Início Site Página 25

Em ‘Ianelli 100 anos: o artista essencial’, MAM-SP resgata a pesquisa de linhas, formas e cor do pintor

Arcangelo Ianelli, natureza-morta, 1960. Foto: Sérgio
Arcangelo Ianelli, natureza-morta, 1960. Foto: Sérgio Guerini

O MAM-SP apresenta Ianelli 100 anos: o artista essencial, exposição que abre seu calendário de 2023, quando completa 75 anos de atividades, e resgata a pesquisa de linhas, formas e cor do pintor, que teve uma relação estreita com o museu paulistano. Foi ali que Ianelli fez sua primeira individual em uma instituição, em 1961, e, a partir de 1969, participou de seis edições do Panorama de Pintura, sendo premiado em 1973. Em 1978, o MAM-SP abrigou também uma retrospectiva de sua obra, com mais de 160 de suas criações, numa exposição que recebeu o prêmio de melhor do ano da Associação Brasileira dos Críticos de Arte (ABCA).

Com quase 100 trabalhos, Ianelli 100 anos apresenta desde a fase inicial da carreira do artista, com pinturas mais acadêmicas, até sua imersão na abstração. Ao conceber o percurso da mostra, a arquitetura do MAM – um volume que se afunila a partir da entrada – acabou definindo bastante como a curadora Denise Mattar iria construir seu caminho pela trajetória do pintor, caminho esse que não obedece exatamente a uma cronologia. 

“Acho que uma exposição é um ensaio visual, que tenta conversar com o lugar onde ela vai ser montada. Como a produção do Ianelli parte do pequeno para o grande, e eu queria que o público enxergasse as diferentes fases dele, uma nas outras, pensei num percurso meio retroativo, que começa nas obras de maiores dimensões, feitas até 2000, em que ele explora os campos de cor, até voltar ao figurativo, do início de sua carreira”, explica Denise, à arte!brasileiros.

A PESQUISA

Denise Mattar conta que teve um contato mais próximo com Ianelli no próprio MAM, de que o pintor era assíduo frequentador, entre 1987 a 1989, período em que ela trabalhou como diretora técnica da instituição. Feito no início de 2020, pouco antes da pandemia, o convite para que Denise fosse a curadora da mostra partiu dos filhos do artista, Kátia e Rubens. Iniciada a pesquisa, Denise teve acesso ao vasto material documental da família – o próprio Ianelli, vale ressaltar, tinha uma organização bem sistemática de sua produção – e lançou mão também de publicações da biblioteca do próprio museu. Desde o começo, a proposta da curadora foi apresentar ao público novidades acerca da obra do pintor.

“Uma coisa que eu descobri foi o fato de que [o crítico e escritor] Mário Pedrosa (1900-1981) tinha exposto pela primeira vez a obra do Ianelli numa instituição, no próprio MAM-SP, na virada de 1960 para 1961, ano em que a mostra foi para o MAM Rio”, conta Denise. O que mais chamou a atenção da curadora foi uma passagem do texto de Pedrosa, para a mostra, em que ele ressaltava haver ‘uma vibração, uma liquidez cristalina’ nas telas do artista, algo que parecia antever a produção de Ianelli na série Vibrações (1999-2000).

Outro achado de Denise foi um poema de Ferreira Gullar (1930-2016) em espanhol, que ela encontrou no catálogo de exposição feita por Ianelli na 3ª Bienal Internacional de Pintura de Cuenca, em 1991. A curadora não apenas localizou a versão original, em português, em Relâmpagos, livro do poeta publicado em 2004, como identificou que havia um trecho a mais. No MAM-SP, o poema é mostrado na íntegra. Numa passagem, Gullar descreveu assim a pintura de Ianelli:

Pintar, para Arcangelo Ianelli agora é
suscitar o surgimento da cor.
Fazer silêncio e deixar que ela (a cor) imerja
nele – do cerne dele – densa, luminosa.
Vinda do fundo da sombra, a cor
[…] Pintar para Ianelli agora é mostrar a cor como pura duração

Em sua pesquisa, Denise Mattar também encontrou um texto de Gian Carlo Argan (1909-1992) de 1966. Em 1964, Ianelli havia ganhado o prêmio de viagem ao exterior no Salão Nacional de Arte Moderna (SNAM), passando em seguida dois anos (1965-1967) na Europa. Em sua análise, feita por ocasião de uma mostra de Ianelli no Consulado do Brasil em Munique (Alemanha), o teórico da arte italiano teceu considerações que pareciam antever as recorrentes comparações da pesquisa de cor do brasileiro com a produção de Mark Rothko (1903-1970), pintor norte-americano de origem letã, apontando em que se aproximavam e se distanciavam as respectivas práticas. Escreveu Argan:

“Na pintura de Rothko, Ianelli reconhece com razão, e absoluta franqueza, o ponto de
chegada do desenvolvimento histórico da representação do espaço por meio de
relações colorísticas qualitativas e quantitativas. […] No caso de Ianelli, o fator dominante é uma evidente especulação sobre valores proporcionais: é isso que o distancia consideravelmente da dimensão da espacialidade expansiva e transbordante de Rothko e o leva da consideração das relações métrica e tonal entre os campos de cor, a uma delimitação geométrica das áreas coloridas e sua assunção como núcleos formais em relação às distâncias de fundo.

Já em 2002, quando a Pinacoteca realizou uma retrospectiva da carreira de Ianelli – o pintor, então com 80 anos, não compareceu à abertura, porque teve um AVC – a analogia com Rothko voltou à tona, em uma crítica de Olívio Tavares de Araújo, publicada no jornal O Estado de São Paulo. Araújo escreve que “em algumas fases, manchas e faixas flutuantes podem lembrar a pintura de Mark Rothko”. Mas ponderou:

[..]. basta observar atentamente a evolução interna da pintura de Ianelli para perceber que ele não foi beber em Mark Rothko. Ambos chegaram a soluções da mesma natureza porque têm sensibilidades parecidas. São temperamentos líricos que seguram o próprio lirismo, amantes de uma ordem inabalavelmente apolínea. Beberam nas mesmas fontes. São irmãos, não descendentes um do outro.

TRAJETÓRIA

Nascido na capital paulista, Arcangelo Ianelli (1922-2009) começou a desenhar ainda na adolescência, como autodidata. Em 1940, entrou para a Associação Paulista de Belas Artes e, no início daquela década, frequentou o ateliê de artistas como Waldemar da Costa (1904-1982) e Maria Leontina (1917-1984). Ao longo dos anos 1950, fez parte do Grupo Guanabara, ao lado de Manabu Mabe (1924-1997) e Jorge Mori (1932), entre outros. Em sua trajetória artística, foi da representação figurativa, do início da carreira, nos anos 1950, ao abstracionismo e à pesquisa dos campos de cor, passando ainda pelas experiências com formas geométricas, pelas pinturas sobre madeira e esculturas de mármore.

Segundo Denise Mattar, o próprio Ianelli consentia que sua carreira tinha fases e que ele “as desenvolvia à exaustão, até passar para outra”. Em um texto, lembra a curadora, o crítico Paulo Mendes de Almeida também via ciclos “quase que estanques” na prática do pintor. Mas Denise não percebe a produção do artista do mesmo modo. Para exemplificar isso, no catálogo da exposição, ela isolou parte de uma obra figurativa, dos anos 1950, em que já se insinuava o que o pintor viria a fazer nas décadas seguintes, a saber, “toda uma redução da forma até chegar aos campos de cor”, segundo a curadora.

“O que eu queria mostrar na exposição é que o percurso de Ianelli não era exatamente assim, estanque. Na verdade, você vai vendo uma interpenetração em sua produção”, conta Denise. “Mesmo na obra totalmente figurativa, de seus primeiros trabalhos, ao olhar uma janela você vê nuances de luz e cor que têm tudo a ver com a produção posterior dele, por exemplo, na série Vibrações, dos anos 1990, assim nomeada pelo crítico Paulo Mendes de Almeida. Há um processo interior, de extrema coerência, que está presente na mostra”.

Reprodução do catálogo da exposição "Ianelli 100 anos - O artista essencial", com uma natureza-morta de 1960 e, à esquerda, um detalhe da obra
Reprodução do catálogo da exposição “Ianelli 100 anos – O artista essencial”, com uma natureza-morta de 1960 e, à esquerda, um detalhe da obra

Ainda sobre aqueles trabalhos, que abrem a exposição e são comparados às obras de Mark Rohtko, Denise lembra que estão na moda as chamadas exposições imersivas, mas que elas não passam de projeções. “Enquanto que o Ianelli proporciona um mergulho na cor propriamente dita. O público é atraído pelo pigmento, que o leva realmente para dentro da pintura. E ele usa essas dimensões extraordinárias para justamente as pessoas terem essa sensação”, diz.

Como parte da pesquisa sobre a trajetória de Ianelli, Denise fez visitas às casas de Rubens e Kátia Ianelli, que abrigam o acervo do pai. Delas, tirou a ideia de levar à mostra um pouco dos bastidores da produção do pintor. Três vitrines trazem à exposição algo do dia a dia de Ianelli em seu ateliê, um material nunca antes visto pelo público. Uma delas exibe parte de sua biblioteca – livros sobre colegas de ofício, como Samson Flexor, Flavio-Shiró, Lygia Clark e Hélio Oiticica, ou ainda do fotógrafo J.R. Duran – dividem o espaço de duas estantes com inúmeros pincéis e algumas tintas, assim como reproduções de frases diversas, uma delas atribuída ao escritor francês André Malraux, que diz: “A ordem é o prazer da razão; a desordem é a delícia da imaginação”. Entre as estantes, um cavalete com das obras do pintor.

Noutra vitrine, encontram-se experimentos que Ianelli fazia em paralelo à prática de pintura, voltados à produção de esculturas, nos anos 2000. O artista fazia primeiro um modelo de papel, depois partia para o papelão, uma folha de metal, a madeira e a madeira pintada, explorando possibilidades, com pequenas alterações. Duas das esculturas, cujas etapas de criação estão evidenciadas nesta vitrine, estão presentes na exposição.

“O interessante desse material é que muitas pessoas se perguntam como um pintor tão pintor, como o Ianelli, num certo momento resolve fazer esculturas. Ver esse ateliê ajuda a entender melhor essa obsessão dele na busca pela essência da forma”, ressalta a curadora. “O público percebe que o Ianelli é um artista de processo, num momento das artes em que o processo era valorizado. Hoje em dia, temos certo desprezo por isso, todo mundo está focado no resultado inédito, em algo que nunca foi feito”.

SERVIÇO

Ianelli 100 anos: o artista essencial
Até 14 de maio
Curadoria: Denise Mattar
Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP) – Parque Ibirapuera – Av. Pedro Álvares Cabral, s/nº – Portões 1 e 3
Horários: terça a domingo, das 10h às 18h (com a última entrada às 17h30)
Ingressos: R$25,00 inteira e R$12,50 meia-entrada; aos domingos, a entrada é gratuita

Mostra de Arte da Juventude (MAJ) chega à 30ª edição com um número recorde de inscrições

Maria Macedo, frame da fotoperformance "Dança para um futuro cego”, 2021.
Maria Macedo, "Dança para um futuro cego”, 2021.

Criada em 1989, em Ribeirão Preto, a Mostra de Arte da Juventude (MAJ) chega à sua 30ª edição e faz sua primeira itinerância na capital paulista, no Sesc Consolação. Foram 402 inscrições – número recorde – a partir das quais a dupla de curadores Luciara Ribeiro e André Pitol escolheram 40 artistas e coletivos.

“A exposição traz um conjunto de obras selecionadas em parceria com [o curador] André Pitol e reflete a pluralidade da juventude no campo das artes, tanto de contextos quanto de territórios”. Espelha também o que estes jovens têm pensado e utilizado na produção de suas obras. “Há questões políticas, sociais, identitárias, poéticas e estéticas”, conclui.

Segundo Pitol, os temas abordados nas obras da MAJ emergiram das próprias pesquisas estéticas dos artistas e, claro, de seu interesse em discuti-los. E que o aspecto híbrido ou mesmo digital de alguns trabalhos foi consequência natural do período em que a seleção foi feita num período grave da pandemia de covid-19. Entre os trabalhos que ele destaca está o mural 45 propostas antirracistas, de Alan Ariê (Itapecerica da Serra/SP).

 

Ainda segundo Luciara, recentemente a MAJ se abriu enquanto mostra nacional, com participação de artistas de outros estados, ainda que tenha uma grande presença de nomes do Sudeste, em especial de São Paulo. Mesmo assim, ela traz grande diversidade, com artistas do interior e da periferia da capital paulista. Luciara ressalta que ela e Pitol fizeram uma nova leitura da premiação da MAJ, sempre voltada a três artistas.

“Percebemos que nas edições anteriores da exposição o critério era conceder o prêmio aos trabalhos tidos como mais bem resolvidos ou artistas que haviam tido mais destaque. O que nós fizemos foi entender que a mostra deve fomentar a produção e conclusão de trabalhos. Então, neste ano em que a MAJ chega à sua 30ª edição, a premiação foi um incentivo para que as obras pudessem ser finalizadas”, explica.

Ao fim, foram laureados Rebeca Ramos (São Paulo/SP), cujas esculturas estão relacionadas a uma crítica social à desigualdade na cidade de São Paulo e que destacam o amarelo, cor que remete à fome segundo Carolina Maria de Jesus (1914-1977), autora de Quarto de despejo (1960); Anderson Oli (João Pessoa/PB), cujo vídeo A rua que era praia resgata a memória do Complexo da Maré, no Rio; e Roberval Borges (Teresina/PI), que criou um mural com 176 pequenos espelhos em que o visitante tanto se vê quanto “encara um repertório de pessoas”, segundo Pitol, com quem nos deparamos quando vamos a uma feira de rua.

Assista à entrevista com os curadores no vídeo abaixo:

SERVIÇO

30ª Mostra de Arte da Juventude – Itinerância
Até 5 de março
Sesc Consolação – Rua Dr. Vila Nova, 245, Vila Buarque – São Paulo (SP)
Visitação: de terça a sexta-feira, das 10h às 21h; sábados, das 10h às 20h; domingos e feriados, das 10h às 18h
Entrada gratuita

 

Brasil ganha Red List (lista vermelha) que ajuda a identificar objetos culturais em risco de tráfico

Litografia da vista de S. Sebastião do Rio de Janeiro, tirada das Ilha das Cobras, Alemanha, séc. 19. Crédito: Fundação
Litografia da vista de S. Sebastião do Rio de Janeiro, tirada das Ilha das Cobras, Alemanha, séc. 19. Crédito: Fundação Biblioteca Nacional

O Conselho Internacional de Museus (ICOM) lançou a Lista Vermelha (Red List) Brasil, um documento bilíngue, em português e inglês, que elenca as tipologias dos objetos culturais mais vulneráveis ao tráfico internacional. A apresentação da lista aconteceu na terça (14/2), no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, em cerimônia com a presença da ministra da Cultura, Margareth Menezes. Elaborada em parceria com especialistas brasileiros, a Red List Brasil tem o apoio do Itaú Cultural e do Instituto Moreira Salles.

O objetivo da Red List Brasil é ajudar profissionais de arte e de patrimônio, assim como  autoridades policiais ou mesmo cidadãos a identificar itens suscetíveis à comercialização ilegal. Ela é dividida em cinco categorias: livros, documentos, manuscritos e fotografias; arqueologia; arte sacra e religiosa; objetos etnográficos e paleontologia.

Capa da Red List Brasil
Capa da Red List Brasil

É importante ressaltar que os itens inventariados (veja alguns deles na galeria abaixo) no documento não foram roubados. Eles estão registados em coleções de instituições reconhecidas, são bens públicos pertencentes à União e indicam, para efeito de comparação, as tipologias em maior risco. Também vale salientar que tais objetos são contemplados pela legislação brasileira voltada à proteção do patrimônio cultural e histórico do país.

Segundo Roberta Saraiva, diretora do ICOM Brasil, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) lista um total de 1.974 objetos já traficados, sendo que apenas 48 teriam sido recuperados. E, de acordo com a INTERPOL, o Brasil ocupa a 26ª posição entre os países com maior número de bens culturais comercializados ilegalmente.

“Temos uma legislação robusta, mas o país tem dimensões continentais, com fronteiras muito porosas. Portanto é sempre uma grande dificuldade fazer o controle da saída dessas obras. Então, um documento como a Red List é muito estruturante porque, além do uso prático, ele articula as diferentes instâncias de governo para este trabalho de proteção do patrimônio”, afirma Roberta.

A diretora do ICOM Brasil também participou do lançamento, ao lado da presidente global do ICOM, Emma Nardi; da presidente do ICOM Brasil e diretora-executiva do Museu da Língua Portuguesa, Renata Motta; da secretária da Cultura e Economia Criativa do Governo do Estado de São Paulo, Marilia Marton; da presidente do Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM), Fernanda Castro; e da Chefe da Assessoria de Participação Social e Diversidade do MinC, Mariana Braga.

O documento enumera quatro instituições que devem ser contatadas em caso de reconhecimento de um desses objetos: a sede do próprio ICOM, na França; o Iphan; a Agência Nacional de Mineração (AMN) e o Instituto Brasileiro dos Museus (Ibram). A lista insta museus, casas de leilões, comerciantes de arte e colecionadores a não comprarem objetos similares aos apresentados sem que haja antes uma pesquisa rigorosa de sua proveniência e checagem de documentação legal.

Estabelecido em 1946, o ICOM abriga em sua rede mais de 45 mil membros, de mais de 100 países e territórios, e é a única ONG entre as seis organizações especializadas e reconhecidas pelas Nações Unidas na luta com o tráfico de bens culturais, ao lado da UNESCO, UNIDROIT, INTERPOL, WCO (Organização Mundial de Aduanas) e UNODC (Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime). A instituição elabora as Red Lists desde 2000. Já foram publicadas 20, que contemplam 57 países em quatro continentes. Recentemente, o ICOM lançou uma Red List emergencial, para a Ucrânia, por conta da guerra contra a Rússia.

 

 

 

Recém-lançado, Projeto Lorenzato já tem catalogadas cerca de 300 obras do pintor mineiro

Amadeo Luciano Lorenzato, sem título, 1973. Foto: Ding Musa
Amadeo Luciano Lorenzato, sem título, 1973. Foto: Ding Musa

Foi lançado no mês passado o Projeto Amadeo Luciano Lorenzato, que busca identificar e catalogar as obras do artista mineiro em uma plataforma digital, contínua e aberta. Com apoio do Itaú Cultural, a iniciativa partiu do galerista Thiago Gomide, mineiro como Lorenzato, e que tem o artista no elenco e de sua Gomide & Co. Segundo o pesquisador Mateus Nunes, que coordena o projeto, Gomide “sempre foi atento à importância do artista, que tinha seus debates muito restritos a Minas Gerais” e ele sentia a necessidade de “enfatizar a presença de Lorenzato na história da arte em um panorama mais amplo”. Nunes é doutor em História da Arte pela Universidade de Lisboa, professor do MASP e pesquisador integrado do Instituto de História da Arte da Universidade de Lisboa.

“A submissão pelo formulário objetiva, sobretudo, alcançar uma capilaridade em que a pesquisa de campo que empreendemos não chega, como as coleções particulares de muitos colecionadores”, Mateus Nunes, coordenador geral do Projeto Lorenzato

Por ora, foram catalogadas cerca de 300 obras, e há cerca de outros 100 trabalhos submetidos pela plataforma do site. De acordo com Nunes, Gomide estima que Lorenzato tenha entre 3 mil e 4 mil obras espalhadas pelo mundo. A catalogação do Projeto Amadeo Luciano Lorenzato feita a partir da submissão dos formulários, conta ele, tem sido minoritária. Para o lançamento, foi formado um banco de dados de centenas de obras a partir de pesquisa de campo em galerias e instituições de arte, além de publicações, catálogos, exibições em exposições etc.

“A submissão pelo formulário objetiva, sobretudo, alcançar uma capilaridade em que a pesquisa de campo que empreendemos não chega, como as coleções particulares de muitos colecionadores”, diz o pesquisador à arte!brasileiros, explicando que, além de três pessoas que trabalham diretamente na catalogação, as equipes das galerias e instituições de arte colaboradoras têm ajudado, cedendo imagens, fichas técnicas e pesquisas já presentes em seus próprios bancos de dados.

Nos próximos meses, será feita a primeira assembleia do Conselho Consultivo, presidido por Thiago Gomide, para a análise e deliberação do que vem sendo submetido por meio da plataforma. Entre os membros pesquisadores do Conselho estão Rodrigo Moura, autor de Lorenzato, livro publicado pela editora Ubu, e curador do El Museo del Barrio, em Nova York; Sabrina Sedlmayer, Laymert Garcia dos Santos e Luisa Duarte; os galeristas Vilma Eid, Pedro Mendes, Rodrigo Ratton e James Green; e Rui Terenzi Neuenschwander, colecionador de arte e primo de segundo grau do artista.

 

TRAJETÓRIA

Amadeu Luciano Lorenzato (1900-1995) nasceu e morreu em Belo Horizonte, capital mineira. Ao longo de sua trajetória, atuou como pintor e escultor. Mudou-se com a família em 1920 para Arsiero (Itália), onde trabalhou como pintor de paredes. Estudou na Reale Accademia delle Arti, em Vicenza. Em 1926, foi para Roma, onde ficou dois anos em companhia do pintor e cartazista holandês Cornelius Keesman, com quem desenhava nos fins de semana. Em 1928, ambos iniciaram uma viagem de bicicleta ao leste europeu, passando por Áustria, Eslováquia, Hungria, Bulgária e Turquia.

Em Paris, participou da montagem dos pavilhões da Exposição Internacional Colonial. No início da década de 1930, voltou para a Itália, onde permaneceu até 1948, quando retornou ao Brasil. Em BH, retomou o ofício de pintor de paredes até meados dos anos 1950, quando, devido a um acidente, passou a se dedicar apenas à pintura.

No comunicado de lançamento do projeto, Mateus Nunes ressalta que Lorenzato “é um artista que não obedece a moldes historiográficos usuais, como enquadramento em estilos, foi fora do eixo Rio-SP e utilizava técnicas não usuais”. O texto salienta ainda aspectos em oposição na produção de Lorenzato: figurativo versus abstrato, estética brasileira versus internacional, imaginário versus autêntico. Para Nunes, Lorenzato era o próprio denominador comum de sua obra.

“Ele fazia congregar esses opostos de maneira híbrida, erudita e intuitiva, ao ponto de manipular ferramentas visuais, como a perspectiva, por exemplo, para a criação de uma atmosfera nostálgica. O Projeto Amadeo Luciano Lorenzato refrisa o aspecto autobiográfico na produção do artista”, diz.

O pesquisador destaca também que a prática de Lorenzato, iniciada na década de 1920, percorreu um longo caminho até 1964 – as pinturas anteriores a 1948, ano em que retornou ao Brasil, foram destruídas durante a Segunda Guerra, conta ele –, quando apresentou alguns trabalhos aos críticos de arte Sérgio Maldonado e Palhano Júnior, responsáveis pela organização de suas primeiras mostras individuais. Ainda em vida, no início dos anos 1970, Lorenzato participou de exposições internacionais, na antiga Checoslováquia e na França.

“[O trabalho de Lorenzato] ficou por mais de 40 anos sendo exposto apenas no Brasil, com quase todas as mostras sendo feitas em Minas Gerais. Os debates foram reavivados há cinco anos, quando Lorenzato foi reinserido no panorama de discussão global, com exposições em Londres e em Nova York”, Mateus Nunes, coordenador geral do Projeto Lorenzato

“Depois dessas participações, seu trabalho ficou por mais de 40 anos sendo exposto apenas no Brasil, com quase todas as mostras sendo feitas em Minas Gerais. Os debates foram reavivados há cinco anos, quando Lorenzato foi reinserido no panorama de discussão global, com exposições em Londres e em Nova York. O objetivo do projeto é que, por meio da catalogação, Lorenzato tenha uma repercussão digna ao tamanho de sua obra tanto no Brasil quando no exterior”, afirma Nunes.

OBRA DISPERSA

Um dos principais desafios do Projeto é saber que se trata de um arquivo em constante expansão. O pesquisador lembra também que a obra de Lorenzato é bastante dispersa. Por exemplo, foram identificados indícios da presença de um trabalho feito pelo artista no período em que colaborou com Cornelius Keesman, “mas ainda sem grandes descobertas”, segundo Nunes, que considera as obras feitas à época na Itália “de muito difícil rastreamento”. Daí a necessidade de que os processos do Projeto ocorram em parte online:

“Ele pede uma plataforma aberta, que solicite aos colecionadores e pesquisadores o envio de obras para análise e catalogação. Há peculiaridades menos específicas, como acontece na catalogação das obras muitos artistas, como imprecisão de datas, falta de registros fotográficos que sigam um certo padrão de qualidade para um banco de dados padronizado e pouquíssima bibliografia acerca de Lorenzato”, explica. “A catalogação geral deve durar alguns anos e ficar sempre aberta a novas análises. É possível que, no futuro, exposições e publicações sejam fomentadas a partir do Projeto, mas não há planos para desenvolvê-los em um futuro próximo”.

 

‘A virada decolonial na arte brasileira’: Considerações para atiçar o debate

Rosana Paulino, "Parede da Memória", 1991-2015. Foto: Divulgação/Cortesia da artista

A leitura de A virada decolonial na arte brasileira (Editora Mireveja), de Alessandra Simões Paiva[1] –, trouxe várias questões que, embora digam respeito à cultura e à arte produzida no Brasil, são de naturezas distintas e necessitam, portanto, que sejam pensadas separadamente.

As primeiras estariam ligadas à produção de obras de arte que, antes da “virada decolonial”[2], já distanciavam-se de pressupostos artísticos e estéticos estabelecidos na Europa e nos Estados Unidos durante o modernismo. A própria autora atenta para este fato e, portanto, seria importante rememorar aqui algumas obras produzidas após o final da Segunda Grande Guerra no Brasil, pensando-as como “preparadoras” do campo decolonial.

Um segundo conjunto de questões também deve ser debatido: os posicionamentos teóricos contidos no livro de Alessandra Paiva, que propõem estratégias metodológicas para se pensar a recente arte produzida no Brasil, entendida pela autora como fruto de uma “virada decolonial”.

Por último – e antes de nos determos nos dois conjuntos de questões acima mencionados –, acredito ser importante refletirmos sobre a maneira subserviente como alguns intelectuais brasileiros encaravam a arte e a cultura locais, frente à Europa e aos Estados Unidos. A sobrevivência dessa submissão até os dias de hoje torna-se um complicador para pensarmos a questão do decolonial na arte estudada por Paiva.

Capa do livro "A virada na arte decolonial brasileira", de Alessandra Simões Paiva (Editora Mireveja; 240 págs.)
Capa do livro “A virada na arte decolonial brasileira”, de Alessandra Simões Paiva (Editora Mireveja; 240 págs.)

***

Dou início a essas ponderações atentando para os posicionamentos sobre arte e cultura brasileiras defendidos por dois intelectuais aqui nascidos ainda no século 19. Meu objetivo é que elas esclareçam contra quem e contra o que surgiu entre nós a necessidade de se levar adiante a virada decolonial – o tema do livro de Paiva.

O primeiro deles, o escritor e crítico de arte Gonzaga Duque, a certa altura do seu romance Mocidade Morta – e por meio do personagem Camillo (seu alter ego) –, pondera sobre a impossibilidade de uma arte nacional e sobre como nós brasileiros deveríamos atuar como herdeiros da Europa:

[…]Nós outros, americanos, somos produtos de um amontoado de todas as raças, em que predomina mais esta do que aquela e, portanto, a nossa vida espiritual resulta da afinidade da raça predominante que, para nós brasileiros, é a latina, pelo ramo português […]

[…] A nossa preceptora espiritual… é a Europa. Dela recebemos as ideias coordenadas, etiquetadas, prontas para o consumo de seres mentais […][3].

O outro intelectual seria Menotti Del Picchia, atuante como romancista, jornalista e político. No dia 6 de abril de 1924, Del Picchia publica uma síntese do discurso proferido poucos dias antes por Washington Luís[4], por ocasião do banquete que a comunidade italiana de São Paulo lhe oferecera. A síntese produzida por Del Picchia traduziu o que um dos mais importantes políticos brasileiros da época pensava sobre o Brasil e os brasileiros, pensamentos em concordância com aqueles do intelectual:

Deu ele [Washington Luís em seu discurso] uma clara e concisa estrutura orgânica – definida na sua ossatura, especializada nas suas vértebras – a uma complexa série de ideias, cuja confusão trazia como consequência estéreis debates e improfícuos mal-entendidos.

“Somos um país de imigração”. Todo o plasma etnológico que constitui uma nacionalidade – tirante uns minguados extratos indígenas, não amalgamados ou absorvidos – e resultante da deslocação dos excessos de população de outros países. As bases da nossa raça, cuja coluna vertebral é lusa, compõem-se de um babélico complexo de tipos humanos, trazidos a bordo dos navios oriundos de outros céus e de outros climas. Não temos o preclaro orgulho dos gregos, que blasonavam perder-se a origem do seu povo nas brumas lendárias dos autóctones, saídos da Terra como os maravilhados ouvintes da lira orfeônica. Nossa civilização, puramente ocidental, foi de enxerto e veio no bojo das caravelas dos primeiros colonizadores e depois nos navios a vapor dos imigrados.

E a síntese continua:

“Vivemos com a imigração ocidental, nascemos dela, viveremos com ela”.

Se tal é uma verdade, dela decorrem consequências capitais para a apreciação dos fenômenos sociológicos brasileiros. A ausência de um elemento basilar étnico indígena, com longa história, com um caráter milenariamente típico, característicos morfológicos especiais – registrando-se apenas a preponderância latina – afasta a hipótese da aparição do meteco do “estrangeiro”, no sentido do transplantado. Fácil é, pois, no nosso ambiente, a adaptação do imigrado, o qual não pode sentir, de parte dos nativos, essa instintiva hostilidade natural, que se manifesta naqueles povos com um caráter racial típico, plasmado por uma longa elaboração histórica [5].

***

Hoje em dia chega a ser constrangedor perceber como nos dois textos – apesar de todas as diferenças[6] – sobressaem o silêncio e o descaso pelos indígenas que aqui viviam, quando chegaram os colonizadores, e pelos africanos que para cá foram trazidos como escravizados. Para Gonzaga Duque e Del Picchia era como se esses dois contingentes simplesmente não existissem.

Para reforçar a importância do lançamento de A virada decolonial, é importante negar que tais preconceitos hoje em dia já tenham sido superados. A presença ainda rarefeita de pessoas negras e indígenas nas mais diversas áreas da sociedade aponta para a permanência de uma estrutura racista que dificulta a todos entenderem que o termo “brasileiro” deve abarcar mais grupos étnicos, do que apenas aqueles que para cá vieram “no bojo das caravelas dos primeiros colonizadores e depois nos navios a vapor dos emigrados”.

Ainda persiste no Brasil a subserviência que a elite branca sempre nutriu pela Europa. Desejosa de ser “herdeira” da civilização europeia, não consegue entender duas questões cruciais: mesmo sendo formada por “brancos e brancas” – e, portanto, euro-descendentes –, não somos europeus; por outro lado, essa elite não entende também que a arte e a cultura aqui produzidas não são – ou não deveriam ser – meras derivações do que foi produzido na Europa e, mais recentemente, nos Estados Unidos.

É por contribuir para o afastamento desta dimensão colonizada da sociedade que considero fundamental o lançamento de A virada decolonial na arte brasileira. O livro tem todas as condições para, pelo menos, diminuir uma lacuna significativa do debate local: se em diversas áreas das ciências humanas a questão decolonial nos últimos anos no Brasil já ganhou visibilidade incontornável, fazia falta entre nós uma publicação que enfrentasse essa questão no campo das artes visuais.

***

A virada decolonial reune uma série de artigos publicados por Alessandra Paiva durante os últimos anos e é justamente esta característica que, a meu ver, empresta-lhe uma vivacidade e uma urgência pouco vistas em trabalhos realizados por acadêmicos[7].

O fato de ser uma coletânea de artigos para a imprensa traria uma ou outra reflexão mais superficial da autora? Sim, sem dúvida. Dirigidos a um público diversificado e certamente com limites de espaço etc., percebe-se que a autora nem sempre pôde aprofundar um ou outro argumento. Mas isso não retira o interesse do livro.

A meu ver, este é o preço que A virada decolonial paga por distanciar-se dos paradigmas do “bem escrever” da academia, optando pelo enfrentamento. Alessandra Paiva se vale de um discurso rápido, ativista e engajado na apresentação e valoração das transformações que percebe na cena brasileira. Nos vários textos que compõem a publicação, o objetivo é proclamar e enaltecer a virada decolonial nas artes do país.

A autora discute sobretudo a produção de artistas afro-descendentes, originários e LGBTQIA+ – fato que, como será visto, determina a condição decolonial – confrontando-a com o racismo estrutural e com aquela subserviência à Europa (e aos Estados Unidos), percebida em Gonzaga Duque e Del Picchia, mas que poderia ser encontrada em muitos textos de alguns intelectuais hoje atuantes.

É notório também que Paiva – apesar da urgência presente em todos os seus textos – opera premissas que nunca abandona e que conferem ao livro um interesse ainda maior. Exemplo: ela nota na produção que estuda que esta estaria menos presa às velhas prerrogativas e aos pressupostos estéticos que durante séculos encabeçaram a produção de arte nos países ocidentais. Assim, Paiva acaba atentando para um fato curioso: grande parte dos artistas que são vistos por ela como responsáveis pela “virada decolonial” no Brasil, além (ou por causa) dessa postura, tende a colocar em segundo plano – e, em alguns casos, até mesmo superar – produções ligadas às modalidades artísticas tradicionais (desenho, pintura etc.), optando por soluções distantes desses preceitos estéticos tradicionais.

Agindo de tal forma, esses artistas, em sua maioria, dariam continuidade a uma produção artística que emergiu com força após o término da Segunda Grande Guerra. Os artistas decoloniais lembrados por Paiva em seu livro, deveriam ser percebidos como formadores de novas gerações que, imbuídas de preocupações com explícito cunho político e ideológico, começam a sobrepor àquela produção oponente aos velhos cânones modernos, outras possibilidades de significação

***

O protagonismo (talvez excessivo?) que Paiva concede ao circuito da arte não significa que a autora não reconheça que a “virada decolonial” tenha surgido da produção dos artistas[8]. No entanto, na prática, sua abordagem tenderá sempre a privilegiar os mecanismos institucionais que propiciaram ou que incentivaram o fenômeno:

Nos últimos anos, diversos acontecimentos têm confirmado o fenômeno da virada decolonial na arte brasileira: exposições com curadorias indígenas, como a Véxoa: nós sabemos, na Pinacoteca de São Paulo (2020), e a Moquém Surari: arte indígena contemporânea, no Museu de Arte Moderna de São Paulo (2021); o Pipa, principal prêmio da arte contemporânea, que vem contemplando majoritariamente artistas decoloniais; grandes projetos de intervenção urbana […], em São Paulo […] e […] em Belo Horizonte, com edições sequenciais contando com grande presença de artistas negros/as e indígenas; representação de artistas decoloniais por parte de importantes galerias; inúmeras publicações na imprensa especializada e livros; eventos em instituições de arte diversas, como museus e bienais […] [9]

***

Só após a caracterização dessa “insurgência de artistas e teóricos/as […]”[10] – é que a autora irá se deter na definição do termo “decolonial”.  De início, ela explicará o porquê do uso “decolonizar” ao invés de “descolonizar”.

O termo “decolonial” teria sido concebido no âmbito de um grupo de estudos chamado Modernidade/Colonialidade/Decolonialidade (MCD), e formado por intelectuais nascidos na América Latina ou aqui residentes, e que – a partir do final dos anos 1990 – discutirá as relações de poder entre os países europeus (e os Estados Unidos) e o restante do mundo.

Para os integrantes do MCD, a “colonialidade” seria “um sistema que sobreviveu ao colonialismo histórico, mantendo-se ainda na contemporaneidade como matriz das relações assimétricas de poder perpetuadas nos últimos séculos”. Ainda segundo Paiva, a teórica norte-americana atuante na América Latina, Catherine Walsh, explica que, retirar o “s” da palavra “descolonialismo” seria introduzir uma diferença ao “des” castelhano:

Assim, a terminologia estaria mais adequada às diretrizes do grupo, que tem como proposta não apenas desarmar ou desfazer o colonial, mas compreendê-lo e combatê-lo como um fenômeno ainda atual. A autora [Walsh] explica que os termos pós-colonial e descolonial também denunciam as assimetrias de poder resultantes do projeto de domínio e opressão colonialista, porém essas nomenclaturas estão mais ligadas às matrizes teóricas surgidas no contexto da luta pela descolonização do período pós-Guerra Fria e relacionadas aos estudos asiáticos e africanos (de autores como Frantz Fanon, Albert Memmi, Aimé Césaire, Edward Said, Stuart Hall e Ranajit Guha) […]

[…] Enfim, o grupo MCD definiu o termo decolonial como o mais pertinente para se analisar a colonização como um evento permanente, mesmo que com determinadas rupturas.[11]

Continuando seu raciocínio, Paiva refletirá sobre o pensamento decolonial no Brasil afirmando que, apesar “da publicação de inúmeros textos sobre o decolonialismo em diversas áreas, há ainda significativa carência de abordagens que articulam de forma profunda, essa ótica no campo das artes.”[12]

Para preencher essa lacuna – criando assim uma direção possível para os estudos decoloniais sobre a arte no Brasil –, Paiva atentará para dois ensaios de Walter D. Mignolo,  estudioso argentino radicado nos Estados Unidos, e membro do MCD[13]. Para a autora esses textos seriam fundamentais para os interessados em entenderem o decolonial nas artes:

Publicados com um intervalo de quase dez anos, eles se articulam entre si para tecer importantes considerações sobre as artes visuais e sua relação com o pensamento decolonialista, seja a partir da análise de obras de alguns artistas, seja apoiado na reflexão sobre as possibilidades de uma crítica de arte decolonial […] seus dois artigos fornecem a maior contribuição científica para uma possível teoria decolonial nas artes.[14]

Concordo com Paiva quando ela estabelece os dois ensaios de Mignolo como referências possíveis para se pensar a “virada decolonial”. E tendo a ir além: a meu ver, retomar esses estudos do pesquisador argentino possibilitará refletirmos sobre aquela questão levantada logo acima: Mignolo nos instrumentaliza para entender que – antes da chegada do decolonial na arte –, já havia, sim, uma produção artística desvinculada da estética moderna tradicional, o que reforçaria a ideia de que o decolonial na arte contemporânea seria mais uma camada a se depositar sobre o debate artístico do pós-guerra, uma camada com forte potencial político, mas ainda assim uma camada nova para um todo anterior.

***

O ponto que considero fulcral do primeiro ensaio de Mignolo – Aiesthesis decolonial – é a origem de aiesthesis, base do termo “estética” na cultura ocidental[15]. De origem grega, a palavra foi absorvida pelas línguas europeias significando, de início, “sensação”, “processo de percepção”, “sensação gustativa”, “sensação auditiva”[16]. No entanto, a partir do século 17, o conceito de aesthesis começa a se tornar mais restrito, passando a significar apenas a “sensação do belo”: “Nasce assim a estética como teoria e o conceito de arte como prática”[17].

Se aiesthesis é um fenômeno comum a todos os seres vivos – pois relaciona-se com o mundo a partir de todas as suas possibilidades cognitivas –, “estética” significaria uma teoria criada para pensar tão somente as sensações relacionadas à beleza. Ou seja: arbitrária e historicamente circunscrita, não existiria nenhuma lei universal que tornasse necessária a relação apenas entre aesthesis e beleza. Apesar disso, tal situação teria se fortalecido no contexto do século 18 na Europa, e depois se espalhado “naturalmente” pelo restante do planeta, tornando-se “universal”.

Segundo ainda Mignolo: “a mutação de aesthesis em estética assentou as bases para a construção de sua própria história, e para a desvalorização de toda experiência aesthesica que não tivesse sido conceituada nos termos em que a Europa conceitualizou sua própria e regional experiência sensorial”[18].

A partir da recuperação desse sentido primeiro da palavra aesthesis, Mignolo analisará os trabalhos de alguns artistas da cena norte-americana e europeia, cujas produções subvertem a noção de que a arte seria apenas uma demonstração, na prática, do que preconiza a teoria estética [19]; obras que não se conformariam aos preceitos estéticos da pintura ou da escultura, mas que – por meio da instalação de determinados objetos em espaços institucionais (museus históricos, de arte etc.) –, traziam outras possibilidades de interação com o público, levando-o a ampliar sua percepção cognitiva para além da “beleza”.

Um dado incontornável a ser sempre reforçado: seria a presença de temas raciais, étnicos e/ou de gênero acoplados a essas instalações, o que fundamentaria a prática artística decolonial, separando-a da produção modernista da primeira metade do século passado que, durante décadas, procurou banir o assunto da obra de arte, abrindo novos direcionamentos para a arte surgida após a Segunda Grande Guerra[20].

***

Se nesse primeiro ensaio Mignolo rompe com os postulados que ligavam a arte à estética, em Reconstitución epistémica/estética: la aesthesis decolonial una década después o argumento volta a ser tratado, agora de maneira mais aprofundada. Para tanto, o estudioso recupera o conceito de gnosis a partir do novo sentido que lhe conferiu o filósofo norte-americano nascido na República do Congo, V.Y. Mudimbe, que o utilizava para “nomear a práxis do pensar na África” – mais ampla e inclusiva, relacionando-se a toda e qualquer forma de conhecimento. Um tipo de saber que teria sido recalcado pelo pensamento europeu colonizador.

Mignolo distinguirá gnoseologia de epistemologia, afirmando que, se a primeira se refere ao conhecimento em geral, a segunda remeteria apenas ao conhecimento científico. Assim, em contraposição à estética (restritiva) teríamos a aesthesis, e em contraposição à epistemologia (também restritiva), teríamos a gnoseologia.

Após fazer referência à produção do artista guatemalteco Benvenuto Chavajay, o estudioso argentino resume seu pensamento: “pensar decolonialmente é um constante desprendimento (deslinking) da epistemologia moderno/colonial e um constante fazer gnoseológico/aesthesico”[21].

***

Essa síntese do pensamento de Mignolo é lacunar, sem dúvida, mas creio que ela estabelece uma base para que possamos acompanhar as demais reflexões de Alessandra S. Paiva em seu livro.

No texto em que a autora, a partir dos ensaios citados, debruça-se na constituição de uma visão decolonial das artes visuais no Brasil[22], além da enunciação e análise dos tópicos mais relevantes pensados pelo pesquisador argentino, explicita-se que o que Paiva mais admira nele é sua atitude como um estudioso e crítico atuante fora das amarras do pensamento europeu. A autora afirma: “Mignolo diz que seu próprio texto não é uma análise, mas um fazer decolonial; afinal, despregar-se da matriz colonial é começar pelo vocabulário”[23].

Esse “fazer decolonial”, esse “despregar-se” do passado colonial presente também no texto de Paiva é, de fato, o que lhe confere aquele caráter de urgência e engajamento já sublinhado. E é ele também quem leva a estudiosa a não se deter – ou a se deter pouco –, na produção que acaba por lhe servir apenas como cenário.

***

Reiterando o pensamento do estudioso argentino, Paiva explicará que:

[…] Nas últimas décadas, proliferaram, nas ciências sociais e nas humanidades, diversos estudos que produziram críticas às matrizes do pensamento eurocêntrico, como a própria antropologia da arte, que mostra como o belo e o feio são categorias relativas e mutantes, e que se moldam a cada contexto e tempo histórico[24]

E, além das teorias: “[…] a prática artística fornece as chaves para a sua compreensão. Afinal, uma das grandes tarefas dos artistas […] é o questionamento das próprias linguagens”[25]. Se tais transformações já ocorrem há décadas, o que a questão decolonial teria trazido para o debate? Sobre isso, Paiva irá no mesmo sentido de Mignolo:

É a partir do quesito racial e em sua articulação interseccional com outras questões, tais como gênero e etnia, que o pensamento decolonial passou a questionar mais diretamente os cânones da historiografia artística eurocêntrica, refletidos também na historiografia brasileira […]

[…] é importante enfatizar que a corrente decolonialista não propõe, nas artes, a simples destruição do passado, mas o reconhecimento da heterogeneidade cultural e da pluralidade das formas de expressão artística de origem não eurocêntrica […][26]

Mais uma vez a questão racial em suas articulações com outras demandas presentes na contemporaneidade é que se tornarão o marco de distinção entre a produção decolonial e seus “antecedentes”.

Como será impossível nesta resenha dar conta de todos os inúmeros e interessantes aspectos tratados por Paiva em seu livro, caminho para a finalização desses comentários atentando para as conexões possíveis entre a arte decolonial no Brasil e aquela produção que, por antecedê-la em termos cronológicos, pode ter servido como base para o trabalho de seus autores.

***

Se observarmos a cena brasileira a partir de 1960, será visto que uma série de artistas locais desenvolve produções em que os esquemas do modernismo tradicional e “internacionalizado” são superados. Artistas que rompem com a pintura, a escultura e outras modalidades tradicionais, em prol de um experimentalismo que busca um envolvimento mais totalizante e totalizador com público.

Os penetráveis de Hélio Oiticica, por exemplo, podem ser pensados como proposições ligadas a uma concepção mais aesthesica (nos moldes propostos por Mignolo) do que propriamente estética. Neles, o antigo espectador é levado a estabelecer uma relação de cunho totalizante com o ambiente, experimentando sensações ligadas não apenas ao interesse pelo belo. Nos penetráveis pode não haver nenhuma conotação política óbvia, mas é inegável o quanto sua proposta é revolucionária, na medida em que se coloca tão distante das premissas modernistas do início do século passado.

Embora explorem a dimensão sensorial do antigo espectador por meio de outros estímulos, também me parece inegável que a instalações como Desvio para o vermelho (1967/1984), de Cildo Meireles, assim como IN ABSENTIA MD, 1983, de Regina Silveira, provocam igualmente sensações aesthesicas no público. Mais recentemente, trabalhos como Doador (1999), de Elida Tessler e Parede Loos (2016/17) de Ana Maria Tavares também exploram uma relação não restrita apenas ao olhar e ao espaço, mas a uma experiência que se dá igualmente no tempo, envolvendo todos os sentidos do observador.

Por outro lado, é difícil não concordar que a dimensão política dessas obras também faz ressoar posicionamentos ideológicos claros que, se não podem ser acoplados diretamente à “virada decolonial”, assumem atitudes que discutem a suposta supremacia de arte ocidental entre nós: o trabalho citado de Regina Silveira, por exemplo, discute criticamente o excessivo “sombreamento” que a obra de Marcel Duchamp[27] exerce sobre a arte latino-americana. Por outro lado, é inegável a crítica ao racismo e ao proto-fascismo introjetado em determinados segmentos do modernismo europeu percebida em Parede Loos, Ana Maria Tavares.

Estou certo de que essas e outras proposições de artistas surgidos na cena brasileira antes dos anos 2000 formaram uma base para as instalações e intervenções que, nos últimos anos, fazem emergir a virada decolonial detectada por Alessandra Paiva. As propostas de Oiticica, Silveira e outros, como que “prepararam” a cena contemporânea brasileira para a chegada contundente de artistas como Denilson Baniwa, Glicéria Tupinambá, o Coletivo Coletores e tantos outros artistas ou grupos.

***

Acima atentei para o fato de que nessa virada decolonial, muitos artistas teriam optado pela produção de instalações e intervenções, em detrimento de obras mais convencionais. O que não significa, portanto, que alguns deles não teriam produzidos obras aparentemente mais tradicionais, mas, nem por isso, menos questionadoras do status quo. O know-how relativo às várias modalidades artísticas possibilitou que obras aparentemente convencionais trouxessem um alto grau de subversão de cânones estratificados, passível de ser percebida pelo observador mais atento.

Essas considerações poderiam ser exemplificadas por algumas obras de Rosana Paulino. Com uma sofisticada formação no campo da gráfica (mas não apenas) – a artista estudou com Regina Silveira, Evandro Carlos Jardim, Claudio Mubarac e Marco Buti – Paulino, sobretudo em suas peças bidimensionais, desconstrói os códigos mais caros ao neoconcretismo brasileiro, acoplando antigas imagens fotográficas de pessoas escravizadas às estruturas dos meta-esquemas de Oiticica.

Essa ironia em relação às projeções utópicas percebidas na estética concreta e neoconcreta, também pode ser detectada na obra Experiência concreta #1, de Jaime Lauriano, que ressignifica uma performance de Lygia Clark – Diálogos das mãos, 1966 – acoplando uma imagem fotográfica do trabalho da artista a outras que documentam a situação desvalida de jovens pretos, atormentados pelo racismo vigente no país.

Clark e a estética neoconcreta também é semantizada com as peças tridimensionais concebidas por Lyz Parayzo que se comportam como armas de defesa/ataque pra a comunidade LGBTQIA+, sempre acossada pela homofobia.

Não se trata aqui de relativizar o impacto que significou e significa entre nós a virada decolonial na arte, associando-a ao passado recente da arte brasileira. Trata-se, isso sim, de chamar a atenção para a potência da arte contemporânea brasileira surgida a partir dos anos 1960 que não pode, não deve e que não é ignorada por muitos dos mais destacados artistas decoloniais.

A meu ver, não é gratuito que Paulino, Lauriano e Parayzo, por exemplo – todos ligados ao discurso decolonial – dirijam seus interesses na desconstrução, justamente, do concretismo e do neoconcretismo. Essas vertentes modernistas da arte local que receberam (e continuam recebendo) os créditos como supostamente as principais vertentes da arte contemporânea brasileira – assim como outras vertentes artísticas aqui introduzidas – possuem uma relação problemática com a realidade social e política do Brasil, podendo e devendo ser criticadas. Não é à toa que, a meu ver, é justamente a partir dessa crítica ao (melhor) passado da arte contemporânea, que se localizou até o presente, uma das partes  mais significativas da produção decolonial brasileira[28] .

***

Finalizada a leitura de A virada decolonial, e tendo estabelecido aqui essas longas considerações, de Gonzaga Duque às produções de Lyz Parayzo e outros, gosto de pensar o seguinte:

Passados quatro anos de obscurantismo cotidiano, creio que tenha chegado finalmente o momento em que essas novas gerações de artistas e críticos poderão continuar dando vazão às suas poéticas, agora em um ambiente mais propício e acolhedor. Não que essa produção deva parar de apelar para o dissenso e mesmo para o confronto. Mas que o façam a partir de um desejável conhecimento do que foi feito antes e, sobretudo, de como foi feito. Afinal, mesmo com demandas políticas e sociais, quando nos referimos à arte decolonial, antes de qualquer coisa, estamos falando de arte. E nada irá retirar, dessa área tão abrangente do conhecimento, a peculiaridade de seu discurso.

Que a virada continue.

[1] – PAIVA, Alessandra Simões. A virada decolonial na arte brasileira. Bauru, SP: Editora Mireveja Ltda, 2022. Publicação lançada com o apoio da Universidade Federal do Sul da Bahia, onde Alessandra Paiva é docente.

[2] – Que, como será visto a seguir, teria ocorrido a partir da segunda metade dos anos 1990.

[3] – GONZAGA DUQUE, Luiz. Mocidade morta. Rio de Janeiro, Oficinas da Livraria Moderna, 1899, pp.41-42. Com o tempo, o crítico oscilará sobre o que pensava a respeito de uma arte nacional para o Brasil[3]. Porém, sobre a superioridade inconteste e sobre o papel matricial que a arte e cultura europeias exerciam na cena brasileira – em detrimento das outras culturas para aqui trazidas ou que aqui se processavam – nada jamais mudou.

[4] – Washington Luís, entre outros cargos políticos no estado de São Paulo, foi prefeito da capital (1914-1919), governador do estado (1920-1924) e presidente do país (1926-1930).

[5] – Menotti Del Picchia. “Ideias orgânicas de um discurso”. Correio paulistano. São Paulo, 6 de abril de 1924, p. 3.

[6] – O primeiro é um romance, o segundo, um artigo de jornal. Entre ambos, um espaço de tempo de quase 25 anos.

[7] – No livro não existem indicações sobre os locais e as datas em que os artigos foram publicados pela primeira vez.

[8] – Logo no início da apresentação do livro, Alessandra Paiva escreve: “Uma verdadeira revolução está em curso nas artes brasileiras. Trata-se da virada decolonial, fenômeno marcado pelo crescimento exponencial de poéticas que expressam questões como raça, etnia, classe, gênero e geopolítica articuladas de forma interseccional”. PAIVA, Alessandra S. op. cit. p.15.

[9] – PAIVA, Alessandra, Idem, p. 23. Seria o caso de nos perguntarmos aqui se foi a oferta de obras decoloniais que gerou esse interesse das instituições brasileiras ou o contrário. Mas não é objetivo deste texto adentrar nesta seara. Ficará para uma outra oportunidade.

[10] – PAIVA, Alessandra, Idem, p. 25.

[11] – PAIVA, Alessandra S. op. cit. p. 27.

[12] – PAIVA, Alessandra S. op. cit. p. 29.

[13] – Respectivamente os textos “Aiesthesis decolonial” (Calle 14. Revista de Investigación em el Campo del Arte, 2010). https://www.academia.edu/13524090/Aesthesis_decolonial e “Reconstitución epistémica/estética: la aeshesis decolonial uma década Después” (Calle 14. Revista de Investigación em el Campo del Arte, 2019) https://revistas.udistrital.edu.co/index.php/c14/article/view/14132

[14] – PAIVA, Alessandra S. Idem.

[15] – Atento para o fato de que em seu primeiro ensaio, o pesquisador grafará aiesthesis para se referir ao termo que dá origem à palavra “estética”. No segundo trabalho, Mignolo se valerá da grafia aesthesis. Esta resenha respeitará a atitude de Mignolo, grafando aiesthesis ou aesthesis conforme a escolha do autor.

[16] – Daqui viria o termo “sinestesia”, tão usado por vários artistas modernos.

[17] – MIGNOLO, Walter. “Aesthesis decolonial”, op. cit. p. 14.

[18] – Idem, p. 14.

[19] – O artista negro norte-americano Fred Wilson; Pedro Lasch, nascido no México e ativo nos Estados Unidos, e Tanja Ostojic, artista nascida na ex-Iugoslávia, residente na Alemanha.

[20] – Wilson apresenta instalações que discutem o passado escravocrata norte-americano; Lasch, o confronto entre a cultura imperialista espanhola e as culturas pré-colombianas; Ostojic discute a migração forçada de mulheres do leste europeu para países da Comunidade Europeia.

[21] – MIGNOLO, Walter. “Reconstitución epistémica/ estética…”. op. cit. p.20.

[22] – PAIVA, Alessandra S. “A visão decolonial nas artes a partir de dois artigos antológicos de Walter Mignolo” IN PAIVA, Alessandra S. A virada decolonialop. cit. p. 153 e segs.

[23] – Idem, p. 164.

[24] – PAIVA, Alessandra S. “A Virada decolonial na arte Brasileira”. IN PAIVA, Alessandra S. A virada… op. cit. págs. 35-36.

[25] – Idem. P. 36.

[26] – Idem, págs. 36-37.

[27] – E, portanto, toda a arte moderna, mesmo aquela mais “conceitual”.

[28] – Sobre o assunto, consultar um texto desta coluna, publicada em 02 de outubro de 2019, “Concreto, neoconcreto: a semantização continua”. https://artebrasileiros.com.br/opiniao/concreto-neoconcreto-a-semantizacao-continua/

 

Em ‘Carimbos’, IAC revela processo criativo de Carmela Gross para mostra realizada em 1978

Carimbo para o convite da exposição "Carmela Gross: Carimbos", Gabinete de Artes Gráficas, São Paulo, 1978
Carimbo para o convite da exposição “Carmela Gross: Carimbos”,
Gabinete de Artes Gráficas, São Paulo, 1978

O Instituto de Arte Contemporânea (IAC) apresenta a partir deste sábado (4/2) a exposição Carimbos, em que retoma 12 dos 80 trabalhos apresentados por Carmela Gross em mostra homônima, realizada em 1978, no Gabinete de Artes Gráficas, em São Paulo. Feitos de repetidas carimbadas sobre papel, as obras estão agora acompanhadas de uma farta documentação – mais de 300 itens – que revela o processo criativo da artista, que fizera sua primeira experimentação com carimbo em 1968, no IV Salão de Arte Moderna do Distrito Federal, em Brasília, com um trabalho que formava o desenho de um murro sobre a mesa.

“Cada carimbo, com sua marca, repete-se muitas vezes numa mesma prancha, de 70cm x 1m, formando um padrão. Eu carimbava uma coisa ao lado da outra, até formar este campo de imagens repetidas”, conta Carmela, a respeito da exposição de 1978. “É um grande arquivo que estou doando ao IAC, e a instituição quis mostrar o processo, com começo, meio e fim”.

 

O conjunto (obras e documentos), diz a artista, revela todos os experimentos feitos à época, “que resultaram na produção dos carimbos de borracha, a matriz para pensar os trabalhos”. Segundo Carmela, a mostra é uma “arqueologia” do projeto original, que apresenta “como foi ele foi pensado e feito, com todos os passos da produção”.

Ricardo Resende assina a curadoria, firmemente lastreada pela documentação sistematizada que a artista faz de sua própria produção, algo que também se pode ver em seu site. “Trabalho intensamente nos meus arquivos”, diz Carmela, “então essa organização foi feita ao longo de anos e anos. É algo que não daria para se fazer em um ou mesmo seis meses. Muitos dos carimbos precisaram ser restaurados, o que aconteceu em 2015. Os documentos, por sua vez, estavam já organizados em pastas. Todo o material que se vê agora no IAC tem uma certa organização, minha, pessoal, que agora se torna visível”.

Para Resende, “em termos de arquivo e também de montagem”, a curadoria estava pronta. “A Carmela é a curadora de fato, por sua sistematização desse arco de produção, da ideia à conclusão, vista originalmente em 1978”, afirma. “A exposição do IAC é eminentemente museológica e traz à tona a característica processual da obra original. E a obra da Carmela é o pensamento, é reflexão, é ideia. É desenvolvimento de ideia. Portanto, processual”.

Entre os documentos presentes está um texto do historiador da arte Flávio Motta – o original e sua transcrição –, além de matérias jornalísticas que saíram à época, com títulos que se referem ao gestual da artista: “Tudo isso num soco”, “Os complicados rabiscos de Carmela” e “O traço sob uma visão radical”, entre outros. Para Resende, os títulos “certamente descrevem e definem o que ela fez” à época.

Carmela destaca a expografia que criou para a mostra, em parte organizada em três paredes forradas com folhas de zinco galvanizado, onde ela prendeu cada documento por meio de um imã. “As duas salas que foram oferecidas são de tamanho regular, e os documentos que seriam colocados lá, muitos deles são pequenos, com apenas 3cm x 5cm. O material era muito heterogêneo”, conta. “Para conseguir que isso virasse uma leitura de um conjunto, que mostrasse essa arqueologia, com as folhas de zinco, pude colocar itens de qualquer tamanho, sem qualquer anteparo, sem moldura ou vidro”.

As últimas exposições de Carmela Gross aconteceram em 2021, com obras inéditas na Galeria Vermelho (Fendas, fagulhas) e sua participação na 34ª Bienal de São Paulo, em que mostrou o painel Boca do inferno, composto de 160 monotipias. No momento, a artista trabalha em novos projetos, que serão apresentados em 2024, em espaços institucionais. Carmela ressalta que suas criações “são fechadas em ciclos” e que seria difícil fazer uma “conexão por semelhança ou continuidade” entre Carimbos e as obras mais recentes, por exemplo.

“Esse longo ciclo dos carimbos forma um conjunto exposto em 1978, e pronto. É conceitual, que vem do desenho, e em seguida fiz outras coisas, como o Projeto para a Construção de um Céu, que foi minha tese de mestrado [na ECA, em 1981, sob orientação do crítico de arte e curador Walter Zanini], e apresentado na Bienal de São Paulo naquele mesmo ano”.

Para a artista, as eventuais “semelhanças se dão muito mais nos bastidores, pelo conceito que está embutido neles, do que pela visualidade”, diz. “O contexto é diferente, a armação do pensamento é diferente e se liga a uma preocupação conceitual, com o desenho, com a cidade”. Segundo Ricardo Resende, a produção de Carmela Gross é marcada por uma “ação construtiva que atravessa toda a obra dela, assim como um pensamento gráfico”.

Para a exposição que o IAC abre neste sábado, Resende chegou a perguntar a Carmela se ela não poderia refazer algumas das pranchas, “repetir as carimbadas”, a partir dos carimbos restaurados. “A resposta foi muita bonita: ela disse que não poderia, porque a sua força daquela época não é a mesma hoje”, conclui.

SERVIÇO

Carmela Gross: Carimbos
Abertura: 4/2, às 12h; visitação: de 6/2 a 6/5
Curadoria: Ricardo Resende
Instituto de Arte Contemporânea (IAC) – Av. Dr. Arnaldo, 120/126, São Paulo (SP)
Horários: terça a sexta-feira, das 11h às 17h; sábado; das 11h às 16h
Entrada gratuita

 

Fundação Cartier pour l’art contemporain e The Shed apresentam exposição “The Yanomami Struggle”

Claudia Andujar, Catrimani Region, 1972-76, mineral pigment print (from infrared film). Artwork © Claudia Andujar. Collection of the artist.

Harvé Chandès, diretor geral da Fundação Cartier pour l’art contemporain e Alex Poots, Diretor artístico do The Shed, estão honrados em anunciar a estreia estadunidense da exposição The Yanomami Struggle, dedicada à colaboração e à amizade entre a ativista Claudia Andujar e o povo Yanomami, um dos maiores grupos indígenas que vivem na Amazônia hoje. Em exibição do dia 3 de fevereiro a 16 de abril de 2023, no The Shed, em Nova Iorque, a mostra tem curadoria de Thyago Nogueira, Diretor de Fotografia Contemporânea do Instituto Moreira Salles (IMS), com a orientação do pajé e líder Yanomami Davi Kopenawa. O evento é organizado pela IMS, Fundação Cartier e The Shed, em parceria com as ONGs brasileiras Hutukara Associação Yanomami e o Instituto Socioambiental.

Após aclamadas apresentações no IMS (São Paulo), na Fundação Cartier (Paris) e no Barbican Centre (Londres), entre outros espaços, a exposição será ampliada no The Shed visando incluir mais de 80 desenhos e pinturas produzidas pelos artistas Yanomami André Taniki, Ehuana Yaira, Joseca Mokahesi, Orlando Nakɨ uxima, Poraco Hɨko, Sheroanawe Hakihiiwe e Vital Warasi, como também o xamã Davi Kopenawa. Os visitantes também encontrarão novos trabalhos em vídeo de artistas contemporâneos, como os cineastas Yanomami Aida Harika, Edmar Tokorino, Morzaniel Ɨramari e Roseane Yariana. Essas obras serão expostas ao lado de mais de 200 fotografias da Claudia Andujar, que traçam os encontros da artista com os Yanomami e aumentam a visibilidade da luta dos povos indígenas para proteger sua terra, população e cultura. O diálogo estabelecido entre os novos artistas Yanomami e o trabalho fotográfico de Andujar oferece uma visão inédita da sociedade, cultura e artes visuais dos Yanomami. Essas obras serão exibidas em Nova Iorque pela primeira vez, oferecendo a mais extensa apresentação da arte Yanomami nos Estados Unidos até hoje.

“Acredito que o mais importante é a chance de apresentar às pessoas outro aspecto do nosso mundo. Ao mesmo tempo, esse outro aspecto do nosso mundo permite que nos reconheçamos em outros seres humanos, que merecem viver suas vidas como desejam, seguindo sua própria compreensão de mundo”.
– Cláudia Andujar

Cláudia Andujar nasceu na Suíça em 1931 e foi criada na Transilvânia antes de imigrar para a cidade de Nova Iorque em 1946 depois de escapar do Holocausto. Ela se mudou para o Brasil em 1955, quando começou sua carreira como fotógrafa. Há mais de cinco décadas, Andujar vem colaborando com os povos Yanomamis em defesa de seus direitos e soberania. “The Yanomami Struggle” conta a história da relação de Andujar com o povo Yanomami durante a Ditadura Militar no Brasil (1964 – 1985), desde o seu primeiro encontro em 1971 até a transformação de sua prática artística em ativismo sete anos depois, quando ela e outros ativistas criaram a Comissão de Demarcação do Parque Yanomami. Pela voz e orientação do xamã e líder Davi Kopenawa, a exposição também narra a origem dos Yanomami e mapeia sua cosmovisão, política e sociedade. A amizade de Davi com Andujar desde a década de 80 é fundamental para sua relação com os Yanomami. Ao lado de diversos ativistas e organizações, eles trabalharam com as comunidades Yanomami contra invasões à suas terras, luta que resultou na proteção do território Yanomami pelo governo brasileiro em 1992. A proteção das terras foi seguida por importantes programas de saúde e educação, além da criação de diferentes Associações Yanomami. Apesar desse progresso, o ativismo retratado na exposição não é relegado ao passado. A invasão do território por garimpeiros continua e ameaça não só os Yanomami como também a floresta Amazônica. Desde de 2000 uma nova geração de artistas Yanomami vem produzindo e expondo seus trabalhos fora do território, estabelecendo uma nova perspectiva que está agora incorporada na exibição. Essas diversas visões da história também incluem a contribuição de diversos outros indivíduos e organizações, incluindo a Associação Yanomami Hutukara, Instituto Socioambiental e o antropólogo Bruce Albert (consultor da Fundação Cartier e coautor de “The Falling Sky”).

“Aqueles que não conhecem os Yanomami vão conhece-los através das imagens. Meu povo está sendo retratado. Você nunca os visitou, mas eles estão presentes. É importante para mim e para você, para seus filhos e filhas, adolescentes, crianças, aprender a enxergar e respeitar meu povo Yanomami que viveu nessa terra por tantos anos”.
– Davi Kopenawa, xamã e líder Yanomami

“Em um momento em que a Amazônia é novamente ameaçada pelo desenvolvimento desenfreado do desmatamento e do garimpo, essa exibição apresenta uma narrativa multifacetada de violência e resistência. Além de usar a arte como uma plataforma para ampliar a voz do povo Yanomami e expor nossa responsabilidade na crise humanitária e ambiental que ameaça a vida dos povos originários ao redor do mundo”.
– Thyago Nogueira, curador

SERVIÇO

The Yanomami Struggle
Curadoria de Thyago Nogueira e orientação de Davi Kopenawa
Até 16 de abril
The Shed: 545 West Street, Nova Iorque – EUA
Visitação: quarta, quinta, sábado e domingo, das 11h às 18h; sexta, das 11h às 20h.

SOBRE A FUNDAÇÃO CARTIER POUR L’ART CONTEMPORAIN
A Fundação Cartier por l’art contemporain é uma instituição cultural privada cuja missão é promover todos os campos da criação artística contemporânea ao público internacional por meio de um programa de exposições temporárias, performances ao vivo e conversas. Criada em 1984 pela Maison Cartier, a instituição está sediada em Paris em um prédio projetado pelo arquiteto Jean Nouvel. O programa artístico singular da Fundação Cartier explora uma ampla gama de campos criativos desde as artes visuais e cênicas até arquitetura, design, moda, filosofia e ciências. Por quase quatro décadas a Fundação Cartier vem sendo um instrumento fundamental para revelar o talento de grandes artistas contemporâneos além de estabelecer seus espaços museológicos como uma plataforma onde cientistas e artistas podem se encontrar e criar novos projetos que abordam questões do mundo atual. Sua coleção é composta por cerca de 2.000 obras provenientes de um rico programa multidisciplinar, que comprova a relação com mais de 500 artistas ao redor do mundo. Como parte da sua observação contínua da relação entre os seres humanos e a natureza, a Fundação Cartier produziu projetos coletivos (como exibições, publicações e palestras públicas) que abordam questões ambientais contemporâneas, como mudanças climáticas, biodiversidade, desmatamento e a multiplicidade das línguas e culturas indígenas. A Fundação Cartier viaja pelo mundo, em parceria com grandes instituições de arte, engajando novos públicos a descobrir o trabalho de artistas contemporâneos e serem desafiados por uma nova perspectiva.

SOBRE O THE SHED
The Shed é uma nova instituição cultural do e para o século 21, produzindo e recebendo inovações do universo da arte através de toda e qualquer forma criativa afim de construir e compartilhar um entendimento sobre as rápidas mudanças do mundo e de uma sociedade mais igualitária. Em seu edifício localizado no lado Oeste de Manhattan, The Shed reúne artistas consagrados e emergentes para criar novos trabalhos em áreas que vão do pop à música clássica, da pintura à mídia digital, do teatro à literatura e da escultura à dança. The Shed busca oportunidades para colaborar com colegas culturais e organizações comunitárias, trabalhar com parceiros e fornecer espaços exclusivos para eventos privados. A instituição foi desenvolvida para quebrar tradições que separam arte do público. Ao minimizar as barreiras causadas pelos problemas sociais e econômicos, o espaço oferece um ambiente acolhedor para a inovação e dialogo. Usufruindo da tecnologia, The Shed trabalha com pensadores e parceiros criativos para criar experiências digitais transformadoras no online. Usando sua infraestrutura e capacidade operacional, The Shed é capaz de produzir performances, exposições, eventos e reuniões de qualquer tipo, em locais amplos de multiuso. Impulsionado por sua crença de que o acesso à nova arte é um direito, não um privilégio, The Shed apresenta experiências profundas, capaz de criar laços entre seus artistas e audiência. Como uma organização independente sem fins lucrativos que valoriza a inovação, a equidade e a generosidade, o The Shed está comprometido com o avanço da arte, abordando as questões contemporâneas urgentes e tornando seu trabalho impactante, sustentável e relevante para a comunidade local, o setor cultural, a cidade de Nova York e muito mais.

SOBRE O INSTITUTO MOREIRA SALLES
O Instituto Moreira Salles (IMS) é uma instituição artística brasileira sem fins lucrativos com sede em São Paulo, Rio de Janeiro e Poços de Caldas. O IMS foi fundado em 1992 e possui importantes acervos em artes visuais, fotografia, música, literatura, gravuras e desenhos. É reconhecido por suas exposições, destacando artistas e temas do Brasil e do exterior. O IMS também publica catálogos de exposições e livros sobre fotografia, literatura e música, além das revistas impressas ‘ZUM’, dedicado à fotografia contemporânea no Brasil e no mundo, e ‘Serrote’, publicação trimestral voltada para ensaios e ideias. A exposição Claudia Andujar e a Luta Yanomami foi originalmente organizada no Brasil em 2018 pelo IMS em parceria com a Associação Hutukara Yanomami e o Instituto Socioambiental, antes de sua apresentação na Fundação Cartier, Trienal Milano (Itália), Fundación Mapfre (Espanha), Barbican Centre (Reino Unido) e Fotomuseum Winterthur (Suíça). Em 2014, o IMS também organizou uma retrospectiva dos primeiros trabalhos de Claudia Andujar que recebeu o nome ‘No Lugar do Outro’. A luta Yanomami faz parte do compromisso de longo prazo do IMS em promover os artistas mais importantes do Brasil, bem como a arte contemporânea indígena. The Shed será sua única parada na América do Norte antes de embarcar em uma turnê latino-americana em 2023.

SOBRE A ONG ASSOCIAÇÃO HUTUKARA YANOMAMI
A ONG Associação Hutuka Yanomami é uma associação indígena fundada em 2004 para representar os Yanomami e povos Ye’kwana do Brasil. É presidido por Davi Kopenawa, que há quase 20 anos luta pela proteção da Terra Indígena Yanomami e dos direitos de seus habitantes. Dário Kopenawa atua como vice-presidente.

SOBRE ONG INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL (ISA)
A ONG Instituto Socioambiental foi fundada em 1994 e atua na defesa dos direitos dos povos da floresta, apoiando e fortalecendo seus projetos de participação política, cultura, conhecimento tradicional e geração de renda. Desde 2009, incorpora o legado e as atividades da Comissão de Demarcação do Parque Yanomami (CCPY).

 

Manuel Querino. Porque Salvador não é Florença

Na edição de abril de 1917 da Revista do Brasil, Monteiro Lobato inicia a resenha do livro Artistas Baianos, de autoria daquele que até hoje é considerado o primeiro historiador da arte brasileiro afro-descente, Manuel Querino:

Está aqui um livro precioso e honesto. Editado na Bahia em 1911 só chega agora em São Paulo. Gastou na viagem cinco anos apenas [na verdade, seis]. Foi feliz o autor. Outros há, igualmente valiosos, dados à luz no Norte e no extremo Sul, que ainda não chegaram, e não chegarão nunca, talvez. No entanto as nossas livrarias andam pejadas de novidades beligerantes francesas, dadas a prelo este ano […]. Isto mostra que a França está muito mais perto do Brasil que o próprio Brasil[1].

Quando li este parágrafo, conclui que, de 1917 para cá, pouco mudou no circuito editorial de Brasil. Se aquela edição de Querino demorou seis anos para chegar às mãos de Lobato, passaram-se cinco até que a nova edição de Artistas Baianos chegasse às minhas!

Em 2018, a Comissão de Cultura da Câmara Municipal de Salvador lançou, em edição facsimilar, os livros Artistas Baianos (indicações biográficas), (1911), e As artes na Bahia (1913)[2], de Manuel Querino, intelectual com formação também na área artística. Essa atitude tão meritória da Comissão na certa respondeu àqueles jovens pesquisadores que, nutrindo um renovado interesse pela obra daquele autor, demandavam edições mais recentes daqueles dois clássicos da historiografia da arte baiana e brasileira.

Manuel Querino, falecido em Salvador, em 1923[3], tem tido sua vida e sua obra reavaliadas pelas novas gerações de historiadores, transformando-o no ícone do intelectual negro brasileiro que, tendo nascido livre em um Brasil ainda escravocrata, conseguiu marcar sua presença na cena política e intelectual da Bahia durante os primeiros anos do século XX.

A origem afro-brasileira de Querino chamou a atenção de Monteiro Lobato:

Manuel Querino é membro do Instituto Histórico da Bahia, e é preto, como no-lo revela o seu retrato. Isso só lhe acrescenta valor. Ser preto é ser humilde, partir do nada, encontrar na vida todos os óbices do preconceito social e dispender para obtenção das coisas mínimas um esforço duplo do que requerido pelos que nascem limpos de pigmentos[4]

Em que pese o preconceito presente na frase, nela fica atestada a atenção de Lobato quanto à origem de Querino. Por outro lado, ele reconhece seu esforço em escrever as “indicações biográficas” dos artistas baianos – um trabalho de muitas dificuldades:

[…] Honra lhe seja pela árdua tarefa levada a cabo com tanta modéstia e discernimento. [Querino} não é e nem faz obra de crítico, amontoa simplesmente material que os taines maiores e menores da terra impem de sábios à custa de esforço alheio. Subintitula o seu livro de Indicações biográficas – e reúne tudo quanto em anos de labor conseguiu colher relativo aos escultores, pintores e músicos baianos. Na escultura biografa vinte e sete artistas, alguns escultores, a maioria simples santeiros[5].

***

A estudiosa Maria das Graças de Andrade Leal, na introdução da edição de 2018 de Artistas Baianos, escreve sobre a produção intelectual de Querino:

A sua obra […] está distribuída em duas fases que se complementam. Na primeira, elaborada entre 1903 e 1916, […] produziu ensaios, artigos, crônicas, publicadas em periódicos e livros, que retratavam, criticamente, a situação das artes e dos artistas, dos trabalhadores manuais […]. E, na segunda, entre 1916-1923, dedicou-se a estudar e narrar costumes populares e o protagonismo africano e de descendentes na construção da identidade brasileira[6]

Por essas considerações, frustra-se quem se lançar à leitura dos dois livros republicados pela Câmara Municipal de Salvador, esperando neles encontrar um intelectual negro, engajado na causa afro-brasileira, interessado em descobrir, na produção artística baiana do período colonial até o início da República, índices precisos de uma ancestralidade negra.

Esta questão está ausente nos dois livros de Querino.

Produzidos durante a primeira fase de sua obra, os dois livros trafegam pelos esquemas tradicionalmente estabelecidos pela história da arte europeia.  E é justamente nesta característica que reside o interesse sobre eles. Para que se entenda a complexidade que é estudar a realidade artística de Salvador até o início da República, dentro dos parâmetros da história da arte tradicional, é importante estar atento como Querino tentou adaptar os pressupostos daquela narrativa para a realidade de Salvador, marcada por uma complexa intersecção entre os interesses do sistema das corporações profissionais de herança medieval, o estatuto de artista autônomo (introduzido pelo advento das academias de arte) e a realidade escravagista.

O objetivo deste texto é iniciar uma reflexão sobre como Querino tentou adaptar os pressupostos da metodologia da história da arte fundada na Europa, para pensar sobre a situação da arte em Salvador.

***

Foi a evidente ligação de Querino com a história da arte europeia que permitiu a alguns estudiosos associá-lo àquele que, faz séculos, é considerado o primeiro historiador da arte europeu: Giorgio Vasari – artista e intelectual ativo no norte da Itália, a Toscana, entre 1511 e 1574[7].

A conexão entre Querino e Vasari foi mencionada pelo estudioso Luiz Alberto R. Freire no prefácio que escreveu para a versão de 2018 de As artes na Bahia:

Não sabemos se Querino conheceu a obra As vidas[…], do pintor de Arezzo, Giorgio Vasari, publicada em Florença, em 1550 […] ou mesmo de um de seus êmulos, que deram prosseguimento ao modelo de história da arte nas várias nações europeias. O certo é que Querino, com as publicações de Artistas Baianos e As artes na Bahia, militou efetivamente contra a cultura do esquecimento, tão presente na Bahia e registrou informações que podem coligir dos artistas que atuaram na Bahia do século XVIII ao início do século XX.[8]

Visto, portanto, como um intelectual que pensou a arte em Salvador, Querino teria cumprido naquela cidade o que Vasari cumpriu em Florença alguns séculos antes. Para Freire, Querino ter lido diretamente ou não a obra de Vasari não lhe pareceria mais importante do que o fato dele, como Vasari, ter compilado uma série de dados biográficos sobre os artistas de sua região.

***

A pesquisadora Eliane Nunes também estabeleceu comparações entre Vasari e Querino:

O capítulo dedicado a Vasari do livro História da História da arte (1989), de Germain Bazin, recebe o sugestivo título de “O pai fundador”. Com efeito, nenhuma outra epígrafe é tão exata para qualificar este que é considerado o criador da história da arte. O desejo de Vasari, expresso na sua autobiografia, era o de exaltar os grandes artistas e neste pode-se encontrar a primeira semelhança com nosso Manuel Querino. Tal qual Vasari […], realizando a memória dos artistas, era a sua categoria a que estava valorando, pois [Querino] também era artista e, tal qual Vasari, insere sua própria biografia na obra que executa. Mas se Vasari precisou de 20 anos e uma segunda edição de seu livro […] para inserir sua própria biografia entre a dos artistas considerados por si excelentes, Manuel Querino se inscreve entre os biografados já na primeira edição de Artistas baianos (1909, pág. 116-117)[9]

Após salientar a vaidade e o orgulho – sentimentos que uniam os dois intelectuais e artistas –, Eliane Nunes se refere à primeira de suas diferenças:

Vasari estabelece um juízo de valor com base em categorias “estéticas”, enquanto Querino, imbuído de um espírito mais enciclopédico, busca inventariar o maior número dos profissionais que atuaram no espaço de Salvador desenvolvendo atividades ligadas ao fazer “artístico”, considerasse eles competentes ou não em seus ofícios. Outra distinção nesta seleção é que Vasari trata do que considera “arte menores” apenas “[…] indiretamente, falando da medalha, dos entalhos e dos camafeus a propósito da arquitetura e da pintura, da douradura, da marchetaria e do vitral na seção da pintura”. (Bazin, 1989, p. 30). Para ele, as artes consideradas menores eram mecânicas, e, portanto, servis, não merecendo figurarem ao lado do que considerava as artes maiores: arquitetura, escultura e pintura. Querino segue a distinção entre artes maiores (liberais) e menores (mecânicas), mas não se furta em abordar amplamente os representantes da última […][10]

***

Nunes, quando usou a expressão “um espírito mais enciclopédico” estava se referindo ao fato de que Querino produziu arrolamentos de nomes de artistas e artífices – com pequenos dados biográficos acoplados a cada um –, como se fossem itens de uma enciclopédia. Vasari, em sua Vidas, pelo contrário, não se limitou a produzir breves narrativas sobre cada artista que tratou, pelo contrário.  Ao descrever a arte surgida no norte da Itália a partir do século XIII, ele produziu biografias sequenciais dos artistas nascidos naquela parte do país europeu e, como será visto, tal sequência de biografias formava uma linhagem que ia dos artistas “primitivos” de Florença e arredores, até o mais significativo deles, Michelangelo.

Por outro lado, as obras desses artistas auxiliavam Vasari a reforçar e desenvolver elementos estéticos de seu tempo. Isto não ocorrerá com o trabalho de Querino. Ou pelo menos, não na mesma medida.

***

Em outra distinção entre Querino e Vasari, feita por Nunes, começa a se delinear o primeiro índice de que Querino se viu obrigado a fazer algumas alterações nos pressupostos que Vasari elegeu para pensar a narrativa que escreveria sobre a arte do norte da Itália. Refiro-me ao trecho em que a pesquisadora recorda que o italiano respeitava a distinção entre artes mecânicas (“menores”) e liberais (“maiores”), diferenças que Querino também conhecia, mas não fazia questão de seguir. Por que isto teria ocorrido?

É justamente essa aparente não disposição do intelectual baiano em abraçar os preceitos que balizam a tradição da arte europeia – dividida em artes “mecânicas” e “liberais” – o cerne de minha preocupação aqui.

Antes de iniciar essa discussão, seria oportuno, no entanto, voltar à definição de Vasari como o “pai” da história da arte e como um artista e intelectual obediente a critérios estéticos definidos.

***

O estudioso britânico George Bull, um dos tradutores do livro de Vasari para o inglês, esclarece que, tanto el quanto outros intelectuais, seus contemporâneos em Florença, acreditavam que a história do desenvolvimento de qualquer atividade humana – a arte, por exemplo – possuía um arco de desenvolvimento que iria do início até a decadência, passando pelo progresso e desenvolvimento:

A aceitação do esquema de ascensão e declínio nas atividades humanas e a ideia de que o renascer ou o renascimento das belas artes teve lugar na Toscana era moeda corrente no mundo intelectual no tempo de Vasari. No entanto, para a ideia de renascimento das artes, Vasari concebeu um aspecto cativante: os sinais de renascimento foram primeiro percebidos em um ou outro edifício, em um ou outro trabalho de escultura; os homens que há mais ou menos duzentos anos primeiro se distanciaram da arte degenerada do período pós-clássico foram Cimabue e Giotto, figuras ainda envoltas em lendas, mas cujos trabalhos ainda podiam ser vistos e cuja influência poderia ser traçada em sucessivas gerações. Num segundo momento floresceram as figuras de carne e osso de Ghiberti, Brunelleschi e Donatello; no terceiro, quando as artes teriam chegado “aos píncaros da perfeição”, trabalharam homens ainda presentes na memória recente das pessoas ou artistas ainda vivos, Leonardo [no primeiro caso] e Raphael e Michelangelo [no segundo].[11]

Além de constituir essa narrativa sobre a história da arte da Toscana, indo de Cimabue a Michelangelo, outros dados que teriam levado Vasari a ocupar o lugar de “pai” da história da arte ocidental[12], foram os pressupostos estéticos que ele usou para embasar suas considerações sobre as qualidades dos artistas por ele biografados, qualidades essas que os retiravam da vala comum dos artesãos. É ainda George Bull quem traz algumas informações sobre este fato:

As teorias relativas à natureza da arte e de sua história expressas em Vidas também são derivativas. O propósito de Vasari era fundir num único trabalho de mérito literário todo o conhecimento que existia sobre os artistas florentinos e suas heranças incomparáveis no campo da arte e as teorias da arte correntes nos círculos intelectuais de Florença e Roma. Agindo dessa forma, ele também conseguiu um expressivo sucesso como crítico.

Ele escreveu, acima de tudo, para seus companheiros artistas, e seu propósito era essencialmente estabelecer e manter os estândares artísticos. [13]

Mais adiante, Bull apresenta algumas palavras-chaves do pensamento estético de Vasari que serviram para que ele, em seu Vidas, reforçasse os cânones da arte em que se firmavam o artista do Renascimento, em contraposição ao artesão:

Disegno. […] pode significar projeto, […], ou simplesmente desenho […]. O Desenho, para os florentinos era a base sólida da arte: um pintor alcançava a perfeição em seu trabalho final quando este era o resultado de vários desenhos preparatórios […] Ao mesmo tempo […] o projeto era o fundamento das belas artes em sentido filosófico que no ato criativo o artista tinha (implantado em sua mente por Deus) uma Ideia do objeto que ele estava reproduzindo. A figura que ele desenhava ou esculpia devia refletir tanto o que ele via quanto a forma perfeita que existia em sua mente.

Natura. Embora Vasari insista que a arte verdadeira consiste em imitar a natureza […] a mera reprodução não alcança a perfeição. Um artista pode se orgulhar de pintar uma figura que parece respirar […]. Mas ele deve conferir à sua cópia de formas do natural a lembrança sempre presente em sua consciência dos grandes trabalhos de arte do passado, assim como o conceito platônico de Ideia., A Arte, de fato, pode e deve melhorar a natureza, embora essa nunca deva deixar de servir como ponto de partida e como referência.

Grazia […] é uma das qualidades essenciais de um trabalho de arte. […] Em contraste com a rigidez dos pintores do primeiro Renascimento e com a severidade e a dimensão majestosa do estilo de Michelangelo, a graça é uma qualidade que sugere delicadeza, habilidade e adequação.

Decoro. O sentido de decorum é básica e simplesmente aquele do sentido de adequação; assim, se o pintor retrata um santo, seus gestos, expressões e as roupas devem refletir o caráter de um homem santo. Mais tarde, o significado foi estendido para abarcar a adequação de um trabalho de arte ao local em que está instalado, e a ideia de decorum foi usada, por exemplo, para atacar os nus frontais de Michelangelo […].

Judizio. O Decorum, como a graça, depende do julgamento do pintor, que é uma qualidade não propriamente ligada à razão, mas ao olho. Ele opera depois que o pintor observou todas as regras (da imitação, das medições, da proporção) e quando ele está executando o trabalho final rápida e firmemente.

Maniera pode ser traduzida como estilo ou maneira, se referindo tanto ao estilo pessoal de um único artista quanto o estilo de uma escola. Vasari fala de um “novo estilo” descoberto por Giotto […] e de uma “renovação de estilo” durante o segundo momento da renovação artística. No entanto, ele também faz referência a um estilo “verdadeiro” ou “superior”, nomeando a maneira da “idade moderna” [ a terceira fase] que se originou com Leonardo da Vinci e alcançou a perfeição com Michelangelo […].[14]

***

Estabelecidos esses dados sobre o pensamento estético de Giorgio Vasari, voltemos a Manuel Querino e a mais alguns pontos de contatos e de divergências entre os dois.

A convicção de que Vasari teria sido o “pai” da história da arte ocidental não é unânime, tanto pelo fato de ter existido, na antiguidade, uma tradição de biografias de artistas[15], quanto também pelo fato de, para escrever sua obra, o historiador florentino ter se apropriado de material sobre artistas, produzido em sua época. É neste sentido que Bull, inclusive, afirma que Vasari se aproximaria do “plagiarismo”[16].

Esta acusação de plagiário, presente na biografia do italiano, ressoa igualmente naquela de Querino, tendo surgido após seu falecimento.  Eliane Nunes, também sensível a mais essa afinidade entre os dois artistas/historiadores, relembra que, nos anos 1940, o pesquisador estabelecido em Salvador, Carlos Ott encontrou, na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, um manuscrito denominado Noções sobre a procedência da arte da pintura na Província da Bahia. Tal documento, apócrifo, teria servido de fonte para Manuel Querino escrever seus livros, sem que esse jamais citasse aquela fonte[17]. Para Nunes, Ott, teria sido preconceituoso quando comentou o fato:

Podemos desculpar-lhe o deslize, considerando que nos primeiros anos de sua vida era simplesmente oficial mecânico (pintor de paredes; posteriormente professor de desenho), e que, entusiasmado pelo estudo da arte na Bahia, procurou reunir tudo quanto pode a este respeito. Seu foi o mérito de salvaguardar para a posteridade inúmeras informações, que de outro modo se perderiam irremediavelmente, já que outros mais bem dotados para estudos não cogitaram fazê-lo. Ao mesmo tempo divulgou erros, já repetindo enganos comentados pelo seu informe anônimo, no que diz respeito às obras executadas entre 1820, já contradizendo o seu informante sem motivo sério aparente[18].

Após esta citação, a estudiosa apresenta a polêmica que surgiu a partir deste texto de Ott, elencando autores e autoras que dedicaram seu tempo a opinar sobre a relevância ou não de Quirino para a história da arte baiana e brasileira, sua originalidade ou não originalidade etc.[19]

***

Os escultores da Bahia no período áureo, Chagas […], Gomes Jr. e outros, não eram simples santeiros, eram de fato escultores porque punham na sua obra amor, carinho e individualidade […]. Essa arte, caracteristicamente baiana e lá só reflorida, entrou a decair depois que, com o engrossar do comércio, passou d’arte a negócio, e o artífice substituiu o escultor. Veio em seguida a concorrência europeia, a Itália despejou para cá imagens “lindas” feitas às grosas por anarquistas ateus e por máquinas menos deístas ainda. A escultura baiana cedeu o passo aos invasores e mais não disse.[20]

Monteiro Lobato resume a história da escultura na Bahia delineada por Manuel Querino. De um período primitivo, artesanal, a escultura ascendeu ao campo da originalidade artística, até alcançar o apogeu com Chagas e outros grandes nomes. Na sequência, porém, a produção de imagens sacras na Bahia teria se transformado em negócio lucrativo visando a exportação, o que teria gerado sua decadência.

Nesse resumo percebe-se o esquema vasariano direcionando o pensamento de Querino: período primitivo, seguido pelo apogeu que, por sua vez, é seguido pela decadência.

Por outro lado, essa síntese comprova o que foi dito por Eliane Nunes: Querino não foi apenas um “simples oficial mecânico”, como queria Ott, mas alguém que obtivera seus conhecimentos sobre a arte europeia e sua tradição a partir de uma formação em instituições de arte baianas, criadas tendo como parâmetros estéticos aqueles absorvidos nas academias europeias – que, lembremos, foram instituídas a partir da experiência da Academia de Desenho de Florença, criada por Vasari.

***

O método de história da arte proposto por Vasari, além de nutrido pela sociedade florentina, baseava-se no pressuposto de que produzir pintura, escultura e arquitetura eram atividades destacadas do mero trabalho artesanal, próximas da definição do artista como um intelectual assemelhado ao poeta e ao filósofo.  Para Vasari e seus contemporâneos, essa arte possuía uma história constituída por autores que sucessivamente foram suplantando o mero artesanato de onde tinham surgido suas profissões.

Na Europa, a partir sobretudo do século XVI nota-se a crescente e irreversível separação entre o artista criador e o artesão, esses últimos levados a repetir a forma previamente dada, sem nenhuma alteração.

Se a situação em Florença, na época de Vasari ainda não atingira tal grau de distanciamento entre o artista e o artesão, como ele parece pretender[21], a situação em Salvador em particular era ainda mais complexa. Transplantar para a capital da Bahia a metodologia de Vasari, exigiu de Manuel Querino uma série de adaptações, demonstrando que, no campo da história da arte não existe um método universal, passível de ser utilizado para refletir sobre a arte em qualquer tempo ou lugar, sem levar em conta as peculiaridades sociais e históricas do ambiente a ser estudado. Afinal, Salvador não é Florença.

***

O psicanalista Ernst Kris e o historiador da arte Otto Kurz – ambos austríacos –, definem a situação social do artista na Grécia, na antiguidade:

A posição social do artista na cidade-estado Grega era ainda muito limitada; caracterizava-se pela “falta de independência, metade dos direitos perante a lei, e um apreço invulgarmente baixo pela sua importância” (Schweitzer, 1925). Esta tradição foi transmitida dos tempos primitivos e codificada, por exemplo, nas epopeias homéricas. A primeira expressa desdém pelo trabalho dos pintores escultores por ser trabalho manual, o qual, como salientou um brilhante escritor moderno […], era, “numa economia baseada na escravatura”, deixado aos membros da classe servil (Zilsel, 1926) […]

[…] A segunda forma deriva dos dogmas da própria arte e alcançou, na proposição platônica, um significado duradouro: a arte como mimesis, como imitação da Natureza, apenas pode fornecer um reflexo distante do ser verdadeiro, das ideias que tenta reproduzir em segunda mão, imitando as suas encarnações terrenas.[22]

A compreensão das artes visuais como “liberais”, menos dependentes, portanto, da habilidade artesanal do que do “gênio”, irá se alastrando nos séculos seguintes pelas variadas culturas produzidas no continente europeu e em suas colônias. O preconceito contra o trabalho artesanal demorou para ser extirpado da sociedade ocidental (se é que foi extirpado por inteiro). Assim, mesmo após criação das academias de arte, não foi de imediato que os artistas passaram a ser respeitados como representantes das artes liberais. E, se assim o foi no continente europeu, pode-se imaginar como a questão transcorreu no Brasil, uma vez que, além de possuir como metrópole um país como Portugal – ainda arraigado a compromissos medievais – tinha como base social a escravidão de pretos e pardos.

***

O historiador e antropólogo Vicente Salles, antes de adentrar na questão sobre as artes “maiores” e “menores” no Brasil, e sobre as corporações e a escravidão em nosso país, rememora:

Recorda-se que, na Grécia e Roma antigas, o trabalho manual era atribuído ao escravo. Na Idade Média surgiu a instituição do artesanato, regulamentado pelas corporações de ofícios […]. O artesão ou artífice, na Idade Média, organizou-se também segundo os antigos modelos das corporações de ofícios, embora estas nunca chegassem a garantir a dignidade social do trabalho manual. Dentro das corporações estabelece-se hierarquia rígida entre proprietários, companheiros (trabalhadores dependentes) e aprendizes, o que, muitas vezes, produz lutas internas. A corporação instituiu, porém, o aprendizado como forma de recrutamento e adestramento de mão-de-obra.[23]

O autor, interessado em demonstrar a “passagem” das corporações de Portugal para o Brasil, atentará para o fato de que o sistema corporativo português teria chegado “ao Brasil mais por tradição do que por sistema organizado”. E mais:

De Portugal, passaram, todavia, para o Brasil os ofícios e suas bandeiras. As confrarias e irmandades se espalharam por toda a colônia, agrupando os trabalhadores mais pelos laços religiosos, e possivelmente de classe, do que propriamente os profissionais […]

Apesar do sistema colonial não favorecer a organização de corporações, sempre houve, em toda parte, oficiais e mestres de “artes mecânicas” que gozavam de prestígio […]. Designavam-se “artistas” e, dentro de cada categoria, como no modelo europeu, havia possibilidade de ascensão, passando de aprendiz a oficial, de oficial a mestre, este o grau mais elevado na hierarquia artesanal [24]

É complexo o cenário apresentado por Salles sobre a transposição para o Brasil da tradição europeia das corporações de artífices. Se em Portugal já se apresentavam com uma certa lassidão – imiscuindo-se com as estruturas religiosas do país –, no Brasil demonstrarão ainda outras características a serem mencionadas, caso queiramos entender as dificuldades de Manuel Querino em transplantar para Salvador as propostas de Giorgio Vasari.

O historiador Joelson B. Trindade também se posicionou sobre o assunto. Segundo ele, a prática das artes e ofícios no Brasil-colônia era uma atividade de homens livres. Assim:

O escravo, aqui, entra nos ofícios e nas artes primeiramente como um instrumento de produção de seu senhor, como portador de lucro para este; é, além disso, uma mercadoria, tem valor. Certamente é um instrumento importante na limitada concorrência do mercado interno, mas, como cabedal que é, não pode decidir nem interferir nem participar do jogo corporativo[25]

Ou seja, o escravizado, ao adentrar nas estruturas do sistema corporativo, coloca outro componente ao debate: a questão racial. Neste sentido, não havia apenas uma defasagem entre o circuito artístico florentino e aquele de Salvador. Além de aparentemente estacionado na conjuntura medieval que antecedeu o aparecimento da noção de artista como a entendemos hoje, a situação da arte na capital da Bahia trazia essa espécie de “não lugar” ocupado pelos profissionais pretos[26].

Trindade demonstra como eram as relações entre as corporações de ofícios e o regime e trabalho escravo no Brasil:

No marco das relações corporativas de produção, o cruzamento delas com o regime de trabalho escravo implica maiores dificuldades e limites no exercício, na experimentação e no aperfeiçoamento dos homens de origem negra. À hierarquia dos mestres, oficiais e aprendizes se misturam as categorias dos homens livres, escravos e alforriados (ou libertos); de brancos, negros e crioulos, pardos ou mulatos, e mais as do “negro da terra” ou “negro do cabelo corredio” – índio, peça ou servo da administração. Na base, a classe dos serventes, numerosa: estes se identificam com o grosso da população escrava, com a massa da mão de obra colonial.[27]

Em uma sociedade em que se cruzavam, por um lado, tentativas de imposição das estruturas das corporações de artífices de derivação ainda medieval, por outro o surgimento do conceito de “artista” introduzido pelas academias, e – por último –, a realidade concreta da exploração escravista, a situação do artista/artesão no Brasil poderia ser descrita como difícil.

Porém, apesar das restrições quanto às atividades dos escravizados, pareciam existir brechas para que ele pudesse exercer seu trabalho, borrando, assim, a hierarquia das corporações de ofício e, consequentemente, as distinções entre artista “maior” e “menor”:

Fora da corporação, no interior do mercado de trabalho escravo, havia indícios de existir a relação mestre-oficial aprendiz. Apenas o pardo forro ou livre – e em condições muito especiais – iria alcançar o cargo de juiz de ofício. Apenas ele iria portar o título de mestre em ofícios de branco junto à corporação.

O fato é que o negro e o mulato – sobretudo este – participaram em grande escala nas artes e ofícios coloniais, isto é, dentro de determinada divisão social e técnica do trabalho[28].

***

O estudioso Luiz Freire, em seu incontornável estudo sobre a talha neoclássica na Bahia, traz outras ponderações que formam uma visão ainda mais multifacetada dos produtores de arte em Salvador:

A participação de negros e mulatos nos ofícios artísticos tem sido alvo de celeuma e contradições. Por um lado, há aqueles que evocam as leis que restringiam a prática dos ofícios, as quais proibiam negros, mulatos e índios de exercerem alguns ofícios, como o de ourives. Por outro lado, há os que se apoiam na constatação de que as leis restritivas não eram seguidas com rigidez, havendo uma flexibilidade imposta por uma composição populacional preponderantemente negra e mestiça.

Do ponto de vista documental, tanto uns como outros estão corretos, pois há documentos que informam a proibição, como também há outros que demonstram ter havido negros e mulatos exercendo ofícios restritos aos brancos, como o de ourives, no século XVIII.

Se havia negros e mulatos cativos e forros num ofício tão controlado quanto o de ourives, por que não haveria nos ofícios de entalhador e de pintor e dourador? Esta pergunta os documentos não respondem […][29]

***

As coordenadas fornecidas por Trindade e Freire apresentam uma situação em que um artista muito criativo de repente se via compelido a, em determinadas situações, desenvolver uma atividade puramente artesanal e, em outras, atuar como um mestre. Esse deslizar por entre as nuanças das estruturas corporativas, em que o negro (o preto e o pardo) – devido tanto à sua condição social quanto racial –, era obrigado a se garantir por entre as fissuras desse circuito é o que, sob meu ponto de vista, difere a realidade da arte em Florença no século XVI daquela de Salvador nos séculos XIX e XX[30].

Justamente essa peculiaridade da situação do artista e do artesão na sociedade escravista de Salvador foi o que determinou a dificuldade de Querino em seguir com afinco as divisões entre os profissionais ligados às artes “mecânicas” e “liberais”.

Se tal divisão já era problemática em vários países da Europa, na sociedade escravista soteropolitana ela era ainda mais dificultosa porque mesclava-se de forma problemática ao milenar desprezo pelos trabalhos manuais e ao contingente negro forro ou escravizado[31].

***

Como mencionado, situação ganha outros contornos ainda mais intrincados com a criação das academias de arte no Brasil. Com seu advento o sistema de produção de obras ganha novo complicador, na medida em que o estatuto do artista contido na estrutura da academia, terá que moldar-se à realidade das corporações e seus mecanismos de afrouxamento de regras dadas pela realidade escravista.

O estudioso Luiz Marques, num ensaio sobre o surgimento das academias de arte e a situação do artista negro no Brasil, disserta sobre a produção artística no país quando da chegada da Missão Artística Francesa no Rio de Janeiro. Marques em primeiro lugar, se opõe àqueles que acreditam que as coordenadas trazidas pelos artistas da Missão possuíam uma rigidez maior do que aquelas já presentes no Brasil colonial:

É talvez oportuno advertir […] que não é propriamente o barroco colonial que pode sugerir, na imaginação do historiador, uma situação artística menos estratificada e submetida a códigos normativos do que o que resultará o advento da Missão. Como toda cultura corporativa, o barroco brasileiro movia-se no interior de uma estrutura rigorosamente hierarquizada, onde as linhagens de mestres se sucediam sem que no artista fosse reconhecida uma competência espiritual similar à do homem de letras, tal como ocorreu na Europa do primeiro renascimento, quando da voga do moto horaciano “ut pictura poesis”.[32]

O artista negro, obrigado a agir nas rachaduras dessa cultura corporativa, começa a ver uma possibilidade de mudança com o advento da instituição acadêmica. Mas não pelas razões que marcaram o papel do artista europeu quando surgiram as academias. Marques traz aqui uma contribuição fundamental para que se reflita sobre as modificações que o ensino acadêmico e seu sistema acarretariam para uma nova situação do artista negro no Brasil:

[…] se é bem sabido que as Academias surgem na Itália do Renascimento tardio como efeito de uma emancipação sociológica e intelectual do artista plástico, é inegável, inversamente, que, no Brasil, a implantação de um padrão acadêmico foi, em certa medida, não efeito, mas causa dessa emancipação, precedendo-a ao invés de lhe suceder. Essa inserção paradoxal da Academia na cultura do Primeiro Império é fenômeno de importância talvez ainda insuficientemente aquilatada em nossa historiografia artística.[33]

***

Marques faz referência ao ambiente artístico carioca que começa a passar por um processo de transformação a partir da fundação da Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro que começaria a operar apenas em 1826. O caso de Salvador, no entanto, se reveste de outros elementos talvez ainda mais intrincados.

Sua academia de arte foi fundada em 1877, já no final do II império, e próxima da abolição da escravatura (1888) e da Proclamação da República (1889). Até o final dos anos 1870, portanto, o conceito acadêmico de artista, por certo vicejava em Salvador, não apenas pelas ressonâncias das proposições vindas do Rio de Janeiro como também pelo fato de que, na capital da Bahia – antecedendo a criação da Academia –, foram fundadas instituições congêneres[34]. Por sua vez, esse “novo” conceito convivia lado a lado com os estatutos das corporações e da realidade da escravidão.

Apesar da consciência de que era possível o artista ser visto como tal – ou seja, como um profissional da estatura de um sábio –, a realidade cotidiana da arte em Salvador estava ainda estruturada na hierarquia corporativa em que o artista negro se via obrigado a deslizar de uma posição a outra, sendo ele livre ou não, sendo ele preto ou pardo.

Com a chegada da Academia, ele pode ter passado a ser visto, por exemplo, como um escultor. Mas, sendo escultor e negro, ele muitas vezes teve que atuar também como entalhador, como marceneiro, pintor decorador etc. Enfim, como um artesão eclético, uma espécie de faz tudo.

***

Todas essas questões reforçam a importância do relançamento dos livros de Manuel Querino pela Câmara Municipal de Salvador. A meu ver, vale a pena atentar para as supostas contradições de seu discurso sobre arte, quando se viu compelido a aplicar os pressupostos metodológicos de Vasari, com a realidade da arte em Salvador.

***

Monteiro Lobato, ao finalizar a resenha sobre o livro de Querino afirma que, após o intelectual ter realizado aquele grande arrolamento de nomes/biografias, caberia aos novos estudiosos do assunto “joeirar a ganga”, separando o metal precioso (ou seja, os “verdadeiros” artistas) do rebotalho[35]. Eu sugiro mais: sugiro que os novos estudiosos da arte na Bahia se debrucem igualmente sobre o esforço de Querino em entender e aprender, na prática, que Salvador não é Florença, nem uma “Roma negra”; que pensar a arte daquele lugar (abusando da metáfora de Lobato) é buscar um conhecimento a ser garimpado na realidade social, antropológica e estética daquela comunidade.

Necessidade que, consciente ou inconscientemente, levaria Quirino, na segunda fase de seus estudos (como nos aponta Maria das Graças Andrade Leal), a dedicar sua atenção à presença, não de Florença em Salvador, mas da África.

[1] – “Artistas Baianos”, Monteiro Lobato. IN LOBATO, Monteiro. Críticas e outras notas. São Paulo: Editora Brasiliense, 1969. Página 153 (Editado originalmente na Revista do Brasil, n.16, abril, 1917).

[2][2] – Segundo cronologia da vida e da obra de Manuel Querino, a primeira edição de Artistas Baianos, é de 1909. Lobato, portanto, entrou em contato com o livro a partir de sua segunda edição, de 1911. Já As artes na Bahia teve a primeira edição também em 1909, e a segunda em 1913. “Anexo I – Cronologia de Manuel Querino” IN GLEDHILL, Sabrina (org.). (Re)apresentando Manuel Querino 1851/1923. Um pioneiro afro-brasileiro nos tempos do racismo científico. Salvador: Saga Editora, 2021 pág. 168 e segs.). No livro que reúne os textos que Manuel Querino publicou na Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, o leitor é informado de que os dois textos aqui comentados, tiveram as suas respectivas primeiras versões publicadas nos números 34 e 35 daquele periódico (NASCIMENTO, Jaime/GAMA, Hugo (orgs.). Manuel R. Querino. Seus artigos na Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia. Salvador: Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, s.d.

[3] – O intelectual nasceu em Santo Amaro da Purificação, Bahia, em 1851.  2023 é o ano do centenário de seu falecimento.

[4] – “Artistas Baianos”, Monteiro Lobato. IN LOBATO, Monteiro. Críticas e outras notas. São Paulo: Editora Brasiliense, 1969. Página 154 (Editado originalmente na Revista do Brasil, n.16, abril, 1917).

[5] – Idem.

[6] Maria das Graças de A. Leal “Manuel Querino: o intelectual baiano e seu tempo”, in QUERINO, Manuel. Artistas baianos. Salvador: Câmara Municipal; Press Color, 2018. Página 16

[7] – Giorgio Vasari (1511-1574) pintor e arquiteto nascido em Arezzo, Itália, ficou conhecido pela publicação de sua monumental obra Le vite de´più eccelenti pittori, scultori e architettori (As vidas dos mais excelentes pintores, escultores e arquitetos), publicado em 1550 e uma segunda edição em 1568. Essa obra fez com que parte da tradição ocidental o considerasse o “pai” da história da arte. Vasari fundou a primeira academia de arte, base de todas as academias que surgiriam na Itália e no exterior – a Academia de Desenho de Florença. Portanto, as Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro, fundada em 1816, e a Academia de Belas Artes de Salvador, fundada em 1877, são suas longínquas herdeiras.

[8]– Luiz Alberto Ribeiro Freire, “Manuel Querino: fundador da história das artes na Bahia”. In QUERINO, Manuel. As artes na Bahia. Salvador: Câmara Municipal; Press Color, 2018. Pág. 12.

[9] – Eliane Nunes. “O primeiro historiador da arte baiana”. GLEDHILL, Sabrina. Op. cit. p. 54. Observação: entre a primeira edição do livro, em 1550, e a segunda, em 1568, passaram-se 18 anos, e não 20.

[10] – Idem.

[11] – George Bull. “Introdução”. IN VASARI, Giorgio. Vasari. Lives of the artists. Penguin Books Ltda., 1981 P. 15.

[12] – Como será visto, Giorgio Vasari não foi o primeiro autor a se dedicar a historiar a arte, tendo como base a biografia dos artistas. George Bull afirma que Vasari teria se valido de biografias apócrifas de artistas, presentes na tradição oral do norte da Itália. Bull também remete o leitor a livros correntes no período em que Vasari iniciou sua escrita, como Commentaries, de Ghiberti, uma biografia apócrifa de Brunelleschi e Decameron, de Boccaccio (op.cit. p. 14). Ernst Kris e Otto Kurz, por sua vez, afirmam que durante a antiguidade foram produzidas inúmeras biografias de artistas, tradição que teria diminuído em muito durante a Idade Média, sendo retomada [por Giorgio Vasari, e seus seguidores futuros] no Renascimento. (KRIS, Ernst/KURZ, Otto. Lenda, mito e magia na imagem do artista. Uma experiência histórica. Lisboa: Editorial Presença, 1988.

[13] – George Bull. “Introdução”, pág. 14,

[14] – Idem p.19/20.

[15] – O psicanalista e historiador da arte austríaco, Ernst Kris, assim se posiciona sobre a tradição das biografias de artistas no ocidente e no oriente, da antiguidade até renascimento: “uma análise esquemática nos revela que o artista entra na história somente quando a criação artística torna-se diferenciada de outras funções sociais, atingindo então sua autonomia; isto é, quando a arte não serve mais às finalidades exclusivas dos rituais, mas resulta de um esforço independente e legítimo. O processo de separação é lento, incentivando o aparecimento das biografias de artistas em apenas duas áreas de cultura – o Extremo Oriente e o Mediterrâneo. As fórmulas biográficas usadas nessas duas áreas assemelham-se surpreendentemente. Analisaremos apenas a tradição europeia, que possui uma origem de “dupla-fase”. A primeira fase iniciou-se na antiga Grécia e pode ser acompanhada até cerca de 300 A.C.; a segunda começou na Itália durante o Renascimento. Existe um intervalo de “arte anônima “na Idade Média, entre esses dois períodos […] Por mais esquemática que seja esta apresentação, ela nos é suficiente se acrescentarmos que todas as fórmulas biográficas contidas na literatura grega e latina foram revividas no Renascimento”. KRIS, Ernst. Psicanálise da arte. São Paulo: Editora Brasiliense, s.d. p. 58)

[16] – “He [Vasari] pressed into his service all kinds of sources, occasionally to the point of plagiarism”. Op. cit. p. 14.

[17] – Segundo ainda Nunes, o manuscrito foi publicado parcialmente por Carlos Ott, em 1947, na Revista do Patrimônio Artístico e Histórico Nacional. Em 2000, Luiz Freire publicou-o integralmente. Nunes também informa que, segundo Ott, o autor do manuscrito, escrito entre 1856 e 1876, seria de autoria de José Rodrigues Nunes. Eliane Nunes “O primeiro Historiador da arte na Bahia”, op. cit. p. 59.

[18] – Carlos Ott. “Noções sobre a procedência da arte da pintura na Província da Bahia. Manuscrito transcrito pelo autor. Rio de Janeiro. Revista do Patrimônio Artístico e Histórico Nacional, n. 11, p. 197-218, 1947 Apud Eliane Nunes, op. cit/ p. 57.

[19] – .  Apesar de todos os prós e contras elencados por Eliane Nunes, o que parece ter estado em disputa no interior da história da arte na Bahia da segunda metade do século passado foi justamente conceder ou não o título de “pai” da história da arte a Querino. Como um negro praticamente sem instrução erudita (segundo os valores de Ott e seus seguidores), poderia receber um título tão honroso? E mais: um negro, “simples oficial mecânico”, que, diga-se de passagem, tomou para si um manuscrito até então anônimo para elevar o protagonismo de seu nome acima de outros estudiosos “mais bem dotados”.

[20] – Monteiro Lobato. Op. cit. p.155/56.

[21] – Para mostrar como essa transformação do antigo artesão em artista não se deu de imediato – fazendo com que durante muito tempo artistas e artesãos trabalhassem ainda sob o mesmo teto – trago a descrição que o autor Walter Isaaccson realizou do ateliê de Andrea del  Verrochio, de quem Leonardo da Vinci foi discípulo, baseado em documentos. O autor escreve; ‘O ateliê de Verrochio, assim como os de seus cinco ou seis principais concorrentes em Florença, mais se assemelhava a uma loja – similar à dos sapateiros e joalheiros em sua rua – do que a um refinado ateliê artístico. No térreo ficavam o estoque e um espaço de trabalho abertos à rua, onde os artesãos e aprendizes produziam em massa a partir de seus cavaletes, bancadas, fornos, rodas de cerâmica e esmeris. Vários funcionários viviam e se alimentavam juntos nos quartos localizados no segundo andar. Os quadros e os objetos não eram assinados nem pensados para que fossem obras de expressão individual. A maioria dos trabalhos era produzida coletivamente, incluindo muitas das pinturas em geral atribuídas ao próprio Verrochio. O objetivo da Verrochio & Co. era mais o de produzir um fluxo constante de arte e artefatos comerciais do que incentivar gênios criativos ansiosos para encontrar meios de expressar sua originalidade”. ISAACSON, Walter. Leonardo da Vinci. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2017. P.53.

[22] – KRIS, Ernst/KURZ,Otto. Lenda, mito e magia na imagem do artista. Uma experiência histórica. Lisboa: Editorial Presença, 1988. P. 44.

[23] – Vicente Salles. “Artesanato”, in ZANINI, Walter (org.). História geral da arte no Brasil. São Paulo: Instituto Walther Moreira Salles, 1983. 2º. Volume, p. 1034.

[24] – Idem, pág. 146

[25] – Jose Bitran Trindade. “Arte colonial: Corporação e escravidão”. IN ARAÚJO, Emanoel (org.). A mão afro-brasileira: significado da contribuição artística e histórica. 2ª. edição revista e ampliada. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo/ Museu Afro Brasil, 2010. Pág. 164.

[26] – Junte-se a esta situação o processo paulatino de inserção, no campo da arte de Salvador, do conceito de artista liberal – que se distancia daquele conceito de artesão – por conta das ressonâncias do novo estatuto do produtor de arte surgido no país a partir das fundações das academias de arte do Rio de Janeiro, e mais tarde a de Salvador.

[27] – Idem.

[28] – Idem, pág. 165.

[29] – FREIRE, Luiz Alberto R. A talha neoclássica na Bahia. Rio de Janeiro: Versal, 2006. P. 92.

[30] – Luiz Freire, no livro citado, traz alguns dados sobre esta questão: “Na Bahia do século XIX, os protagonistas do trabalho de ornamentação dos templos têm as especialidades de empalhador, pintor e dourador. Não se registra a existência do ensamblador, o que nos faz pensar que o entalhador fazia todo o trabalho de entalhe da madeira e encaixe da parte para formar o todo, tendo completo controle do processo […]. Esse acúmulo de funções pode ter beneficiado o efeito final das peças e dos conjuntos ornamentais pois a concepção, a fatura e a montagem eram feitas pelo mesmo mestre” (p.71). Mais para frente o estudioso nos informa: “Do princípio ao fim do século XIX trabalharam na Bahia cerca de 188 artistas ligados diretamente à talha e sua pintura e douramento. Cerca de 88 deles eram entalhadores; dois eram entalhadores e escultores ao mesmo tempo; quatro eram escultores que fizeram algum trabalho de talha; e cerca de 94 eram pintores, encarnadores, douradores e prateadores. Não distinguimos neste rol aqueles que só aparecem dourando, prateando ou encarnando, pois a formação do pintor incluía o aprendizado do douramento, do prateamento e da encarnação”. (p.86). FREIRE, Luiz Alberto, op. cit.

[31] – Não se deve excluir deste contexto as camadas brancas mais pobres da população brasileira que podiam ascender socialmente na hierarquia das corporações, justamente por serem brancos.

[32] – Luiz Marques. “O século XIX e o advento da Academia de Belas Artes e o novo estatuto do artista negro”. IN ARAÚJO, Emanoel (org). op. cit. pág. 192.

[33] – Idem.

[34] – Sobre o assunto, consultar: FREIRE, Luiz Alberto. A talha…, p.70 e segs.

[35] – “Manuel Querino lança ao público uma coleta de materiais que vale por uma revelação. Denunciou uma jazida riquíssima de obras d´arte ignoradas. Compete agora à crítica estuda-la a fundo, joeirar a ganga e incorporar o que for de valia à Arte nacional.” LOBATO, Monteiro. Op. cit. P.158.

De hoje (26/1) a domingo, o Sesc Pompeia recebe ‘O Bailado do Deus Morto’, com o Teatro Oficina

Cena de "O Bailado do Deus Morto", espetáculo de Flávio de Carvalho, em montagem do Teatro Oficina. Foto: Igor Marotti
Cena de "O Bailado do Deus Morto", espetáculo de Flávio de Carvalho, em montagem do Teatro Oficina. Foto: Igor Marotti

Desta quinta (26/1) até domingo, o Teatro Sesc Pompeia recebe O Bailado do Deus Morto, com o Teatro Oficina. Com direção de Marcelo Drummond, as quatro apresentações marcam o encerramento das visitações à exposição Flávio de Carvalho Experimental, em que as curadoras Kiki Mazzucchelli e Pollyana Quintella se debruçaram sobre a multifacetada obra do artista, autor da dramaturgia original do espetáculo.

A peça foi escrita por Flávio de Carvalho em 1933 para a abertura do Teatro da Experiência, um projeto para prática e apresentações, em que o teatro fosse vivido como uma experiência cênica, arquitetônica, humana e dramatúrgica. O espaço chegou a abrigar a estreia e algumas poucas apresentações de O Bailado, com seu coro de músicos negros da então recém-nascida escola de samba Vai-Vai, vestindo as máscaras de alumínio desenhadas pelo próprio artista. Perseguido pela censura, o Teatro da Experiência foi fechado pela polícia após poucas apresentações.

O Teatro Oficina já havia montado o espetáculo em mais de uma ocasião, como na 29ª Bienal de São Paulo e no Festival de Arte Serrinha em Bragança Paulista, ambos em 2010. Em agosto de 2019, a companhia foi convidada para encená-lo na mostra Flávio de Carvalho – O antropófago ideal, na galeria Almeida e Dale. E em 2020, vinha fazendo apresentações em seu próprio espaço, interrompidas com o início da pandemia.

Naquele mesmo ano, a peça chegou a ganhar uma versão online, que esteve em cartaz em três temporadas, entre agosto de 2020 e março de 2021. Em dezembro de 2021, O Bailado voltou a ter apresentações presenciais no Oficina, logo suspensas pela onda da variante ômicron. No Sesc Pompeia, de acordo com Marcelo Drummond, em relação à montagem mais recente, do segundo semestre do ano passado, no próprio Oficina, foram necessárias somente algumas mudanças nas marcações do elenco no palco.

Com cerca de uma hora de duração apenas, o espetáculo mescla teatro e dança, em que o elenco traja máscaras de alumínio e realiza movimentos dinâmicos e ritualistas. Segundo Drummond, as instruções (rubricas) deixadas por Carvalho para tais movimentos eram um tanto rígidas e foram adaptadas. “Ele orientava para colocar os braços ora em V, ora em L etc. A gente foi mudando, de acordo com o sentíamos que melhor funcionava, mas usando as mesmas referências”, diz.

Drummond também ressalta que modificaram muito pouco o texto de 1933, em que “quase tudo é cantado”, mas que O Bailado do Oficina não copia os figurinos originais e foi quase todo musicado, com um banda em cena, “com uma cara meio de missa”.

“É uma mini-ópera, não chega a ser uma opereta, porque não tem um caráter cômico. Ao mesmo tempo, ele tem uma coisa plástica muito forte, que o aproxima de uma instalação, de uma performance de artes plásticas, misturada ao teatro, tudo com um visual muito diferente e bonito”, conta Drummond.

O diretor salienta ainda que a companhia partiu das próprias propostas estéticas diversas de Flávio de Carvalho e as trouxe para o palco, em vez de simplesmente replicá-lo. “Não iria dar certo. A gente, então, trabalhou em cima do trabalho dele, buscando um diálogo com o teatro que a gente faz. Afinal, o Oficina fez uma leitura do Modernismo muito forte, isso ficou impregnado na gente, que viemos já em outra fase de sua história. Então, o que vemos é um espetáculo contemporâneo, porque os corpos são contemporâneos”, conclui.

 

 

SERVIÇO
O Bailado do Deus Morto
Desta quinta (26/1) a domingo
Com o Teatro Oficina Uzyna Uzona
Teatro Sesc Pompeia – R. Clélia, 93 – Água Branca, São Paulo (SP)
Horário: quinta a sábado, às 21h; domingo, às 18h
Ingressos: R$ 30 (inteira); R$ 15 (meia); R$ 10 (credencial plena)
Vendas presenciais às 17h; online, no link 

 

Diógenes Moura lança nesta quarta-feira (25/01), em São Paulo, “Minhocão”, seu novo livro de contos

O escritor e curador Diógenes Moura, que lança nesta terça (25), Aniversário de São Paulo, o livro de contos "Minhocão". Foto: Daniel Kfoury
O escritor e curador Diógenes Moura, que lança nesta terça (25), Aniversário de São Paulo, o livro de contos "Minhocão". Foto: Daniel Kfoury

Nascido em Recife (PE), Diógenes Moura viveu com a família por 17 anos em Salvador (BA). Mudou-se para São Paulo e desde 1989 mora no bairro de Campos Elíseos e nas suas proximidades. Foi daí, mais propriamente dito do entorno do Elevado Presidente João Goulart, talvez o mais famoso viaduto da cidade, que o escritor, curador, fotógrafo, roteirista e editor independente tirou inspiração para seu novo livro, Minhocão (Editora Noir), que será lançado nesta quarta-feira (25), das 15h às 18h, na Livraria Martins Fontes.

Com olhar atento, uma caderneta e um lápis, Moura, que foi curador de fotografia da Pinacoteca, fez anotações ao longo de anos, sobre os acontecimentos e os habitantes dos apartamentos que ladeiam o viaduto.

“Ao longo desse período e de uma pandemia no meio, ele [Diógenes Moura] se sentou no meio-fio do Minhocão e passou a buscar vidas dos dois lados daquelas pistas elevadas que escondem a miséria sob seus pés e que passam a impressão de levar todos a qualquer lugar. Mas a sensação é de um enorme presídio de desejos, sonhos e fantasias, de onde não se sairá jamais”, escreve o jornalista Gonçalo Junior, na quarta capa do livro.

Em texto da orelha do livro, o cineasta Beto Brant destaca que o título “traz uma coleção de gente que habita a veia desalumiada do centro da cidade. Uma anomalia encravada, onde resta um grau de vaidade, o enfeite na fala, no corpo e na casa. O mundo em ruínas e a redenção vaza, tímida, entre os escombros”, escreve.

LEIA ABAIXO TRECHOS DO LIVRO

Em um dia de domingo qualquer, tantos uns, tantos outros, Cesário Triste saiu de casa com uma caderneta e um lápis e entrou na padaria da esquina. Tomou café com leite, engoliu três bolinhas embranquecidas para não endoidar, subiu a rampa em direção ao viaduto, sentou-e na listra branca que divide as duas pistas e morreu. Em outro domingo qualquer, arregalou os olhos e começou a girar a cabeça de um lado para o outro como se estivesse sendo exorcizado. Com as pupilas dilatadas pelo susto, dedicou-se a invadir os apartamentos dos outros, aqueles que moram nas duas margens da imensa serpente de concreto que corta uma parte da cidade, onde os homens desafiam o que resta dos deuses.

***

Cada replicante que Ambrósio Terminante das Tripas Enfim descongela para colocar em cima dos ombros e pedir dinheiro entre os carros no semáforo, embaixo do viaduto, leva pelo menos seis horas para a carne ficar no ponto e voltar a ter a respiração natural, o piscar dos olhos, remover a memória embutida, as lembranças dos que ficaram para trás, imaginar um rosto vivo de alguém que não sabe se um dia terá amanhãs.

SERVIÇO

Minhoção (Editora Noir, 163 págs., R$ 49,90)
Diógenes Moura
Lançamento: Livraria Martins Fontes – Avenida Paulista, 509
Horário: nesta quarta-feira (25/01), das 15h às 18h