Podcast 'O Ateliê' aborda denúncias de relações abusivas no circuito de artes plásticas
Podcast ‘O Ateliê’ aborda denúncias de relações abusivas no circuito de artes plásticas

Os bastidores de uma fatia do mundo das artes visuais ganharam inesperado alcance graças ao podcast O Ateliê, projeto do jornalista Chico Felitti. No ano passado, ele se tornou celebridade por conta de A mulher da casa abandonada, que alcançou a posição de segundo podcast mais ouvido no Brasil, segundo o Spotify.

Desta vez, Felitti apresenta uma série de denúncias de ex-alunas contra o Atelier do Centro, uma “escola para formação artística expandida”, como o local é definido em seu perfil no Instagram, dirigida pelo artista Rubens Espírito Santo.

Assim como na “casa abandonada” do bairro de Higienópolis, o jornalista parte de uma situação sem amplo conhecimento público, como o Atelier, e daí revela uma história complexa e inesperada, a partir de denúncias apresentadas na Justiça por uma das ex-alunas da escola, a artista Mirela Cabral, que lá esteve por três anos. Ela afirma que, neste período, sofreu abusos físicos, psicológicos e financeiros em uma situação que se assemelha a uma seita em que era obrigada a chamar Espírito Santo de mestre. São denúncias graves, que estão sendo investigadas pela Justiça.

Pelas relações com figuras importantes no circuito da arte contemporânea, como colecionadores de prestígio e diretores de instituições culturais, todos com nomes preservados no podcast, o assunto passou a ser comentado fortemente nos grupos de artistas, galeristas, colecionadores e afins. Quem, afinal, é o milionário que bancaria os livros publicados sobre o “mestre” Rubens Espírito Santo? Quem é o colecionador e banqueiro, pai de uma participante do Atelier do Centro, que ajuda a dar status ao local?

Essas perguntas não são respondidas por Felitti, evitando, assim, o tom de fofoca que poderia contaminar o podcast. Ao contrário, ele opta por dar visibilidade apenas a quem aceita ter seu nome tornado público e investe em contextualizar o caso por questões muito atuais, aprofundando-as com especialistas, como a dificuldade de as pessoas perceberem quando estão envolvidas em relações tóxicas. Afinal, é mesmo difícil entender apenas pelos relatos como as alunas e os alunos se deixaram envolver por tanto tempo em situações tão indignas, o que é o tema do sexto episódio, um dos melhores do podcast, sobre relações abusivas.

Se há algo que nos últimos anos finalmente está sendo levado a sério é desnaturalizar as relações por tanto tempo tidas como “normais”, mas que são de fato constituídas por puro assédio, seja físico, moral ou sexual. E vítimas, independentemente de sua classe social, merecem ser tratadas com respeito e discrição.

Fui um dos entrevistados no podcast, para contextualizar a relevância que Espírito Santo teria no circuito da arte e reafirmo aqui: nenhuma. Tendo a acreditar que ele conseguiu manter o Atelier do Centro por mais de 20 anos por se aproveitar da ingenuidade e da fragilidade de quem passou por lá.

Ao olhar para esse microcosmo do mundo das artes, no fim, Felitti faz mais uma crônica do Brasil antigo, esse que perdeu as eleições de 2022, mas ainda sobrevive ao manter pessoas escravizadas para a colheita de uva, que assedia funcionários, que discrimina mulheres no trabalho, que faz afirmações preconceituosas contra nordestinos… a lista não tem fim.

Na própria entrevista concedida por Rubens do Espírito Santo, no episódio nove, sua defesa é que se tratava de um grupo de adultos, em que os eventuais exageros ocorriam no coletivo e com consentimento dos participantes.

No entanto, ao longo do podcast, Felitti usa de vários meios para apontar os comportamentos do “velho Brasil” no ateliê, a partir de depoimentos de antigos funcionários, infiltrando estudantes de arte no grupo, entrevistando pais de discípulos arrependidos.

No fim, O Ateliê não é apenas um podcast sobre uma microbolha do circuito das artes. É mais sobre como uma sociedade gera pessoas frágeis, que se deixam manipular com facilidade e que são capazes de se submeter a situações impensáveis, como venerar figuras que contestam a importância da imunização, mesmo que, escondidas, elas até tomem as vacinas que publicamente demonizaram.

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