Gisella Scotta, "Encarnacion", 2022. Foto: Natalia Marcantoni

A exposição Qué cosa, la poesía visual?, em cartaz até 1º de outubro, no Centro Cultural Kirchner, em Buenos Aires, a apresenta um conjunto de obras históricas e contemporâneas, de artistas da Argentina, Brasil e Chile, que se debruçam sobre as possibilidades da linguagem e da palavra. Na seleção de trabalhos estão presentes textos visuais e sonoros, além de um importante arquivo da poesia visual argentina. A curadoria ficou a cargo de Guillermo Daghero, e a expografia, de Anna Ferrari.

A exposição presta uma homenagem a Edgardo Vigo (1928-1997), poeta, performer e artista plástico argentino. Jorge Santiago Perednik (1952-2011) – poeta, tradutor e ensaísta do país – também é homenageado por Qué cosa, la poesía visual? A mostra reúne mais de 30 artistas que abordam a poesia visual, entre eles outros expoentes argentinos das décadas de 1960 e 1970, como León Ferrari, Mirtha Dermisache e Juan Carlos Romero. Entre os brasileiros, destaque para Augusto de Campos – que apresenta um vídeo feito em colaboração com o cantor e compositor Caetano Veloso – e Lenora de Barros.

A exposição também destaca a produção de poesia experimental feita após a retomada da democracia na Argentina, entre os anos 1980 e 1990, por nomes como Perednik e Carlos Estévez. Também daquele final do século 20, o Archivo Vórtice, dirigido por Fernando García Delgado, surge como um caso paradigmático da consolidação da poesia visual à época, com um reservatório excepcional de poesia visual e arte postal da Argentina e do mundo.

As possibilidades visuais e sonoras da palavra também são vistas por meio de obras produzidas no Chile, por Carlos Soto-Román, ou na Espanha, por Belén Gache, que por sua vez dialogam com artistas atuando em Córdoba, como Lucas Di Pascuale, Rosana Fernández, Huenú Peña ou Gisella Scotta; com os que produzem em Santa Fe, como Hernán Camoletto e Claudia del Río; ou ainda com criadores portenhos, como Ezequiel Alemian, Geraldina Blas, María Gamarra, Magdalena Jitrik, Jorge Macchi, Emiliano Miliyo, Leticia Obeid, Hugo Vidal e Ivana Vollaro.

Segundo Anna Ferrari, seu projeto de expografia propõe uma arquitetura neutra e um percurso fluido, “como se fosse uma poesia visual gigante, em que a gente conectou as diferentes obras, com harmonia. Um caminho em que você vai lendo a mostra ao percorrê-lo”. Quase todo o espaço tem paredes brancas. Anna conta à arte!brasileiros que somente algumas delas foram pintadas de preto porque era algo que dialogaria com trabalhos específicos presentes na seleção. A arquiteta também buscou ter uma quantidade mínima de mobiliários e paredes entre as salas, para que o espaço expositivo ficasse bem integrado.

Para reforçar a abrangência insinuada pela pergunta que intitula a mostra, o comunicado de imprensa do CCK salienta que a poesia visual é “próxima dos termos poesia abstrata, poesia concreta, poesia de invenção, poesia experimental, tipografia, poesia minimalista, poesia semiótica, poesia espacial, entre tantos outros nomes, para designar algo que cabe na palavra poesia, na sua natureza, nos seus caprichos e na sua dispersão”. Também assinala que a poesia pode ser vista, ouvida e sentida “em seus fragmentos, gestos, signos, sons e signos”, e, no caso de Qué cosa, la poesía visual?, como “algo em exibição”.

Leia, a seguir, a entrevista de Guillermo Daghero à arte!brasileiros:

arte!✱ Uma vez que não há efemérides em torno de Edgardo Vigo, por que o artista é o ponto de partida desta exposição?

Guillermo Daghero – Inicialmente, trata-se de um convite curatorial do Centro Cultural Kirchner que pretende dar visibilidade ao espaço da poesia cruzando a área da literatura do CCK com a área das artes visuais, e é justamente isso que dá origem a uma das muitas ideias sobre o tema da poesia visual: uma prática intermediária entre a poesia e as artes visuais. A obra de Edgardo Antonio Vigo é uma referência indiscutível nesta exposição porque, em meados dos anos 1950, ele começou com essas práticas poéticas não convencionais, gerando diferentes ações que marcaram a arte argentina. Uma das referências do passado para a realização desta exposição é a Expo/Internacional de Novísima Poesía/69, que Vigo organizou em março de 1969 no Centro de Artes Visuais do Instituto Torcuato Di Tella (CAV) de Buenos Aires. É oportuno acrescentar o gesto de Haroldo de Campos, que em 1967 sugeriu em carta escrita a Jorge Romero Brest, diretor do CAV, a organização desta exposição, já que Vigo naqueles anos publicava Diagonal Cero, uma revista de vanguarda em que convidou e mostrou o que havia de atual em termos de poesia visual no resto do mundo. Vigo e a sua obra são um ponto de partida, assim como Jorge Santiago Perednik, importante estímulo com as edições da revista Xul nos anos 1980 e 1990, em que difundiu, como dizia na sua capa, a outra poesia, e é também o Vórtice de Poesía Arquivo visual com a ideia e direção de Fernando García Delgado em que, no início de 2000, lançou os encontros de Poesia Visual, Sonora e Experimental juntamente com outras publicações e convocatórias. Contextualizar, citar brevemente e nomear essas referências nada mais é do que destacar e saudar aquele passado quando não havia lugar ou lugares onde o experimental em poesia acontecia, e Vigo foi, sem dúvida, sinônimo desse ponto de partida.

arte!✱ – De um ponto de vista retrospectivo, Qué cosa, la poesía visual? é uma das exposições mais completas sobre essas experimentações com a linguagem na cena artística argentina nos últimos anos? Ou sua principal característica são os diálogos que propõe com o Brasil e o Chile?

Guillermo Daghero – A exposição é apresentada em quatro salas muito amplas, separadas umas das outras. A parte central reúne algumas das referências argentinas que utilizaram essa linguagem visual, mas é uma síntese que mostra um panorama muito limitado e ajustado do passado. De alguma forma, toda curadoria implica em um corte, e é meu costume mostrar pouco ou o suficiente para se ter uma ideia do que foi, do que é e também do que falta. Eu responderia dizendo que a exposição está incompleta em termos de poesia visual, dizendo também que ela preserva e contém o que Mallarmé disse, pensar, isso: de outra forma. Mais do que oferecer um panorama completo carregado de obras que dão conta do passado na poesia visual, a ideia de recorte e seleção curatorial atravessa a questão de por onde passa o visual na poesia. Expor nas quatro salas e, indistintamente, o passado com o presente sob a questão Qué cosa, la poesía visual? deixa em aberto a possibilidade de ver na poesia uma coisa pensante, e não algo estabelecido. Foi dada ênfase e atenção à espacialidade entre as obras nas salas, e este foi um trabalho conjunto com Anna Ferrari, em que cuidamos, acima de tudo, da forma e do conteúdo da obra de cada convidado ou no coletivo da mostra. A exibição de textos exige uma leitura extra por parte do espectador em que o silêncio ou, neste caso, os espaços em branco, também significam. São formatos e técnicas diferentes, o que torna o espetáculo eclético e com significados diversos. Embora haja uma seleção por salas, não há limites precisos entre as obras, há uma espécie de linguagem universal em que tudo se mistura por meio do olhar e da leitura que cada um pode fazer no conjunto daquilo que é exposto.

arte!✱  A propósito, quão próximas e quão distantes estão as produções de poesia visual desses três países?

Guillermo Daghero – Esse é um tema que também surge na exposição? Talvez seja a minha própria proximidade, precoce e deslumbrante, quando encontrei a poesia concreta do Brasil numa revista da Unesco chamada El Correo, e que chegou na casa da minha avó quando eu era adolescente. Neste número especial do Brasil, vejo sob o nome de poemas alguns desenhos textuais despojados, atravessados ​​por signos e sinais que obedeciam a variações gráficas e geométricas de Décio Pignatari e, em outra página, um diagrama tipográfico de Pedro Xisto, e eu disse a mim mesmo, atônito na descoberta, ”o que é isso?”. Mais tarde, no início de 2000, entrei em contato com a poesia chilena e descobri diferentes práticas poéticas ligadas a um certo experimentalismo em relação ao modo de publicar e fazer poesia (estou falando de Huidobro, Parra, Deisler, Zeller, Martínez, Millán, Vicuña e outros), e é nessa época que me aproximo e começo com algumas trocas de idéias e conversas em relação à poesia de Andrés Ajens, Martín Gubbins, Felipe Cussen, Anamaría Briede, Martín Bakero e ultimamente Carlos Soto Román, poeta e performer, a quem convido a participar com a edição de Chile Project (2013), em versão impressa, e o vídeo Borradura (2021). Esses dois episódios significativos fizeram com que eu não perdesse nenhuma relação com essa forma de materialidade poética que os concretistas chamavam de poesia de invenção, termo que adotei para continuar essa prática e essa busca e associá-la a experiências de pares na Argentina e em outros países.

arte!✱ – Há um diálogo entre gerações na exposição? Em caso afirmativo, o que esses diálogos revelam?

Guillermo Daghero – Lenora de Barros, Ivana Vollaro e Augusto de Campos convivem no mesmo espaço, são três gerações diferentes e contemporâneas entre si. A obra de Ivana, Alfaboca (2004), é um vídeo que contém cinco clipes poéticos em que participam Lenora de Barros e Arnaldo Antunes. Numa das extremidades da parede e na mesma sala, vê-se exposta a obra Poema (1989) de Lenora; e na sala seguinte, O Pulsar (1975) de Augusto, em versão vídeo. O Pulsar pertence à série Stelegramas (1975-1978) e é um poema musicado por Caetano Veloso para o livro Caixa Preta (1975) de Augusto de Campos e Júlio Plaza, posteriormente incluído em Viva vaia (poesia 1949-1979 ). A versão em exibição corresponde a uma produção audiovisual de Gonzalo Aguilar (2014).

arte!✱ No caso de León Ferrari, há peculiaridades, distinções, entre a poesia visual por ele concebida entre os anos que em viveu na Argentina e os passados no Brasil?

Guillermo Daghero A obra de León Ferrari é extensa e tem suas épocas e formatos. Foi utilizado material da Fundação Augusto e León Ferrari e feita uma seleção de obras gráficas com Andrea Wain. Algumas Cartas foram incluídas em cópias xerox e um livro de artista, Poemas. Ambas as produções correspondem aos anos de sua residência no Brasil. Acrescentam-se outros textos no estilo de escrita ilegível, que são tintas e aquarelas de 1997, anos em que León participou ativamente dos encontros de poesia experimental organizados pela Vórtice em Buenos Aires. A escrita em si e o desenho como escrita ocupam na obra de León um lugar importante em sua forma de fazer arte, é aí que as grafias se misturam em um componente totalmente visual entre letra e imagem.

arte!✱ Você poderia citar alguns artistas ou obras presentes na exposição que representam as experiências mais ousadas?

Guillermo Daghero – As obras de Roxana Fernández, Huenú Peña e María Gamarra com Geraldine Blas têm uma particularidade que não sei definir nem explicar o porquê, mas há nelas algo que atrai. Associo esta percepção aos seus componentes ópticos e sonoros no caso de Roxana, mas eles geram sensações que não podem ser definidas com precisão, excedem aquela informação e mensagem, então traduzo aquele olhar como poesia ou precisamente como uma coisa… coisas complexas e simples… são obras difíceis de interpretar, que seduzem e causam efeito.

arte!✱ Linguagem, poética e política têm o mesmo peso na produção desses artistas selecionados? Ou um desses aspectos se manifesta mais agudamente em alguns do que em outros?

Guillermo Daghero – Há obras, discursos e trajetórias artísticas mais compromissadas que outras entre o poético e o político. As obras de Romero, Vidal, di Pascuale, Jitrik, Macchi, Soto Román e Scotta, como um todo, são obras de conteúdo gráfico e literário em que aparecem a memória histórica e as denúncias sociais.

SERVIÇO
Qué cosa, la poesía visual?
Até 1/10
Curadoria: Guillermo Daghero
Centro Cultural Kirchner – Sarmiento, 151 – Buenos Aires, Argentina
Visitação: de quarta a domingo, das 14h às 20h
Entrada gratuita

 

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