Vista da exposição. Foto: Daniel Cabrel

Como os cantos que contam a história do mundo viram imagem? Como as visões de uma cerimônia com ayahuasca se transpõem para a tela? Como os mundos do visível e do invisível se conectam? As perguntas talvez ecoem em MAHKU: Mirações, nova individual do coletivo indígena. Em cartaz no MASP até junho de 2023, a mostra tem curadoria de Adriano Pedrosa e Guilherme Giufrida, diretor artístico e curador assistente da instituição, e de Ibã Huni Kuin, curador convidado e um dos fundadores do Movimento dos Artistas Huni Kuin.

Quem visita o museu paulista encontra trabalhos de um colorido intenso e densamente carregados de elementos. Pinturas, desenhos, esculturas, instalações e mural que buscam traduzir e registrar os cantos tradicionais originários e as mirações — experiências visuais geradas pela ingestão de ayahuasca no nixi pae, ritual central das comunidades huni kuin.

A produção artística do MAHKU é, assim, extremamente sinestésica: os componentes retratados na tela não apenas transpõem as letras das histórias cantadas, mas agregam ritmo à arte visual por meio de suas composições. Já os tons, vibrantes e saturados, remetem ao universo psicodélico vivenciado durante os rituais com a bebida sagrada. “Essa é a linguagem de miração. É o espírito do mundo que temos ali e que estamos transmitindo nessas pinturas e nessas músicas. Músicas de encanto que existem antes de nós surgirmos. Por elas dá pra sentir, dá pra refletir”, explica Ibã à arte!brasileiros.

Por trazerem em si os mitos e histórias de fundação do mundo pertencentes à cosmologia huni kuin, os cantos são hoje forma fundamental de transmissão do conhecimento. Para Ibã, ouvir as músicas, vivenciar as mirações e ver as obras de arte permite sentir aquilo que não se pode compreender por completo. “Nesse momento pode sentir, pode relembrar esse conhecimento tradicional que estamos perdendo.” Para ele, as pinturas possibilitam que quem não é huni kuin se aproxime e se encante com essa cultura, “fazendo uma coisa boa de cura para não acabar com essa linguagem do meu povo”.

 

A ESCADA-RAMPA É UMA PONTE

Essa comunhão entre diferentes culturas é fundante aos huni kuin, remonta o início do mundo. Conta a história tradicional que depois de uma longa caminhada, os humanos chegaram a um ponto onde precisavam atravessar o mar para seguir a viagem. Um jacaré-ponte ofereceu-se como caminho. A criatura mítica pediu alimento em troca, com apenas uma condição: que o povo não matasse nenhum de seus filhotes e que não lhe desse um deles para comer. No entanto, com opções cada vez mais escassas, os humanos caçaram jacarés pequenos, traindo a confiança do grande, que submergiu, rompendo a ponte e separando os povos, fazendo com que se fundassem diferentes culturas e idiomas no mundo. Hoje, a população huni kuin constrói novas pontes, que conectam esses povos e que permitem transitar entre seus mundos e os mundos do encantado e do visível.

A exposição do MASP referencia a história ao transformar sua icônica rampa vermelha em ponte. A peça arquitetônica é o caminho mais rotineiro para que os visitantes do museu cheguem à MAHKU: Mirações e, ao virar obra, sendo base para mural temporário feito pelo Movimento dos Artistas Huni Kuin, introduz a ligação entre diferentes mundos: o ocidental, da Av. Paulista e das exposições do cânone europeu, à cosmologia huni kuin; o do visível da arte e o invisível das mirações.

Como explica Guilherme Giufrida, curador do MASP, “pensei que essa escada poderia ser esse ponto de contato, que está muito ali no mito do jacaré-ponte. Essa pulsão huni kuin por se comunicar com o outro lado e produzir essa relação. Mesmo com uma série de riscos, dificuldades e assimetrias, parece que eles estão sempre insistindo nessa comunicação, nessa transmissão de conhecimento”.

Ao caminhar pela mostra, somos aos poucos guiados a essa comunicação. Em contraponto a esses conhecimentos transmitidos pelo canto e pelos rituais, a escolha dos curadores foi por desvelar essa história no MASP pelo texto. Ao longo da expografia nos deparamos com escritos de parede que ao invés de organizar a mostra em núcleos, parecem transcrever a cultura huni kuin de forma didática e etnográfica, que buscam explicar que nesse caso você não está apenas “entrando numa exposição de mais um artista que, por acaso é indígena. Você realmente está entrando num outro universo visual e em outra cosmologia”, explica Giufrida, que foi responsável pela elaboração desse material e do livro da mostra após uma imersão na aldeia. O curador complementa: “Acho que o texto pode ser um ‘aperitivo’, que desperte nas pessoas o interesse por desbravar mais dessa cultura”.

A ambientação também se dá pela expografia, mas de forma mais sutil. Os tripés de madeira que dão suporte aos trabalhos e dividem o espaço, trazem um visual simples e minimalista — tão diferentes das obras com suas cores e ritmos intensos — e buscam criar um espaço fluido para quem caminha na exposição. “Não tem uma regra linear e cronológica ou mesmo sucessiva de acontecimentos. Você consegue ver a exposição entrando por qualquer um dos lados, não tem começo, meio e nem fim”, explica Giufrida.

TRADIÇÃO MOVENTE

Assim, apresenta MAHKU: Mirações apresenta os dez anos da formalização do grupo artístico sem prendê-lo ao passado. Como explica Giufrida, não se trata aqui de retratar o universo indígena e sua arte de forma estática, a imagem clichê de um povo preso ao passado, mas sim a pluralidade e as transformações que acompanham a tradição na história do Movimento dos Artistas Huni Kuin.

“Quando pensamos em um artista branco, da tradição e do cânone ocidental, muito tranquilamente se assume que a produção se transforma no tempo, porque tem as necessidades de superação, transformação e inovação, típicas do mundo burguês moderno. Enquanto que no mundo indígena, a princípio temos uma pressuposição de que a arte estaria ligada à uma ideia de tradição mais estável”, explica Giufrida. Ao reunir produções de diferentes períodos, suportes, temáticas e que explicitam parcerias feitas ao longo dos anos, MAHKU: Mirações, busca caminhar na contramão, e mostra a pluralidade na produção do coletivo: “Quando você olha a produção de grupo em cerca de dez anos, você vê a imensa transformação que esse grupo foi produzindo em cima das suas práticas”.

Assim, nos apresenta o MAHKU. Coletivo que teve início informal em 2009, no contato entre o antropólogo e educador paulista Amilton Mattos e os artistas Bane e Ibã Huni Kuin; que consolidou sua pesquisa artística quando Ibã se tornou orientando de Amilton no curso da Universidade Federal do Acre, desenvolvendo estratégias de registro de saberes e práticas orais na forma de imagens figurativas (dami), a fim de manter suas memórias; e consolidou-se em 2013. Movimento artístico que hoje ocupa grandes museus e cria pontes entre mundos.

A mostra MAHKU: Mirações integra o ano da programação do MASP dedicado ao ciclo Histórias indígenas, que inclui exposições de Carmézia Emiliano, Paul Gauguin (1848-1903), Sheroanawe Hakihiiwe, Comodato MASP Landmann de cerâmicas e metais pré-colombianos e Melissa Cody, além da grande exposição coletiva homônima ao ciclo. “Acho que tudo o que aconteceu no sentido macropolítico, com a redução das demarcações, o total descaso com as causas indígenas no último governo e essa retomada agora com o Ministério dos Povos Indígenas e com uma série de retomadas de políticas públicas voltadas a essa população, esse ano tornou-se um marco muito forte [dessa discussão]”, diz Giufrida.

Para ele, a programação do MASP se insere numa retomada específica: “É a grande retomada da população que está aqui antes de qualquer movimento de invasão europeia, de todo o feito complexo, contraditório e de violência que essa colonização provocou em nosso país. Então, estamos retomando algo que é muito fundamental e que torna a narrativa da arte brasileira muito mais complexa, plural e radical”.

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