Culturas indígenas, Harald Schultz, Endandae ctemodit ium volenem rem quid ulparup tatur, quiamusam simus reperum
O fotógrafo Harald Schultz surgiu em um tempo em que o universo indígena não era totalmente revelado. Quase todo o saber sobre a cultura dos povos originários era transmitido por etnólogos, antropólogos e sertanistas “credenciados”. Schultz tinha profissão dupla, era etnólogo e fotógrafo, o que facilitou bastante o seu ir e vir entre a Universidade de São Paulo (USP) e o trabalho de campo nas aldeias. Hoje, o processo decolonial mudou o panorama, e indígenas de várias tribos brasileiras frequentam universidades, fazem filmes, vídeos, escrevem livros, e qualquer um deles tem também seu lugar de fala. Em resumo, eles são os porta-vozes deles mesmos.
Dentro do contexto de divulgar trabalhos e pesquisas essenciais, o Sesc Ipiranga lança o livro Culturas Indígenas no Brasil e a coleção Harald Schultz, organizado pela conservadora Ana Carolina Delgado Vieira e pela museóloga Marília Xavier Cury, que mantiveram conversa com os indígenas Gerolino José Cezar (terena) e Dirce Jorge (kaingang).
O livro chega em meio às discussões sobre a preservação da cultura indígena pelos museus não dirigidos por eles e ainda em confronto com a dúvida se coleções de fotografias sobre indígenas têm que ter a curadoria de um deles. A publicação reúne vários textos de Harald Schultz em seu campo ampliado de pesquisa, dando visibilidade a um universo expandido. As imagens trazem traços das imagens-pensamento, resultado da formação dele e de suas aulas de fotografia ministradas na USP.
Uma de suas contribuições para a fotografia no Brasil nasce das reflexões sobre os estudos das linguagens fotográficas e seus aspectos técnicos. Nessa perspectiva de inovação, ele acompanhou de perto as transformações singulares da fotografia dos anos 1960 e as transmitia aos alunos com o objetivo de formar uma nova geração de profissionais.
Seu trabalho relevante foi desenvolvido em aldeias com o objetivo de contribuir para a preservação das culturas de matrizes indígenas. Em alguns locais, Schultz chegou a coletar cerca de sete mil artefatos de vários usos, além de filmes e fotografias que captam o cotidiano das aldeias, que hoje fazem parte do arquivo de campo do MAE-USP (Museu de Arqueologia da USP). A coleção de Schultz, sob a guarda do museu, soma mais de mil diapositivos (slides) entre os anos de 1942 e 1965. Ele sempre explorou os elementos presentes naquele universo, indistintamente das afinidades adquiridas nas constantes visitas.
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Homem Makú
Harald Schultz e Vilma Chiara
acote com dardos
Vilma Chiara com os Aruanãs
A exposição do acervo do fotógrafo abre capítulos sobre museus e preservação de coleções indígenas. Considerado um fotógrafo importante na época, algumas de suas fotos são provas das técnicas inovadoras, cuja experiência perceptiva define-se na sobreposição de imagens e no uso de filtros e lentes especiais, um recurso novo naquele tempo.
Culturas Indígenas no Brasil e a coleção Harald Schultz, além de divulgar e fortalecer sua obra, também provoca reflexões sobre vários aspectos que envolvem os objetos coletados. Dividida em quatro partes, a primeira foca a trajetória do fotógrafo-etnólogo com alguns dados biográficos mais relevantes. Já a segunda coloca luz nas questões museológicas e reflete como introduzir políticas que respeitem os direitos de inclusão dos povos originários.
A terceira toca no tema dos estudos relacionados a coleções depositadas em museus, enquanto a última aborda a iconografia de 12 etnias contactadas por Schultz, além de uma coleção singular de fotografias dos objetos encontrados. O livro traz forte contribuição para o resgate do trabalho desenvolvido por Harald Schultz, tanto como fotógrafo quanto como etnólogo, além de abrir portas para outros estudos complementares. ✱
José Antonio da Silva Sem título, 1979. Óleo sobre tela
José Antonio da Silva Sem título, 1979. Óleo sobre tela
Por Theo Monteiro
Objeto da exposição Duas poéticas, na Galeria Estação, em que sua produção foi colocada em diálogo com a da pintora contemporânea Cristina Canale, José Antônio da Silva, em que pesem rótulos como “primitivo”, “naïf” e “ingênuo”, produziu obra de grande complexidade e que pode oferecer importantes chaves de leitura para que se compreenda um grande momento de virada na história do Brasil, tanto em termos socioambientais, quanto em termos artísticos e formais.
Para compreender melhor a obra desse singular pintor, é importante entender sua origem na cultura caipira. Nascido em 1909, em Sales de Oliveira, noroeste paulista, pertencia a uma família de trabalhadores rurais. Sem posses, os mesmos viviam se mudando de fazenda em fazenda, oferecendo sua força de trabalho para os latifundiários da região. Essa era a realidade de muitas famílias caipiras desse período. Conforme mostrou Antonio Candido em Parceiros do Rio Bonito, amplo estudo que realizou sobre a cultura caipira, a mesma foi formada ao longo do período colonial por sertanistas errantes que se estabeleceram em regiões remotas do sertão paulista. Vivendo em pequenos povoados ou ranchos, baseavam-se na agricultura de subsistência e caça/coleta. Com a expansão do latifúndio ao longo dos séculos 19 e 20, os mesmos foram gradualmente perdendo seu modo de vida e sendo subjugados ao trabalho nessas grandes propriedades. Assim, sua cultura foi progressivamente desaparecendo. Não apenas isso. A paisagem, antes marcada pela presença de florestas, cerrados e agriculturas de pequena escala, foi cedendo espaço para a monocultura e os rebanhos de gado.
José Antonio da Silva, Sem título, 1966. Óleo sobre tela.
A obra de José Antônio da Silva mostra exatamente essa mudança social e paisagística do interior do estado. A começar que suas pinturas nunca retratam uma natureza selvagem ou intocada. Por mais que a figura humana esteja por vezes ausente, sempre existe algum indicativo de ação antrópica: estradas, plantações, animais de criação etc. Em suas paisagens de monoculturas (algodoais, milharais, pastagens) estão representados sinais de devastação, como árvores mortas, caídas ou tocos de madeira. A presença de boiadas passando, pessoas se locomovendo ou trabalhando indica que nada ali está parado: tudo se move e se transforma o tempo todo, inclusive a vegetação, que foi recentemente alterada e teve sua configuração original destruída. Urubus são igualmente frequentes nas pinturas do artista, como se representassem a morte, que espreita a tudo e a todos. O artista nos narra, portanto, a transformação do campo brasileiro e a desagregação de um tipo de cultura nele existente.
A contribuição de Silva, contudo, não se restringe a um retrato social. Na história da arte brasileira, sua aparição e carreira se dão justamente em meio a um momento de profunda transformação. “Descoberto” pela crítica em 1946, presencia um momento em que o sistema da arte brasileiro começa a se institucionalizar: surgem os primeiros museus de arte moderna em São Paulo e no Rio de Janeiro, é criada a Bienal Internacional de São Paulo e se desenvolve um crescente mercado voltado para a arte moderna. Junto a essas transformações, desenvolvem-se no país as tendências de arte abstrata, que terminam por entrar em rota de colisão com a arte figurativa até então vigente, de viés expressionista e com temática voltada para o social.
Silva estabeleceu interessantes diálogos com esse debate estético vigente na arte brasileira desse período. Em um momento no qual o mundo vivia uma espécie de “ressaca” do pós-guerra, a temática socialmente engajada ganhou muito terreno no campo das artes e da cultura, influenciada por certo expressionismo, e que teve em artistas como Portinari e Goeldi importantes representantes. Grande defensor desse tipo de estética era o crítico Lourival Gomes Machado, que, não por acaso, tinha relação muito próxima com nosso Silva. Ainda que de maneira muito singular, o tom de denúncia social aparece com certa frequência na obra do pintor em questão. Cenas de trabalho, cotidiano e mesmo momentos de sofrimento e tragédia são recorrentes em suas pinturas, em geral com grande expressividade. A própria destruição da natureza pela monocultura é criticada nesses trabalhos, antecipando o debate ambiental em algumas décadas. Como forma de obter a expressividade e dramaticidade necessárias para suas composições, recorre a modelos da arte sacra, possivelmente oriundos de um determinado catolicismo popular. Algumas posições e estruturas compositivas são muito semelhantes, por exemplo, a pinturas de ex-votos. A própria arte sacra era tema também de nosso artista, e ele conta em depoimento que só teria começado a pintar depois de perceber que as imagens que via nas igrejas “eram feitas por mãos de pessoas”.
José Antonio da Silva, Sem título, 1955. Óleo sobre tela
Num segundo momento, o tema não perde a importância, mas Silva vai reduzindo os elementos pictóricos a pontos, pinceladas ou manchas serializadas, de modo a criar composições extremamente dinâmicas. Tal procedimento guarda muita semelhança com momentos da abstração geométrica (embora o mesmo jamais tenha abandonado por completo a figuração) e chegou a receber elogios de um dos principais representantes do concretismo, Waldemar Cordeiro. Essas escolhas pictóricas levaram ao rompimento de Silva com Gomes Machado, mas coincidem com sua aproximação com o crítico Theon Spanudis, defensor de uma arte construtiva bastante particular.
Ainda que lido como um ingênuo fora de seu tempo, Silva compreendeu perfeitamente não apenas sua época e as tendências nela discutidas, como trouxe uma contribuição absolutamente original para a mesma. ✱
Tabatinga, no litoral sul do Estado da Paraíba, Brasil, preserva a bela toponímia de origem indígena que significa argila branca. Imagem de arenito com matriz de caulim e migração de ferro das suas falésias vivas
Tabatinga, no litoral sul do Estado da Paraíba, Brasil, preserva a bela toponímia de origem indígena que significa argila branca. Imagem de arenito com matriz de caulim e migração de ferro das suas falésias vivas
Na Paraíba, um espetáculo geológico revela-se fascinante com as argilas coloridas que afloram no litoral. Nascidas com texturas especiais e jogos tonais, as cores vão de um vermelho intenso, passando por amarelos, azuis, rosas. Elas seduzem. As falésias brasileiras deixam os estrangeiros extasiados, porque em alguns países, como a Inglaterra, elas são totalmente cinza, pela presença do chumbo. Definitivamente, o Brasil é colorido desde suas entranhas.
O território brasileiro tem grande reserva de utopias, e o paraibano abrange visões heterogêneas de saberes geológicos, artísticos e institucionais. Marlene Costa de Almeida, artista plástica e pesquisadora, conviveu com essa paisagem desde criança e nunca se cansou de admirá-la. Ao contrário, quando já formada em filosofia decidiu dedicar-se ao estudo e à pesquisa das argilas que afloram nas falésias vivas no leste do estado, e que o mar vai dragando muito lentamente. O Cabo Branco, o ponto mais setentrional do Brasil, já perdeu de 20 a 30 quilômetros desses paredões durante milhões de anos. Com ventos, sol a pino, calor excessivo e até chuviscos, Marlene já caminhou por vales, planícies, morros e até mesmo em beiras de estradas, sempre na busca de uma nova cor, do tom impossível, de um novo estudo sobre o território escolhido.
Seu trabalho pode ser entendido como sistemas provisórios que se transformam a cada expedição a campo. A artista plástica/pesquisadora começou atuando diretamente no litoral paraibano, na chamada Formação Barreiras, depósito sedimentar mais importante de sua pesquisa. “Com o passar do tempo, meu trabalho expandiu-se para o interior e depois para outros estados brasileiros”. Muitas áreas foram visitadas com a sua equipe, composta por José Rufino, geólogo e artista plástico (filho de Marlene) e por Antonio Augusto de Almeida, engenheiro, ex-professor de geologia na Escola Técnica (seu marido). Com esse grupo afinado ela vem pesquisando dezenas de locais, guiada pela riqueza policrômica de falésias coloridas que formam a unidade geológica que se estende desde o estado do Pará até o Rio de Janeiro. Sobre ela estão assentadas, entre outras cidades, João Pessoa, Olinda, Natal.
À maneira de um diário de viagem, Marlene, aos 80 anos, continua em campo, estudando cada vez mais e muito tranquila. Parece seguir a Internacional Situacionista, movimento de crítica social, cultural e política de esquerda, ativo na década de 1960, que aconselha seus adeptos a produzirem coisas que lhes deem prazer e não as que podem escravizá-los. Suas férias e as de José Rufino, muitas vezes, foram passadas nas expedições que resultaram em obras que problematizam a natureza e a condição física dos materiais encontrados. “Meu trabalho envolve geologia, química, cartografia porque, para se chegar a um resultado positivo, é preciso conhecer não só profundamente os materiais, mas também saber como devem ser manipulados, afinal cada um tem as suas especificidades”. Todo elemento coletado é classificado, manipulado e guardado em pequenos vidros em seu ateliê em João Pessoa que logo fará parte do museu Terras Brasileiras, que está sendo idealizado. Essa longa pesquisa conta com o apoio da Universidade Federal da Paraíba e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ), e, ainda neste ano, será transformada em livro.
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Chaminés-de-fada geradas por erosão nos sedimentos das falésias do litoral sul da Paraíba
Minha terra, 2020-2021. Pigmentos, resinas e fibras naturais
Em seu ateliê, Marlene faz uma série de pinturas, algumas registram terras em erosão e vegetações locais, que se transformam em paisagens leves, mas críticas. Tais registros nascem a partir de um fluxo de imagens que mudam a partir de outras, até mesmo de galhos e folhagens presentes no ateliê. Nas esculturas seu trabalho diversifica-se, e vale citar a instalação Varas de sombra, composta de tubos de tecido de algodão cru, costurados e enchidos com argila. Como Marlene mesmo define, “essa instalação se reporta à primitiva forma de medir o tempo, com as sombras, modo anterior às clepsidras (relógio de água, um dos primeiros sistemas criados para medir o tempo) e às ampulhetas”. A areia colocada nos tubos fechados não escorrega pelas ampulhetas e alude a uma das vontades mais antigas do homem: parar o tempo. De caráter serialista, os tubos, que se repetem, podem ser produzidos com vários metros, o que impacta quando são instalados em grandes espaços, como aconteceu na Alemanha.
No campo da escultura há peças de grande porte realizadas com celulose e pigmentos naturais que ganham formas orgânicas. Uma série de placas de celulose circulares obtém protagonismo pela materialidade pictórica das densas camadas de pigmentos. Neste ano ela abriu uma galeria, o Escritório de Arte Costa e Almeida, localizada em Bananeiras, em um dos lugares históricos da cidade, onde ela nasceu, com uma exposição de seus últimos trabalhos. Sob o título Copaóba, reuniu obras de grandes dimensões com pinturas em têmpera. Ao visitar a mostra, o crítico Marcos Lontra escreveu: “Todas as paisagens construídas por Marlene têm por objetivo apresentar a cada um de nós a fisicalidade e a transcendência das terras do mundo e com isso dar sentido e beleza a esse sopro, a esse encantado e pequeno lapso de tempo que constitui a vida humana nesse planeta, nessa terra”.
Olhando pelo retrovisor, a artista não sabe precisar em que momento decidiu viver para essas empreitadas. “Não sei se eu estava no ateliê, olhando para uma tela em branco e pensei: eu não quero mais essas tintas, eu preciso ir a uma barreira buscar terra para fazer uma tinta especial. Ou se estava no Cabo Branco, onde vi uma terra linda e decidi levar para o ateliê e fazer uma tinta”. De qualquer maneira, o Cabo Branco, esse ponto mais setentrional do mapa brasileiro, é o marco afetivo de sua obra. Marlene não leu Lucy Lippard, a crítica de arte estadunidense, mas, como ela, enfatiza a necessidade de estabelecer relação singular com o entorno, para dar conta da imaginação geográfica.
O desejo insaciável de descobertas foi a força motriz para ampliar sua pesquisa, que ela só foi entender muito tempo depois. “Além de pesquisadora, esse trabalho me tornou colecionadora de terras”. Marlene fala do estudo das cores como algo muito amplo, e que começou com os filósofos da antiguidade. “Eles ao mesmo tempo estudavam medicina, farmácia, geologia, geografia. Esses cientistas anotavam não só uma cor no códice, mas também a receita de como prepará-la e, com o mesmo material, ainda registravam como fazer um remédio”. Essa mistura de ciência e cultura está no começo do estudo das cores que se move num campo muito vasto. “A química tem importância decisiva, porque temos que saber o que é o material e como aquele material se transforma”. Para ela a alquimia também tem seus encantos porque a ideia de transmutar as coisas, de transformá-las de um modo mais poético, é mágico. “Aristóteles falou das cores, assim como Vitrúvio, Plinio, o Velho, muito antes de Cristo. Para mim, a filosofia estrutura tudo na vida de uma pessoa.
Se hoje eu fosse recomeçar tudo, escolheria de novo a filosofia para poder ser artista e pesquisadora”. Marlene revela que sua estrutura ideológica também vem da filosofia. Ela sempre foi uma notória militante política de esquerda.
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Expedição Minas. A luminosidade da terra amarela de Pompéu, Minas
Gerais, Brasil.
Uma vista do atelier. Cantinho com pigmentos de cores variadas
A sabedoria ancestral dos indígenas é exaltada por ela ao lembrar que alguns povos originários trabalham com a argila onde estão assentados e nomeiam seu território pela cor do solo. “A argila da região de Tabatinga, que é um nome indígena, quer dizer terra branca. A de Tauá significa terra colorida e apresenta uma gama infinita de cores. Há muitos nomes de territórios decorrentes da coloração do solo”.
O museu que ela pretende criar em João Pessoa, com todos seus achados e estudos, será uma extensão do seu trabalho que agora se conecta com o resto do mundo. “Desde o início de minha pesquisa, contei com fontes maravilhosas. Hoje a internet potencializa ainda mais as minhas buscas”. Marlene cita grupos de estudos no Chile que fazem um estudo importante sobre as argilas. “Em Portugal também há pesquisadores com bons estudos de pigmentos. Atualmente temos a possibilidade de discutir o trabalho com um olhar muito mais amplo”.
Com todas as mudanças climáticas violentas, pergunto se as cores também foram modificadas nesses mais de 50 anos. “Não, porque 50 anos em geologia é um tempo muito curto. No início da década de 1980, na Chapada do Araripe, no Ceará, encontrei argilas verdes, muito difíceis de serem localizadas. Muito tempo depois voltei depois ao mesmo local e encontrei a mesma formação ainda com as argilas verdes que eu havia coletado 40 anos antes. O tempo geológico é lento, um tempo diferente”.
O ateliê de Marlene causa espanto a qualquer pessoa não familiarizada com a geologia e acostumada a pensar a terra com a cor marrom. Eu mesma conheci a coleção nos anos de 1980 e me impactei. Seu acervo de pigmentos colocados em frascos já passa dos milhares e ela não pretende parar. Cada vidro é uma janela para o mundo fascinante da geologia e da história da terra. As argilas que compõem a coleção foram formadas ao longo de milhões de anos pela ação do vento e das chuvas sobre as falésias e formações rochosas da Paraíba. Com o passar do tempo, os minerais presentes nas rochas foram se depositando na argila, conferindo a cada camada uma cor e textura únicas. Os gregos chamam de paradoxo o que nós chamamos de coisas que maravilham, os materiais coletados e classificados são, na maior parte, do Nordeste, mas há exemplares de argilas de todo o Brasil. O conjunto é fundamental não só pelo valor estético, mas pela fonte de conhecimento científico, uma vez que guardam em seu interior amostras únicas de argilas com tonalidades buscadas incessantemente, com muita pesquisa e paciência.
A ideia de Marlene é, futuramente, deixar esse material, que também tem caráter pedagógico, em algum espaço público, para ter finalidade mais coletiva. “Também para que as pessoas que o visitem, conheçam e imaginem uma terra. Uma terra diferente, para a gente olhar, sentir e, sobretudo amar, e assim estaremos livres para sonhar”. ✱
Na definição simples de “nação”, o Dicionário Houaiss fala em agrupamento político autônomo, que ocupa território com limites definidos, e cujos membros respeitam instituições compartidas (leis, constituição, governo). E, mais do que isso, que compartilha um mesmo idioma, raízes culturais, costumes, passado histórico.
No Brasil, estamos longe de poder ter uma definição de nação que alcance os indivíduos ou os cidadãos que nele convivem territorialmente. Para muitos, definitivamente, a ideia de nação está ligada à ideia de um patriotismo desenvolvido por uns, para si mesmos.
A nação dos brancos é fundamentalmente dos brancos, que acumularam dinheiro e poder baseados no capital predador. Tudo que veio à tona, nestes últimos meses – sobre as práticas do garimpo ilegal em comunidades indígenas, o ataque brutal às terras e aos rios amazônicos, assim como o resgate de inúmeros trabalhadores em condições análogas à escravidão, em fazendas agrícolas de várias regiões do país – desmente, definitivamente, que possamos definir o Brasil como nação.
É como se houvesse uma impossibilidade estrutural de nação. A Constituição Brasileira, que, por si só, também não seria uma salvaguarda dos cidadãos, é literalmente atirada ao fogo, e a realidade mostra o quão são frágeis as estruturas que a defendem.
Recorramos às palavras de Tadeu Chiarelli, no brilhante artigo desta edição O samba do branquelo doido (pág. 10): “Parte da classe média ‘branca’ brasileira insiste em não se enxergar como integrante de uma sociedade definida por uma série de características e contradições, preferindo viver como se constituísse um grupo de exilados provenientes de outras sociedades e culturas. Vive no interior de Santa Catarina, como se fosse alemão, em São Paulo; como se fosse italiano; em Goiás, como se vivesse no Texas. Mas o paraíso desse grupo tende a ser mesmo os Estados Unidos, a Flórida, Miami e Orlando – para seus integrantes, uma espécie de Brasil que ‘deu certo’.
[…] Por essa necessidade de viver aqui, como se lá estivesse, é que essa classe acaba criando correspondentes locais ao que ela entende como sendo protótipos internacionais. Assim, Ismael Nery nunca é Ismael Nery. Para esse pessoal, Nery será sempre o ‘nosso’ Marc Chagall; Portinari o ‘nosso’ Picasso, Fabio Assunção, ‘nosso’ Brad Pitt. A Avenida Paulista como a ‘nossa’ Quinta Avenida, e assim, até culminar na crença de que Jair Bolsonaro seria o ‘nosso’ Donald Trump.”
Por outro lado, aqueles entre nós que entendemos a necessidade de refundar a nação, pensando-a como inclusiva, desenvolvida e solidária, começamos por onde podemos.
A ideia de defender a criação de políticas públicas inclusivas, respeitosas ao outro, e a construção de ambientes capazes de proporcionar a liberdade, são comentados em texto de Fabio Cypriano, mostrando o quanto é possível fazer acenos a uma refundação dessas políticas no âmbito da cultura.
Alguns exemplos já estão acontecendo e, assim como Sandra Benites, curadora indígena, foi nomeada para a direção de artes visuais da Funarte, Ana Flávia Magalhães Pinto, professora da Universidade de Brasília, foi empossada como Diretora Geral do Arquivo Nacional. Trata-se da primeira mulher negra que assume o cargo de direção do órgão, em 185 anos. Um passo enorme no apoio à pesquisa, gestão e democratização de documentos e do acesso ao conhecimento.
Em São Paulo, a inauguração da Pinacoteca Contemporânea, um projeto desejado desde 2005, longe de meramente agregar mais um equipamento cultural à cidade, trouxe um ganho exponencial para sua cultura. Foi um sopro de ar, reconhecido por todos os presentes. Maria Hirszman conta, nesta edição, todos os detalhes do projeto.
O prédio, pensado como um museu aberto, ressignificou o Parque da Luz, no Bom Retiro, o mais antigo parque público do município, construído em 1825, e tombado pelo CONDEPHAAT em 1981. O novo espaço expositivo se coloca num diálogo amoroso com a Pinacoteca de São Paulo, a Pina Luz, propiciando um novo passeio para a cidade.
Jochen Volz, diretor da Pinacoteca de São Paulo desde 2017, ressaltou, em seu discurso de recepção aos convidados: “Como dizem os arquitetos Paula Zasnicoff e Carlos Alberto Maciel, responsáveis pelo projeto, o museu deve ser um ‘oásis’.
[…] A Pina Contemporânea não é apenas uma ampliação de área expositiva, mas a oferta de outras maneiras – contemporâneas – de contato do público com a arte e com a cultura. A biblioteca da Pinacoteca, uma das maiores especializadas em arte brasileira do país, está instalada ao nível do parque, com acesso direto para todas e todos.”
Na capa desta arte!brasileiros, os dragões do acreano Chico da Silva nos lembram que temos uma luta permanente a perseguir, e a arte nos ajuda nessa peleja. ✱
Jacob A. Chansley, o “viking” da invasão ao Capitólio, nos EUA, em 6 de janeiro de 2021.
O que ocorreu no dia 8 de janeiro deste ano na Praça dos Três Poderes, em Brasília – a ação em si e seus performers – já produziu várias reflexões, e estou certo de que muitas outras ainda serão realizadas. Afinal, aquele evento pode ser interpretado e adjetivado por vários pontos de vista que, mesmo somados, dificilmente darão a verdadeira dimensão do ocorrido.
O que se verificou no Palácio do Planalto, no Congresso Nacional e no Supremo Tribunal Federal naquele dia pode (e deve) ser analisado em seu viés social e político como uma ação estratégica para criar condições para um novo golpe antidemocrático contra a sociedade brasileira, felizmente malogrado. Poder ser também um objeto de análises sociológicas e antropológicas, que busquem entender como e por que grupos aparentemente pacíficos da classe média brasileira – fundamentalmente “brancos” –, invadiram os Palácios da democracia do país como vândalos e como terroristas. [1]
Mas eu gostaria de atentar para aquele ocorrido por outra perspectiva. Gostaria de entendê-lo, e a seus atores, como um tipo de ópera bufa, uma paródia canhestra e cínica do que aconteceu em Washington, Estados Unidos, no dia 6 de janeiro de 2021, durante a invasão do Capitólio.
Homem travestido de ‘viking do Capitólio’, em Niterói (RJ), durante comemorações do 7 de Setembro, em 2021. Foto: Isabella Finholdt /Fotoarena/Folhapress
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Parte da classe média “branca” brasileira insiste em não se enxergar como integrante de uma sociedade definida por uma série de características e contradições, preferindo viver como se constituísse um grupo de exilados provenientes de outras sociedades e culturas. Vive no interior de Santa Catarina como se fosse alemão; em São Paulo, como se fosse italiano; em Goiás, como se vivesse no Texas. Mas o paraíso desse grupo tende a ser mesmo os Estados Unidos, a Flórida, Miami e Orlando – para seus integrantes, uma espécie de Brasil que “deu certo”.
Por essa necessidade de viver aqui como se lá estivesse é que essa classe acaba criando correspondentes locais ao que ela entende como sendo protótipos internacionais. Assim, Ismael Nery nunca é Ismael Nery. Para esse pessoal, Nery será sempre o “nosso” Marc Chagall; Portinari o “nosso” Picasso, Fabio Assunção, “nosso” Brad Pitt. A Avenida Paulista como a “nossa” Quinta Avenida, e, assim, até culminar na crença de que Jair Bolsonaro seria o “nosso” Donald Trump.
É neste sentido que o dia 8 de janeiro de 2023 foi o “nosso” 6 de janeiro de 2021; é neste sentido que a invasão dos palácios da Praça dos Três Poderes em Brasília, foi a “nossa” invasão do Capitólio.
Guardando a contundência de como a dimensão paródica daquele ato de 8 de janeiro de 2023 e entendendo tal dimensão como um drama, talvez possamos perceber que a conhecida frase proferida por Karl Marx pode assumir outros sentidos: se, para o filósofo alemão, a história acontece como tragédia e se repete como farsa, aqui na periferia, a farsa – e sua dimensão risível – é sempre trágica também, pois, afinal, a cópia – quando acompanhada da tentativa de apagamento simbólico do tempo e da história, (como veremos) – pode ser também profundamente dramática.
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Antes de entrar nas considerações sobre determinadas imagens da invasão propagadas pelas mídias, destaco alguns fatos ocorridos em janeiro de 2023 em Brasília para que não nos esqueçamos – e que fique bem gravado em nossas mentes – que aquilo tudo foi, em grande medida, um arremedo do ocorrido em Washington em 2021:
1 – O Capitólio – sede do Congresso norte-americano – foi concebido ainda no século 18 como um complexo de edifícios que, se por um lado faz referência a um passado greco-romano, ele se comporta como uma fortaleza, um bunker branco e inexpugnável. Já os palácios da Praça dos Três Poderes, criados no final dos anos 1950, embora tenham tido a arquitetura grega clássica como protótipo, comportam-se, antes de tudo, como locais vulneráveis, pensados a partir dos conceitos de acolhimento, integração e passagem.
2 – O Capitólio foi invadido e os palácios da Praça dos Três Poderes também. Porém, se o primeiro sofreu a invasão durante um dia de semana (sexta-feira), para tentar impedir a diplomação de John Biden (portanto, antes de ele assumir a presidência), os palácios brasileiros foram invadidos em um domingo à tarde, quando estavam vazios, alguns dias após Lula ter assumido a presidência.
3 – Donald Trump, antes da invasão do Capitólio, conclamou pública e pessoalmente seus correligionários a se dirigirem para aquela casa do Congresso, para rechaçar e impedir o ato que estava prestes a ocorrer. Jair Bolsonaro, por sua vez, sai do Brasil antes do término do seu mandato, parecendo ter delegado a seus apaniguados e sectários mais próximos o comando da operação do dia 8 de janeiro.
4 – Se após o pronunciamento de Donald Trump, seus partidários se dirigiram por livre e espontânea vontade rumo ao Capitólio, aqueles de Jair Bolsonaro foram conduzidos até a Esplanada dos Ministérios pela polícia local.
Assim, o que ocorreu em Washington tinha uma dimensão dramática, em grande parte orquestrada no calor da hora e da circunstância de um momento determinado da história norte-americana. Já o que ocorreu em Brasília, dois anos depois, foi um arremedo orquestrado para que o já ex-presidente Bolsonaro se tornasse o “nosso” Trump, um Trump de segunda ordem, é claro, mas tornado herói, o salvador da pátria.
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Obras de arte danificadas na invasão incluem telas de Di Cavalcanti, vasos centenários, o relógio do século XVII que D. João VI trouxe para o Brasil em 1808 e esculturas.
Foto: Valter Campanato Agência Brasil
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Uma figura que chamou a atenção durante a invasão do Capitólio foi um sujeito fantasiado de viking, pintado com as cores e as estrelas da bandeira norte-americana, como se estivesse pronto para a guerra. Por mais patético que aquele sujeito parecesse, algo em sua atitude precisa ser levado em consideração: fantasiado de viking, ele invocava – apenas para alguns norte-americanos, é claro – uma ascendência norte-europeia, um passado com um pé na origem etnográfica de alguns dos habitantes daquele país.
Pois nós também tivemos o “nosso” viking, surgido nas comemorações do 7 de setembro de 2021 em São Paulo, oito meses após o aparecimento do viking “original”, em Washington. Como uma espécie de prólogo do que ocorreria dois anos depois – ou como uma espécie de “abre-alas” de uma escola de samba que deu ruim –, nas comemorações bolsonaristas daquele dia 7 de setembro, o “nosso” viking refletia como um espelho distorcido o protótipo “deles”.
Porém, não podendo ser um viking, nem verdadeiro, e nem fake, (como o norte-americano), o viking canarinho optou por se transformar em um falso indígena. Um indígena com direito a pintura corporal verde e amarela, segurando uma placa com o nome do ex-deputado federal Daniel Silveira [2] e – pasmem! – um cocar branco, verde e amarelo nos moldes dos indígenas… apache! Sim dos apaches, aqueles dos bangue-bangues do cinema norte-americano.
Essa figura bizarra, o “nosso” viking – um falso indígena de pantomima –, ao encenar aquele episódio grotesco, simbolicamente anunciava o que viria a ocorrer na capital do país dois anos depois: o simulacro tupiniquim, a “nossa” invasão do Capitólio.
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É certo que o homem que destruiu o relógio do século XVII que D. João VI trouxe para o Brasil em 1808, realizou essa ação da mesma maneira que destruiu o móvel que sustentava a peça, a mesa e a cadeira que estavam ali por perto. No enredo de destruição geral que parecia governá-lo, nem o caráter precioso do relógio, tão raro, o fez parar ou o incentivou a destruí-lo especificamente. Não: ele acabava com tudo o que lhe aparecia à frente de forma “democrática”, nada parecia salvar-se de sua fúria.
No entanto, parece que existia naquele sujeito um vislumbre de consciência de que, de fato, aquele relógio não era – ou não deveria ser –, um objeto qualquer. E talvez tenha sido essa percepção que o levou a querer destruir a câmera de vigilância.
De qualquer maneira, ao arremessar o relógio de D. João VI ao chão, aquele homem buscou parar o tempo, transformando aquela invasão numa quebra, numa espécie de hiato.
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A galeria dos presidentes da República do Brasil foi brutalmente depredada.
Reprodução Internet
Se os invasores do Capitólio visavam impedir a diplomação de Biden, conquistando de novo o poder para seguir em frente, os “nossos” invasores tinham outra meta. O interesse ali não era dar continuidade ao processo histórico, invertendo seu rumo (como os invasores “deles”), o propósito era detê-lo. Era instituir um final, um grau zero para que, na sequência, a elite reacionária tomasse conta do país. Daí a importância simbólica do relógio que pertencera a D. João 6º.
Daí também a importância simbólica da destruição das peças da galeria de imagens dos presidentes e da presidenta que ornava uma área do Palácio do Planalto. Arruinar aquelas imagens complementava a alegoria em que se transformou aquela invasão: deter o tempo, mas, igualmente, romper e destruir a história, o passado brasileiro – sempre o maior desejo bolsonarista.
A questão não era destruir a imagem de todos os ex-presidentes e da presidenta, a questão era retirar, dessa espécie de cronologia iconográfica, a imagem do “mito”. Uma iconoclastia seletiva. A imagem do sujeito meio atônito, meio parvo, segurando a fotografia de Jair Bolsonaro em frente às outras imagens, destruídas, diz muito sobre o que desejava aquela turba quando invadiu os palácios de Brasília.
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Não me interessa expressar aqui meu lamento pelo vandalismo cometido contra as obras de Emiliano Di Cavalcanti e outros artistas tão significativos. Não me interessa porque não consegui perceber, nesses atos de ataque às obras de arte, nenhuma diferença com que os arruaceiros e arruaceiras do 8 de janeiro destruíram cadeiras, vitrines e outros equipamentos. Parece não ter havido, entre eles, a capacidade de distinguir um bem precioso e raro de outro mais trivial. O que parece ter imperado ali foi a fúria destrutiva, preservando apenas a imagem do “mito”.
Se os “nossos” vândalos destruíram objetos de arte e objetos comezinhos, se defecaram e urinaram nos palácios da democracia brasileira, os vândalos “deles” foram menos destruidores dos símbolos e, ao que se sabe, nem um pouco escatológicos. Não se trata aqui, é claro, de estabelecer uma hierarquia, afirmando que os manifestantes “deles” foram mais civilizados do que os nossos. Trata-se apenas de chamar a atenção para o fato de que a farsa pode ser ainda mais nefasta e dramática, quando tentam repetir (e calar) a história. ✱
Referências [1] Sim, terroristas. Quem toca o terror com rojões, barras de metal etc., e, ainda por cima, rouba armas do Gabinete de Segurança Institucional, é terrorista. [2] Sim, Daniel Silveira, aquele que, em público, ajudou a destruir uma placa em homenagem a Marielle Franco, vereadora executada com seu motorista na cidade do Rio de Janeiro já faz anos, sendo que até hoje não se sabe quem foi o mandante do crime.
De todas as instituições vinculadas ao Ministério da Cultura, uma das que vão recomeçar sua atuação sob a gestão de uma educadora de carreira é o Instituto Brasileiro de Museus (Ibram). A escolhida para a presidência do Ibram, no dia 7 de fevereiro, é Fernanda Santana Rabello de Castro, que atuou na área educacional do Museu da Chácara do Céu desde 2010. Formada em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com experiência na rede de educação básica do município de Teresópolis e do estado do Rio desde 2006, Fernanda estava exercendo o cargo de diretora substituta do Museu Histórico Nacional. Ela é especialista em História e Cultura da África e do Negro no Brasil pela Universidade Candido Mendes (UCAM), mestranda em Políticas e Instituições Educacionais na Universidade do Rio e Coordenadora do Grupo de Trabalho de publicações da Rede de Educadores de Museus do Rio. Fernanda terá um orçamento com R$ 21 milhões a mais do que aquele executado no ano passado para conduzir a política nacional de museus. Ela conversou com a reportagem da arte!brasileiros.
arte!✱ – O Ibram acaba de passar por uma gestão que chegou a impor notória ingerência de interesses religiosos, ideológicos, de aparelhamento político, em vez de priorização técnica. Houve inclusive a presença de grupos monarquistas em ação nos museus. Uma historiadora do Rio Grande do Sul chegou a recusar convite para assumir o Museu Histórico Nacional, por enxergar vícios no processo de nomeação para o cargo. Qual foi o prejuízo que a museologia nacional sofreu nesse período (inclusive com substancial perda de recursos) e o que está sendo feito para reconquistar o tempo e os esforços perdidos. Haverá um incremento no orçamento do Ibram (de quanto foi a perda progressiva nos últimos anos)?
Fernanda Santana Rabello de Castro – Em primeiro lugar, é importante considerar que essas afirmações poderiam ser feitas a respeito do governo anterior, mas não há evidências de que possam ser relacionadas diretamente à gestão do Ibram. A recusa da historiadora Doris Couto em assumir o cargo da direção do Museu Histórico Nacional se deu em consideração ao desrespeito ao processo seletivo e às normas que o regulavam. Assim como no caso das políticas culturais e das demais vinculadas ao então extinto Ministério da Cultura, o Ibram e o setor museal sofreram com cortes e contingenciamentos de recursos, reduzidos em até um terço se comparados a momentos anteriores, além de ter passado por desestruturação institucional no que diz respeito a sua estrutura organizacional, à realização de políticas públicas já consolidadas e à composição do quadro de servidores. O Ibram tem em 2023 um orçamento recorde, que chega a cerca de R$ 146 milhões. Esses recursos serão utilizados para a recomposição das políticas, para a reestruturação dos museus geridos pelo instituto, na perspectiva da participação e do cumprimento social do Ibram e dos museus brasileiros na retomada da democracia.
Qual é a principal orientação do novo Ministério da Cultura para a condução da política nacional nos museus da estrutura do Ibram?
O Ibram tem autonomia para gerir suas 30 unidades museológicas. No dia 2 de março) foi realizado o primeiro Seminário de Planejamento Estratégico do MinC, em que foram desenhados desafios e prioridades das políticas públicas de cultura, tendo em vista que a atuação de secretarias e vinculadas vai se dar num sentido comum. A principal orientação articulada neste Seminário foi a retomada da democracia, do diálogo e da participação social na construção das políticas públicas e da valorização da cultura.
Há museus em fase de reconstrução no país, como o Museu Nacional, cuja reabertura só está prevista para 2027. Como o Ibram vai atuar para entrar na coordenação dos esforços de reconstrução daquela instituição?
O Ibram não tem ingerência sobre museus que possuem gestão própria, como o caso do Museu Nacional, que é vinculado à Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atuaremos como parceiros, atendendo às demandas apresentadas pela instituição, dentro das possibilidades institucionais.
Quais são as prioridades da nova gestão do Ibram – a atualização tecnológica, a reestruturação e modernização dos acervos, a inserção na nova ordem global: quais são suas prioridades?
Atuaremos em duas frentes principais: a reestruturação do Instituto e a retomada da participação social nas políticas públicas. Alguns dos desafios da reestruturação são a valorização do quadro de profissionais, a revisão da estrutura organizacional e do regimento interno do órgão, a estruturação tecnológica e a realização de obras e a implementação de planos de gestão de risco no patrimônio musealizado. No contexto da participação social, serão retomados mecanismos existentes de participação e ampliadas as possibilidades de atuação da sociedade civil na elaboração, implementação e no monitoramento das políticas setoriais.
Recentemente, a estrutura do Ibram transferiu um dos seus museus vinculados, o Museu de Biologia Professor Mello Leitão (MNPML), para a gestão do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações, na abrangência do Instituto Nacional da Mata Atlântica. Essa compreensão do escopo de cada instituição vai persistir em sua gestão ou haverá uma revisão da abrangência de cada museu com essas características (de biologia, por exemplo)?
Essa transferência foi realizada em 2014, tendo em vista tratativas políticas da época, considerando o perfil do museu e de sua gestão. O escopo do acervo e perfil dos museus do Ibram foi definido em gestões passadas. Quaisquer alterações que possam surgir no contexto atual serão alvo de debate entre as instituições, a gestão e sociedade, considerando aspectos técnicos e sociais. ✱
A Ministra da Cultura, Margareth Menezes, durante ato simbólico na reabertura da sede do MinC, em 24 de janeiro Foto: Filipe Araújo
A artista e curadora Naine Terena, que assinou a curadoria da pioneira mostra de arte indígena Véxoa: Nós sabemos, na Pinacoteca de São Paulo (em 2020, reunindo 23 artistas e coletivos), é a nova diretora de Educação e Formação Artística da Secretaria Nacional de Formação, Livro e Leitura do Ministério da Cultura. A cientista política Layanne Lisa coordena a diretoria de Articulação e Governança dos Comitês de Cultura do mesmo ministério. A socióloga Leticia Schwarz é a subsecretária de Gestão Estratégica. A antropóloga Raquel Dias Teixeira é a coordenadora do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular do Iphan. A educadora Kelma Ferreira coordena o Apoio Administrativo do Ibram. A doutora em estudos étnicos e africanos Desiree Tozi é a nova diretora de Cooperação e Fomento do Iphan.
No novo Ministério da Cultura do Brasil de 2023, as mulheres não são apenas maioria, elas decidem. Em apenas dois meses e meio, Margareth Menezes mudou completamente os consagrados paradigmas de composição administrativa na cultura do Estado Brasileiro. No dia 3 de março, na Sala Cecília Meirelles, no Rio, Margareth deu posse à baiana Maria Marighella (neta de Carlos Marighella) na presidência da Fundação Nacional de Artes (Funarte) com um grande ato público no Rio de Janeiro, sonorizado pelo batuque ao vivo do grupo percussivo Tambores de Olokun, um rito que incorporou o antigo movimento #OcupaMinC, nascido em 2016, na resistência ao golpe de Estado contra a ex-presidenta Dilma Rousseff. Ao anunciar a nova diretoria colegiada da Funarte, Maria Marighella comunicou que estava priorizando a paridade de gênero e montando “uma Funarte com mulheres no centro das decisões, incidindo no modo como vemos e fazemos as políticas”.
As mudanças, que poderiam se situar predominantemente no território da representatividade, vão muito além do simbólico: no último dia 7, por meio de uma portaria, Margareth Menezes criou o novíssimo Comitê de Gênero, Raça e Diversidade no ministério, com o intuito de produzir diagnósticos de ações que possam potencializar políticas de transversalidade afirmativa (e criar ferramentas e mecanismos a serem incorporadas definitivamente pelo Estado brasileiro). Quatro outros ministérios do governo Lula já integram o Comitê de Margareth. “O Brasil será um país melhor na medida em que respeitar, acolher e incentivar o desenvolvimento de todas as mulheres”, afirmou a ministra.
No plano prático, o novo MinC está mantendo seu foco principal no destravamento da ação cultural no plano federal. Na metade de abril, acaba o prazo que a ministra deu para um grupo de trabalho regulamentar a nova Lei Paulo Gustavo, que vai destinar R$ 3,8 bilhões para estímulo à cultura nos Estados e Municípios. A transferência, a maior em volume de recursos da História do país, já poderá começar ainda em abril.
Para fazer frente a essa demanda, que será de controle e fiscalização, além de acompanhamento, o Ministério da Cultura começou a recompor sua equipe de experts em incentivo e legislação. O retorno de servidores experientes, com largo conhecimento histórico e técnico das regras e normas que dão segurança jurídica ao setor de incentivo, está sendo minucioso.
Há alguns dias, Margareth recontratou o primeiro servidor que tinha sido demitido na gestão Mario Frias por questões ideológicas, Odecir Luiz Prata da Costa, um dos maiores experts em leis de incentivo do país. Costa fora exonerado por Frias assim que este assumiu a Secretaria Especial de Cultura do governo federal, em julho de 2020, a mando da chamada “ala olavista” daquela gestão, para que o antigo governo mantivesse centralizada a decisão sobre fomento, com regras não raras de exceção ideológica e censura. Servidor desde 1988, de perfil técnico, Costa se opôs à sanha persecutória, extremista e negacionista na condução das leis de incentivo e foi afastado.
Outra servidora reposta em suas funções foi Teresa Cristina Rocha Azevedo de Oliveira, nomeada como Diretora do Departamento de Fomento Direto da Secretaria de Economia Criativa. Essa reestruturação é considerada essencial para o acionamento não apenas da Lei Rouanet, que se encontra atrofiada (e soterrada por prestações de contas antigas), mas também das novíssimas legislações de incentivo que estão a caminho, a Lei Paulo Gustavo e a Lei Aldir Blanc II, que destinarão cerca de R$ 7 bilhões para o setor.
Segundo o MinC, cinco milhões de pessoas trabalham na área cultural do país e geram cerca de 3% do PIB nacional. Um estímulo do tamanho do que se anuncia para 2023 e 2024 pode gerar milhares de empregos e acionar uma área econômica fundamental, que se encaixa na chamada soft economy (baseada na criatividade, no acesso, compartilhamento, na colaboração e confiança), sem os efeitos colaterais das indústrias pesadas e ambientalmente daninhas.
A Lei Rouanet será alvo de um novo decreto governamental, que deve sair até o final deste mês de março, com o intuito de fazer ajustes pontuais no texto – além do retorno dos planos plurianuais e anuais para instituições culturais, das ações continuadas e do fomento aos grupos artísticos estáveis, novos limites de valores para captação, gestão e cachês, será reativada a Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (CNIC).
Parte do mapeamento do potencial brasileiro de cultura estará a cargo da mais recente inovação do governo: a Secretaria dos Comitês de Cultura. A escolhida para pilotar essa experiência foi a socióloga e educadora Roberta Martins, ex-diretora de diversidade cultural da Fundação de Arte de Niterói (FAN). A gestora, que já teve sob sua administração no município de Niterói o Theatro Municipal João Caetano, o Museu de Arte Contemporânea (MAC) e a Companhia de Ballet de Niterói, tem agora por responsabilidade articular o provável sucessor dos Pontos de Cultura na vanguarda das ações governamentais.
O conceito dos Comitês pressupõe a existência de um núcleo em cada unidade da federação, formado por artistas, intelectuais, trabalhadores e trabalhadoras da cultura locais, sem vínculo com o governo. Será a própria comunidade refletindo e propondo estratégias de enfrentamento para grandes temas da contemporaneidade brasileira e global. Esses comitês, acredita o governo, permitirão um conhecimento mais profundo das demandas e necessidades de cada rincão do país, driblando a tendência centralista histórica do governo. ✱
Leandro Grass, professor, sociólogo e mestre em desenvolvimento sustentável, gestor cultural e ativista ligado ao Partido Verde (PV) assumiu a presidência do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) no dia 10 de janeiro. Grass tinha integrado o Grupo de Transição do presidente Lula, coordenando o Grupo Técnico de Desenvolvimento Regional.
A missão de Grass é complexa: restaurar a capacidade da ação do Estado brasileiro na proteção do patrimônio histórico nacional, tarefa que foi vilipendiada de todas as maneiras possíveis no governo de Jair Bolsonaro durante os últimos quatro anos. Bolsonaro chegou a exonerar em 2020 a então presidente do Iphan, Kátia Bogéa, a pedido de um empresário aliado. Grass concedeu a seguinte entrevista à arte!brasileiros:
arte!✱ – Recentemente, o Iphan exonerou 18 superintendentes de quase todos os Estados do país. Essa mega-exoneração mostra que havia uma contaminação generalizada no patrimônio histórico, não?
Leandro Grass – A gente tinha um conjunto de superintendentes que não estava nem um pouco em sintonia com a formação técnica requerida, com os princípios de republicanismo do patrimônio, com referências muito desconectadas das políticas nacionais. Para você ter uma ideia, havia pessoas de perfil monarquista, ou seja, antirrepublicanas, assim como alheias totalmente ao setor, influenciadores digitais, além de outras ligadas a igrejas locais. Essas estavam lá por um arranjo político dessas igrejas. Estavam desconectados do corpo técnico e da formação relativa ao patrimônio. Essa primeira leva de exonerações foi para dar um primeiro ajuste substancial, trocar por técnicos, especialistas. Agora, haverá uma segunda leva da área de gestão. Trocamos praticamente todos os superintendentes, faltam apenas dois.
E de quais estados são esses dois?
Alagoas e Paraná.
Outro aspecto visível da deterioração do serviço federal do patrimônio foi a perda substancial de recursos. É possível dizer qual foi o tamanho da perda nos últimos quatro anos?
Em despesas discricionárias a perda foi de algo em torno de R$ 70 a 80 milhões nos últimos quatro anos. Na transição de governo, o novo governo recompôs os valores que eram praticados em 2016.
Quais serão as prioridades de investimento em sua gestão?
Há um conjunto grande de planos de ação que estão sendo preparados em cada estado, cada região, e essas ações definidas em seus próprios locais é que serão prioridade de destinação de recursos.
O senhor falou que o patrimônio recuperou o orçamento que tinha em 2016. Mas, desde aquela época, muita coisa nova foi incorporada, tombada, o Iphan cresceu bastante.
Sim, são mais de 1,2 mil bens tombados, fora os tombamentos imateriais. Estamos buscando parcerias junto à iniciativa privada, assim como nos municípios e estados, para aumentar os recursos, as ações. E, claro, também recompor nossa capacidade de execução orçamentária.
Houve alguns casos em que o antigo governo colocou à venda o patrimônio tombado, caso de alguns parques estaduais como Jericoacoara, no Ceará.
A gestão dos patrimônios naturais está a cargo do IMCBio, muito embora alguns sejam tombados, como é o caso do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, em Goiás. Como bem tombado, a gente tem a responsabilidade de acompanhar. Boa parte desse patrimônio está a cargo de universidades, por exemplo, que definem o plano de uso e a forma de gestão. O que a gente teve de forma mais aguda foi descuido, paralisação de análises, abandono. Houve algumas tentativas de destombamento, mas que (o antigo governo) não chegou a concluir por conta da ação do Ministério Público.
Houve um caso, notório, de uma interferência direta do ex-presidente, no caso daquele empresário de Santa Catarina, o dono da Havan, Luciano Hang, que teve os planos de construção de uma sede barrados pelo Iphan, e ele conseguiu que fosse demitida a presidente do Instituto. Como dar publicidade ao que aconteceu nesses casos, durante esse período, para fins de conhecimento público?
Olha, a gente pediu relatórios situacionais para todas as superintendências. Processos que porventura tenham se chocado com as normativas internas, com a legislação e as normas, nós vamos encaminhar para a procuradoria, para que sejam tomadas as medidas adequadas de responsabilização.
No caso do patrimônio imaterial, o governo anterior chegou a nomear um pastor evangélico no setor justamente para atingir o conceito de imaterial.
A gente buscou sanar isso colocando um técnico da área no lugar. É sempre a melhor atitude: devolver aos especialistas a condução da área.
Um dos atos desse servidor foi tentar boicotar o acervo de arte de matriz africana que foi destinada ao Museu da República, no Rio. Como sua gestão está tratando desse assunto?
É a Coleção Nosso Sagrado. Nos próximos dias, nós vamos publicar uma portaria rebatizando essa coleção, que era chamada de Coleção de Magia Negra, rebatizando oficialmente como Acervo Nosso Sagrado.
Quando ocorreu sua nomeação para a presidência do Iphan, houve críticas. Muita gente dizia que o senhor estava preenchendo um cargo de indicação política.
É natural que, depois de todos os traumas por que passou o serviço do patrimônio histórico, os servidores quisessem para a presidência um quadro interno. Mas eu não sou alheio ao setor, tenho informação na área das políticas públicas, acompanho há muito tempo as questões relativas ao patrimônio. A gente já sanou isso. Indicamos uma diretoria formada por servidores, colocamos servidores de carreira em superintendências. A questão já foi 100% superada. ✱
Urna funerária marajoara (Pará, séc. 5-15). Foto: Cortesia Museu da Língua Portuguesa
O Conselho Internacional de Museus (ICOM) divulgou em fevereiro a Red List Brasil, um documento que elenca as tipologias de bens culturais do país mais suscetíveis à comercialização ilegal. Criada em parceria com especialistas brasileiros, a Lista Vermelha traz exemplos de fósseis, arte sacra, mapas, livros e peças etnográficas e arqueológicas sob ameaça de tráfico internacional. O lançamento aconteceu no Museu da Língua Portuguesa, com a presença de Emma Nardi, presidente global do ICOM; da ministra da Cultura, Margareth Menezes, e de Renata Motta, presidente do ICOM Brasil e diretora-executiva do museu paulistano, entre outros.
As Red Lists são publicadas desde 2000 pelo ICOM. Hoje, 57 países estão cobertos pelos 20 documentos editados pela instituição. Alguns deles foram criados em caráter de emergência, como é o caso da recém-lançada lista que contempla objetos em risco da Ucrânia, país em guerra contra a Rússia. Roberta Saraiva, diretora do ICOM Brasil, destaca que, segundo levantamento feito pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), de um total 1.974 objetos brasileiros desaparecidos, apenas 48 foram recuperados. Ainda segundo Roberta, a Interpol (The International Criminal Police Organization) aponta o Brasil como o 26º país com maior número de bens traficados no mundo.
“Desde os anos 1940, o Brasil tem uma legislação de proteção ao patrimônio robusta. Mas é um país com dimensões continentais e fronteiras muito porosas. Portanto, é sempre um grande desafio exercer o controle da saída desses objetos do território nacional”, avalia Roberta. “Um documento como a Red List é muito estruturante porque, além de seu uso prático, junto à Receita Federal e Polícia Federal, por exemplo, ele articula diferentes instâncias governamentais, especialistas na área do país, como o Iphan, o Instituto Brasileiro de Museus (Ibram) e o MinC”.
A Red List Brasil, ressalte-se, não mostra objetos já comercializados ilegalmente. Mas aponta as tipologias mais em risco, por meio de fotografias e identificações fornecidas pela Fundação Biblioteca Nacional (FBN), pelo Iphan (MG e RJ), pelo Museu de Arqueologia e Etnologia da USP (MAE), pelo Museu de Ciências da Terra (MCT), pelas universidades Federal e do estado do Rio de Janeiro (UFRJ e UERJ), pelo Museu Nacional (MN) e o Museu Regional Casa dos Ottoni (MRCO). A arte!brasileiros conversou também com Sophie Delepierre, coordenadora do Departamento de Patrimônio do ICOM. Leia a seguir:
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Foto da "Avenue des Palmeis", de Revert Henry Klumb,.1860, 9 x 6 cm. Foto: Cortesia Museu da Língua Portuguesa
Capa da Lista Vermelha Brasil.
Foto: Cortesia Museu da Língua Portuguesa
Mapa do Brasil, de Giacomo Gastaldi, Itália, século XV, 30,9 x 39,4 cm.
Foto: Cortesia Museu da Língua Portuguesa
Primeira edição de O Tico-tico, Rio de Janeiro, 1905, 32 cm.
Fotos: Roosevelt Mota/MN | Rafael Costa da Silva/MCT
Máscara Tapirapé.
Abebé-Brass, objeto de ritual de Oxum, Rio de Janeiro, 1880, 28x20.
Fóssil de peixe, formação Crato, Bacia do Araripe, aprox. 120 milhões de anos, 44 x 12 cm
arte!✱ – O que motivou a criação da Red List Brasil?
Sophie Delepierre – Às vezes, há um equívoco de que o tráfico ilícito é apenas uma preocupação para regiões em crise e, embora seja verdade que o ICOM preparou Listas Vermelhas de emergência para países em situações de desastre, a comercialização ilegal de bens culturais afeta todos os países, e nenhuma região é poupada desse problema. Como em muitos países do mundo, o patrimônio cultural brasileiro também corre o risco de dispersão, destruição, roubo, saque e tráfico. O Brasil é um país vasto, com um rico patrimônio que representa suas diversas tradições culturais e históricas. Apesar das fortes leis de proteção, tanto em nível nacional quanto internacional, o patrimônio nacional continua em risco de roubo e exportação ilegal, com baixa taxa de recuperação.
Quando teve início o processo de elaboração da lista, e ele envolveu quantas pessoas, dentro e fora do país?
A ideia deste projeto remonta a vários anos, mas a preparação da Lista Vermelha de Bens Culturais Brasileiros em Risco começou em 2021 com a seleção de especialistas de todo o Brasil. Eles identificaram as principais categorias de patrimônio cultural em maior risco de acordo com três critérios: os bens culturais incluídos na Lista Vermelha devem ser protegidos pela legislação nacional; vulneráveis (ou seja, em risco de roubo e exportação ilegal) e em grande demanda do mercado de arte. Como muitos países, o patrimônio arqueológico do Brasil corre o risco de roubo de museus e saques de sítios arqueológicos, assim como suas instituições religiosas e seus artefatos de arte e serviços litúrgicos, materiais bibliográficos, itens de comunidades indígenas do Brasil e fósseis, cultural e cientificamente objetos importantes. Para discutir e analisar todos os componentes do patrimônio cultural brasileiro, o Comitê Nacional do ICOM no Brasil reuniu uma grande equipe de especialistas sob a liderança de um coordenador nacional que trabalhou diretamente com o Departamento de Proteção ao Patrimônio da Secretaria do ICOM em Paris.
O que acontece após o lançamento da Lista Vermelha Brasil?
No ICOM, costuma-se dizer que a publicação de uma nova Lista Vermelha representa 50% do trabalho realizado. Os restantes 50% centram-se na comunicação e divulgação para tornar a lista conhecida a nível internacional. O ICOM trabalha com sua rede de 50 mil membros em todo o mundo, bem como com parceiros internacionais como UNESCO, UNIDROIT, Interpol e WCO para distribuir as Listas Vermelhas o mais amplamente possível. Claro que seu principal objetivo é combater o tráfico e ajudar na devolução e restituição de bens culturais brasileiros exportados ilegalmente ou roubados, mas ela é também uma poderosa ferramenta de conscientização, com o objetivo de prevenir esse tráfico, alertando e educando sobre a necessidade de proteger o patrimônio.
O futuro dirá se esses objetivos de prevenção e restituição foram alcançados. Mas também é importante destacar o fato de que as Listas Vermelhas do ICOM são apenas uma ferramenta entre muitas outras. Para combater o tráfico, cada Estado deve ratificar e implementar convenções internacionais, como a Convenção da UNESCO de 1970 e a Convenção UNIDROIT de 1995, bem como estabelecer uma legislação forte e serviços dedicados juntamente com ferramentas operacionais. Somente a conjunção de todos esses esforços protegerá eficientemente o patrimônio cultural.
De todas as categorias listas, qual corre mais risco?
Guiados pelos três critérios de seleção de categorias, os especialistas brasileiros identificaram cinco tipologias em maior risco. Em uma segunda etapa, os especialistas selecionaram as imagens correspondentes que serviram para melhor representar os tipos de objetos. Todas essas categorias estão ameaçadas de extinção. No entanto, é interessante destacar que a arqueologia é uma categoria regularmente presente nas Listas Vermelhas do ICOM, pois a pilhagem de sítios arqueológicos é uma dificuldade compartilhada por muitos países. No Brasil, artefatos arqueológicos do período pré-colonial, principalmente da Amazônia, são os alvos mais frequentes, e incluem cerâmicas decorativas, como urnas funerárias, vasos e estatuetas, e artefatos de pedra, como pontas de flechas, lâminas de machado e pequenos pingentes.
O quão lucrativo é o mercado de comércio ilegal de tais bens culturais?
Nos últimos anos, o tráfico ilícito de arte e antiguidades tornou-se um grave problema de segurança global, que transcende fronteiras e cujo impacto vai muito além da perda de patrimônio material. No entanto, dada a natureza ilícita do tráfico de bens culturais e a falta de regulamentação geral do mercado, é extremamente complicado obter estatísticas confiáveis. O combate ao tráfico tornou-se um grande desafio que envolve monitoramento permanente, ações complementares de cooperação e desenvolvimento de instrumentos e ferramentas eficazes. Entre as soluções defendidas pelos especialistas, medidas de sensibilização e controle são essenciais na proteção do patrimônio móvel. É por isso que o ICOM elabora as Listas Vermelhas. ✱
Falta nome da Obra, da série Axs Nossxs Filhxs, 2021
Arte para Lia D Castro é prática e técnica, ela ressalta, a todo momento, em sua conversa com a arte!brasileiros. Em suas criações, trabalha com óleo sobre tela, xilogravura, carvão vegetal, giz pastel seco, caneta e até esparadrapo. Arte, para Lia, também é processo. Na exposição A cumplicidade refletida, que a Galeria Jaqueline Martins apresentou até 18 de março – e que em breve segue para a sua filial em Bruxelas (Bélgica) – a artista mostrou pinturas e fotografias feitas ao longo de sete anos, em programas de sexo pago, com homens cisgêneros, heterossexuais, pretos e brancos, com idades de 18 a 25 anos.
Nesses encontros, a artista discutia transfobia e racismo, a partir da leitura de autores como Angela Davis, Chinua Achebe, Achille Mbembe, Toni Morrison e Lélia Gonzalez, entre outros. Transexual, negra, Lia lançou mão da prostituição como “ferramenta de diálogo”.
“Como mulher transexual, seria muito difícil fazer um chamamento para entrevistas com esses homens. Acabei utilizando aquilo que nos é dado de forma compulsória, que é a prostituição”, conta. “Então, de início, eles chegaram até mim pelo viés da prostituição. Pagaram-me o primeiro, o segundo e o terceiro encontros. A partir do quarto, falei que, ao invés de me pagarem em dinheiro, eles poderiam me pagar com informação, para a gente construir uma narrativa decolonial em que eu questiono como são as relações racistas para esses jovens”.
A artista conta que, dos quase 700 homens que passaram por sua casa, ao longo desses anos, chegou a um conjunto de 50 que aceitaram a sua proposta. Ela cita, como exemplo, um menino chamado Johnny, que ela identificou como racista, e com quem fez leituras de Angela Davis, nos intervalos entre o sexo, “para ele se reconhecer como branco agressor”. Como em todos os programas, Lia fazia anotações, gravava e depois transcrevia algumas conversas, que depois serviram de base para palestras feitas por ela. Uma assessoria de prevenção e combate ao racismo e à transfobia no mercado de trabalho, para empresas como plataformas de streaming.
“Esse foi um primeiro momento do projeto, em 2017, quando fui convidada pela Amazon, depois HBO, Amazon, Netflix, Instituto Goethe e algumas unidades do Sesc, para prestar essa assessoria”, explica a artista. “Depois de dois ou três anos, eu perguntei para eles como gostariam de materializar aquelas discussões e de ser retratados para o mundo, com que cores e tintas, porque sabiam que era artista plástica. Eles também tinham o direito de escolher o resultado final, eliminando, por exemplo, fotografias de que não gostassem”.
A partir daí surgiram as séries apresentadas em A cumplicidade refletida: com os jovens brancos, Seus filhos também praticam; com os pretos, Axs nossxs filhxs. Do projeto saiu ainda a série A travessia do Rubicão, sobre a terapia hormonal para sua transição e de outras mulheres transexuais, cerca de 800, a grande maioria prostitutas, com quem também conversou sobre aqueles temas, ao longo do mesmo período.
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Detalhe de "Davi, da série Axs Nossxs Filhxs", 2021,tinta óleo, tinta acrílica, grafite sobre tela, unique,dimensões variáveis(7 partes).
"A Travessia do
Rubicão", s/d, tinta
óleo, tinta acrílica,
grafite sobre tela e
esparadrapo, unique
dimensões: 30 x 20 cm
"A Travessia do Rubicão", s/d. tinta óleo, tinta acrílica, grafite sobre tela, unique, 30 x 20 cm
"A Travessia do Rubicão", 2023, tinta óleo, tinta acrílica, grafite sobre tela, unique, 30 x 20 cm
Com Davi, presente na série Axs nossxs filhos, Lia conta que falava muito sobre a ideia de construir afeto dentro de um espaço expositivo – a exemplo da própria galeria que expôs seus trabalhos. “Fomos criando novas narrativas, mostrando, por exemplo, que pessoas negras também podem estar dentro de um museu, ou lendo num sofá, numa sala que também tem obras de arte. De modo a gerar empatia, afinal, eles, os pretos, também vão a exposições, também leem”.
Materializadas as narrativas, as obras foram então assinadas pelos próprios rapazes, muitas vezes com seus próprios nomes. Em algumas delas, os jovens também selecionaram e escreveram trechos dos livros lidos nos encontros. Como Apolo, que colocou, na pintura que o retratava, a frase “aquele que é digno de ser amado”, título de um livro do escritor marroquino Abdellah Taïa.
Para falar da violência para o corpo que representa a terapia hormonal, Lia recorreu a naturezas mortas. Pintou jarros de flores, sobre um tecido branco, com um pano de fundo em preto. Nesta série, A travessia do Rubicão, Lia faz uma sequência de flores, que desabrocham e culminam com um buquê, dispostos numa “esquina” da galeria, “porque é nas esquinas que nós, mulheres trans, falamos, coletivamente, da terapia”, diz.
Há também autorretratos, em que Lia pinta seu órgão genital ou parte de seu peito. E torsos nus, em que o esparadrapo, material recorrente em suas criações, faz as vezes de uma camiseta, com que ela termina de se despir. A artista explica que o material simboliza “algo que protege o que já foi machucado um dia, e já está passando por uma reparação”.
Dentro da série Seus filhos também praticam, Lia traz um trabalho que considera romântico, Resíduo da noite anterior, feito com o jovem Bruno, com quem decidiu experimentar outro suporte: um lençol, ainda com os vestígios do sexo entre os dois. Já a série O tríptico do autorretrato, de que poucos aceitaram participar, traz outro experimento: em uma caixa, polaroides dos rapazes – que inicialmente fotografaram o pênis, mas depois passaram a registrar um pé, o peito, uma mão – são ladeados pelas camisinhas usadas na relação. Nos retratos, também estão os livros que os jovens haviam escolhido para discutir.
TRAJETÓRIA
Nascida em 1978, em Martinópolis (SP), Lia morou até os 20 anos em fazendas, no interior de São Paulo e de outros estados, porque seu pai trabalhava como agrônomo autodidata, segundo ela. Lia trabalhava na roça, ordenhava vacas, concluiu o segundo grau.
Em 2010, uma amiga a convidou para morar em São Paulo. Estava abrindo uma loja de artesanato e um ateliê, onde Lia passaria a dar aulas. À época, a artista já usava tela e tinta a óleo. Sempre desenhou e pintou, inspirada nas próprias atividades manuais e artesanais de seus pais. Estimulada a prosseguir seus estudos, desta vez no ensino superior, Lia fez o curso de artes visuais no Centro Universitário Ítalo Brasileiro, onde afirma ter se dado conta de como uma faculdade promove o “embranquecimento intelectual”.
Lia queixa-se que os professores citavam predominantemente artistas europeus e que, quando mencionavam os brasileiros, restringiam-se à Semana de 22. Formou-se quase aos 35, em 2016. Fez estágios na área educativa do Sesc e na 30ª Bienal de São Paulo, com curadoria de Luis Pérez Oramas. Lá, refletiu como seria possível deixar um lugar, com 4 mil obras, o menos opressivo possível para o público, dentro de uma construção, por sua vez, monumental.
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Aquele que é digno de ser amado da série Seus Filhos também praticam 021, tinta óleo, tinta acrílica e grafite sobre papel, unique, 35,5 x 28 cm
Nome da Obra, da série "Michê, Hipocrisia e Carne", 2013. Carvão sobre papel,Unique, 64 x 47,5 cm
Depois de formada, continuou na área educativa, desta vez no Sesc Pompeia. Foi a partir daí que iniciou suas pesquisas com os jovens. Em 2019, antes da pandemia, fez sua primeira individual com a série Axs nossxs filhxs, no Instituto Çarê, em São Paulo. Veio a pandemia e, conta ela, fez “muito dinheiro” ao abrir sua casa para a prostituição. Também foi convidada para fazer assessorias online, em meio às restrições sanitárias.
Lia termina sua passagem pela Galeria Jaqueline Martins com um convite para participar de uma coletiva de 200 artistas negros, no Sesc Belenzinho, em meados do ano. Mas seu projeto – ou processo – não terminou com a exposição finalizada em março. Lia conta que tem mais de 300 fotos, que ela pode transpor para a pintura, ou ainda textos, que também podem ser trabalhados artisticamente. O que já se viu, ela afirma, “é uma pontinha do iceberg do que estou criando para o mundo”.
Dos jovens com trabalhou e trabalha em seu projeto, afirma não cobrar nada a posteriori. “O meu trabalho, como pesquisadora dessa antropologia do ódio, é dar informação. O que eles vão fazer depois com isso, eu já não vou me responsabilizar. Mas eu faço uma prova com alguns”, conta. Ela dá como exemplo o jovem Emerson, que conhecera quando ele estava com 23 anos.
“Emerson era dos meninos mais ricos com que me encontrei. Lembro que ele contou de uma funcionária com quem teve sua iniciação sexual. E sempre falava dela como se fosse um abajur, que estava ali, para ser ligada ou desligada. Combinei com ele que, para voltar para minha casa, não bastava falar que era legal. Tinha de trazer para mim, no mínimo, um holerite anterior e posterior à nossa conversa. Com um aumento, um sinal de reparação histórica financeira, ao menos”, conclui. ✱