ato do Juca foi a convocação de uma reunião do Conselho Nacional de Política Cultural porque nós sabíamos que era importante criar um ambiente de resistência”, conta Fabiano, que foi o presidente deste Conselho durante os anos Temer. Em 2016, o presidente chegou a extinguir o Ministério da Cultura, mas voltou atrás após uma semana de protestos.

Esse contexto é importante para se apontar como a criação desses novos equipamentos faz parte da percepção da importância de políticas de Estado em tempos de crise, que se tornaram mais graves com a própria extinção de fato do Ministério da Cultura na gestão Bolsonaro. “O Ministério foi reduzido a uma secretaria muito pequena e refundá-lo agora vai dar muito trabalho”, prevê Fabiano. Mesmo assim, o Fórum Nacional de Secretários de Cultura obteve ganhos importantes através do Congresso Nacional, por meio da Lei Aldir Blanc, que conseguiu R$ 3 bilhões para o setor.

Visão geral da mostra "Amar se aprende amando", dedicada ao artista cearense Antonio Bandeira. Foto: Marília Camelo
Visão geral da mostra “Amar se aprende amando”, dedicada ao artista cearense Antonio Bandeira. Foto: Marília Camelo
Microministério

Se no nível federal houve desmonte, as secretarias estudais, como a do Ceará, assumiram o papel de “microministérios”, também na definição de Fabiano: “E o Nordeste acabou exercendo a função de uma luz acesa no Brasil, assumindo a resistência cultural, com os princípios da cidadania e diversidade, das políticas afirmativas e da livre expressão do pensamento e da criação gestadas durante o exercício de Gilberto Gil como ministro.”

Fabiano também credita à própria formação do governador Camilo Santana, o interesse e a valorização na cultura na gestão. “Tivemos a sorte de ter um governador que compreende o papel e o local da cultura”, diz ele, expressando em números essa percepção: o Ceará saiu de um orçamento anual da cultura da casa de R$ 63 milhões para quase R$ 300 milhões em 2022. Assim, em oito anos, o investimento em cultura superou R$ 1,3 bilhões. São Paulo, com um orçamento de R$ 82 bilhões – o do Ceará é três vezes menor, da ordem de R$ 28,7 bilhões –, repassou para a cultura, em 2022, R$ 645 milhões. Ou seja, proporcionalmente, Ceará investe bem mais em cultura que São Paulo.

Todos os novos equipamentos estão sob o cuidado do arquiteto português José Manuel Carvalho Araújo, convidado diretamente para a tarefa. Suas intervenções, discretas e respeitosas com a história de cada local, faz certo tributo a seu conterrâneo Álvaro Siza, especialmente pela escolha de materiais e da modernidade no traço. 

Araújo é autor de vários projetos comerciais em São Paulo, além de Portugal, e seu nome veio por meio de um grupo que há anos pretendia criar um espaço para a fotografia na cidade, composto, entre outros, pelo fotógrafo Tiago Santana, organizador do Fotofestival Solar e irmão de Camilo, do professor universitário Silas de Paula, atual diretor do MIS, e do artista Rian Fontenele, atual diretor da Pinacoteca do Estado. Esse grupo acabou formando uma espécie de conselho para a implementação dos novos projetos, tanto que alguns deles assumiram funções gerenciais agora em sua implementação.

Esse complexo é constituído pela Estação das Artes, a antiga estação ferroviária do Ceará, onde estão a Pinacoteca do Estado, a nova sede da Secretaria da Cultura, o Iphan, o Museu Ferroviário e o Centro de Design, mais a ampliação do Museu da Imagem e do Som, e o Centro Cultural Cariri, no interior do estado, onde antes funcionava um seminário religioso e depois um hospital. Além de espaços expositivos, ele vai contar com teatro e planetário.

A administração destes equipamentos é feita por uma OS (organização social), o Instituto Mirante de Arte e Cultura, criado para esta função. É importante lembrar que a primeira OS dedicada à cultura no país surgiu justamente em Fortaleza para cuidar do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, inaugurado em 1999, um complexo que abriga, entre outros, o Museu de Arte Contemporânea e o Museu da Cultura Cearense.

Clébson Francisco, “Independência e morte”, 2019. Foto: Fabio Cypriano
Pinacoteca

Inaugurada no dia 3 de dezembro, a Pinacoteca possui uma área total de 9,2 mil metros quadrados, com uma área expositiva de 3 mil metros quadrados e a reserva técnica de 869 metros quadrados, área superior ao espaço expositivo do Museu de Arte Moderna de São Paulo, com mobiliário projetado especialmente para ela, o que reforça a seriedade de todo o projeto. Coincidentemente, a coordenadora da nova reserva técnica é Cláudia Falcon, que antes exercia essa função no MAM paulista.

Para o secretário de Cultura, Fabiano Piúba, a criação da Pinacoteca se insere em uma política de fortalecimento institucional, que vem já desde os final dos anos 1980 com a gestão de Violeta Arraes (1926-2008) como secretária de Cultura do governo Tasso Jereissati, quando é recuperado o Theatro José de Alencar, e depois com Paulo Linhares, secretário do governo Ciro Gomes, no final dos anos 1990, e que criou o Dragão do Mar.  “Costumo dizer que não existe uma política própria para uma biblioteca, uma Pinacoteca ou para um museu. O que existe são políticas de fomento às artes, de patrimônio cultural e memória, de formação artística e cultural, de cidadania e diversidade e como esses equipamentos culturais são ambientes para o pensamento, a formulação e a execução dessas políticas culturais”, explica Fabiano.

Bandeira e Aldemir, 100

No caso da Pinacoteca, parte central de sua missão é receber um importante acervo que foi acumulado ao longo de décadas e que estava espalhado em gabinetes e espaços não muito adequados, ainda em catalogação. Recentemente, por meio da lei Aldir Blanc, foram gastos R$ 2 milhões para ampliação do acervo levando-se em conta representatividade de gênero e raça.

É possível ter uma ideia da abrangência deste acervo levando-se em conta apenas uma das exposições inaugurais, Amar se aprende amando, dedicada ao artista cearense Antonio Bandeira (1922-1967), que possui 645 obras expostas e, desse total, apenas uma é emprestada, todas as demais são da própria Pinacoteca. “A maioria das obras aqui nunca foi exposta e é um recorte que vai muito além da visão embranquecida que o mercado criou sobre o Bandeira”, revela o curador da mostra, Bitu Cassundé, que tem Chico Porto como adjunto.  

Ele precisou batalhar para tirar algumas obras icônicas de Bandeira de gabinetes do governo, mas o resultado é muito impressionante. Bitu apresenta um artista muito além do abstrato, como é mais conhecido, e suas várias relações, no Brasil e no exterior, com o circuito das artes, entre elas sua proximidade com a arquiteta Lina Bo Bardi, que inaugurou o Museu de Arte Moderna da Bahia, no Teatro Castro Alves, em 1960, com uma exposição dedicada a ele. Bandeira, que viveu em Paris nos seus últimos anos, é ainda pouco celebrado por seus autorretratos, dois deles na mostra, que o empoderavam como artista homossexual e negro, um feito raro em meados do século passado. 

Antonio Bandeira, “Autorretrato no espelho”, 1945. Foto: Divulgaçãp

Bandeira também era amigo de outro artista cearense que nasceu no mesmo ano que ele, Aldemir Martins (1922-2006), tema de outra das mostras inaugurais da Pinacoteca, No lápis da vida não tem borracha, a cargo da curadora Rosely Nakagawa, que tem como adjunta Waléria Américo. Com isso, a Pinacoteca é inaugurada no centenário de dois artistas locais, com exposições que ampliam o repertório sobre cada um deles. No caso de Aldemir, sua obra vai além dos gatos e galos conhecidos, apresentando um artista mestre do traço e muito atento à cultura local.

Finalmente, a série de mostras que inaugura a Pinacoteca é uma ampla pesquisa sobre arte contemporânea cearense, intitulada Se Arar, a cargo de Cecília Bedê, Herbert Rolim, Lucas Dilacerda, Maria Macedo e Adriana Botelho. Com 169 artistas de várias gerações, de José Leonilson (1957-1993) a Clébson Francisco (1994), a exposição traz um panorama da cena local bastante contundente, marcada por ampla diversidade. Do total exposto, 91 obras são do acervo da Pinacoteca.

Para além do acervo e das exposições, a Pinacoteca é encarada, segundo seu diretor Rian Fontenele, como “museu ateliê”. “Como artista, sei que até um caderno pode ser visto como ateliê, mas a ideia aqui é que a Pinacoteca seja um espaço de experimentação, de reflexão, de referência e memória”, conta. 

O conjunto das três mostras inaugurais é denominado Bonito pra chover, uma expressão cearense que se diz quando o céu está carregado, e vem água por aí. É um título bastante adequado ao resultado do que o “ambiente de resistência” está criando no Ceará: uma radical transformação em seu panorama cultural. 

Pasolini, escandalizado

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A simplificação necessária para apresentar Pier Paolo Pasolini é uma tarefa inglória: suas facetas foram múltiplas; entre elas, a escolhida pela professora Maria Betânia Amoroso para representá-lo foi a de um certo “diagnosticador dos tempos que viriam” à sua frente. Uma das principais estudiosas do cineasta italiano no Brasil, Amoroso foi a responsável pela tradução e apresentação dos Escritos Corsários (Editora 34), um compilado de artigos críticos de Pasolini, e pelo livro homônimo a ele, publicado este ano pela Editora Nós, em que Amoroso reúne uma parcela da sua pesquisa notável acerca do mesmo (as intervenções da professora mencionadas a seguir virão deste compilado).

No ano de seu centenário, mostras e retrospectivas iluminam sua celebrada contribuição cinematográfica – composta por títulos como Mamma Roma, O Evangelho segundo São Mateus, A Trilogia da Vida e Salò ou os 120 dias de Sodoma. No entanto, antes mesmo de contribuir com a sétima arte, Pasolini já se dedicava à poesia e à literatura, e, mesmo quando já inserido na indústria da imagem em movimento, ele não abandonou tais vocações, muito menos a dedicação ao espírito crítico, cuja manifestação consciente ocorre ainda em sua juventude. “O próprio fato de os primeiros versos publicados (e até hoje não repudiados), versos dos 18 anos, serem em friulano demonstra que a minha operação poética se dava sob o signo de uma inspiração fortemente crítica, intelectual”, chegou a confirmar. O dialeto em questão era falado por sua mãe, Susanna Colussi Pasolini, nascida em Casarsa della Delizia, cidade localizada no norte da Itália. Como assinala Amoroso, além do aspecto afetivo da escolha, Pasolini emprega o friulano para “expressar toda uma cultura e sentimentos que foram silenciados ou expurgados pelo fascismo”.

Tendo nascido em Bolonha, em março de 1922, seu contato tardio com a região do Friul (onde chegou a morar com a mãe e o irmão Guido a partir de 1943, antes de ir para Roma no começo da década seguinte) é formativo porque, segundo Amoroso, “seu interesse pela língua falada pelos camponeses da região levou-o a descobrir um mundo cheio de mistérios e encantamento que se opunha à cidade, à sua própria tradição familiar. Nascem dessa convivência o profundo respeito de Pasolini pela cultura camponesa, vital, rica, diversificada, e a familiaridade com seus significados e símbolos”. Ela complementa que “lá, pela primeira vez, o escritor assiste a um confronto entre os trabalhadores rurais da sua região e os proprietários de terras”.

Sua vivência no Friul também fornecerá um rico contraponto mental à transformação ocorrida na Itália – por meio do avanço do capitalismo e do seu materialismo desumanizante –, frequentemente trazida por Pasolini em suas críticas (o que lhe renderá acusações de saudosismo do universo camponês e do passado). “Quem manipulou e mudou radicalmente as grandes massas camponesas e operárias italianas é um novo Poder, para mim muito difícil de definir, mas tenho certeza de que é o mais violento e totalitário que já existiu: ele muda a natureza das pessoas, alcança o mais profundo das consciências”. Pasolini conta observar uma “tristeza física” profundamente neurótica na população. “Ela resulta de uma frustração da sociedade. Agora que o modelo social a ser realizado já não é o da própria classe, mas imposto pelo Poder, muitos não são capazes de realizá-lo. E isso os humilha terrivelmente”, relata o poeta.

Diante da consolidação dos valores do capitalismo (ao qual Pasolini passa a se referir simplesmente como “Poder”), o poeta alarma para o risco de “uma forma de desumanização, de uma forma de afasia atroz, de uma brutal ausência da capacidade crítica, de uma facciosa passividade”. Contra sua própria previsão, Pasolini trava uma fraquejante batalha, para a qual encontra consolo insuficiente nos colegas intelectuais, já que “o perigo da entropia burguesa era iminente, mas ainda reconhecido por poucos da sua geração, que irão precisar da queda do muro de Berlim e do avanço neoliberal para admitir que o diagnóstico de Pasolini era no mínimo esclarecedor”, como Amoroso explica. Todavia, nos Escritos Corsários o intelectual parece continuar a conversar, em vezes, com esses mesmos contemporâneos, ao expressar sua indignação perante o conformismo (“A sede de conformismo é, portanto, igual ao pudor […] a embriaguez de servir ao Poder uma gratificação”) e uma forma de resistência descrita como essencialmente bem-vinda ao Poder.

Pier Paolo Pasolini por Anatole Saderman, 1962
Pier Paolo Pasolini por Anatole Saderman, 1962. Reprodução Wikimedia Commons.

Com o passar do tempo, sua investida contra o Poder não esmaece. Amoroso nota que “ao ler Pasolini hoje, percebe-se que, por um lado, as interpretações dadas ao rumo tomado pela sociedade italiana iam se tornando cada vez mais contundentes e alarmadas, mas que, por outro, o poeta exalava vitalidade e vigor”. A energia descrita pela professora não preclude, no entanto, um crescente afastamento de Pasolini. Em seu livro, ela traz à tona a apresentação que o escritor faz ao estrear sua coluna O caos, no jornal Tempo. Lá, ele afirma: “Se sou independente, sou-o com raiva, dor e humilhação, não aprioristicamente, com a calma dos fortes, mas forçadamente. […] Meu caso não é de indiferentismo nem de independência: é de solidão”. Um lamento também traduzido em poema pelo mesmo: “E eu, feto adulto, perambulo mais moderno que todos os modernos à procura de irmãos que não existem mais”. Por outro lado, Pasolini assinala esse sofrido apartamento como algo, até certo ponto, necessário para o exercício crítico: “É isso, de resto, o que me garante uma certa (talvez louca e contraditória) objetividade. Não tenho atrás de mim ninguém que me apoie e com o qual eu tenha interesses comuns a defender”.

Na sua reflexão acerca da conduta ideal do crítico, Pasolini ressalta a importância do diálogo e de uma certa abdicação de ambas autoridade e credibilidade, gesto ao qual ele liga à libertação do temor de se contradizer e a poder se colocar “em condição de não ter nada a perder e, portanto, de não ser fiel a pacto nenhum, a não ser aquele com um leitor que considero digno de pesquisas cada vez mais ousadas”.

Não se deve confundir as observações acima sobre a liberdade (mesmo que decorrida da solidão) do intelectual com o isolamento dessas figuras em si mesmas, malvisto pelo autor – o divórcio do mundo real, o academicismo e a oficialidade são tampouco estimados por ele. Em um de seus entreveros com os intelectuais italianos, Pasolini conta: “Pude comprovar que os intelectuais italianos jamais se colocaram o problema da ‘cultura’ popular, e nem mesmo sabem do que se trata. Acreditam que o povo não tem cultura porque não tem cultura burguesa; ou então, que a cultura deles seja aquela larva de cultura burguesa que podem aprender na escola, na caserna ou, de qualquer modo, nas relações burocráticas com a classe dominante. Que o povo, portanto, viva numa espécie de sonho pré-cultural, isto é, pré-moral e pré-ideológico. Onde moral e ideologia são vistas como apanágio exclusivo da classe burguesa”.

Como todo documento histórico, os Escritos Corsários precisam ser lidos dentro das suas coordenadas de situação, mas questões como as trazidas acima poderiam ser colocadas ao presente, assim como sua provocação sobre o que hoje chamamos de cultura do cancelamento: “Quem sentisse a necessidade primária de me ‘revogar’ […] estaria aprioristicamente impedido de compreender qualquer outra coisa que eu dissesse, porque, como bem sabem os advogados, é preciso desacreditar, sem piedade, integralmente a pessoa que testemunha para desacreditar o seu testemunho”. Uma das contradições desta complexa figura (que pode ser observada nos Escritos Corsários e exemplificada neste tópico) é que o próprio Pasolini, mesmo com seu compromisso intelectual livre e sério, não é imune à condenação da testemunha no lugar do testemunho, ou à invocação da castrante culpa moral judaico-cristã.

Talvez Pasolini fosse, como referido pela publicação francesa Les Cahiers du Cinéma, um “incendiário”, mas não despropositado. Suas provocações vão muito além dos tópicos trazidos ao longo deste texto; abrangem da religião ao anticlericalismo; da sacralização, dessacralização e ressacralização; do amor materno ao conflito de gerações; do sexo ao aborto; do racional ao irracional; da linguagem, dos dialetos ao comportamento; do progresso ao “desenvolvimento”. Quando se pensa ter percorrido a circunferência completa em torno de Pasolini, ele faz a eversão de sua própria esfera. A professora Maria Betânia Amoroso lembra que pouco antes de ser brutalmente assassinado, Pasolini desejava, fosse por reinvenção ou redenção, reescrever suas obras.

“Talvez o leitor possa achar que digo coisas banais. Mas quem se escandaliza é sempre banal. E eu, infelizmente, estou escandalizado”.

 

Editorial: Fertilidade e gentileza

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Encerramos 2022 com a esperança de termos um Brasil mais plural. Um Brasil que exija cuidados com a saúde, educação e cultura, onde cada um seja um pouco responsável por seu papel como cidadão.

A arte!brasileiros, que completa 12 anos, trabalhou na pandemia e depois, para comunicar a maior quantidade  de iniciativas que ocorreram no mundo da arte contemporânea e os esforços que instituições públicas e público-privadas fizeram para não desmontar equipes e projetos. Foi atrás de exposições em museus, galerias, espaços alternativos e se transformou, nos últimos tempos, no principal canal de divulgação de mídia segmentada, focada na arte como produtora de uma das mais ricas sínteses de linguagem do indivíduo contemporâneo.

Se concordarmos com as afirmações contidas em A salvação do belo, do filósofo coreano Byung-Chul Han, que cresceu e desenvolveu toda sua literatura na Alemanha, e com sua denúncia de que vivemos numa sociedade cada vez mais propensa à suposta leveza do “liso” – até o próprio Jeff Koons, provavelmente o artista mais vendido da atualidade, a valores inconfessáveis, afirma que a única reação que espera dos observadores de suas obras é apenas um “uau” – nosso papel se torna cada vez mais importante (leia-se mais difícil e solitário). “Um juízo estético pressupõe uma distância contemplativa. A arte do liso a suprime.” (p. 10) 

Não se fala aqui do liso presente no minimalismo, movimento que surgiu nos anos 1950 e 1960 como resultante da industrialização e contemporâneo ao abstracionismo, que valorizava o interesse pela geometria, pelas formas lineares e pel a cor, querendo romper com a poluição visual. Falamos do liso no sentido de aceder ao fácil, “às listas”, ao querer “ver tudo rápido”, “ouvir tudo rápido”, “clicar e ser clicado como essência de prazer”. O “in” e o “out” sugeridos por bloggers de plantão. 

“A crise da beleza consiste hoje justamente em que o belo é reduzido à sua subsistência, ao seu valor de uso ou de consumo. O consumo aniquila o outro [presente na obra], O belo da arte é uma resistência a ele.” (p. 98)

Ser capazes de aceitar a arte como produtora de sentidos, sejam eles agradáveis ou perturbadores, implica em aceitar nossa vulnerabilidade e que ela pode ser geradora de mais vida. Falamos muito sobre isto a partir da nossa visita à 16ª Bienal de Lyon, intitulada Manifesto da fragilidade

Como editores, críticos, pesquisadores e observadores, tentamos produzir um trabalho em que a informação está a serviço da reflexão. Da formação. Às vezes difícil de ser digerida. 

Assim, estamos orgulhosos de termos tido um crescimento significativo não apenas no alcance e na penetração do nosso trabalho, dos nossos seguidores e sim, na abrangência de leitura e no tempo de leitura das nossas páginas. Hoje, com os elevadíssimos custos de impressão nos seria impossível atingir essa capilaridade apenas com a revista impressa. 

Em 2022 alcançamos mais de 554 mil visualizações de páginas, 225 mil usuários frequentando nossa plataforma, chegando a 74 mil visualizações e leituras em um mês.  Nas redes sociais, só no Instagram chegamos em 328.976 contas. De 2020 para cá, dobramos toda nossa audiência. 

Nesta última edição do ano, fazemos algumas críticas a certas posturas institucionais brasileiras e trazemos um balanço do desmantelamento da cultura nestes últimos quatro anos e o florescimento de iniciativas em regiões importantes do país.  

Destacamos bienais, eventos do mercado internacional, exposições singulares como a A parábola do progresso, no Sesc Pompeia em São Paulo; de artistas consagrados, como Lenora de Barros: Minha língua, na Pinacoteca de São Paulo, e dedicamos nossa capa a uma guerreira, Regina Parra, excelente artista brasileira que mostra nas suas obras a importância de correr atrás da vida e da fertilidade como sinônimo de atos de desejo.

Quero agradecer especialmente à nossa brava equipe, à Giulia Garcia, ao Miguel Groisman, ao Eduardo Simões, à Eliane Massae, ao Coil Lopes e ao Enelito Cruz, assim como aos colaboradores especiais da revista impressa e digital, pela confiança nestes tempos tão duros. 

Boa leitura, um 2023 melhor para todos!

“Histórias Brasileiras” revela ‘sistema colonial’ no circuito das artes

Jaider Esbell, “A conversa das entidades intergalácticas para decidir o futuro universal da humanidade”, 2021.
Foto: Filipe Berndt / Cortesia Galeria Jaider Esbell de Arte Indígena Contemporânea

Histórias Brasileiras, mostra que ficou em cartaz no Museu de Arte de São Paulo, o Masp, entre agosto e outubro passados, retratou um dilema das instituições de arte de uma forma bastante explícita: enquanto exposições buscam criar narrativas inclusivas e de revisão da própria história da arte, essas temáticas revelam-se um tanto hipócritas, já que os centros de decisão do museu seguem patriarcais, brancos e elitistas.

De que serve denunciar no catálogo que “a disciplina da história da arte (…) é o aparato mais poderoso e duradouro do imperialismo e da colonização”, se os centros de poder do Masp seguem com uma imensa maioria que não inclui “os chamados povos nativos, indígenas, inferiores, subordinados, subalternos e não branco”, para usar termos utilizados no próprio catálogo da mostra.

De certa forma, essa tensão entre inclusão e privilégio foi bastante explicitada pelas curadoras Clarissa Diniz e Sandra Benites, em maio passado, quando abandonaram o módulo Retomadas, de Histórias Brasileiras, acusando o museu de censura a imagens selecionadas do Movimento Sem Terra, o MST. A polêmica desdobrou-se em várias camadas, levando Benites, meses antes festejada como a primeira curadora indígena de um museu brasileiro, a apontar que sua nomeação não refletiu inclusão de fato, e que o Masp reproduzia um “sistema colonial”, como afirmou à revista Brasil de Fato.  

Depois de várias negociações, Diniz e Benites retornaram à mostra conquistando mais do que a exposição das próprias fotos do MST, até então proibidas. Primeiro, garantiram a distribuição gratuita de pôsteres daquelas imagens, como Marcha Nacional pela Reforma Agrária, de João Zinclar, quando a primeira sugestão do museu foi adquirir as imagens para o seu acervo. Com isso, a curadoria reverteu a lógica mercadológica de propriedade e garantiu que as obras se multiplicassem para fora do Masp. 

A segunda conquista foi a ampliação dos dias gratuitos do museu. Essa vitória se deve a uma atitude rara no sistema das artes: denunciar abusos de poder nas instituições, o que muitos artistas e curadores não fazem para não se “queimarem” no circuito. Afinal, dirigem as instituições, como o Masp e a Bienal, colecionadores poderosos, que podem de fato prejudicar carreiras, se assim quiserem.

Esse “sistema colonial” se reflete em mostras como Histórias Brasileiras de uma maneira até sutil, mas que também merece reflexão. A obra Operação A3-1, de Rosângela Rennó, que participa do módulo Rebeliões e Revoltas, cuja curadoria está a cargo de André Mesquita e Lilia Moritz Schwarcz, pertence ao presidente do Masp, Heitor Martins, e a sua mulher, Fernanda Feitosa, como está explicitado na legenda do trabalho. Trata-se de uma obra da série Operação Aranhas/Arapongas/Arapucas, composta por mais de uma dezena de trabalhos, em mãos de vários outros colecionadores. 

O que leva a curadoria a escolher justamente a obra que pertence ao presidente do museu? Isso é um exemplo claro de conflito de interesses, afinal, expor uma obra significa agregar valor a ela, e um museu com caráter público como o Masp não poderia jamais exibir obras de pessoas ligadas a ele, pois a instituição está simplesmente valorizando o acervo de seu presidente. Uma historiadora do porte de Schwarcz sabe que deveria evitar esse tipo de prática patrimonialista, mas que esse não é um caso isolado nas recentes mostras do museu.Outra obra exposta na mostra que pertence ao presidente do Masp é
a pintura A conversa das entidades intergalácticas para decidir o futuro universal da humanidade, de Jaider Esbell (1979 – 2021), que faz parte do módulo Mitos e Ritos, com curadoria de Fernando Oliva, Glaucea Helena de Britto e Tomás Toledo.

Infelizmente, contudo, não se trata de prática apenas do Masp. De certa maneira, a presença desses colecionadores em posições-chave do sistema de arte contemporânea é algo relativamente novo, mas não deixa de ser um reflexo do sistema colonial dessas instituições. Fora do Brasil, artistas como Nan Goldin têm liderado a crítica a museus que são usados por famílias bilionárias para limpar seus nomes, caso dos Sackler, fabricante de remédios altamente viciantes e que já provocou milhares de mortes.

Essas são verdadeiras histórias brasileiras, despercebidas a visitantes que não conhecem o contexto do circuito, mas que precisam ser também contadas para não se ficar na superficialidade da mostra.

Observado esse pano de fundo, o que resta de Histórias Brasileiras? Realizada a partir de duas datas simbólicas, o centenário da Semana de Arte Moderna de 1922 e o bicentenário da Independência do Brasil, a exposição, com cerca de 400 obras e nove curadores, segue na mesma linha das demais mostras da série “histórias” do Masp, sob a direção artística de Adriano Pedrosa: muita ilustração e pouca ousadia.

Há muita ilustração, pois, cada um dos oito módulos da mostra é recheado de redundâncias que transformam cada uma destas sessões em repetições sob o mesmo tema. Por exemplo, o módulo Bandeiras e Mapas, organizado por Lilia Moritz Schwarcz e Tomás Toledo, fala das representações de poder, mas são tantas bandeiras e mapas, que o excesso acaba reduzindo todos os conteúdos a um mínimo comum, o símbolo nacional, que fica difícil atentar às particularidades.

Abdias Nascimento, “Okê Oxóssi”, 1970. Foto: Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (Masp), doação Elisa Larkin Nascimento / Ipeafro

Um exemplo é Okê Oxóssi, de Abdias do Nascimento. Nessa pintura de 1970, o artista recria o símbolo nacional a partir do arco e da flexa, emblemas de Oxóssi, orixá caçador. Há uma fúria catalogadora tão intensa neste módulo, também existente nos demais, que várias modalidades de bandeira são apresentadas como uma fórmula quase matemática para a inclusão de temas politicamente corretos: tem bandeira LGBTQIA+, bandeira indígena, feminista, de luta, de luto etc. 

E cada um dos módulos segue nesta toada um tanto fria da redundância, sem criar narrativas para além do que o nome de cada um deles aponta. Retratos, por exemplo, é outra sessão marcada pela repetição, além de usar uma típica categoria das chamadas belas artes, lá do século 19. 

Ora, se o Masp se pretende em uma prática decolonial, não seria mais adequado pensar novas categorias, menos formais e mais ousadas. É aqui que se percebe a falta de capacidade desta gestão em pensar fora da moldura. Tudo no Masp sempre acaba muito convencional, parecido mesmo com uma feira de arte, mesmo quando se pretende rever o cânone.

É nesse sentido que a inclusão, e não se pode negar que há muitos artistas na mostra que merecem maior visibilidade e presença, acaba sendo protocolar. E é então que se explicita que, no final das contas, “o sistema colonial” segue o mesmo, apenas tentando uma pacificação que já sabemos impossível entre a casa-grande e a senzala.

O colapso da cultura

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Em busca do tempo perdido, a cultura se movimenta em todo o Brasil no intuito de reerguer-se após atravessar o período mais sombrio da gestão pública no setor. Depois da passagem recorde de sete titulares em quatro anos pela Secretaria Especial de Cultura, instância maior de política cultural do país, é possível afirmar que, sim, houve êxito em se ferir mortalmente e paralisar o ecossistema nacional de cultura. 

Nesse período, nada foi feito efetivamente no setor. O foco foi sempre regressivo, paralisante ou obstrutivo. Parte do tempo de gestão foi gasta com propostas negacionistas ou inócuas, que obrigaram a sociedade civil a se articular para combatê-las – no que se gastou dinheiro público, esforço qualificado e se perdeu espaço de articulação propositivo. 

Por exemplo: em plena pandemia, o policial militar extremista que respondia pela Secretaria de Fomento e Incentivo à Cultura, André Porciuncula, editou uma portaria proibindo a exigência do passaporte de vacinação contra a covid-19 para frequentar eventos culturais financiados com recursos da Lei Rouanet. Contrapondo-se às medidas de saúde pública, a Secretaria Especial de Cultura obrigou a Justiça a examinar e derrubar mais esse factoide bizarro.

Em dezembro de 2021, o então secretário Mário Frias estabeleceu uma meta de análise de prestações de contas antigas pela secretaria de Cultura – média diária de análise de seis projetos, e mensal, de 120 projetos. A liberação de novas captações de recursos estaria necessariamente condicionada à análise dessas contas antigas – uma paralisação velada, já que não havia pessoal especializado disponível para a tarefa, o que obrigou o Congresso e o Tribunal de Contas da União (TCU) a intercederem e derrubarem a restrição. 

Em seguida, a Lei Rouanet, modificada por portarias, passou a exigir um cachê irrealista para financiar apresentações de artistas (R$ 3 mil) e a vetar que um mesmo patrocinador financiasse eventos consagrados do calendário cultural – o que levou jornadas importantes, como a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, a deixarem de usar recursos públicos em sua realização. 

Fachada da Pinacoteca de São Paulo. Foto: Christiane Ruffato

Um certo clima de animosidade política também criou um boicote velado a instituições consagradas. A Pinacoteca do Estado de São Paulo, por exemplo, somente teve autorização para captar os R$ 27 milhões para executar seu plano anual de 2023 em novembro último, o que coloca em risco todo seu projeto de ação museológico e administrativo. Neste ano de 2022, engolfada pela agenda eleitoral de quase todo o “politburo” bolsonarista do setor, a lei de renúncia fiscal pode terminar o ano com um terço do que foi captado no ano passado. 

“Toda a estrutura pública federal vinculada à cultura está falimentar, sem recursos, sem estrutura. Só́ para dar uma ideia: houve uma redução de recursos, de 2016 para cá́, de 85%. Pulamos de R$ 241 milhões para R$ 36 milhões. É quase uma piada, se não fosse de mau gosto”, disse Juca Ferreira, um dos coordenadores do Grupo de Transição do governo eleito. O valor a que Ferreira se refere é o orçamento direto da Secretaria de Cultura, sem as quantias relativas ao incentivo fiscal e a fundos culturais – mas, para se ter uma ideia, o orçamento da secretaria de Cultura da cidade de São Paulo para 2023 é de 611 milhões. 

Mais do que evidenciar o colapso da ação federal no setor, o número mostrado por Ferreira ilustra como o Estado brasileiro abdicou de estimular toda uma área crucial para o desenvolvimento nacional. De forma deliberada. Para isso, lançou mão de artifícios de boicote ou de iniciativas contraproducentes e agressivas – alguns secretários do período, segundo revelou a imprensa, passaram até a despachar portando armas em repartições públicas, para intimidar servidores. 

Um diagnóstico encabeçado pelo cineasta Joel Zito Araújo, que trata do tema da comunicação na transição governamental, revelou que o período recente foi de censura, assédio moral e perseguição aos trabalhadores da cultura, de militarização das empresas públicas, de submissão e acriticismo voluntarista. 

No Patrimônio Histórico, o expurgo de profissionais de perfil técnico (para acomodar, por exemplo, um pastor extremista religioso como Tassos Lycurgo, exonerado em agosto) pode ter resultado em um problema muito difícil de equacionar num futuro próximo. Somente em uma única portaria, no dia 8 de dezembro de 2022, o ministro do Turismo, Carlos Alberto Gomes de Brito, nomeou 39 servidores para cargos nas diversas superintendências do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) pelo país. Isso tem se repetido em todos os organismos da cultura desde a eleição do dia 30 de novembro. 

O que leva um governo a decidir que precisa repor servidores a toque de caixa a 20 dias do seu final? Na Agência Nacional de Cinema (Ancine), que gere a política audiovisual do país, foi nomeado um novo auditor-chefe um ano antes de expirar o mandato do anterior, o que aponta para uma evidente estratégia de ocupar cargos-chave da máquina pública e garantir sobrevida ao antigo regime. 

A questão do Iphan, hoje, é principalmente de aparelhamento. Há pelo menos 12 superintendentes regionais que não possuem perfil técnico, foram escolhidos por sua diretora, Larissa Peixoto, furibunda militante bolsonarista, pela afinidade com o ideário do grupo governista. É o caso de Olav Antonio Schrader, monarquista que ocupa o cargo de Superintendente do Iphan no Rio de Janeiro. Schrader tinha como meta, entre outras, tornar os museus históricos bunkers de interesses dos velhos monarquistas da família imperial, e isso se revelou no episódio da catalogação do acervo afro-brasileiro Nosso Sagrado, no Museu da República, em dezembro do ano passado. 

Museu da República, no Rio de Janeiro. Foto: Henrique Carvalho / Ibram

Além do desrespeito ao setor, da atitude belicista e arrogante, o núcleo cultural do governo Bolsonaro especializou-se também em deboche. Em 1º de julho deste ano, numa das instituições mais respeitadas e sólidas do sistema cultural do Brasil, a Fundação Biblioteca Nacional, realizou-se uma bizarra cerimônia: a entrega da comenda Ordem do Mérito do Livro para um condenado da Justiça, o ex-deputado Daniel Silveira, do mesmo partido do presidente, e que tinha sido objeto de um perdão presidencial para não ir para a cadeia, e do também parlamentar Hélio Lopes (o Hélio Negão), conhecido primordialmente como papagaio de pirata do seu chefe ideológico. Com tal evento, sarcasticamente realizado no Dia Mundial das Bibliotecas, a instituição empurrava pela sarjeta décadas de tradição e rigor. 

A inação da Fundação Biblioteca Nacional é fruto do esforço de seu presidente, um militante monarquista, Luiz Carlos Ramiro Junior, que se jacta de receber na instituição a visita de cidadãos como Luiz Philippe de Orléans e Bragança (acompanhado do superintendente do Iphan/RJ, Olav Schrader, também monarquista), investigado no inquérito das fake news no STF, precedida do seguinte texto no site da FBN: “Generoso, culto e atuante em prol da restauração do Brasil, Luiz Phillippe tem honrado a nobreza de sua família e representado os valores que a sociedade brasileira clama, de liberdade, proteção à vida, segurança, prosperidade, soberania e amor ao próximo”. Restauração do Brasil, em português claro, quer dizer o retorno da monarquia ao poder. 

A gangrena institucional causada por essa confusão de papeis é generalizada. Com 24 museus em sua estrutura, o Instituto Brasileiro de Museus (Ibram, o organismo do governo federal que trata da política nacional de museus), vem perdendo recursos progressivamente desde que o governo Bolsonaro começou. Em 2018, o Ibram executou R$ 136 milhões de seu orçamento. No ano passado, executou R$ 127 milhões e, neste ano de 2022, até novembro, executou apenas R$ 118 milhões de reais (de R$ 160 milhões previstos), segundo dados do Portal da Transparência. Se esse patamar se mantiver, o Ibram terá́ perdido um quarto dos seus recursos. 

Nesse período em que Pedro Mastrobuono vem presidindo o Ibram (desde o inicio de 2020, quando foi nomeado pela então secretária Regina Duarte, e prosseguindo durante todo o período Mario Frias), a integridade republicana dos museus federais não passou ilesa. Por questões ideológicas, o Ibram ignorou o resultado do processo seletivo para a escolha do novo diretor do Museu Histórico Nacional, divulgado em setembro de 2021, desobedecendo o que estabelece o Estatuto dos Museus e o Decreto-Lei nº 8124. A primeira colocada, Luciana Conrado Martins, nunca foi nomeada e, para substituí-la, o governo “convidou” a terceira colocada, Doris Couto, para assumir o cargo. Doris recusou. 

Durante a campanha eleitoral, a direção do Ibram deu ordem para que se cobrisse com um tecido preto uma placa de obra pública que continha o nome do então candidato da
oposição, Luiz Inácio Lula da Silva, de uma parede do hall do Museu Histórico Nacional. Ocorre que a placa era referente ao último período de Lula na presidência, portanto, um fato anterior às eleições de 2022, algo que configurou tentativa de revisionismo histórico. 

O advogado Pedro Machado, ligado a colecionadores e ao mercado, é também membro do Conselho Nacional e Política Cultural (Ministério do Turismo). Sua governança do Ibram foi questionada no Tribunal de Contas da União (TCU) no ano passado, por meio de uma denúncia sobre a implementação do Plano de Ação previsto no Plano Nacional Setorial dos Museus. O TCU cobra o alcance das metas acertadas pelo Ibram, especialmente o censo dos museus federais que tinha se comprometido a realizar. Mastrobuono pediu mais um ano para realizar as exigências e, em novembro, o TCU assentiu. 

Uma instituição vinculada à estrutura de outro ministério, o Museu Paraense Emilio Goeldi, o segundo maior de História Natural do País, agora sob a tutela do Museu da Ciência e Tecnologia, que estava sem direção, esperava que essa decisão fosse repassada ao próximo governo. Mas, em novembro, o museu acordou com a entronização inesperada de um apoiador do governo Bolsonaro em seu cargo máximo diretivo, outra nomeação de oportunidade. 

Museu Histórico Nacional. Foto: Jaime Acioli

A Fundação Palmares, gerida com “requintes de crueldade”, segundo Juca Ferreira, pelo ex-presidente Sérgio Camargo, atuou em prol da “desmoralização total, uma tentativa de apagar o que se conquistou em termos de reconhecimento dos africanos que vieram escravizados para o Brasil”, segundo o coordenador de cultura do grupo de transição governamental. Para corroborar esse diagnóstico, no último dia 10 de novembro, Sérgio Camargo foi condenado pela Comissão de Ética Pública da Presidência por “assédio moral, discriminação de religiões, de lideranças de religiões africanas e manifestações indevidas nas redes sociais”. 

Mas o problema é que punir esses aríetes da guerra cultural não resolve o problema principal: o sucateamento das instituições. A deputada Áurea Carolina (PSOL-MG), que participou de uma vistoria na Fundação Cultural Palmares, ficou chocada com o que viu. “A Palmares tem hoje pouquíssimos servidores efetivos, em um contexto de precarização do trabalho e adoecimento dos trabalhadores. O prédio que abriga a sede está em péssimas condições sanitárias, de acessibilidade e de infraestrutura, sem mencionar a manutenção do acervo”, ela afirmou. Essa situação se espalha pelos diversos órgãos vinculados do antigo Ministério da Cultura, que deverá ser recomposto no novo governo. 

No Arquivo Nacional, a situação, após a gestão de Ricardo Borba D’Água Almeida Braga (sujeito de uma ação do Ministério Público Federal para que fosse afastado das funções por não cumprir os requisitos legais) só́ será́ possível de ser conhecida após uma ampla auditoria nos documentos – para que se verifique o que sobreviveu ao expurgo com fins ideológicos. A passagem de Borba D’Água pelo Arquivo foi condenada em manifesto de 54 entidades do setor de arquivos, pelo alheamento ao tema e à delicadeza do material que lhe foi confiado. Na Funarte, Tamoio Athayde Marcondes, sexto presidente em quatro anos, sai com o saldo de ter interditado um acervo histórico fundamental da instituição no Centro do Rio, mas sem a resolução de seu destino. 

A questão da transparência é uma das mais graves e vai exigir um pente-fino dos novos gestores. Atualmente, no site da Agência Nacional de Cinema (Ancine), os últimos dados sobre execução do Fundo Setorial do Audiovisual são de 2019. A Ancine lança editais ao mesmo tempo em que experimenta um bloqueio da parte orçamentária destinada a pagar os bancos operadores do Fundo Setorial do Audiovisual, o que, na prática, impede ações de investimento. A Ancine foi avaliada como a segunda pior gestão pública de uma agência em 2021 pelo Índice Integrado de Governança e Gestão Pública 2021 (IGG21), um
indicador do Tribunal de Contas da União (TCU). Os números que a colocam nessa posição são evidentes: a quantidade de filmes brasileiros com mais de 500 mil espectadores caiu de sete para zero em quatro anos. O público total de filmes brasileiros caiu de 23,8 milhões para 911 mil. E, em 2021, nenhum filme brasileiro apareceu entre as 20 maiores bilheterias do ano. 

Mas a sangria da cultura assume uma dramaticidade ainda maior se se examina as suas especificidades. A indústria audiovisual, por exemplo, tem um ciclo longo em sua cadeia produtiva – leva anos entre o desenvolvimento inicial e sua distribuição final. Cada linguagem artística tem seu tempo de produção especifico, e não é somente a restauração do poder de investimento e estímulo do Estado que lhes devolverá a pujança. 

Reanimar o tecido cultural da nação será́ uma obra hercúlea, de esforços coordenados e revigoramento do entusiasmo, do orgulho, da confiança no poder da cultura. O novo governo terá de rever e melhorar as leis de incentivo e fazer um verdadeiro mutirão para a contratação de colaboradores capacitados, de profissionais especializados para as instituições culturais brasileiras.

Novos talentos, novas ideias

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Uma nova geração surge no cenário brasileiro das artes visuais com um diálogo vivo, entendendo a vida e cada trabalho como um ato inaugural. Quatro jovens artistas, de diferentes regiões, parecem respirar e interpretar a mesma inquietação desse momento de mudanças sociopolítico e culturais. 

Lençóis, de tricoline listrado, xadrez e de tantas cores, parecem flutuar no amplo terraço da Casa do Parque, em Alto de Pinheiros, bairro de São Paulo, confirmando a leveza com que Leandro Muniz, 29 anos, desenvolve Domingo, sua recente exposição. Cada peça de tecido tem padronagem diferente e recebe camadas de tinta nos pequenos quadrados e retângulos que ele elegeu arbitrariamente para pintar. 

“Me interessa a identificação do trabalho com a casa, que é a Casa do Parque, um projeto arquitetônico modernista cujos elementos contrapõem-se aos elementos vernaculares como a tricoline”. As relações cromáticas empregadas foram trabalhadas por Leandro por cerca de um ano. As pinturas compõem-se de muitas camadas e procedimentos, algumas são mais matéricas e outras, quase transparentes. “Os tecidos contribuem muito, são pictóricos por si só, um deles, com matrizes geométricas, remete a Paul Klee”.

Como define Leandro, o trabalho é polissêmico, porque tanto permite leituras textuais ou mais genéricas. O conjunto também é imagético com pintura de pequena dimensão sobre paisagem, vegetação, cachoeira, num diálogo aparentemente prosaico. As pinceladas acontecem na frente e no verso do tecido, o que faz com que o visitante se movimente o tempo todo, por entre lençóis. Envolvida nesse cenário, me lembro de Um dia muito especial, filme de Ettore Scola, sobre a chegada de Hitler à Itália, estrelado por Sophia Loren e Marcello Mastroianni. Há um longo diálogo dos atores entre lençóis nos varais, cena do neorrealismo italiano dos anos 1940.

Voltando à instalação Domingo, que pode ser uma ode à pintura expandida, destaca-se a parede branca na entrada que conduz o visitante à instalação. Sobre ela, Leandro desenha azulejos com traços pretos irregulares, criando movimento. A pintura remete às áreas de serviço azulejadas de branco e dialoga com os lençóis. Para um adolescente que saiu de casa aos 16 anos, Leandro não perdeu o foco de seu projeto de vida. Formou-se em artes visuais pela ECA-USP, faz mestrado e realiza curadorias.

“O perigo da vida é asfixiar-se sob o peso da existência”. A frase da filósofa María Zambrano não abala Fabiana Wolf, sergipana de 27 anos que, aos 20, deixou Aracaju e desembarcou na capital paulista. Agora ela faz sua primeira exposição na Galeria São Paulo Flutuante, no bairro da Barra Funda. Com coragem incomum para uma iniciante, expõe Obituário, uma tela de cinco metros, feita sob o impacto da morte da mãe e do padrasto, pela covid-19. “Também me refiro ao número enorme de pessoas que morreram em todo o mundo”. 

Sua pintura neoexpressionista traz gestos de Basquiat e mescla textos, datas e um emaranhado de traços nervosos. Mas de onde veio a coragem de enfrentar tal dimensão? “Estava muito angustiada com tudo o que acontecia comigo e, no Brasil, guardava muitas coisas dentro de mim. Foi um vômito”. Fabiana demorou apenas uma semana para concluir a pintura, que traz o preto como fio condutor. Em outro trabalho, Arapuca, ela destila sua indignação sobre o momento político de hoje com um vermelho intenso e deixa uma mensagem sintética: “Fora”. Todas as telas foram feitas neste ano e dialogam entre si. Autodidata, sua construção pictórica é elaborada a partir de vivências trabalhadas com giz, pastel oleoso e tinta acrílica. 

Seu propósito, artístico e político, emerge em todos os trabalhos expostos na São Paulo Flutuante, de Regina Boni, conhecida por sempre incentivar artistas jovens. Olho treinado e saberes acumulados por décadas, a galerista viu as obras de Fabiana, trazidas por seu sócio e também artista Manu Maltez, e a convidou para sua primeira exposição. Fabiana diz que preservar sua independência é fundamental. “Nunca me interessei muito pelo mercado, minha preocupação não era ser famosa, vender muito.” Ela sempre manteve certa resistência ao circuito, mas acredita que agora as coisas podem mudar. Regina Boni considera o trabalho de Fabiana extremamente maduro para uma jovem artista. “Não tenho dúvida sobre o caminho promissor que ela terá”. 

Definido por si mesmo como andarilho, R. Trompaz, 33 anos, costuma caminhar pelas ruas de São Paulo. Nessas andanças passou em frente à São Paulo Flutuante, entrou com seu portfólio debaixo do braço. Regina o recebeu, aprovou o que viu e o convidou para expor. Influenciado pelos rappers Emicida e Racionais MC’s, entre outros artistas da mesma matriz social ele, diz que aprendeu muito com os músicos, especialmente a refletir sobre a desigualdade estrutural do Brasil. R. Trompaz mora no bairro Capão Redondo, na periferia de São Paulo, gosta de skate e potencializa seu repertório visual a partir da vivência com a cidade. 

Nos desenhos em branco e preto ele estampa as mazelas dos governantes, gatilho de sua produção. “Tudo o que eu produzo vem da crítica social que está ligada ao projeto Segregação Social Geograficamente Escancarada (Ssge)”. As imagens são justapostas, misturadas, interligadas e captam cenas de enchentes na periferia, moradias precárias, além de edifícios de classe média poupados das tragédias, com influência de Livio Abramo. Já as pinturas trazem um abstracionismo geométrico desenvolvido com pinceladas rápidas, executadas com verniz acrílico e pigmento em pó. R.Trompaz é formado em artes visuais pelas Belas Artes e tem a expectativa de iniciar um novo ciclo. 

A maturidade com que Geoneide Brandão aborda o universo LGBTQIA+ não condiz com seus 22 anos. O repertório traz cenas íntimas de corpos queer pintados a partir da fotografia que aprendeu usando celular quando tinha 14 anos e vivia em Ouro Branco, no sertão de Alagoas. “Com 16 anos já me dedicava à pintura dentro desse processo e há um ano moro no Recife onde frequento o ateliê coletivo Escadaria, com um grupo de jovens”. Geoneide trabalha a partir do corpo e suas simbologias. “Meu interesse foca a sexualidade, a questão de gênero e as relações humanas como um todo”.

Sua pintura executada com pinceladas largas e contínuas vai ganhando espaço. Atualmente ela expõe na coletiva Reflorestar, na Christal Galeria, novo espaço cultural do Recife, onde tem uma obra comissionada. Foi escolhida por meio de um edital e mostra dois trabalhos da série Amor ardor, que reflete questões sobre afeto e intimidade do corpo. Em setembro, ela foi selecionada na chamada do Coletivo Vozes Agudas, com curadoria de Bruna Fernanda, Érica Burini, Khadig Fares e Thais Rivitti, que resultou na exposição Vivemos pra isso, integrante da chamada pública VoA 2022-2023, para artistas mulheres e pessoas não binárias, que ocorreu no Ateliê397 e no galpão da Galeria Vermelho, ambos na Barra Funda, em São Paulo. A exposição reuniu artistas de todo o Brasil e levantou questões pertinentes à causa. Recentemente também passou pelo crivo de um edital no Canadá. Estudante de artes visuais na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), um dos seus focos é pesquisar as interseções entre corpo, gênero e sexualidade ligadas às questões de afeto, alteridade e política.

Quanto ao mercado ela se diz insegura, porque não sabe até que ponto uma jovem como ela, que aborda tema dessa natureza, vai conseguir se firmar. “A cena artística do Recife é aberta, me comunico com artistas incríveis com os quais aprendo muito. Já o mercado é conservador, as pessoas que têm grana não querem investir nesse tema”. Com muitos desafios, o talento de Geoneide vai abrindo portas em outras esferas, ela é uma das artistas da coleção Novas Aquisições, do Banco do Nordeste.

Finalizando, Regina Boni deixa a mensagem. “Se em um jornal importante, no qual, entre outros nomes brasileiros famosos, surgiam obras de Emanoel Araújo, artista baiano, recém-falecido e nunca reconhecido em vida como o grande criador que sempre foi, [é porque] o reconhecimento póstumo é mais comum em nosso país, capitalista e injusto. Daí a importância do marchand abrir seu olhar para novos nomes. Novas pessoas. Novas ideias. O acreditar em novos futuros”.

Diálogo imagético

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*Por Hélio Campos Mello e Simonetta Persichetti

Desde o final do século 19 os povos originários tiveram sua imagem “roubada” e divulgada por não indígenas que criaram uma visão exótica e estereotipadas apresentada ao Brasil e ao mundo por meio de documentários, fotografias e relatos. Uma história criada e que nunca foi a história deles. No século 20, revistas como O Cruzeiro e a Manchete também reforçaram esta ideia. Eles começaram realmente a se autorrepresentar no final do século 20. Apropriaram-se das ferramentas para construção imagética de seus povos, suas culturas.

O confronto destas narrativas pode ser visto na exposição Xingu: Contatos, no Instituto Moreira Salles Paulista. Focada no território do Xingu, no Mato Grosso, onde atualmente vivem 6 mil indígenas de 16 etnias, a mostra expõe lacunas e violências nas representações históricas. Criado em 1961, é a primeira demarcação de terra indígena no Brasil e, como afirma Ailton Krenak, “virou símbolo de luta indígena na região”. Para o curador da mostra, o cineasta Takumã Kuikuro, “a exposição parte do objetivo de evidenciar esse ativismo e também de destacar a importância do audiovisual no território”.

Um diálogo imagético em que documentários históricos são rebatidos por imagens contemporâneas feitas pelos próprios indígenas, que percebem a importância de registrar sua cultura para que ela vire a memória e evite apagamentos futuros. Com uma estética documental, os vídeos discorrem sobre a importância da preservação da memória de suas culturas, de suas tradições. Contam seu espanto sobre a própria demarcação do território. Retomam filmes antigos para apresentar para as novas gerações como sua história foi narrada. E tecendo seus relatos que passaram da oralidade para a imagem. 

O domínio da imagem volta aos povos originários: “Hoje nós somos protagonistas da nossa história. Antes, não conhecíamos o audiovisual. Agora conhecemos. Somos donos da nossa imagem e levamos as lutas dos povos do Xingu para museus, festivais, cinemas, redes sociais, exposições”, relata Takumã Kuikuro.

A exposição é também um resgate museológico para preencher, como explica o cocurador e jornalista Guilherme Freitas, “lacunas existentes nos próprios museus, onde muitas vezes a identificação das imagens nem sempre foi feita de forma adequada. Parte da história do Xingu está registrada em fotografias sob a guarda do Instituto Moreira Salles. A mostra é o marco inicial de um processo de requalificação deste conjunto de imagens, com a colaboração de pesquisadores e lideranças indígenas, por meio da identificação de pessoas, locais e situações retratadas”. 

Cineastas do Coletivo Beture entrevistam o cacique Takakpe em base de vigilância no Rio Xingu, Terra Indigena Kayapó, PA, 2021. Foto: Nhakmô Kayapó / Rede Xingu+
Cineastas do Coletivo Beture entrevistam o cacique Takakpe em base de vigilância no Rio Xingu, Terra Indigena Kayapó, PA, 2021. Foto: Nhakmô Kayapó / Rede Xingu+

E é neste entralaçamento de olhares que a mostra – com 200 itens, pesquisados durante dois anos, pelos curadores Kuikuro e Freitas, com a assistente Marina Frúgoli, em diversos acervos do país – abre um diálogo e uma reflexão sobre a importância dos povos originários no Brasil: “Queremos contar nossa história para que os não indígenas possam reconhecer e ensinar aos seus filhos o protagonismo dos povos indígenas do Xingu e de todo Brasil”, afirma Kiukuro.

Como escreve o filósofo francês Georges Didi-Huberman em seu livro Quando as imagens tomam posição: “Para saber é preciso tomar posição. Gesto nada simples”. 

A Modernidade em questão

A parábola do progresso, exposição em cartaz no Sesc Pompeia, encerra em tom elevado o ciclo de eventos realizados ao longo do ano no Brasil em torno dos 200 anos da independência (1822) e do centenário da Semana de Arte Moderna (1922). Invertendo a ênfase histórica, a mostra não pretende rever ou reinterpretar os fatos ocorridos nessas datas icônicas, mas sim pensar a produção contemporânea a partir de questões centrais surgidas ao longo desse processo de modernização, iluminando contradições e procurando identificar zonas de condensação temática e poética. Se ainda persiste uma narrativa dominante, marcada por uma série de motes e mitos que até hoje se mantém como uma base de articulação da construção da cultura no país, sua trama cada vez mais esgarçada deixa entrever uma presença intensa de elementos ignorados, ou sufocados, por esse mito hegemônico do progresso. 

Ao invés da adotar uma visão linear e evolutiva da criação artística, a mostra se organiza pela articulação de núcleos complementares, que apresentam sobreposições e conexões nem sempre evidentes, agregando um conjunto amplo de atores e organizações. Cinco espaços, com diferentes perfis e enraizamentos geográficos, que interagem diretamente com as comunidades à volta, foram convidados a participar do projeto, com núcleos expositivos bastante personalizados, mas profundamente integrados ao conjunto. São eles o Acervo da Laje (Salvador), a Aldeia Kalipety e a Casa do Povo (São Paulo), o Quilombo Santa Rosa dos Pretos (Itapecuru Mirim, no Maranhão) e o Savvy Contemporary – the Laboratory of Form-Ideas (Berlim). Um sexto polo irradiador é o próprio Sesc Pompeia, que celebra agora seu 40º aniversário. Tanto o espaço – símbolo de transformação e geração de cultura desde os anos 1980 –, como sua autora, Lina Bo Bardi, exercem na exposição um papel fundamental. 

A arquiteta constitui uma das linhas de força da mostra, que concilia no mesmo espaço mais de 600 itens, produzidos por uma centena de artistas, e dispostos de forma bastante fluída, graças ao projeto expográfico concebido por Tiago Guimarães. Ela está representada em primeiro lugar pelo próprio espaço que abriga a exposição e que completa agora 40 anos de existência (formando, junto com a independência e a semana modernista, o trio de efemérides que sustenta o evento). Mas Lina também está presente por meio de uma série de projetos, trabalhos, desenhos e reflexões que ajudam a iluminar múltiplas questões, como a conexão entre África e Brasil, com seus projetos de Casas de cultura no Benim e na Bahia; o resgate pioneiro das tradições artesanais e culturais na antológica mostra A mão do povo brasileiro (ressignificada por meio do trabalho de artistas como Mestre Dicinho); a luta contra uma visão retrógrada e elitizada da arte ou ainda a presença significativa do tema da imigração na exposição.

A curadora Lisette Lagnado, responsável pelo projeto da 27ª Bienal sob o tema Como viver junto, retoma essa estrutura dialógica para tentar coletivamente responder ao desafio de “recuperar noções de espaço público, destruídas em nome da modernidade”. Apesar de pontuar que “não se trata aqui de buscar modernidades alternativas, ou subalternizadas, ou de regiões periféricas”, Lisette reitera que vivemos momentos de questionamento de noções amplamente disseminadas como a do “homem cordial” brasileiro. “A trajetória pós-colonial do Brasil evidencia a permanência das estruturas oligárquicas sobre um tecido multiétnico disfarçado de ‘democracia racial’”, enfatiza. 

Daniele Rodrigues, RIBEIRA (da série SOBRE A TERRA), exposta em A PARÁBOLA DO PROGRESSO.
Daniele Rodrigues, “Ribeira” (da série “Sobre a terra”), 2020. Foto: Cortesia Acervo Laje

Há, no amplo conjunto de trabalhos, uma série de obras de grande potência e intensa sintonia com as questões centrais identificadas pela curadoria, em suas várias instâncias de ação, como assuntos fundamentais da contemporaneidade, tais como colonialismo, racismo, natureza, imigração e resistência. Uma das primeiras obras da exposição, uma fotografia da série Sobre a Terra, de Daniele Rodrigues, parece sintetizar a força do levante popular, com uma mão que se ergue do solo portando uma espada-de-São-Jorge (ou espada-de-Ogum), tendo ao fundo uma paisagem branca na qual apenas se antevê uma igrejinha. A espada, no caso, é a planta, que possui uma série de conotações simbólicas para as religiões de matriz africana. Essa imagem, que pertence à potente seleção de trabalhos enviados pelo acervo da Laje, ecoa com o núcleo maranhense, situado lá na outra ponta do espaço de convivência. Pelas lentes de Márcio Vasconcelos vemos um conjunto de cinco retratos de mulheres fortes, na lida, cujo drama só se torna evidente quando se lê a legenda da imagem, que traz seus nomes (Dona Bia, Rosa, Dijé, Glorinha e Antonia) e a informação de que que fazem parte de um trágico grupo, o das Juradas de morte.

Esses encontros, que permeiam quase toda a exposição, adquirem uma potência ainda mais radiante no núcleo que funciona como uma espinha dorsal de todo o esquema, uma espécie de “tradução do conceito no espaço físico”, como explica Lisette. Trata-se de uma trama de obras de tempos históricos, instaladas na longa parede ao fundo do espaço expositivo. Esse entrecruzamento de temas e períodos recebeu o nome de Parábola, em referência ao título geral e que remete tanto à representação geométrica da curva como à força simbólica da narrativa e do símbolo imagético. Ali, uma ampla seleção interage com dez obras icônicas do modernismo, de ídolos como Tarsila do Amaral e Lasar Segall. Estes trabalhos considerados fundamentais para a história da arte brasileira são mostrados virtualmente, por meio de reproduções em caixas de luz, sublinhando seu caráter espectral. Como conta André Pitol, curador-adjunto da exposição, juntamente com Yudi Rafael, o processo de escolha desses trabalhos icônicos ocorreu em função da seleção das obras mais contemporâneas, algumas delas comissionadas especialmente para o evento, como se o presente interpelasse o passado em função das questões pertinentes na atualidade. “Procuramos dar uma resposta ao modernismo de maneira ampliada”, explica ele. 

Em tempos de ameaça à precária democracia brasileira e de retrocesso político evidente, destacam-se em toda a exposição aqueles trabalhos que tocam mais cirurgicamente na ferida do autoritarismo, como o núcleo de correspondências de Ariel Ferrari, filho de León Ferrari, às vésperas de seu assassinato pela repressão argentina. Mas as violências surdas, ligadas a temas incontornáveis como colonização e diáspora são praticamente onipresentes. Manifestam-se em telas impactantes, como Invasão do Alemão, de Márcia Falcão, no gesto crespo e figuração potente de Elson Junior, ou em obras de caráter mais alegórico, como Odoyá, de Ani Ganzala, que figura Iemanjá e suas devotas. A orixá nada em meio a belo mar repleto de peixes, que se soltam de seus cabelos, sobre um fundo do mar repleto de caveiras e que parece não apenas mostrar que não somos o país do futuro, como prometia a mística modernista, como temos ainda muitos acertos de contas com o passado a fazer. 

Vista de "A parábola do progresso", em egundo plano, obra "Invasão do Alemão", de Márcia Falcão
Vista de “A parábola do progresso”, em egundo plano, obra “Invasão do Alemão”, de Márcia Falcão. Foto: Rana Tosto
Homenagem

Além da mostra, que fica em cartaz até abril de 2023, o projeto Parábola do Progresso contará ainda com a publicação de um livro com ensaios escritos pela curadoria e um rol de convidados. A edição previa a publicação de uma série de registros fotográficos da exposição, realizadas por Rochelle Costi, que morreu precocemente, vítima de um atropelamento no final de novembro, que deve ser mantida e transformada em um tributo à artista.