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Iphan vai resgatar atuação técnica

Leandro Grass assumiu a presidência do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan)
Leandro Grass. Foto: Ed Alves/CB/D.A.Press

Leandro Grass, professor, sociólogo e mestre em desenvolvimento sustentável, gestor cultural e ativista ligado ao Partido Verde (PV) assumiu a presidência do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) no dia 10 de janeiro. Grass tinha integrado o Grupo de Transição do presidente Lula, coordenando o Grupo Técnico de Desenvolvimento Regional.
A missão de Grass é complexa: restaurar a capacidade da ação do Estado brasileiro na proteção do patrimônio histórico nacional, tarefa que foi vilipendiada de todas as maneiras possíveis no governo de Jair Bolsonaro durante os últimos quatro anos. Bolsonaro chegou a exonerar em 2020 a então presidente do Iphan, Kátia Bogéa, a pedido de um empresário aliado. Grass concedeu a seguinte entrevista à arte!brasileiros:

arte!✱ – Recentemente, o Iphan exonerou 18 superintendentes de quase todos os Estados do país. Essa mega-exoneração mostra que havia uma contaminação generalizada no patrimônio histórico, não?

Leandro Grass – A gente tinha um conjunto de superintendentes que não estava nem um pouco em sintonia com a formação técnica requerida, com os princípios de republicanismo do patrimônio, com referências muito desconectadas das políticas nacionais. Para você ter uma ideia, havia pessoas de perfil monarquista, ou seja, antirrepublicanas, assim como alheias totalmente ao setor, influenciadores digitais, além de outras ligadas a igrejas locais. Essas estavam lá por um arranjo político dessas igrejas. Estavam desconectados do corpo técnico e da formação relativa ao patrimônio. Essa primeira leva de exonerações foi para dar um primeiro ajuste substancial, trocar por técnicos, especialistas. Agora, haverá uma segunda leva da área de gestão. Trocamos praticamente todos os superintendentes, faltam apenas dois.

E de quais estados são esses dois?

Alagoas e Paraná.

Outro aspecto visível da deterioração do serviço federal do patrimônio foi a perda substancial de recursos. É possível dizer qual foi o tamanho da perda nos últimos quatro anos?

Em despesas discricionárias a perda foi de algo em torno de R$ 70 a 80 milhões nos últimos quatro anos. Na transição de governo, o novo governo recompôs os valores que eram praticados em 2016.

Quais serão as prioridades de investimento em sua gestão?

Há um conjunto grande de planos de ação que estão sendo preparados em cada estado, cada região, e essas ações definidas em seus próprios locais é que serão prioridade de destinação de recursos.

O senhor falou que o patrimônio recuperou o orçamento que tinha em 2016. Mas, desde aquela época, muita coisa nova foi incorporada, tombada, o Iphan cresceu bastante.

Sim, são mais de 1,2 mil bens tombados, fora os tombamentos imateriais. Estamos buscando parcerias junto à iniciativa privada, assim como nos municípios e estados, para aumentar os recursos, as ações. E, claro, também recompor nossa capacidade de execução orçamentária.

Houve alguns casos em que o antigo governo colocou à venda o patrimônio tombado, caso de alguns parques estaduais como Jericoacoara, no Ceará.

A gestão dos patrimônios naturais está a cargo do IMCBio, muito embora alguns sejam tombados, como é o caso do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, em Goiás. Como bem tombado, a gente tem a responsabilidade de acompanhar. Boa parte desse patrimônio está a cargo de universidades, por exemplo, que definem o plano de uso e a forma de gestão. O que a gente teve de forma mais aguda foi descuido, paralisação de análises, abandono. Houve algumas tentativas de destombamento, mas que (o antigo governo) não chegou a concluir por conta da ação do Ministério Público.

Houve um caso, notório, de uma interferência direta do ex-presidente, no caso daquele empresário de Santa Catarina, o dono da Havan, Luciano Hang, que teve os planos de construção de uma sede barrados pelo Iphan, e ele conseguiu que fosse demitida a presidente do Instituto. Como dar publicidade ao que aconteceu nesses casos, durante esse período, para fins de conhecimento público?

Olha, a gente pediu relatórios situacionais para todas as superintendências. Processos que porventura tenham se chocado com as normativas internas, com a legislação e as normas, nós vamos encaminhar para a procuradoria, para que sejam tomadas as medidas adequadas de responsabilização.
No caso do patrimônio imaterial, o governo anterior chegou a nomear um pastor evangélico no setor justamente para atingir o conceito de imaterial.
A gente buscou sanar isso colocando um técnico da área no lugar. É sempre a melhor atitude: devolver aos especialistas a condução da área.

Um dos atos desse servidor foi tentar boicotar o acervo de arte de matriz africana que foi destinada ao Museu da República, no Rio. Como sua gestão está tratando desse assunto?

É a Coleção Nosso Sagrado. Nos próximos dias, nós vamos publicar uma portaria rebatizando essa coleção, que era chamada de Coleção de Magia Negra, rebatizando oficialmente como Acervo Nosso Sagrado.

Quando ocorreu sua nomeação para a presidência do Iphan, houve críticas. Muita gente dizia que o senhor estava preenchendo um cargo de indicação política.

É natural que, depois de todos os traumas por que passou o serviço do patrimônio histórico, os servidores quisessem para a presidência um quadro interno. Mas eu não sou alheio ao setor, tenho informação na área das políticas públicas, acompanho há muito tempo as questões relativas ao patrimônio. A gente já sanou isso. Indicamos uma diretoria formada por servidores, colocamos servidores de carreira em superintendências. A questão já foi 100% superada. ✱

Em defesa do Patrimônio em risco

Urna funerária marajoara. Red List Brasil: Em defesa do Patrimônio em risco
Urna funerária marajoara (Pará, séc. 5-15). Foto: Cortesia Museu da Língua Portuguesa

O Conselho Internacional de Museus (ICOM) divulgou em fevereiro a Red List Brasil, um documento que elenca as tipologias de bens culturais do país mais suscetíveis à comercialização ilegal. Criada em parceria com especialistas brasileiros, a Lista Vermelha traz exemplos de fósseis, arte sacra, mapas, livros e peças etnográficas e arqueológicas sob ameaça de tráfico internacional. O lançamento aconteceu no Museu da Língua Portuguesa, com a presença de Emma Nardi, presidente global do ICOM; da ministra da Cultura, Margareth Menezes, e de Renata Motta, presidente do ICOM Brasil e diretora-executiva do museu paulistano, entre outros.

As Red Lists são publicadas desde 2000 pelo ICOM. Hoje, 57 países estão cobertos pelos 20 documentos editados pela instituição. Alguns deles foram criados em caráter de emergência, como é o caso da recém-lançada lista que contempla objetos em risco da Ucrânia, país em guerra contra a Rússia. Roberta Saraiva, diretora do ICOM Brasil, destaca que, segundo levantamento feito pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), de um total 1.974 objetos brasileiros desaparecidos, apenas 48 foram recuperados. Ainda segundo Roberta, a Interpol (The International Criminal Police Organization) aponta o Brasil como o 26º país com maior número de bens traficados no mundo.

“Desde os anos 1940, o Brasil tem uma legislação de proteção ao patrimônio robusta. Mas é um país com dimensões continentais e fronteiras muito porosas. Portanto, é sempre um grande desafio exercer o controle da saída desses objetos do território nacional”, avalia Roberta. “Um documento como a Red List é muito estruturante porque, além de seu uso prático, junto à Receita Federal e Polícia Federal, por exemplo, ele articula diferentes instâncias governamentais, especialistas na área do país, como o Iphan, o Instituto Brasileiro de Museus (Ibram) e o MinC”.

A Red List Brasil, ressalte-se, não mostra objetos já comercializados ilegalmente. Mas aponta as tipologias mais em risco, por meio de fotografias e identificações fornecidas pela Fundação Biblioteca Nacional (FBN), pelo Iphan (MG e RJ), pelo Museu de Arqueologia e Etnologia da USP (MAE), pelo Museu de Ciências da Terra (MCT), pelas universidades Federal e do estado do Rio de Janeiro (UFRJ e UERJ), pelo Museu Nacional (MN) e o Museu Regional Casa dos Ottoni (MRCO). A arte!brasileiros conversou também com Sophie Delepierre, coordenadora do Departamento de Patrimônio do ICOM. Leia a seguir:

arte!✱ – O que motivou a criação da Red List Brasil?

Sophie Delepierre – Às vezes, há um equívoco de que o tráfico ilícito é apenas uma preocupação para regiões em crise e, embora seja verdade que o ICOM preparou Listas Vermelhas de emergência para países em situações de desastre, a comercialização ilegal de bens culturais afeta todos os países, e nenhuma região é poupada desse problema. Como em muitos países do mundo, o patrimônio cultural brasileiro também corre o risco de dispersão, destruição, roubo, saque e tráfico. O Brasil é um país vasto, com um rico patrimônio que representa suas diversas tradições culturais e históricas. Apesar das fortes leis de proteção, tanto em nível nacional quanto internacional, o patrimônio nacional continua em risco de roubo e exportação ilegal, com baixa taxa de recuperação.

Quando teve início o processo de elaboração da lista, e ele envolveu quantas pessoas, dentro e fora do país?

A ideia deste projeto remonta a vários anos, mas a preparação da Lista Vermelha de Bens Culturais Brasileiros em Risco começou em 2021 com a seleção de especialistas de todo o Brasil. Eles identificaram as principais categorias de patrimônio cultural em maior risco de acordo com três critérios: os bens culturais incluídos na Lista Vermelha devem ser protegidos pela legislação nacional; vulneráveis (ou seja, em risco de roubo e exportação ilegal) e em grande demanda do mercado de arte. Como muitos países, o patrimônio arqueológico do Brasil corre o risco de roubo de museus e saques de sítios arqueológicos, assim como suas instituições religiosas e seus artefatos de arte e serviços litúrgicos, materiais bibliográficos, itens de comunidades indígenas do Brasil e fósseis, cultural e cientificamente objetos importantes. Para discutir e analisar todos os componentes do patrimônio cultural brasileiro, o Comitê Nacional do ICOM no Brasil reuniu uma grande equipe de especialistas sob a liderança de um coordenador nacional que trabalhou diretamente com o Departamento de Proteção ao Patrimônio da Secretaria do ICOM em Paris.

O que acontece após o lançamento da Lista Vermelha Brasil?

No ICOM, costuma-se dizer que a publicação de uma nova Lista Vermelha representa 50% do trabalho realizado. Os restantes 50% centram-se na comunicação e divulgação para tornar a lista conhecida a nível internacional. O ICOM trabalha com sua rede de 50 mil membros em todo o mundo, bem como com parceiros internacionais como UNESCO, UNIDROIT, Interpol e WCO para distribuir as Listas Vermelhas o mais amplamente possível. Claro que seu principal objetivo é combater o tráfico e ajudar na devolução e restituição de bens culturais brasileiros exportados ilegalmente ou roubados, mas ela é também uma poderosa ferramenta de conscientização, com o objetivo de prevenir esse tráfico, alertando e educando sobre a necessidade de proteger o patrimônio.
O futuro dirá se esses objetivos de prevenção e restituição foram alcançados. Mas também é importante destacar o fato de que as Listas Vermelhas do ICOM são apenas uma ferramenta entre muitas outras. Para combater o tráfico, cada Estado deve ratificar e implementar convenções internacionais, como a Convenção da UNESCO de 1970 e a Convenção UNIDROIT de 1995, bem como estabelecer uma legislação forte e serviços dedicados juntamente com ferramentas operacionais. Somente a conjunção de todos esses esforços protegerá eficientemente o patrimônio cultural.

De todas as categorias listas, qual corre mais risco?

Guiados pelos três critérios de seleção de categorias, os especialistas brasileiros identificaram cinco tipologias em maior risco. Em uma segunda etapa, os especialistas selecionaram as imagens correspondentes que serviram para melhor representar os tipos de objetos. Todas essas categorias estão ameaçadas de extinção. No entanto, é interessante destacar que a arqueologia é uma categoria regularmente presente nas Listas Vermelhas do ICOM, pois a pilhagem de sítios arqueológicos é uma dificuldade compartilhada por muitos países. No Brasil, artefatos arqueológicos do período pré-colonial, principalmente da Amazônia, são os alvos mais frequentes, e incluem cerâmicas decorativas, como urnas funerárias, vasos e estatuetas, e artefatos de pedra, como pontas de flechas, lâminas de machado e pequenos pingentes.

O quão lucrativo é o mercado de comércio ilegal de tais bens culturais?

Nos últimos anos, o tráfico ilícito de arte e antiguidades tornou-se um grave problema de segurança global, que transcende fronteiras e cujo impacto vai muito além da perda de patrimônio material. No entanto, dada a natureza ilícita do tráfico de bens culturais e a falta de regulamentação geral do mercado, é extremamente complicado obter estatísticas confiáveis. O combate ao tráfico tornou-se um grande desafio que envolve monitoramento permanente, ações complementares de cooperação e desenvolvimento de instrumentos e ferramentas eficazes. Entre as soluções defendidas pelos especialistas, medidas de sensibilização e controle são essenciais na proteção do patrimônio móvel. É por isso que o ICOM elabora as Listas Vermelhas. ✱

Artes práticas

Lia-D-Castro
Falta nome da Obra, da série Axs Nossxs Filhxs, 2021

Arte para Lia D Castro é prática e técnica, ela ressalta, a todo momento, em sua conversa com a arte!brasileiros. Em suas criações, trabalha com óleo sobre tela, xilogravura, carvão vegetal, giz pastel seco, caneta e até esparadrapo. Arte, para Lia, também é processo. Na exposição A cumplicidade refletida, que a Galeria Jaqueline Martins apresentou até 18 de março – e que em breve segue para a sua filial em Bruxelas (Bélgica) – a artista mostrou pinturas e fotografias feitas ao longo de sete anos, em programas de sexo pago, com homens cisgêneros, heterossexuais, pretos e brancos, com idades de 18 a 25 anos.

Nesses encontros, a artista discutia transfobia e racismo, a partir da leitura de autores como Angela Davis, Chinua Achebe, Achille Mbembe, Toni Morrison e Lélia Gonzalez, entre outros. Transexual, negra, Lia lançou mão da prostituição como “ferramenta de diálogo”.
“Como mulher transexual, seria muito difícil fazer um chamamento para entrevistas com esses homens. Acabei utilizando aquilo que nos é dado de forma compulsória, que é a prostituição”, conta. “Então, de início, eles chegaram até mim pelo viés da prostituição. Pagaram-me o primeiro, o segundo e o terceiro encontros. A partir do quarto, falei que, ao invés de me pagarem em dinheiro, eles poderiam me pagar com informação, para a gente construir uma narrativa decolonial em que eu questiono como são as relações racistas para esses jovens”.

A artista conta que, dos quase 700 homens que passaram por sua casa, ao longo desses anos, chegou a um conjunto de 50 que aceitaram a sua proposta. Ela cita, como exemplo, um menino chamado Johnny, que ela identificou como racista, e com quem fez leituras de Angela Davis, nos intervalos entre o sexo, “para ele se reconhecer como branco agressor”. Como em todos os programas, Lia fazia anotações, gravava e depois transcrevia algumas conversas, que depois serviram de base para palestras feitas por ela. Uma assessoria de prevenção e combate ao racismo e à transfobia no mercado de trabalho, para empresas como plataformas de streaming.

“Esse foi um primeiro momento do projeto, em 2017, quando fui convidada pela Amazon, depois HBO, Amazon, Netflix, Instituto Goethe e algumas unidades do Sesc, para prestar essa assessoria”, explica a artista. “Depois de dois ou três anos, eu perguntei para eles como gostariam de materializar aquelas discussões e de ser retratados para o mundo, com que cores e tintas, porque sabiam que era artista plástica. Eles também tinham o direito de escolher o resultado final, eliminando, por exemplo, fotografias de que não gostassem”.

A partir daí surgiram as séries apresentadas em A cumplicidade refletida: com os jovens brancos, Seus filhos também praticam; com os pretos, Axs nossxs filhxs. Do projeto saiu ainda a série A travessia do Rubicão, sobre a terapia hormonal para sua transição e de outras mulheres transexuais, cerca de 800, a grande maioria prostitutas, com quem também conversou sobre aqueles temas, ao longo do mesmo período.

Com Davi, presente na série Axs nossxs filhos, Lia conta que falava muito sobre a ideia de construir afeto dentro de um espaço expositivo – a exemplo da própria galeria que expôs seus trabalhos. “Fomos criando novas narrativas, mostrando, por exemplo, que pessoas negras também podem estar dentro de um museu, ou lendo num sofá, numa sala que também tem obras de arte. De modo a gerar empatia, afinal, eles, os pretos, também vão a exposições, também leem”.

Materializadas as narrativas, as obras foram então assinadas pelos próprios rapazes, muitas vezes com seus próprios nomes. Em algumas delas, os jovens também selecionaram e escreveram trechos dos livros lidos nos encontros. Como Apolo, que colocou, na pintura que o retratava, a frase “aquele que é digno de ser amado”, título de um livro do escritor marroquino Abdellah Taïa.

Para falar da violência para o corpo que representa a terapia hormonal, Lia recorreu a naturezas mortas. Pintou jarros de flores, sobre um tecido branco, com um pano de fundo em preto. Nesta série, A travessia do Rubicão, Lia faz uma sequência de flores, que desabrocham e culminam com um buquê, dispostos numa “esquina” da galeria, “porque é nas esquinas que nós, mulheres trans, falamos, coletivamente, da terapia”, diz.

Há também autorretratos, em que Lia pinta seu órgão genital ou parte de seu peito. E torsos nus, em que o esparadrapo, material recorrente em suas criações, faz as vezes de uma camiseta, com que ela termina de se despir. A artista explica que o material simboliza “algo que protege o que já foi machucado um dia, e já está passando por uma reparação”.

Dentro da série Seus filhos também praticam, Lia traz um trabalho que considera romântico, Resíduo da noite anterior, feito com o jovem Bruno, com quem decidiu experimentar outro suporte: um lençol, ainda com os vestígios do sexo entre os dois. Já a série O tríptico do autorretrato, de que poucos aceitaram participar, traz outro experimento: em uma caixa, polaroides dos rapazes – que inicialmente fotografaram o pênis, mas depois passaram a registrar um pé, o peito, uma mão – são ladeados pelas camisinhas usadas na relação. Nos retratos, também estão os livros que os jovens haviam escolhido para discutir.

TRAJETÓRIA
Nascida em 1978, em Martinópolis (SP), Lia morou até os 20 anos em fazendas, no interior de São Paulo e de outros estados, porque seu pai trabalhava como agrônomo autodidata, segundo ela. Lia trabalhava na roça, ordenhava vacas, concluiu o segundo grau.
Em 2010, uma amiga a convidou para morar em São Paulo. Estava abrindo uma loja de artesanato e um ateliê, onde Lia passaria a dar aulas. À época, a artista já usava tela e tinta a óleo. Sempre desenhou e pintou, inspirada nas próprias atividades manuais e artesanais de seus pais. Estimulada a prosseguir seus estudos, desta vez no ensino superior, Lia fez o curso de artes visuais no Centro Universitário Ítalo Brasileiro, onde afirma ter se dado conta de como uma faculdade promove o “embranquecimento intelectual”.

Lia queixa-se que os professores citavam predominantemente artistas europeus e que, quando mencionavam os brasileiros, restringiam-se à Semana de 22. Formou-se quase aos 35, em 2016. Fez estágios na área educativa do Sesc e na 30ª Bienal de São Paulo, com curadoria de Luis Pérez Oramas. Lá, refletiu como seria possível deixar um lugar, com 4 mil obras, o menos opressivo possível para o público, dentro de uma construção, por sua vez, monumental.

Depois de formada, continuou na área educativa, desta vez no Sesc Pompeia. Foi a partir daí que iniciou suas pesquisas com os jovens. Em 2019, antes da pandemia, fez sua primeira individual com a série Axs nossxs filhxs, no Instituto Çarê, em São Paulo. Veio a pandemia e, conta ela, fez “muito dinheiro” ao abrir sua casa para a prostituição. Também foi convidada para fazer assessorias online, em meio às restrições sanitárias.

Lia termina sua passagem pela Galeria Jaqueline Martins com um convite para participar de uma coletiva de 200 artistas negros, no Sesc Belenzinho, em meados do ano. Mas seu projeto – ou processo – não terminou com a exposição finalizada em março. Lia conta que tem mais de 300 fotos, que ela pode transpor para a pintura, ou ainda textos, que também podem ser trabalhados artisticamente. O que já se viu, ela afirma, “é uma pontinha do iceberg do que estou criando para o mundo”.

Dos jovens com trabalhou e trabalha em seu projeto, afirma não cobrar nada a posteriori. “O meu trabalho, como pesquisadora dessa antropologia do ódio, é dar informação. O que eles vão fazer depois com isso, eu já não vou me responsabilizar. Mas eu faço uma prova com alguns”, conta. Ela dá como exemplo o jovem Emerson, que conhecera quando ele estava com 23 anos.

“Emerson era dos meninos mais ricos com que me encontrei. Lembro que ele contou de uma funcionária com quem teve sua iniciação sexual. E sempre falava dela como se fosse um abajur, que estava ali, para ser ligada ou desligada. Combinei com ele que, para voltar para minha casa, não bastava falar que era legal. Tinha de trazer para mim, no mínimo, um holerite anterior e posterior à nossa conversa. Com um aumento, um sinal de reparação histórica financeira, ao menos”, conclui. ✱

A Pina como praça pública

Pátio central da Pinacoteca Contemporânea concebido como um espaço de luz, transparência e convívio. Foto: Helio Campos Mello

O novo prédio da Pinacoteca do Estado, mais novo espaço cultural da cidade de São Paulo, ecoa o momento mais auspicioso para a cultura no país. Ao abrir-se para o Parque da Luz e agregar novas salas de exposição, biblioteca, ateliês educativos, centro de documentação e infraestrutura de lazer, o local inaugurado no início de março pretende incrementar as possibilidades de ação da instituição já centenária – que agora ganha um núcleo vocacionado ao contemporâneo. E reafirma física e simbolicamente a importância de uma ação voltada para o espaço público, incorporando novas formas de pensamento e ação artística e enfrentando o desafio de abrir-se para além do mundo restrito dos conhecedores da arte.

Projetada pelo escritório Arquitetos Associados, a construção é bastante sóbria e integrada com o espaço circundante. A inexistência de catracas, a centralidade de todo o edifício ao redor de uma praça pública acessível a todos os visitantes do parque e uma grade de exposições bastante diversa são alguns dos pilares fundamentais desse projeto, que ambiciona receber até um milhão de visitantes por ano.

Pina contemporânea
A obra “Colar”, de Lygia Reinach, recebe os visitantes na exposição. A obra é uma das esculturas da coleção do museu que ficam espalhadas pelo Parque da Luz e que excepcionalmente foi incorporada à “Chão da Praça”.

Tem por base uma antiga escola, transferida para instalações mais modernas na região. Em termos construtivos, a parte mais ambiciosa é a enorme sala expositiva subterrânea, escavada sob uma praça central. Estratégia que garante ao museu uma maior versatilidade, sem ter que driblar as limitações de suas outras duas unidades, a sede da Luz e o espaço da Estação Pinacoteca, cujas plantas mais antigas são mais fragmentadas e com várias subdivisões internas. Com uma área de mil metros quadrados, essa grande galeria permitiu exibir simultaneamente um conjunto importante de trabalhos que entraram nas últimas décadas no acervo e que – por sua dimensão ou complexidade – acabaram sendo pouco mostrados. Como um grande encontro, mescla-se na exposição inaugural, intitulada Chão da Praça, um conjunto bastante diverso de poéticas, técnicas e experimentações, reafirmando o caráter díspar e experimental da produção contemporânea.

Está sendo exibida pela primeira vez, por exemplo, a instalação Ttéia, uma obra maior de Lygia Pape. A versão que a Pinacoteca possui é diferente daquela mais conhecida, em exposição em Inhotim, e foi agregada ao acervo junto com o comodato da Coleção Roger Wright. Outra obra importante do acervo, que já conta com cerca de 11 mil obras entre históricas e contemporâneas, é Parede da Memória, de Rosana Paulino, um trabalho composto por 1500 patuás, confeccionados um a um pela artista, e que compõem um potente painel sobre a força, tradição e poesia da negritude no país. Sinalizando o interesse em promover uma costura cada vez maior entre exterior e interior, a mostra também trouxe para dentro do espaço museológico uma das esculturas que a Pinacoteca mantém no Parque da Luz, o grande colar de contas agigantadas de cerâmicas, feito especialmente por Lygia Reinach para este projeto de esculturas ao ar livre.

Dentre as muitas camadas trabalhadas pela mostra, cuja curadoria é assinada por Ana Maria Maia e Yuri Quevedo, destaca-se a dimensão do afeto e das relações entre artistas e o museu. De forma mais explicita temos a vizinhança da instituição servindo de tema para trabalhos ali representados, como na série fotográfica de Cristiano Mascaro, na aquarela de Djanira feita no Parque da Luz, ou ainda nas imagens que Hudinilson fez do próprio corpo quando foi laboratorista e operador da máquina de xerox da instituição. Mas há também vizinhanças e afetos mais intangíveis, com toques de memória e conexões do campo afetivo, como o majestoso painel de autoria de Emanoel Araújo, morto ano passado, que foi responsável pela modernização e renovação da instituição na década de 1990, e dos primeiros a sonhar com sua expansão para além dos limites de sua sede, incorporando outros espaços no entorno. Ambição que seguiu acompanhando vários dos diretores subsequentes, como Ivo Mesquita e Tadeu Chiarelli, até tornar-se viável com a desativação e transferência da escola para o museu.

Além da grande e versátil sala subterrânea, que depois de Chão da Praça receberá uma mostra da artista multimídia chinesa Cao Fei, um segundo espaço expositivo foi instalado nas antigas salas da Escola Prudente de Morais. Ambiente menor, mais intimista, e mantendo remissões à arquitetura do passado (com a preservação de delicadas divisórias em ferro trabalhado, que datam da época do primeiro projeto, concebido ainda no século 19 por Ramos de Azevedo), abriga agora uma série de obras da sul-coreana Haegue Yang. A artista, que já esteve na 27ª Bienal de São Paulo, apresenta um trabalho que, na opinião do diretor da Pinacoteca, Jochen Volz, ecoam também na produção nacional, como o uso de materiais industrialmente produzidos ou o deslocamento de significados. “É importante mexer um pouco nas nossas referências”, afirma.

A inauguração do novo prédio permitirá, além de dar maior ênfase às manifestações públicas e colocar em destaque o acervo próprio do museu, reafirmar um dos focos de atenção da gestão de Volz: a necessidade de repensar atentamente sua programação. “Temos que pensar qual história da arte a gente quer contar e qual a gente não contou recentemente”, explica ele, lembrando que até dez anos atrás as mostras que chegavam até nós eram, quase exclusivamente, de homens brancos europeus. Pensar a arte internacional e a produção nacional em sintonia e abrir espaço para poéticas que ainda não encontram espaço igualitário nos museus está entre as balizas que nortearão as ações da instituição, que já prepara uma agenda intensa e diversa para seus três espaços, com nomes que vão de Chico da Silva e Denilson Baniwa (já em cartaz na Pina Luz) a Sônia Gomes e Marta Minujín, programadas para 2024. ✱

Chico da Silva e as rotas do desassossego

Chico da Silva desenhando em uma parede
Chico da Silva desenhando em uma parede, entre 1960 e 1975. Guache sobre tela. Cortesia Galeria Galatea, São Paulo
Por Bitu Cassundé
Chico da Silva desenhando em uma parede
Chico da Silva desenhando em uma parede, entre 1960 e 1975. Guache sobre tela. Cortesia Galeria Galatea, São Paulo

O Nordeste brasileiro foi um grande fornecedor de mão de obra para aventuras econômicas no Norte do Brasil: entre milhares de nordestinos fugidos da seca em direção ao Éden amazônico, a cearense Minervina Félis de Lima migrou para o Acre por volta de 1919 para trabalhar na extração da borracha. Minervina casou-se com um indígena peruano e com ele teve Francisco Domingos da Silva, nascido entre 1922 e 1923.

Ali, por meio das missões religiosas que acolhiam os fluxos migratórios, a “civilização branca” exercia sua violência em um modelo colonial de catequização, exploração e manipulação da fé. Nos primeiros dez anos de vida, o menino Chico da Silva viveu entre esse contexto opressor e a floresta, com suas lendas e liberdade.

Detalhe da obra de Chico da Silva.

Com pouca perspectiva de sobrevivência, Minervina regressa para sua cidade natal, Quixadá, no sertão do Ceará. Nessa paisagem árida, de subsistência castigada pela seca, o pai de Chico é mordido por uma cascavel, cujo veneno lhe é mortal. Após a perda, mãe e filho se assentam, por volta de 1940, em Pirambu, bairro periférico de Fortaleza.

É nos muros da Praia Formosa, em Fortaleza, que Chico da Silva compõe imagens de seres impossíveis e narrativas orais amazônicas. Ele é, então, capturado novamente pelo projeto colonizador quando Jean Pierre Chabloz, enfeitiçado pela poética do artista local, o introduz à tinta guache e ao papel, fazendo-o abandonar o suporte da parede.

Entre 1930 e 1940, o suíço promove a presença de Chico em salões nacionais, como na Galeria Askanasi, no Rio de Janeiro. Já nos anos 1960, Chabloz articula, no recém-inaugurado MAUC/UFC (Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará), um lugar onde o artista criaria um ateliê, receberia um salário e permaneceria durante três anos. A mística construída por Chabloz em torno desse personagem indígena atingira seu ápice em 1966, quando Chico participou da Bienal de Veneza.

Um elemento constante na obra de Chico da Silva é a boca. A boca aberta para o bote, a boca aberta para o alimento, a boca que acolhe e abriga, a boca que come e transforma, a boca que devora, a boca da noite, a boca do estômago. Nas pinturas, são inúmeros os embates, bem como as animalidades que utilizam a boca como arma, como defesa, como prelúdio de perigo.

Chico ativa uma cosmologia particular na qual elementos da vida, do cotidiano, do imaginário amazônico e indígena são protagonistas. Se hoje sua criação de mundos seria classificada como “fabulação especulativa”, o artista em vida nunca foi associado a uma ideia de “futuro”, mas sempre fixado a uma imagem de passado, primitivo e bestializado, e com uma difícil adequação ao presente, ao agora, à ideia torpe de modernidade que se anunciava.

A própria boca de Chico também foi a boca da reinvenção da linguagem, da concepção de novas palavras, das criações dialéticas, que desnorteavam o interlocutor: sua boca com dentes de ouro conferia a seu corpo a mais completa modernidade. A boca de Chico nunca foi a do passado nem a do presente, a sua boca sempre esteve no futuro, e anunciava: até o céu da boca é de ouro.

Outro movimento importante na saga de Chico é a criação da Escola do Pirambu. O lugar reunia artistas colaboradores com os quais Chico compartilhou sua técnica, cuja reprodução logo contaminou a ideia do “gênio” e do “original”, fundamentais ao mercado de arte. Essa diluição da autoria na Escola do Pirambu não passou isenta de punição. Em uma matéria no Jornal do Brasil, o próprio Chabloz acusa o esvaecimento da autenticidade poética do artista. A manchete anuncia: “Suíço decreta a morte artística de Chico da Silva”.

Chico nunca se recuperou artisticamente dessa campanha produzida pelo crítico europeu, que não o respeitava como humano capaz, tratando-o como um primitivo. Chabloz não descobriu Chico da Silva: foram os muros da Praia Formosa que germinaram o visionário artista, e foram seu tino, sua força e coragem de atravessar adversidades na vida e na arte, que o configuraram como um descobridor de si mesmo.

Após o ataque, Chico foi constantemente internado devido ao alcoolismo, a problemas psiquiátricos e aos sinistros de uma sociedade também colonizada que não conseguiu sequer respeitá-lo. Atualmente, sua obra passa por um novo processo comercialmente especulativo, mas Chico morreu pobre em 1985, tornando-se personagem que merece ser desmistificado e humanizado. ✱

A refundação da cultura

A curadora indígena Sandra Benites, agora à frente da direção de artes visuais da Funarte. Foto: Rodrigo Avelar
A curadora indígena Sandra Benites, agora à frente da direção de artes visuais da Funarte. Foto: Rodrigo Avelar

Quando no início de fevereiro passado, funcionários do Museu Nacional receberam Leandro Grass, que acabava de ser empossado presidente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), havia uma tensão no ar, como relata o jornalista Bernardo Esteves na edição de março da revista Piauí. Desde o incêndio que destruiu 85% do acervo da instituição, o Iphan mais atrapalhava a reconstrução do Palácio São Cristóvão, sendo que seu então presidente, o monarquista Olav Antonio Schrader, chegou a propor que o local se tornasse um centro dedicado à memória da família imperial.

Pois na reunião com Grass, o diretor do Museu Nacional, Alexander Kellner, renovou o convite para que o Iphan integrasse o comitê institucional que acompanha a renovação da instituição e, dessa vez, a resposta foi imediata. “Onde assino”, perguntou logo Grass.

Urgência, de certa forma, tem sido o ritmo dos profissionais da cultura no Brasil, em busca de recuperar o tempo perdido nos últimos seis anos, desde que ocorreu o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff. Não dá para esquecer que o Ministério da Cultura chegou a ser extinto por Michel Temer, mas a pressão do setor fez o MinC continuar. Mesmo assim, desde então, seu orçamento foi sendo reduzido, até que na gestão seguinte o ministério fosse extinto de vez.

Segundo dados compilados no Relatório do Gabinete de Transição Governamental, divulgado em dezembro passado, “desde 2016, houve uma perda de 85% no orçamento da administração direta e de 38% no da administração indireta” da Cultura. O documento aponta ainda que “o Fundo Nacional de Cultura (FNC), principal mecanismo de financiamento governamental do setor, teve seu orçamento reduzido em 91%”. O corte foi tão acentuado que a maior parte do que restou foi canalizada para manutenção, tornando inviável qualquer atividade finalística.

Com tudo isso, sintetiza o relatório, “a perda do setor cultural estimada para biênio 2020-2021 foi de R$ 69 bilhões”. Além do fim de políticas públicas consistentes, a pandemia em muito ajudou a arrasar o setor. Ainda segundo o documento, “as estimativas de participação do setor cultural na economia brasileira, em 2019, variavam de 1,2% a 2,7% do PIB, sendo que o conjunto de ocupados no setor cultural representava 5,8% do total (5,5 milhões de pessoas), atuando em mais de 300 mil empresas”. Com a pandemia, o faturamento do setor se aproximou de zero, já que as únicas atividades que continuaram faturando foram as relacionadas a serviços digitais, como streaming de vídeo e música.

A terra arrasada só conseguiu ser evitada de fato graças à aprovação e implementação das Lei Aldir Blanc 1 e da Lei Paulo Gustavo, que, juntas, destinaram R$ 6,8 bilhões para o setor cultural, a partir de um esforço com secretários de cultura, parlamentares e agentes culturais.

Por tudo isso, o retorno do Ministério da Cultura, sob a administração da cantora Margareth Menezes, primeira mulher negra com essa função, vem sendo marcado pela realocação de recursos por um lado, e a escolha de profissionais com atuação reconhecida na área.

No próprio MinC, a presença do cearense Henilton Menezes, como Secretário de Economia Criativa e Fomento Cultural, é um dos ótimos exemplos. Ele é um dos maiores especialistas de políticas de fomento no país, tendo já ocupado função no setor, entre 2010 e 2013, além de ter publicado A Lei Rouanet – Muito além dos (F)atos.

Outra das secretarias do MinC que também é ocupada por um cearense é a dedicada à Formação, Livro e Leitura, com Fabiano Piúba. Ele também já havia ocupado essa função no governo Dilma Rousseff, e, nos últimos anos, era o Secretário de Cultura do Ceará. Foi lá, durante a inauguração da Pinacoteca, no fim do ano passado, quando ainda não havia sido indicado, que ele previu à arte!brasileiros que o período de reconstrução não será fácil. “Vamos precisar de pelo menos dois anos para retomar de fato as políticas necessárias”, contou.

Já para ocupar o Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), até então ocupado pelo colecionador Pedro Mastrobuono, nada afeito a funções públicas, foi escolhida a funcionária de carreira no órgão Fernanda Castro, que constava de uma lista de sugestões do ICOM, o Conselho Internacional de Museus, o que aponta o respaldo do setor.

De fato, é conhecido que a gestão anterior se dedicou a nomear gestores que estavam mais voltados para a destruição de políticas culturais e dos órgãos que gerenciavam, sendo um dos casos mais exemplares o da Fundação Cultural Palmares, que chegou a excluir 27 pessoas de uma lista de personalidades negras, como Milton Nascimento, Elza Soares e Gilberto Gil. Trata-se de um verdadeiro escárnio de uma instituição voltada a combater o racismo e valorizar a produção negra.

Agora, o militante negro, advogado e presidente do bloco afro Olodum, João Jorge Rodrigues, assumiu como novo presidente da Fundação Palmares, na missão de retomar o órgão à sua função original.

Na posse de cada um dessas figuras, houve intenso prestígio do governo, como ocorreu na investidura de Maria Marighella na Fundação Nacional das Artes (Funarte), que tem sede no Rio, e foi criada em 1975, dez anos antes do próprio Ministério da Cultura.

A ministra da Cultura, Margareth Menezes, e a presidenta da Fundação Nacional de Artes (Funarte), Maria Marighella, durante evento de sua posse na entidade, no centro do Rio de Janeiro Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil
A ministra da Cultura, Margareth Menezes, e a presidenta da Fundação Nacional de Artes (Funarte), Maria Marighella, durante evento de sua posse na entidade, no centro do Rio de Janeiro
Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

Vereadora licenciada em Salvador, artista, neta do deputado Carlos Marighella (1911-1969), assinado por agentes do Dops em uma emboscada, Maria recebeu em sua posse, no início de março, a primeira-dama Janja, além de vários deputados federais, lotando a Sala Cecília Meireles por duas horas. Sua gestão será marcada por um colegiado de ampla representatividade, que inclui do coreógrafo e ex-bailarino do Grupo Corpo Rui Moreira, na direção de artes cênicas, à curadora indígena Sandra Benites, na direção de artes virtuais. A curadora participou, em outubro do ano passado, do VII Seminário Internacional: Cultura, Democracia e Reparação, uma parceria entre a arte!brasileiros e o Sesc. E, após toda polêmica que envolveu Sandra na curadoria do Museu de Arte de São Paulo (Masp), sua indicação tem um que de reparação.

Foi na posse de Maria Marighella, que Margareth Menezes relembrou da perseguição nos últimos e do papel central na nova gestão: “Por que o medo da cultura? Porque a cultura é ferramenta de transformação, de emancipação, de qualificação, além de ser um vetor econômico, de que podemos tirar melhor proveito”.  Como um mantra, por várias vezes ela ainda repetiu: “O MinC voltou”. ✱

A fotografia e a representação do cotidiano

Registro do livro "Fotografias deserdadas", de Rubens Fernandes Junior
Registro do livro “Fotografias deserdadas”, de Rubens Fernandes Junior

Desde que a fotografia foi inventada, ou melhor, apresentada ao público nas primeiras décadas do século 19, ela se tornou representante ou narradora da vida íntima: retratos, festas, férias, viagens. Por ter nascido como uma expressão democrática, foi se inserindo na vida cotidiana. Os famosos álbuns de família.

Por ser considerada uma arte do banal, do dia-a-dia, muitas destas fotos, que lotavam arquivos, muitas vezes acabaram sendo esquecidos em gavetas ou, pior, descartadas.

E é aí que entra o papel do pesquisador, que procura em feirinhas, mercados de pulgas, álbuns abandonados, imagens solitárias, mas que esperam que alguém as descubra para novamente retornarem à vida e terem espaço na narrativa de nossa passagem pelo mundo.

Somos seres lotados de imagens. É por meio delas que deixamos nossa marca pelo mundo em que passamos. E, desde que temos a fotografia, como protagonista, nossa existência está tão marcada como as imagens nas cavernas.

E é por causa destas fotografias, aparentemente jogadas fora ou esquecidas, que há anos o pesquisador e curador Rubens Fernandes Junior percorre sebos, feiras de antiguidades e mercados de pulgas, a fim de devolver a visibilidade das pessoas que um dia foram retratadas, por amadores ou por fotógrafos de estúdio. Fotografias agora reunidas em um livro, imagens que ele conceituou como Fotografias deserdadas, conceito, aliás, que dá título ao livro lançado pela Editora Tempo d’Imagem.

Capa do livro "Fotografias deserdadas", do pesquisador Rubens Fernandes Júnior
Capa do livro “Fotografias deserdadas”, do pesquisador Rubens Fernandes Júnior

Imagens sem nome, sem dados, sem data, mas que carregam toda uma história de representatividade. Da representatividade uma época, de uma sociedade, de momentos importantes vividos: “Há anos coleciono fotografias anônimas. Pessoas desconhecidas, raramente identificadas”, escreve o autor na apresentação do livro. E continua: “Todo o conjunto de dados, ou melhor, a falta deles, foi o atrator estranho que despertou em mim o desejo de adquirir e preservar estar fotografias que fui encontrando em sebos, feirinhas, bric-à-brac, mercados de antiguidades, lugares que abrigam tudo aquilo que teve seu fim determinado por aqueles que, em tese, eram seus proprietários”.

Um imagem aparentemente sem dados abre a possibilidade para inúmeras leituras, decodificações trazendo para nós o mesmo espanto que o filósofo Walter Benjamin sentiu ao falar sobre a fotografia de uma pescadora em seu texto A pequena história da fotografia, de 1931: “As primeiras pessoas reproduzidas entravam nas fotos sem que nada se soubesse sobre sua vida passada, sem nenhum texto escrito que as identificasse”.

Por isso estas imagens são fascinantes. Muitos filósofos e pesquisadores que escreveram sobre fotografia, como Alfredo de Paz ou Roland Barthes, por exemplo, já anunciavam que a história da fotografia deveria ser contada pelas imagens encontrada em álbuns familiares ou nas famosas caixas de sapato. Essas, sim, importantes para a representatividade de uma determinada sociedade. O sociólogo Pierre Bordieu, publicou, em 1965, um livro junto com sua equipe de pesquisa, chamado Un art moyen (sem tradução ainda para o português), em que ele pesquisou nos arquivos familiares: “Os álbuns familiares, os retratos de casamento e de formaturas, entre outros ritos de passagem, tinham um tutoria mantinham um elo afetivo”, comenta Rubens Fernandes Junior.

Para este volume, o pesquisador selecionou só imagens brasileiras. Para organizar melhor o volume de fotografias criou capítulos e uma leitura possível entre inúmeras: acidental, casais, coincidências estéticas, corpo e movimento, crianças, espelho e sombra, estranhamentos, estúdios e cenários, homem e cidade, homem e máquina, paisagem, retratos e simulações.

Em uma época de redes sociais, e da efemeridade da imagem, a preservação é importante. Imagens deserdadas são imagens canceladas se quisermos usar um vocabulário contemporâneo. Por isso a necessidade de preservá-las, mas, acima de tudo, de apresentá-las: “Ao pensar na imagem contemporânea essencialmente digital, e sua escassez material, fica evidente a importância de preservar as fotografias deserdadas à medida que, por meio delas, atestamos concretamente a existência e um ritual que produziram algum sentido na vida das pessoas comuns”, diz Fernandes Junior.

Ao recuperar imagens deserdadas ou abandonadas deixamos, para as gerações futuras sobre, registros de nossa passagem pelo mundo e de como gostaríamos de ser vistos e representados.

 

 

 

Gomide & Co abre nova sede com mostra de Lenora de Barros e gentileza urbana em sua arquitetura

Nova sede da galeria Gomide & Co, com projeto do escritório AR Arquitetos. Foto: Leonardo Finotti
Nova sede da galeria Gomide & Co, com projeto do escritório AR Arquitetos. Foto: Leonardo Finotti

Nesta quarta-feira (8/3), a Gomide & Co abre sua nova sede com a exposição Não vejo a hora, de Lenora de Barros. Na esquina da Avenida Paulista com a Angélica, o novo espaço expositivo marca os dez anos de atuação de Thiago Gomide como galerista em São Paulo, em seu terceiro e maior endereço na cidade. Concebido pelo escritório AR arquitetos (Marina Acayaba, Juan Pablo Rosenberg e Ana Flavia Piacentini), com lighting design de Fernanda Carvalho, o projeto preza pela gentileza urbana, numa arquitetura que dialoga com a cidade, acolhe o público da galeria e é convidativa aos transeuntes.

Segundo Gomide, um dos grandes trunfos da nova sede é manter exposições em curso e o acervo num mesmo lugar. “Antes, se um colecionador vinha nos visitar, interessado por algum dos artistas que representamos, mostrávamos imagens das obras e tínhamos de marcar outra visita ao endereço onde elas estavam guardadas. Perdíamos a agilidade”, conta o galerista, que em seu primeiro endereço, na Rua Oscar Freire, mantinha 80% de seu acervo em outro andar, do mesmo prédio. Quando se mudou para a galeria anterior, na vila concebida por Flávio de Carvalho (1899-1973), perto da Alameda Lorena, Thiago ainda mantinha seu acervo no prédio da primeira galeria.

“Agora, temos um ambiente confortável, uma sala de reunião e outra de espera em que a visita do colecionador se torna mais construtiva. O tempo que ele fica aqui dentro é 20 vezes maior do que nos outros endereços”, conta Thiago, que investiu também no projeto de interiores, com móveis criados pela designer Cláudia Moreira Salles e, last but not least, obras do acervo da galeria, de artistas como, León Ferrari, Mira Schendel, Lygia Clark, Sergio Camargo e Antonio Dias.

O escritório AR Arquitetos, que assina o projeto da nova Gomide & Co, já havia feito também o retrofit do Edifício Rio Negro (rebatizado como Rosa), finalizado em 2020, e que agora abriga a galeria. E fora também responsável pela arquitetura da Bergamin & Gomide, em seu primeiro endereço, na Oscar Freire. Alguns elementos da nova Gomide & Co já estavam então presentes na reforma, como a escadaria externa, que funciona como uma sequência de bancos ao longo da fachada na Angélica, seja para transeuntes ou, agora, os visitantes do novo espaço. Assim como a transparência, outro aspecto marcante do andar térreo.

O arquiteto Juan Pablo Rosenberg destaca a luz natural, que banha o espaço interno da galeria, e a possibilidade de se abrir para a rua a nova sede, durante vernissages, mais um componente de “gentileza urbana” do projeto. “Na esquina das avenidas, mantivemos uma permeabilidade visual, tanto para convidar o público a entrar no espaço expositivo, quanto para os passantes descobrirem que ali existe uma galeria”, afirma o arquiteto. Para ele, a chegada da Gomide & Co pode dar um novo sopro de vida àquela área, como mais um destino do circuito cultural da Paulista.

“Quanto mais degradado um lugar está, mais ele tende a se desagradar. Quando você deixa o lugar bem iluminado, habitado, frequentado, a tendência é que o entorno fique mais bem cuidado e preservado”, avalia Rosenberg, que chegou a sugerir a Thiago que extrapole as fronteiras da galeria e realize, na praça em frente, happenings, performances etc., extensões do que acontece na própria Gomide & Co. A ideia é mesmo ótima.

TRAJETÓRIA

Mineiro de Belo Horizonte, Thiago Gomide gostava de artes visuais desde garoto, achava que viria a ser artista. Estudou arquitetura na capital mineira, pensando numa profissão “para sobreviver”, caso a desejada carreira nas artes não decolasse. Acabou não concluindo o curso, mas, muito jovem, teve já sua primeira experiência no mercado secundário com uma loja em que vendia mobiliários modernistas, um negócio que surgiu de  maneira um pouco insólita.

Sua mãe, a arquiteta Meire Gomide, havia feito um projeto para a Casacor em 1997, na capital mineira, para o qual pedira a ajuda do filho e fizera questão de comprar uma grande quantidade de móveis originais de grandes mestres, como Joaquim Tenreiro, Sergio Rodrigues e José Zanine Caldas, entre outros, a preços então bem baixos. Terminada a Casacor, a arquiteta propôs vender ao filho aquelas peças pelo mesmo valor que havia pago, e ele poderia comercializá-las em BH por preços mais elevados, já que ela as havia reformado.

Surgia daí a tal loja, em que Thiago, que tinha muitos artistas e fotógrafos entre seus clientes, ocasionalmente trocava os móveis por obras. O negócio, no fim das contas, era mais lucrativo. Ele começou a frequentar leilões e galerias, a comprar arte. Leu uma reportagem a respeito um documentário do cineasta Zelito Viana sobre acervos de colecionadores mineiros. Na matéria, aparecia uma obra do artista plástico Tunga True rouge (1997) ilustrando a coleção de Bernardo Paz. Havia rumores de que Paz estava construindo galpões e comprando muitos trabalhos de arte.

Ato contínuo, Thiago ligou para o colecionador, que o convidou para um almoço, em que anunciou estar fazendo “o maior museu do mundo”, na verdade o que viria a ser o Instituto Inhotim, inaugurado em 2006, na cidade mineira de Brumadinho. Era 2002, e Thiago resolveu fechar a loja de móveis, após se oferecer para trabalhar com Paz: “Quero ajudar você a construir seu sonho”, disse Thiago ao colecionador.

Lá, conta Thiago, ele fez de tudo, “todo mundo que tinha um problema me procurava para resolver”. Mas ele teve também seus primeiros contatos com o grand monde da arte, de grandes exposições, como a Bienal de Veneza e a Documenta de Kassel, a feiras, como a Art Basel. Em dezembro de 2007, pediu as contas e veio para São Paulo, onde no ano seguinte começou a trabalhar na Bolsa de Arte, de Jones Bergamin, o Peninha.

De lá, por sugestão e ensejo do próprio Peninha, juntou-se à filha do galerista, Antonia Bergamin, com quem viria a abrir, em 2013, a sua primeira galeria em São Paulo, a Bergamin & Gomide. Como sua experiência na Bolsa de Arte era com mercado secundário, manteve o mesmo perfil na nova galeria, até 2019, quando incorporaram o primário. Em maio de 2021, Antonia e Thiago se mudaram para casa na vila dos Jardins. Um mês depois, ela saiu da sociedade, e Thiago rebatizou a galeria como Gomide & Co.

A NOVA SEDE

A nova Gomide & Co passa a integrar o corredor cultural da Paulista, onde estão a Japan House, o Sesc Avenida Paulista, o Itaú Cultural, o Masp e o Instituto Moreira Salles, entre outros. A galeria tem de 600 metros quadrados contra 140 metros quadrados da primeira e 100 metros quadrados da anterior e fica no térreo do Edifício Rosa, cujo retrofit também foi projetado por Juan Pablo Rosenberg e Marina Acayaba, do escritório que leva seus sobrenomes. Dentro, Gomide passa a contar com um pé-direito duplo, de 5 metros, que pode acomodar obras de até 4mx10m.

Nas sedes anteriores, o galerista não dispunha de uma parede tão alta, ou do distanciamento necessário para expor trabalhos de grandes dimensões não pendentes. Em 2019, por exemplo, quando apresentou uma mostra dedicada ao catalão Antoni Tàpies, Thiago não pôde exibir uma de suas criações, justamente por falta de espaço.

As mudanças na Gomide & Co não se limitam à nova sede, no entanto. Em fevereiro, a galeria anunciou que Luisa Duarte crítica de arte, curadora e pesquisadora com mais de 15 anos de trajetória na arte contemporânea estava se unindo a seu time como diretora artística. “Ela vem principalmente para a gente ampliar o programa primário, de representação de artistas, aumentar dos atuais oito para 20. E fazer com que a galeria não se limite às obras caríssimas do mercado secundário, mas possa atender, por exemplo, a um casal jovem, de menos de 30 anos, que quer comprar algo de no máximo R$ 10 mil”, explica o galerista.

“Temos também um time de artistas que demandam um pensamento, uma coerência e um tempo de discussão, acerca de suas produções, que é diferente do meu tempo”, complementa Thiago, que divulgou outra novidade: a chegada à galeria de Fabio Frayha, ex-diretor do MASP, um administrador especializado no universo das artes visuais, que passa a atuar como seu sócio.

LENORA DE BARROS

Em 2022, Lenora de Barros apresentou, de abril a julho, a instalação Retromemória no Museu de Arte Moderna de São Paulo, esteve envolvida na 59ª Bienal de Veneza e com a exposição Minha língua, aberta em outubro e que fica em cartaz na Pinacoteca até 9 de abril. Sua nova mostra, Não vejo a hora, já fora programada para abrir o calendário expositivo da Gomide & Co em 2023, na nova sede.

De dezembro a fevereiro, Lenora se concentrou nos trabalhos que apresenta agora. Gomide conta que fez um único pedido à artista: “explore bem a fachada”. “São 150 metros virados para a Angélica, e é isso que vai possibilitar a gente trazer a cidade para dentro da galeria, um tipo de espaço com que as pessoas costumam ter certa preocupação quanto a entrar ou não. É para entrar, sim. E a Lenora veio com a ideia de um painel de LED com palavras ligadas ao tempo, como retardar, antecipar, perene, atraso etc., de um poema que teve como inspiração uma brincadeira infantil que fazia com sua mãe, Electra [Barros, mulher do artista plástico e designer Geraldo de Barros]”, conta.

Em Não vejo a hora, Lenora apresenta 12 trabalhos, em sua maioria inéditos, cujo denominador comum é uma elaboração sobre o tempo. A mostra abrigará fotografias, vídeo, instalação sonora e até uma mesa de pingue-pongue, em que a artista joga e  convida o público a jogar também, com as relações entre linguagem, temporalidade e corpo.

SERVIÇO

Não vejo a hora, de Lenora de Barros
Abertura: nesta quarta-feira (8 de março), às 18h
Nova sede da Gomide & Co Avenida Paulista, 2644 São Paulo (SP)
Visitação: até 13 de maio; segunda a sexta-feira, das 10h às 19h; sábados, de 11h às 17h
Entrada gratuita

Podcast ‘O Ateliê’ aborda denúncias de relações abusivas no circuito de artes plásticas

Podcast 'O Ateliê' aborda denúncias de relações abusivas no circuito de artes plásticas
Podcast ‘O Ateliê’ aborda denúncias de relações abusivas no circuito de artes plásticas

Os bastidores de uma fatia do mundo das artes visuais ganharam inesperado alcance graças ao podcast O Ateliê, projeto do jornalista Chico Felitti. No ano passado, ele se tornou celebridade por conta de A mulher da casa abandonada, que alcançou a posição de segundo podcast mais ouvido no Brasil, segundo o Spotify.

Desta vez, Felitti apresenta uma série de denúncias de ex-alunas contra o Atelier do Centro, uma “escola para formação artística expandida”, como o local é definido em seu perfil no Instagram, dirigida pelo artista Rubens Espírito Santo.

Assim como na “casa abandonada” do bairro de Higienópolis, o jornalista parte de uma situação sem amplo conhecimento público, como o Atelier, e daí revela uma história complexa e inesperada, a partir de denúncias apresentadas na Justiça por uma das ex-alunas da escola, a artista Mirela Cabral, que lá esteve por três anos. Ela afirma que, neste período, sofreu abusos físicos, psicológicos e financeiros em uma situação que se assemelha a uma seita em que era obrigada a chamar Espírito Santo de mestre. São denúncias graves, que estão sendo investigadas pela Justiça.

Pelas relações com figuras importantes no circuito da arte contemporânea, como colecionadores de prestígio e diretores de instituições culturais, todos com nomes preservados no podcast, o assunto passou a ser comentado fortemente nos grupos de artistas, galeristas, colecionadores e afins. Quem, afinal, é o milionário que bancaria os livros publicados sobre o “mestre” Rubens Espírito Santo? Quem é o colecionador e banqueiro, pai de uma participante do Atelier do Centro, que ajuda a dar status ao local?

Essas perguntas não são respondidas por Felitti, evitando, assim, o tom de fofoca que poderia contaminar o podcast. Ao contrário, ele opta por dar visibilidade apenas a quem aceita ter seu nome tornado público e investe em contextualizar o caso por questões muito atuais, aprofundando-as com especialistas, como a dificuldade de as pessoas perceberem quando estão envolvidas em relações tóxicas. Afinal, é mesmo difícil entender apenas pelos relatos como as alunas e os alunos se deixaram envolver por tanto tempo em situações tão indignas, o que é o tema do sexto episódio, um dos melhores do podcast, sobre relações abusivas.

Se há algo que nos últimos anos finalmente está sendo levado a sério é desnaturalizar as relações por tanto tempo tidas como “normais”, mas que são de fato constituídas por puro assédio, seja físico, moral ou sexual. E vítimas, independentemente de sua classe social, merecem ser tratadas com respeito e discrição.

Fui um dos entrevistados no podcast, para contextualizar a relevância que Espírito Santo teria no circuito da arte e reafirmo aqui: nenhuma. Tendo a acreditar que ele conseguiu manter o Atelier do Centro por mais de 20 anos por se aproveitar da ingenuidade e da fragilidade de quem passou por lá.

Ao olhar para esse microcosmo do mundo das artes, no fim, Felitti faz mais uma crônica do Brasil antigo, esse que perdeu as eleições de 2022, mas ainda sobrevive ao manter pessoas escravizadas para a colheita de uva, que assedia funcionários, que discrimina mulheres no trabalho, que faz afirmações preconceituosas contra nordestinos… a lista não tem fim.

Na própria entrevista concedida por Rubens do Espírito Santo, no episódio nove, sua defesa é que se tratava de um grupo de adultos, em que os eventuais exageros ocorriam no coletivo e com consentimento dos participantes.

No entanto, ao longo do podcast, Felitti usa de vários meios para apontar os comportamentos do “velho Brasil” no ateliê, a partir de depoimentos de antigos funcionários, infiltrando estudantes de arte no grupo, entrevistando pais de discípulos arrependidos.

No fim, O Ateliê não é apenas um podcast sobre uma microbolha do circuito das artes. É mais sobre como uma sociedade gera pessoas frágeis, que se deixam manipular com facilidade e que são capazes de se submeter a situações impensáveis, como venerar figuras que contestam a importância da imunização, mesmo que, escondidas, elas até tomem as vacinas que publicamente demonizaram.

Diego Dedablio apresenta primeira obra em larga escala no Brasil

Dedablio durante a pintura de empena no Conservatório de Tatuí.
Dedablio durante a pintura de empena no Conservatório de Tatuí. Foto: William Lima

Diego Dedablio é natural de Tatuí, cidade localizada a 140 km de São Paulo e conhecida por ser a capital da música. Isso se deve ao fato de sediar o Conservatório Dramático e Musical “Dr. Carlos de Campos” de Tatuí – o maior do gênero na América Latina –, ou apenas Conservatório de Tatuí, como é conhecido internacionalmente. 

Não à toa, o tema musical está presente na obra de Dedablio há muito tempo. A iconografia do músico é um personagem recorrente junto com a música popular, o sambista, o caboclo do Maracatu e o congado de Minas Gerais. Esses elementos fazem parte da pesquisa do artista que, em conversa com a arte!brasileiros, revelou ser muito influenciado pelo Jazz, ritmo musical que começou a ouvir por causa dos professores do Conservatório da cidade. 

Apesar da música ter forte apelo, a cidade também é berço de uma das maiores atrizes do país, a tatuiana Vera Holtz. A atriz é referência para todos que aspiram a uma carreira de sucesso e prestígio nas artes cênicas.

O artista Dedablio em seu ateliê
Dedablio em seu ateliê. Foto: Diego Dedablio / Divulgação.

Em uma visita à cidade, Vera se deparou com alguns trabalhos de Dedablio, que se aventurava na street art. Curiosa por saber quem estaria por trás dos sprays nos muros, a atriz foi até a casa do conterrâneo. Além de ter adquirido algumas obras, Vera foi responsável por financiar a temporada que o artista passou em São Paulo para estudar na Panamericana Escola de Arte e Design. Dedablio comenta sobre o período: “Não terminei os estudos lá porque a escola começou a influenciar demais o meu estilo. Decidi sair por causa de modulação pedagógica. Estava numa fase em que a influência era um risco para mim. Aí eu decidi sair e fui fazer cursos livres lá em São Paulo mesmo”.

No bairro da Santa Cecília, onde morava, Dedablio passou a pintar pela região e foi estudar gravura, xilogravura e litogravura no Museu Lasar Segall. Com os cursos livres, pôde desenvolver seu estilo próprio, sem interferências. 

Nessas experimentações, aprimorou sua prática rapidamente. Entre as características do trabalho do artista está a mistura de técnicas do grafite para a fine art e vice-versa. “Há pouco tempo, fiz um mural com spray e tinta óleo juntos, que é muito incomum, né? Eu não vi ninguém fazer ainda. Normalmente, o pessoal pinta de látex”. Um dos motivos de fazer esse intercâmbio de estilos é levar a técnica das telas, como a pintura a óleo, para as ruas. “É superdifícil fazer porque é pequenininho, aí você fica lá com o pincelzinho em um muro gigante. É um martírio, mas vale muito a pena. O resultado é ótimo”. 

De volta a Tatuí, Dedablio sempre procurou manter contato com a capital. Para ele, a falta da efervescência em uma cidade pequena faz falta. Nas idas até São Paulo, realiza trabalhos independentes e, assim, recebeu seus primeiros convites internacionais. Em 2012, foi até Amsterdã, na Holanda, onde foi convidado a fazer uma intervenção na fachada de um prédio. Cinco anos depois, foi chamado pela embaixada brasileira na Bielorrússia para pintar um mural em grande escala em Minsk, capital do país. 

Somente dez anos depois do primeiro convite internacional é que surgiu a oportunidade de realizar um trabalho tão grande no Brasil. Em 2022, o Conservatório de Tatuí encomendou a pintura de um mural para a instituição. “Só agora, com uma nova gestão no Conservatório, uma gestão mais abrangente, com a cabeça mais arejada, é que eles fizeram esse convite. Eu achei superimportante para mim, por ser a primeira vez no Brasil pintando em grande escala”.

A ligação de Dedablio com o Conservatório de Tatuí vai além da conterraneidade. O artista atribui grande parte da sua educação indireta ao contato que sempre manteve com os professores da instituição e com as referências musicais que constituem o seu trabalho: “Eu fiquei supercontente, porque meu trabalho já tem muito conceito musical dentro da parte teórica e, até da prática, de sinestesia, da questão da composição, de semiótica, de escala tonal dentro do trabalho de arte, e por aí vai. [O mural] é uma retribuição àquilo que eu aprendi, ao que as artes representam. Porque são coisas bem distantes a música instrumental, a música erudita e o grafite, né? Um negócio que é muito difícil de ver”.

Parte do trabalho de Deablio realizado na empena do Conservatório de Tatuí.
Parte do trabalho de Deablio realizado na empena do Conservatório de Tatuí. Foto: Diego Dedablio / Divulgação.

Para o futuro, Dedablio tem o desejo de criar o neografite: “Eu já tenho um monte de escritos teóricos aqui e eu tenho esse plano de fazer uma formalização desse neografite que abrange todas as técnicas ao mesmo tempo. É uma pesquisa que eu tenho de antropologia e sociologia com arte contemporânea, que é uma das minhas pretensões”.

Apesar disso, o artista disse que não procura ter muitas ambições. “O mundo da arte é meio estranho, tem um negócio meio austero, com que eu não me identifico muito. Mas é necessário estar pontuando o espaço, estar presente. Acho que a minha ambição é estar vivo e presente no trabalho. Não eu, como pessoa, mas dar a vida ao trabalho, fazer o trabalho respirar na percepção do próximo, assim. Não chega nem a ser pretensão, acho que é uma obrigação mesmo”.