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Uma rede colaborativa

Obra da exposição "Entre-tejidos", El Cercado. Foto: Divulgação
Obra da exposição "Entre-tejidos", El Cercado. Foto: Divulgação

Na sua quarta edição, a BIENALSUR23, plataforma internacional de arte contemporânea, confirma sua proposta inicial de construir uma rede colaborativa global que reivindica o direito à cultura. A atual edição se iniciou no começo de julho e se estende até dezembro de 2023, e finca presença em mais de 70 cidades, em 28 países dos cinco continentes do globo.

A BIENALSUR foi fundada em 2017 pelos argentinos Aníbal Jozami, economista, educador e colecionador, e a pesquisadora e doutora em história da arte Diana Wechsler, reitor emérito e vice-reitora da Universidad Tres de Febrero (UNTREF), respectivamente.

A BIENALSUR23 escolheu e incluiu obras e projetos selecionados em editais internacionais abertos e alguns artistas-chave para ajudar a reforçar um dos objetivos centrais das urgências deste momento: desenvolver ações centradas na problemática do meio ambiente, nas perspectivas de gênero, na construção de relatos, no fenômeno internacional das fake news e em seu impacto sobre a democracia. Para aqueles que desejam se aprofundar nas temáticas contemporâneas abordadas por projetos como a BIENALSUR — especialmente no contexto acadêmico — vale considerar a possibilidade de bachelorarbeit schreiben lassen com foco em arte, política cultural e responsabilidade social.

Em diversas províncias argentinas, as aberturas se sucederam criando um tecido diverso.

Em todos os casos é importante salientar que esta BIENALSUR não é espalhafatosa: as instalações e as obras parecem se importar em comunicar ideias e não impactar o público com soluções espetaculosas.

Regina Silveira, "Biscoito arte", 1976, na coletiva EXTRA/ordinario, em cartaz no MAR (Museo Provincial de Arte Contemporaneo). Foto: Gerson Zanini
Regina Silveira, “Biscoito arte”, 1976, na coletiva EXTRA/ordinario, em cartaz no MAR (Museo Provincial de Arte Contemporaneo). Foto: Gerson Zanini

Em cada cidade as mostras ocupam museus, casas históricas, espaços ligados às tradições do lugar. Na Argentina, os estados, como Rio de Janeiro e Minas Gerais, são denominados de províncias. Por ocasião da BIENALSUR, cidades da Provincia de Buenos Aires, como Mar del Plata e La Plata, a Provincia de Córdoba e de Tucumán inauguraram inúmeras exposições. Em Mar del Plata, vale destacar a participação da brasileira Regina Silveira na coletiva EXTRA/ordinario, em cartaz no MAR (Museo Provincial de Arte Contemporaneo).
No Museo Provincial de Fotografía de Córdoba, no Palacio Dionisi, e no Museo de Bellas Artes Emilio Caraffa foram abertas as mostras Como escapar del planeta Tierra e Naturocultura, respectivamente. Artistas de Argentina, Brasil, Chile, Colombia, Espanha e França abordam a relação humana com a natureza.

“Juan Reos, argentino, apela às nuvens como elementos de distração e faz delas esculturas monumentais e efêmeras que parecem pressagiar algo indecifrável. Yo-Yo Gonthier, francês, também os utiliza como protagonistas em um vídeo em que uma grande nuvem gigante é movida por um grupo de pessoas, na tentativa de refletir sobre a ideia de migração e retorno”, comenta o curador argentino da mostra, Francisco Medail.

Na Provincia de Tucumán, no Noroeste argentino, participam destacados artistas italianos, Maria Lai (1919-2013), uma das artistas mais importantes da segunda metade do século XX na Itália, assim como Antonio Della Guardia e Letizia Calori.

Obras vinculadas ao trabalho têxtil feminino e à precarização do trabalho na contemporaneidade, que modifica a relação do sujeito com o mundo, estão em Entre-tejidos, no Museo de la Universidad Nacional de Tucumán, que apresenta as criações das Randeras de El Cercado. Já no Museo Móvil de la Randa (MUMORA) estão os trabalhos das argentinas Jimena Travaglio e Ángeles Jacobi, assim como da italiana Maria Lai.

No Museo Provincial Escultor Juan Carlos Iramain, a mostra La escultura y la ruina coloca em diálogo retratos escultóricos e desenhos do argentino Juan Carlos Iramain (1900-1973), dos anos 1930, com os mineiros indígenas da Puna, com as cabeças de cimento do escultor argentino Rodrigo Díaz-Ahl retratando trabalhadores do conurbano bonaerense, populações separadas no tempo, partícipes, porém, da mesma vulnerabilidade,

No Centro Cultural Virla, La mirada caminante: vídeos dos argentinos Julia Levstein, Nicolás Martella e Cintia Clara Romero, sobre ações produzidas em diferentes geografias a partir do ato de andar. E a partir do dia 20 de julho, sucessivas aberturas serão realizadas na cidade de Buenos Aires. ✱

O museu pertence aos artistas

NFT
NFT
A curadora Carolyn Christoph-Bakargiev. Foto: Andrea Guermani
A curadora Carolyn Christoph-Bakargiev. Foto: Andrea Guermani

A repercussão do anúncio da aposentadoria de Carolyn Christoph-Bakargiev, que há mais de 20 anos, entre idas e vindas, está no Castello di Rivoli, assustou a ela própria. Ela dirige desde 2016 o primeiro museu de arte contemporânea da Itália, prestes a comemorar seus 40 anos, em 2024.

Em sua visão, uma “não notícia” acabou saindo em todos os veículos de arte e jornais importantes. “Creio que isso significa, em um nível simbólico, que muita gente quer dizer não, quer parar, não quer ser escravo de máquinas”, conta Carolyn, em seu escritório no museu, rodeada de livros e pastas, e na companhia de seu cachorro Dr. Jivago, com quem precisa entrar por uma entrada especial, longe do público.

Parar, no entanto, não significa deixar de trabalhar. Ela já tem uma grande mostra sendo preparada para Paris, em 2024, dedicada à Arte Povera, na Bourse de Commerce. Será a primeira exposição que não irá tratar da coleção de François Pinault, no edifício histórico que é mantido pelo magnata francês.

O que Carolyn vai ganhar com a aposentadoria aos 66 anos, que ela comemora em dezembro próximo, é estar livre da burocracia administrativa. “Estou me aposentando de instituições; não vou mais dirigir, participar de conselho, encontrar ministros de cultura, políticos. Estou me aposentando disso tudo e, tenho esperança, de me tornar jovem novamente”, conta, sorrindo.

Nesses mais de 20 anos no Castello di Rivoli – ela entrou em 2002, como curadora-chefe, após dois anos no PS1, de Nova York – os museus em geral passaram por uma intensa transformação. Caminhar pela coleção do próprio museu italiano reflete essas mudanças, deixando de contar uma história da arte norte-americana e eurocentrista, para se abrir a outras narrativas, entre elas a do chamado “sul-global”, termo que Carolyn não gosta muito. Ela prefere usar a expressão “inconformados com o cânone eurocêntrico”. Desse grupo, ela cita o artista sul-africano William Kentridge, o australiano Richard Bell, o norte-americano Jimmie Durham (1940- 2021) e a brasileira Maria Thereza Alves, todos seus amigos e com os quais já trabalhou diversas vezes.

Everydays: The First 5.000 Days, de Mike Winkelmann (Beeple). Inteiramente digital, a obra foi vendida por US$ 69,3 milhões pela casa de leilões Christie’s
Everydays: The First 5.000 Days, de Mike Winkelmann (Beeple). Inteiramente digital, a obra foi vendida por US$ 69,3 milhões pela casa de leilões Christie’s

Enquanto virou politicamente correta a inclusão desses “inconformados” no circuito da arte, muitas vezes essa seleção parece mais uma ação de marketing cultural, já que instituições usam essa estratégia como ação de publicidade. Não é o caso de Rivoli. “Não quero me vangloriar de ter amizade com artistas, mas essa é minha vida, e essas são alianças que construo há muito tempo”, relata. Com isso, não é apenas na coleção que os artistas estão presentes, mas em espaços de poder, como o Comitê Consultivo, no qual, dos sete membros, quatro são artistas, um é físico e os demais, curadores, algo bastante raro no Brasil.

“O museu pertence aos artistas”, defende Carolyn. “Como diretora de museu, esse é o elemento primário. Nossa função é como fazer para um trabalho de arte comunicar ao mundo o que ele significa para o artista. Trata-se de como torná-lo vivo, não inerte, morto”, explica.

Essa abertura para produções além do padrão ocidental teve origem, de certa forma, quando ela organizou a Bienal de Sydney, na Austrália, em 2007 e 2008. Foi no deserto, ao conhecer a produção aborígene com a amiga e curadora aborígene Hetti Perkins, que ela se deu conta de que os objetos por eles produzidos, mesmo que para serem vendidos para turistas, alcançavam resultados para a comunidade, como a construção de um hospital, e que, portanto, tinham um sentido importante. Ao mesmo tempo, ela entendeu ainda que mesmo objetos da cultura ocidental tinham um sentido mágico, como o crucifixo. “Então passei a olhar para a arte europeia, ou italiana, de forma mais antropológica”, resume.
Outro momento importante para a construção de suas alianças foi quando ela defendeu, em 2001, junto com Alana Heiss, então diretora do MoMA-PS1, de Nova York, a realização da mostra The Short Century: Independence and Liberation Movements in Africa, 1945-1994 (O século curto: movimentos de independência e liberação na África, 1945-1994), organizada pelo nigeriano Okwui Envezor, no início de 2002. A mostra foi um projeto para o museu Villa Stuck, em Munique, na Alemanha, e já tinha sido exibida emBerlim, na Casa das Culturas do Mundo.

Medusa – Rachel – Pietà, Bracha L. Ettinger, 2017-2022
Medusa – Rachel – Pietà, Bracha L. Ettinger, 2017-2022

“Foi a primeira mostra fora dos ateliês do Harlem dedicada a artistas africanos em Nova York. Ela realmente mudou o padrão da arte africana nos Estados Unidos, assim como transformou os museus no país”, defende.

Okwui, então seu amigo, foi o curador da Documenta 11, também em 2002, que com suas plataformas de debates em vários locais do mundo criou um novo paradigma para grandes mostras, que deixaram de se restringir apenas a um evento físico, mas funcionar também como um espaço de reflexão. Carolyn cuidou da edição da Documenta dez anos depois, em 2012, e da Bienal de Istambul, em 2015.

O passado do futuro
“Após Sydney, Documenta e Istambul decidi não fazer mais bienais ou grandes mostras internacionais. Eu parei para dar aulas, mas eu quis voltar a trabalhar em museus”, relembra. Ela retorna, então, a Rivoli em 2016. O museu, que teve como primeiro diretor o holandês Rudi Fuchs, também curador da Documenta, em 1982, funciona em um palácio que começou a ser construído no século IX, e chegou a ter a pretensão de ser uma espécie de Versalhes da família Savoy. Mas nunca chegou a ser acabado de fato, tendo sido bastante saqueado durante a invasão de Napoleão Bonaparte, no século XIX. Mesmo assim, é um lugar um tanto inusitado para ser o primeiro museu de arte contemporânea da Itália, especialmente porque artistas da Arte Povera estiveram bastante envolvidos em sua concepção.

“Dirigir um museu é organizar e cuidar de uma coleção. O que as pessoas veem são as exposições temporárias, mas o diretor de um museu constrói o passado de um futuro”, conta. A diferença para mostras do tipo bienal é que esse tipo de exposição, em sua concepção, é para “reagir sobre o aqui e agora”.

Não que isso não ocorra no museu. Neste momento, por exemplo, o Castello di Rivoli apresenta a exposição Artistas em Tempo de Guerra, concebida pela própria Carolyn antes mesmo da pandemia – esta seria a terceira etapa de uma série denominada Expressões, e que acabou coincidindo com a guerra na Ucrânia.

A exposição traz artistas que vivenciaram situações de conflito ao longo dos últimos séculos, seja Goya, na Espanha, como sua famosa série Os desastres da Guerra, do início do século XIX, passando pela fotógrafa Lee Miller, que retratou a liberação de campos de concentração e a própria casa de Hitler, em Munique, assim como Dinh Q Lê, que reúne uma série de desenhos produzidos durante a guerra no Vietnã nos anos 1960.

Essa sintonia com o tempo presente ocorre por conta de um método que Carolyn empresta de outra diretora da Documenta, a francesa Catherine David, responsável pela 10ª edição, em 1997. Para ela, o curador deve trabalhar com “as urgências”. “Enquanto você faz uma exposição você está tentando entender o mundo e trabalhar com artistas que também estão tentando entender o mundo para pessoas que, ao visitarem a exposição, possam tentar entender o mundo”, define a diretora do Castello di Rivoli. Se ela continuasse no museu, em 2024, a urgência seria tratar da questão digital.

“Estou muito interessada nos artistas digitais. Por isso procurei Beeple (o norte-americano Michael Joseph Winkelmann), que é o Andy Warhol de hoje. O que Warhol foi para a sociedade de consumo, Beeple é para a cultura digital, fazendo um crítica desse tempo”, afirma, com sua animação de sempre. Na verdade, ela já possui uma série de vídeos no YouTube com Beeple, em que ela ensina história da arte e ele, cultura digital.

Voltando às tarefas de diretora de museu, lá trata-se de outra temporalidade: “90% do trabalho tem a ver com a coleção, que é o que ninguém fala, mas é a parte mais importante, afinal o acervo é a narrativa de hoje que será contada no futuro.” E aqui, o método ela toma emprestado de sua mãe, uma arqueóloga italiana: “É preciso se colocar em sapatos do amanhã e olhar o hoje com uma perspectiva arqueológica.”

No entanto, com os crescentes cortes de verbas para museus públicos europeus, Carolyn se viu cada vez mais tendo que cuidar de “fundraising” e, dessa fase, ela quer se livrar. “Estar na direção do museu é gastar muito tempo e esforço para conseguir fundos, porque os museus públicos cada vez mais perdem apoio; então, quero poder voltar a dar aula, de vez em quando fazer uma grande exposição, mas, sobretudo, pensar e pensar junto com artistas”, conclui. ✱

 

Pautas urgentes

Capa do livro "Emergências Culturais: Instituições, Criadores e Comunidades no Brasil e no México" (Edusp), organizado por Néstor García Canclini
Capa do livro "Emergências Culturais: Instituições, Criadores e Comunidades no Brasil e no México" (Edusp), organizado por Néstor García Canclini

Milhões de postos de trabalho no setor cultural foram atingidos em cheio no período mais crítico da pandemia de covid-19. Durante o confinamento, avanços tecnológicos e novos hábitos do público aceleraram mudanças na indústria cultural e provocaram uma revisão acerca de financiamentos, políticas públicas e estratégias de exibição, entre outras questões. A fim de analisar esse panorama, a Editora da Universidade de São Paulo (Edusp), em coedição com o Instituto de Estudos Avançados da USP (IEA-USP), lançou recentemente o livro Emergências Culturais: Instituições, Criadores e Comunidades no Brasil e no México. Feita em parceria com o Itaú Cultural, a publicação foi organizada pelo antropólogo argentino Néstor García Canclini e inclui ainda a participação dos pesquisadores Juan Ignacio Brizuela, Sharine Machado C. Melo e Mariana Martínez Matadamas.

A arte!brasileiros conversou com o professor Canclini – que há cerca de 20 anos estuda as crises em instituições culturais e os movimentos artísticos – a respeito das principais conclusões de Emergências Culturais e extrapolou o que é abordado pelo livro a fim de discutir outros aspectos urgentes do setor cultural no momento e no futuro próximo. Leia a seguir.

O antropólogo argentino Néstor García Canclini. Foto: Leonor Calasans
O antropólogo argentino Néstor García Canclini. Foto: Leonor Calasans

ARTE! – Quais os maiores desafios encontrados ao longo desse processo de pesquisa? Houve também surpresas, positivas e/ou negativas?

Néstor García Canclini – Algo que foi muito significativo poder comparar dois países gigantes como o Brasil e o México, com políticas culturais de muitas décadas, bastante estruturadas, com investigações já feitas em cada um dos dois, porém, com contrastes. Esse confronto, em uma situação como a da pandemia, revelou inúmeras surpresas. No caso do Brasil, há mais estudos sobre a relação com Argentina, a importância do Brasil dentro do Mercosul, mas, poucas análises e comparações com o México. E, no caso do México, há um foco na economia, na cultura e nas imigrações, porém mais com os Estados Unidos do que com a América Latina.

Outras das surpresas importantes foi descobrir que no período do governo Bolsonaro, o Brasil foi, durante a pandemia, o país que mais entregou fundos de emergência para atividades culturais em toda América Latina. Há um estudo comparativo, que foi feito no primeiro ano da pandemia, em relação aos aumentos de emergência no orçamento de cultura em dez países latino-americanos. O Brasil está em primeiro lugar, com um aumento real de 143% do fundo dedicado à cultura em 2020. Em seguida vêm a Argentina, com 41%, em terceiro, o Equador, com 24%, e em quarto, Chile, com 15%.

Eu gostaria de mencionar brevemente duas explicações principais que dão esse lugar de tanto destaque ao Brasil. Em primeiro lugar, sabemos que o governo Bolsonaro não foi favorável ao desenvolvimento cultural, rebaixou o Ministério da Cultural a uma Secretaria e, com isso, reduziu os fundos. Entretanto, temos que dizer que existem duas explicações principais, que destacamos e analisamos no livro: no Brasil surge um movimento de milhares de artistas, criadores, gestores e animadores culturais logo no começo da pandemia. A pandemia começa em março de 2020 e, em abril, já se criam movimentos virtuais, que era a única forma de se comunicar para a maior parte dos museus, centros culturais etc. O público não podia ir às salas de cinema, de teatro etc., mas fez isso de forma virtual.

Houve milhares de artistas e gestores culturais que se reuniram para ver onde podiam obter fundos, pedir de forma solidária e coletiva, e chegaram a redigir uma lei, a Aldir Blanc, que foi proposta ao Congresso, porque sabiam que o melhor caminho não era a Secretaria de Cultura nem o Governo Executivo, mas sim o Congresso, onde havia pluralidade e havia muitos legisladores com disposição para colaborar com essas redes virtuais, para redigir a lei Aldir Blanc, que entregou mais de R$ 3 bilhões, ou seja, uns US$ 500 milhões, para distribui-los em municípios e nos estados. Houve obstáculos, inclusive da Secretaria de Cultura do governo, por meio da complexidade dos requisitos de uso do orçamento. Também por conta dos detalhes de controle financeiro que estabeleceram, mas o dinheiro foi distribuído a, aproximadamente, 75% dos municípios.

Essa mobilização enorme, que conseguiu a maior arrecadação de fundos na América Latina, foi resultado de uma organização sociocultural dos artistas e gestores culturais, que ocorria no Brasil desde 2004, quando foram criados os Pontos de Cultura no Brasil e um sistema nacional cultural a partir de uma iniciativa do Ministério da Cultura encabeçado por Gilberto Gil.

A segunda explicação importante que encontramos é a federalização do sistema nacional de cultura no Brasil. É uma federalização muito distinta se compararmos com o que ocorre no México, que é um Estado muito centralizado. Sabemos que essa federalização, durante a pandemia, favoreceu, por exemplo, que os estados comprassem vacinas de forma independente.

ARTE! – Entre crise neoliberal, pandemia e o impacto de novas tecnologias, qual fator se revela mais contundente sobre as relações entre instituições, os artistas, as políticas públicas e o público em si? A emergência recente da inteligência artificial vai reconfigurar este cenário de algum modo? 

Canclini – A pergunta é muito importante porque identifica três fatores que internacionalmente são muito significativos para o desenvolvimento cultural. Eu diria que os três, e a pandemia tem a limitação temporal de ter afetado alguns países severamente, durante dois anos o desenvolvimento cultural, mas a organização mundial da saúde declarou há cerca de um ano que ela já não era mais o principal problema social e econômico do mundo. A pandemia não é, nesse momento, uma questão decisiva para o desenvolvimento cultural, como são a crise neoliberal e o impacto das novas tecnologias. Isso não quer dizer que a pandemia não siga mostrando suas consequências, porque há muitas que tiveram que ser encerradas. No primeiro ano, em média, foram perdidos mais de 800 mil postos e empregos na América Latina.

As tecnologias mais recentes, como o ChatGPT, mostram que os artistas estão perdendo trabalho e aumentando a orientação manipuladora do público em benefício das corporações e da audiência massiva. Entretanto, há um papel articulador que a tecnologia virtual facilita de movimentos sociais, como esse movimento que mencionamos no Brasil de artistas e gestores culturais mobilizados em uma emergência e que conseguem fundos e público por meio de vias não tradicionais. Ainda quanto à inteligência artificial, é muito cedo para avaliar essa tecnologia, mas existem algumas evidências de que vão tirar o trabalho de artistas. Vi há pouco notícias da Espanha, onde os dubladores são muito importantes, que esses profissionais estão perdendo empregos porque os computadores podem simular a dublagem.

ARTE! – No período em que foi foram feitas as pesquisas para o livro, houve uma consolidação das mudanças nos hábitos de consumo de cultura? Em caso afirmativo, como isso afeta a instituições?

Canclini – Sim. Estamos diante de um campo de investigação que necessita de maior estudo e de mais apoio dos recursos públicos para estimular a investigação acadêmica independente. Entretanto, há algumas pesquisas que eu gostaria de mencionar em países como Argentina, onde em 2022 foi realizada uma pesquisa de consumo cultural por parte do Sistema de Informação Cultural do país, um sistema público, e que mostra um retorno a visita a espaços físicos depois da pandemia. Às vezes, números superiores às estatísticas de público anteriores à pandemia. Mais visitas a museus, mais espetáculos presenciais, shows, feiras populares etc. Vemos que não se perdeu a relação do público apesar da conectividade da internet, mas que o retorno após o confinamento foi muito potente. Continuam conectados, mas buscam uma relação híbrida entre o acesso virtual e o acesso presencial.

ARTE! – Em que medida as iniciativas institucionais e de política pública no campo da cultura, citadas no livro, vêm sendo bem-sucedidas e por quê? Que problemas ainda permanecem à margem das discussões e por quê?

Canclini – Uma lista grande de perguntas que requerem mais pesquisas. Sabemos que há uma desestabilização institucional política e socioeconômica em toda América Latina, mas que isso ocorre de modos distintos. E isso afeta a cultura, porque, notoriamente, os governos de direita são menos sensíveis ao desenvolvimento cultural público e tendem a ceder as iniciativas às empresas privadas. Mas, isso também mudou nos últimos anos, em parte por conta do triunfo de governos de direita em muitos países latino-americanos, em parte por conta da deterioração geral da situação econômica e social na América Latina e da redução da capacidade de consumo das classes média e baixa. As classes médias estão descendo de patamar, um pouco ao contrário do que ocorreu no primeiro governo Lula no Brasil, em que se dizia que 40% da população havia saído da pobreza e ido para a classe média. Agora está acontecendo o inverso. E não é um resultado só do neoliberalismo, mas de uma complexa trama de processos de mudança no desenvolvimento cultural. Isso é o que é necessário estudar um pouco melhor. E também há uma dificuldade das instituições públicas de cultura para adaptar e adequar a sua comunicação ampla à sociedade, assim como a participação dos artistas, criadores e empreendedores nas novas condições que as novas tecnologias contemporâneas criam.

ARTE! – Saindo um pouco do escopo do livro, quais as implicações do cenário político convulsivo em todo o continente – e também no restante no mundo – sobre instituições, artistas e políticas públicas?

Canclini – Um aspecto que eu destacaria é que, assim como ocorreu uma desestabilização e um empobrecimento institucional, temos que mencionar a baixa capacidade das instituições de cultura, sociais, médicas, etc., de responder às demandas dos coletivos, das comunidades. E aqui destacaria, sobretudo, as demandas que cresceram nos últimos anos, dos movimentos feministas, indígenas, afro-americanos, ecológicos etc. Existem avanços, como por exemplo a descriminalização do aborto, a legitimação dos diferentes tipos de matrimônios, Mas também vemos o alto nível de conflito das reivindicações indígenas que não são atendidas, assim como as dos movimentos afro-americanos. Os movimentos indígenas são, historicamente, mais combativos na América Latina, mas na realidade temos 50 milhões de povos originários no continente, ao passo que são 150 milhões de afro-americanos, menos organizados.

Às vezes algumas manifestações chamam atenção a essa emergência por parte das instituições culturais. Eu destacaria a Bienal do Mercosul, realizada em Porto Alegre em formato virtual durante a pandemia, quando a curadora foi a Andrea Giunta. Ela elegeu as agendas dos grupos indígenas, das mulheres, de representantes de gêneros diversos e a criação artística com signos de gênero e de afro-americanos. E essa Bienal foi um salto de reconhecimento. Neste momento, a BIENALSUR, que tem sua base na Universidad Tres de Febrero, em Buenos Aires, mas inclui representantes artísticos de dezenas de países, da África até a Ásia, está tendo dando respostas a esse tipo de demanda que surge, dando por exemplo, uma importância muito grande aos movimentos ambientais. Então, existe essas erupções de respostas, mas é muito mais forte a intensidade e o volume das demandas.

ARTE! –  Outro tema emergente atualmente, o da restituição e das reparações, também não aparece entre os assuntos abordados no livro. Mas gostaria de saber se já é possível entender seu impacto nas instituições ou se ainda está tudo muito embrionário.

Canclini – Há uma longa história da relação entre instituições públicas estatais e povos originários. Há um boom recente, e há soluções, entre aspas, no caso de México e outros países da região Andina da América Latina, que criaram soluções, mas que não foram soluções, foram maneiras de arranjar uma convivência de forma muito precária. Hoje, há uma emergência mais enérgica com reivindicações às quais não se pode responder com repressão. Não se trata apenas de atender a essa emergência, mas também de encontrar novas formas de convivência social entre as muitas diversidades étnicas, de gênero etc., porque parte do que estamos vivendo globalmente nessa etapa do século XXI é uma explosão que torna muito difícil a convivência entre as culturas. Para mim, enquanto antropólogo, a intercultural idade é o grande tema e o grande desafio da antropologia contemporânea. A antropologia contemporânea, para mim, não é o estudo da cultura ou da cultura separada. Tem de ser isso, mas deve também entender os problemas da interculturalidade.

ARTE! – Esta entrevista será publicada no contexto de nosso I Seminário Latino-americano: Relatos, Memória e Reparação, que abordará, entre outros assuntos, a construção de narrativas contra-hegemônicas nos últimos anos. As instituições culturais da América Latina estão abertas a essas narrativas? Essas narrativas, que vêm de grupos minoritários, têm alguma chance de aprimorar nossas democracias ou a resistência a elas é muito forte?

Canclini – Se consideramos um período como as duas primeiras décadas do século XXI, vemos todas as composições socioeconômicas e políticas, o aumento da pobreza, etc. por um lado; por outro, há efeitos positivos, conquistas dessas emergências explosivas de identidades e de atores sociais novos. Não gosto de usar a palavra identidade porque parece abstrata. São atores sociais que têm formas: de povos originários, dos distintos feminismos, dos afro-americanos etc. E conquistaram muitas coisas: as cotas universitárias no Brasil e em outros países, benefícios e direitos para as mulheres e também a possibilidade de as pessoas terem outras opções de gênero. E isso está institucionalizado, foi convertido em leis. Não há como diminuir a importância de se ter muitas mais mulheres nos parlamentos e em algumas presidências, de se ter a presença de presidentes de povos originários, como no caso da Bolívia. Sabemos que isso não é uma evolução ascendente e incessante. A corte dos Estados Unidos acaba de anular as cotas para afro-americanos nas universidades. E há algo que eu gostaria de destacar para finalizar. Às vezes, as conquistas não consistem exatamente em conseguir aquilo que se propôs, que se pedia às instituições, nem na aprovação de novas leis. As conquistas consistem em manter vivas as demandas, em não esquecer que há povos originários, que há afro-americanos, que não deve haver discriminações de gênero. Os museus estão mudando, de forma lenta, mas reconhecem essa diversidade. Em 2018, o coletivo Nosotras Proponemos fez uma exposição, no Museu Nacional das Belas Artes na Argentina, em que iluminou somente as obras realizadas por mulheres na coleção da instituição. E aí vimos o papel minoritário que as mulheres têm nas coleções dos museus em todo o mundo.

Concreto

retrato de Rugendas
A última trincheira [retrato de Rugendas], Nicolas Soares, 2020
Por Nicolas Soares

A urgência das reivindicações pela recolocação dos sujeitos e suas identidades dissidentes no interior da cultura se apresentam como frontes de batalha nos últimos anos e apontam para uma definitiva reestruturação sociocultural em muitas áreas, sobretudo na arte, a partir do fortalecimento das epistemologias das margens em direção ao centro. Sujeitos marginalizados, racializados, estereotipados pela herança histórica colonial europeia e suas afluências nos territórios emergentes – filhos da colônia –, recobram seus per(cursos)(calços) nas páginas solenes da História. A revisão histórica impulsionada pela tomada de uma epistemologia do sul (para todas e todos aquelas e aqueles que foram oprimidas e asfixiados por apenas uma possibilidade de ser/estar no mundo) está em curso, na tentativa de arrebentar as barricadas da Instituição da Arte e Cultura, porque é manifestação (no que tange ao sintoma e ao conflito) nas ruas e no pessoal como político. O globo geopolítico está reorientando seu eixo, e seus hemisférios se desqualificando das coordenadas de latitude e longitude cartesianas.

Por um lado, revolvemo-nos na estrutura em que os impedimentos sócio-históricos, que tentam conformar determinadas identidades, reforçam imagerias da racialização fragilizando sujeitos ao decorrer da História da Cultura. Em contraponto, percebemos as fricções, torções e rupturas no sistema da arte através de eventos emancipatórios elaborados por esses sujeitos. Em exercício de superar o figurativo, por exemplo, delineado por Debret, Rugendas, ou Christiano Júnior e tantos outros artistas coloniais de outrora, em que por tempos criaram representações de certa tipologia da imagem. Artistas negras/negros, indígenas e não-brancas/os, suas produções e as atenções recebidas continuam encobertas pelo paradigma do primitivismo [1], menos como forma e linguagem que criam, e sim, mais, ao que parece, como reforço da folclorização de um arcabouço colonial.

A-ultima-trincheira
A última trincheira/A imagem emparedada, Nicolas Soares, 2020

Superar esta representação é dar cabo ao figurativo sob desígnio da iconografia. E da iconografia, no sentido de estandarte. Pois ainda a imagem é o engodo que orienta os sujeitos, as políticas e a organização de uma sociedade. A expectativa que a arte atual pesa sobre artistas negras/negros e indígenas, quer corresponder imagem x imaginário, e ainda determina quais e como imagens são (re)produzidas e consumidas, além de quais e como artistas devem produzir. A tomada de posição que artistas negras/negros e indígenas manobram no sistema da arte hoje deve sempre se opor à necessidade institucional de responder a uma iconografia que ainda exotiza corpos, modos de viver, espiritualidades e costumes por uma conduta do bom selvagem e do nós aqui por eles lá.

A alforria da imagem deveria escapar em direção a uma mobilização iconoclasta [2]. Menos a ilustração de cânones em seu caráter estereotipado, e sim, a supressão da imagem salvadora que extermina determinados sujeitos. A Representação já esteve em questão ao decorrer de uma História da Arte Ocidental, e sua aniquilação já foi meta a favor de uma arte pura, técnica e livre da narrativa iconográfica. O concretismo, como movimento artístico, reforçou as formas, os planos, as cores, os materiais, a espacialidade, e, principalmente, a não-subjetividade da arte como arte-mesmo. Nada dar-se a ver mais. A objetividade do quadrado preto sobre fundo branco, porém, escondia o requinte da representação em seu desempenho narrativo. Ainda era figura, ainda em sentido devocional à imagem.

Antianatomia
Antianatomia, Luciano Feijão, 2020

A reelaboração da narrativa de si parte da concretude em que sujeitos racializados por este regime das imagens elaboram sua existência. É CONCRETA a segregação, como é CONCRETA a não-possibilidade de subjetivação, de individualização e dos afetos. CONCRETO armado sobre a história de apagamento; da não-imagem. CONCRETO estrutural que edificou a subalternização de uns a favor de poucos, justificada pela imagem. A estes artistas hoje, o CONCRETO se apresenta na fragmentação do corpo histórico na tensão por uma antianatomia [3] que seja antítese à Grande Representação. Este novo concreto se alia às experiências, ao cotidiano, aos materiais, às corporalidades não em contribuição à representação iconográfica da imagem de si – como reforço positivo à negação histórica do se ver –, mas ao exercício de deter a imagem, contudo não o discurso.

Entendemos que a emergência da produção de artistas negras/negros e indígenas deve responder para além de uma “agenda institucional identitária”, mas se estruturar no campo e no sistema da arte como fundamentais para os avanços de epistemologias outras, que tangenciam a hegemonia organizada por séculos de uma História da Arte ocidentalizada e europeizada. Pois, se no embate da arte está a própria arte – da vida como arte –, como nos reencontrar em saída à memória e à história? ✱


 

[1] O termo aqui se refere ao movimento europeu que definiu a barreira da produção de pensamento e artística entre a Europa moderna industrial e o resto do mundo.
[2] ICONOCLASTIA: Que ou quem se opõe ao culto das imagens; não respeita tradições, monumentos ou convenções. Ver Boris Groys; Arte Poder.
[3] Termo que dá título à pesquisa de Luciano Feijão (ES).

Diálogo com sexodissidências

Sauna lésbica
Sauna lésbica, Malu Avelar, 2019

Com obras de três artistas autodeclarados trans e travesti (a carioca Tadáskía, a capixaba Castiel Vitorino Brasileiro e a baiana Ventura Fortuna), três artistas não bináries (o indiano Tejal Shah, o duo berlinense Pauline Boudry e Renate Lorenz e o indonésio-pernambucano Daniel Lie), o inventário vivo de um coletivo trans da Argentina (El Archivo de la Memoria Trans) e uma investigação sobre o registro de atuação da mais remota travesti não-indígena brasileira (Xica Manicongo, no século XVI), a 35ª Bienal de São Paulo tem quase 10% de sua escalação de artistas constituída pelas chamadas sexodissidências.

A mostra se propõe a apresentar dezenas de obras, peças, representações e instalações que buscam a presença histórica, o debate conceitual e o protagonismo queer na contemporaneidade, assentando sua nova edição, que começa em 6 de setembo, no trinômio corpo feminino, gênero e negritude de forma radical, além de intensificar o diálogo com a produção dos povos originários. Com o título Coreografias do impossível, a 35ª Bienal terá ao todo obras de 119 artistas, selecionados pelo coletivo curatorial formado por Diane Lima, Grada Kilomba, Hélio Menezes e Manuel Borja-Villel.

Ventura Profana, Resplandescente, 2019
Ventura Profana, Resplandescente, 2019. Vídeo 5’20’’. Realização: Ventura Profana, podeserdesligado, Rainha F.,
Davi de Jesus do Nascimento, Davi Nascimento, Vedroso, Antoine Golay e Carlos Queirozi

Três representações do pioneirismo da mulher negra têm seu fulcro na evocação histórica, com Xica Manicongo (morta em 1591), Aurora Cursino dos Santos (1896-1959) e Stella do Patrocínio (1941-1992). Mulheres negras do passado, que experimentaram a violência da exclusão e do preconceito em sua forma mais cruel.

Xica Manicongo foi uma pessoa escravizada que viveu em Salvador, na Bahia, e trabalhou como sapateira na Cidade Baixa, conforme registros de documentos oficiais portugueses. Acusada de pertencer a uma “quadrilha de feiticeiros sodomitas”, Xica foi condenada pelo Santo Ofício a ser queimada viva em praça pública e ter seus descendentes desonrados até a terceira geração. Como Galileu, viu-se obrigada a negar a condição trans e vestir-se e comportar-se como um homem da época para sobreviver.

A pintora Aurora Cursino dos Santos (1896-1959) trabalhou como prostituta e viveu 15 anos internada no Complexo Psiquiátrico do Juquery, em São Paulo. Nesse manicômio, Aurora foi submetida a eletrochoques e, pouco antes de morrer, em 1955, foi lobotomizada. Seu refúgio no inferno psiquiátrico era a arte. Ela pintou cerca de 200 quadros, hoje reconhecidos como um tesouro da pintura e já exibidos em mostras no Museu de Arte de São Paulo (Masp), na própria Bienal de São Paulo e na Bienal de Berlim, Alemanha.

Stella do Patrocínio (1941-1992) foi uma poeta carioca que trabalhou como empregada doméstica e, ao morrer, foi enterrada como indigente. Sua saga é assombrosa: aos 21 anos, quando vivia em Botafogo, Rio de Janeiro, foi abordada por uma viatura policial ao tentar embarcar em um ônibus rumo à Central do Brasil. A polícia a levou a um pronto socorro, de onde ela foi enviada para o Centro Psiquiátrico Pedro II, no Engenho de Dentro. Diagnosticada com esquizofrenia, ficou internada involuntariamente pelo resto da vida.

Inaicyra Falcão
Inaicyra Falcão, Ayán, princípio vibrante

A partir desse “edifício” histórico, vem assentar-se a representação que introduz a emergência e a assertividade das novíssimas artistas trans, como Castiel Vitorino Brasileiro, também escritora e psicóloga, de apenas 27 anos, que nasceu em um quilombo, o Morro da Fonte Grande, formou-se na Universidade Federal do Espírito Santo e fez mestrado no programa de Psicologia Clínica da PUC paulista. Estuda espiritualidades de matriz africana e busca enfatizar, em seu trabalho, a cultura ancestral em uma perspectiva decolonial.

Nessa direção atuam ainda Tadáskía, artista carioca de 30 anos, que lida com linguagens de desenho, fotografia, instalação e têxtil, e Ventura Fortuna, também de 30 anos, artista visual, performer, cantora, escritora e compositora trans de Catu, interior da Bahia (é também pastora missionária e cantora evangelista), que traz o debate vivo sobre a influência das igrejas neopentecostais na vida cotidiana.

No campo da dança, a pesquisadora e coreógrafa Inaicyra Falcão dos Santos, de 68 anos, promove um resgate das danças das culturas yorubá. “Nosso passado, entremeado por tantas diásporas, reivindica outras formas de se narrar nossas histórias”, diz Inaicyra. “Articular mundos é um gesto ético, estético e radical”.

Filha de Mestre Didi (1917-2013), lendário escritor, artista e sacerdote, e neta de Mãe Senhora, Ialorixá do candomblé́, Inaicyra é cantora lírica, doutora e pesquisadora das tradições afro-brasileiras na educação e nas artes performáticas, atuando na Unicamp.

Castiel Vitorino Brasileiro
Castiel Vitorino Brasileiro, sem
título, série If memory was a place
[Se a memória fosse um lugar]. Desenhos de carvão e aquarela
A DJ, percussionista e produtora Marta Supernova, de 29 anos (companheira da atriz global Bruna Linzmeyer), posiciona-se como uma artista de interesses voltados para “comunidades negrodescendentes, afroameríndias, ameafricanas, afrolatinas, LGBTQIAP+” e estratégias celebratórias. A mineira Malu Avelar instala na bienal a sua Sauna Lésbica, trabalho já consagrado em todo o País.

Entre outras personagens ainda mais remotas nessa reconstituição da opressão histórica está La Malinche (1406-1529), a escrava indígena da etnia nahua que serviu a Cortés, o conquistador espanhol sanguinário, como tradutora e amante. Considerada traidora pelo seu povo, Malinche e o duplo papel que exerceu a tornam uma das personagens mais controversas da cultura mexicana até hoje.

O duo Cabello e Carceller, formado pela parisiense Helena Cabello, de 60 anos, e Ana Carceller, de 61 anos, trabalha na intersecção entre fotografia, filme, vídeo, instalações e performance, explorando questões de gênero e sexualidade, poder e política. A artista balinesa Citra Sasmita, de 33 anos, atua no desvelamento dos preconceitos e das hierarquias sociais que cercam a mulher e os mitos femininos na cultura do Bali. A coreógrafa marroquina Bouchra Ouizgen, de 43 anos, cuja companhia é formada somente por mulheres, dançarinas e cantoras da tradição aïta (dos cabarés marroquinos), revê o feminino em um contexto entre o experimental e o tradicional.

O salvadorenho radicado em Nova York Guadalupe Maravilla, de 47 anos, traz à Bienal instalações que buscam relacionar arte e cura. Recuperando-se de um tipo raro de câncer, Guadalupe apresenta as esculturas de uma profunda pesquisa na sua cultura maia ancestral, objetos que perfazem narrativas indígenas complexas e de fundo espiritual. Maravilla chegou aos Estados Unidos atravessando a fronteira mexicana com “coiotes”, fugindo de uma guerra civil. Sem documentos, inverteu o axioma do destino imigrante: tornou-se mestre em artes pelo Hunter College, professor Virginia Commonwealth University e é presença frequente em exposições no MoMA e no Museu do Brooklyn, dois dos mais importantes de Nova York. Abandonou o antigo nome civil, Irvin Morázan, e adotou o pseudônimo do pai.

Entre os nomes que sustentam a conceituação histórica, estão diversas figuras fundamentais. É o caso de uma das mais proeminentes líderes da luta pelos direitos civis de Chicago, nos Estados Unidos (terra de onde emergiu Barack Obama): a poeta, escritora, educadora e doutora Margaret Taylor Goss Burroughs (1917-2011) criou instituições afro-americanas cruciais para a luta afirmativa, além de escrever livros de poemas referenciais, como o celebrado What shall I tell my children who are black? (O que devo dizer aos meus filhos que são negros?)

Castiel Vitorino Brasileiro
Castiel Vitorino Brasileiro, Eu sei
respirar embaixo d’água. Me tirem
daqui. Fotografia, 2021

Filha de mexicanos, a feminista, lésbica, ativista e escritora norte-americana Gloria Anzaldúa (1942-2004) nasceu em Raymondville, no Texas, e foi uma intelectual que buscou elaborar em sua obra a condição de mulher de fronteira, de enfrentamento da condição subalterna imposta aos imigrantes. Sua obra retratou a difícil missão de se estabelecer do outro lado da fronteira, criando um espaço cultural e político em que os indivíduos subalternos tivessem lugar e representação. “Cresci entre duas culturas, a mexicana (com uma grande influência indígena) e a americana (como um membro de um povo colonizado em nosso próprio território). Ódio, raiva e exploração são as características proeminentes desta paisagem”.

A globalidade do ódio é exumada em todas sua multiculturalidade, como na saga da escritora cigana Ceija Stojka (1933-2013), da Áustria, que viveu em um campo de concentração nazista destinado a ciganos, em Birkenau. O coletivo espanhol Flo6x8, de Sevilha, Espanha, parte de uma estratégia de flash mobs e da linguagem do flamenco para declarar sua insurgência em relação ao sistema financeiro global.

Nesse sentido, o flamenco ultra heterodoxo do assombroso cantor Niño de Elche (nome artístico de Francisco Molina, de 38 anos, nascido em Elche, na Costa Branca da Espanha) vem para balançar tudo que se conheça do gênero tradicional. Niño de Elche foi definido, pelo jornal El Mundo, como “o homem que bombardeou o flamenco”. Em um dos seus trabalhos mais recentes, Niño gravou os chamados “cantes de ida y vuelta”, subgênero do flamenco resultante do regresso à Espanha da emigração partida à América Latina (e que trouxe, na bagagem, as mudanças introduzidas pelos gêneros locais, como rumba, guajira ou colombiana). “Quis pegar nesse estilo que existe no flamenco e desmistificá-lo, ampliá-lo e ligá-lo a temáticas que me interessa tratar, como a escravatura, o colonialismo, a violência, as drogas, as relações comerciais e os fluxos fronteiriços”.

A amplitude de intercâmbios culturais da mostra é imensa. Vai até Roraima, de onde comparece a artista a indígena Macuxi Carmézia Emiliano, com representações do cotidiano e da cosmogonia de seu povo, e encontra em Paris o premiado cineasta israelense Amos Gitaï, que também é estrela da Bienal de Arquitetura de Veneza deste ano, mostra a obra Casa, Ruínas, Memórias, Futuro, na qual acompanha a história de uma casa no Oeste de Jerusalém durante 25 anos.

À parte o abstrato título, Coreografias do impossível, o exame do programa da Bienal, que será aberta em 6 de setembro no Ibirapuera com 120 convidados, revela uma rede de interrelações políticas no sentido mais amplo da palavra política e dos seus enfrentamentos contemporâneos.

Mulheres artistas conquistam espaço na Toscana

"We Gave A Party for the Gods", obra de John Giorno, instalada no Castello di Brolio e selecionada pela colecionadora Luziah Hennessy para o percurso Art of the Treasure Hunt. Foto: Divulgação
"We Gave A Party for the Gods", obra de John Giorno, instalada no Castello di Brolio e selecionada pela colecionadora Luziah Hennessy para o percurso Art of the Treasure Hunt. Foto: Divulgação

A região do Chianti Classico, um dos mais sofisticados vinhos da Itália, na Toscana, desde o início de julho é palco de um inusitado percurso de obras de arte contemporânea, denominado ATH – Art of the Treasure Hunt (arte da caça ao tesouro). O tema deste ano é Mulheres na Toscana, mas a produção de nomes como Robert Wilson e John Giorno também fazem parte da programação.

Em sua quinta edição, esse percurso de arte contemporânea abrange desde duas vinícolas com obras instaladas especialmente para a versão 2023 quanto inclui outros espaços que já possuem uma coleção consolidada, caso do Castello di Ama, com nomes estelares como Louise Bourgeois, Michelangelo Pistoletto e Anish Kapoor, entre outros. O itinerário completo pode ser acessado em www.artthunt.com.

A responsável por ATH é a colecionadora Luziah Hennessy, que desde 2016 escolhe artistas e espaços para o percurso. Vivendo entre Florença e uma casa de campo na Toscana, foi por conhecer bem a região que ela deu início ao projeto. “Sempre indiquei aos meus amigos o que podia ser visto por aqui e fui descobrindo como havia muito de arte contemporânea na área”, relembra, em entrevista à arte!brasileiros, em sua casa na vila de Gaiole in Chianti, uma comuna com cerca de 2.300 habitantes.

Escultura de cerâmica da artista italiana Marta Pierobon instalada no quarto do Castelo di Brolio onde dormiu, em 1863, Vitorio Emanuelle II o primeiro rei da Itália. Foto: Fabio Cypriano

A abertura do percurso ocorreu no fim de semana de 30 de junho e 1 e 2 de julho, com um grupo de colecionadores, entre eles a argentina radicada no Brasil Frances Reynold, presidente do Instituto Inclusartiz, que visitaram coleções públicas e particulares, em Florença e na Toscana. Hennessy aproveita a oportunidade para levantar fundos para instituições filantrópicas com os convidados. Em 2023, ela conseguiu cerca de R$ 220 mil para a Fundação Walkabout, que fornece cadeiras de rodas para necessitados.

O fim de semana de abertura coincide com um dos mais importantes eventos da Toscana, o Palio de Siena, uma corrida de cavalos de tradição milenar. Ela ocorre desde o século XIII, e nela os 17 bairros da cidade – as contradas –disputam o primeiro lugar. “Organizo nesta época por conta da agenda dos grandes eventos de arte contemporânea na Europa e para se ter uma razão a mais para visitar a região”, explica Hennessy. 

Castello di Brolio

O coração do percurso está nas vinícolas Castello di Brolio e Fèlsina, mas é na primeira onde a maioria das novas obras está instalada. Fundado em 1141, Brolio impressiona não só pela arquitetura medieval como pela própria história. Em 1863, Vitorio Emanuelle II o primeiro rei da Itália, passou uma estada lá, e seu quarto hoje pode ser visitado. Nessa habitação, em uma lareira e ao lado da cama, estão instaladas esculturas em cerâmica da artista italiana Marta Pierobon. “Eu não as fiz exatamente para esta exposição, mas achei que elas fariam sentido aqui”, contou, em português fluente, a artista.

Em outro espaço com menos pompa, mas não menos impressionante, estão obras de seis artistas de diversas gerações, entre elas as brasileiras Lia D Castro e Jac Leirner. Fazem parte da seleção de Hennessy ainda a espanhola June Crespo, a cubana Diana Fonseca, a coreana Jennie Jieun Lee e a alemã radicada nos Estados Unidos Kiki Smith. As telas de Lia foram escolhidas por Hennessy quando ela esteve no Brasil no início deste ano. “Creio que ela será uma artista ainda com grande projeção”, prevê a colecionadora, que repete a todos uma fala da artista: “Existem dois tipos de casamento: o de longa duração, e o de curta duração, que é com trabalhadoras do sexo”.

Na mostra, Lia, que usa a prostituição como ferramenta para seu trabalho artístico, o que chegou a chocar colecionadoras presentes, é vista em quatro telas que retratam um de seus clientes, Davi, que também assina todas as telas. “Para mim é muito importante trabalhar com a memória da apresentação, e não da representação, já que para a psicanálise de Frantz Fanon a representação é uma forma de destruição”, contou a artista em sua casa, em maio passado. Sendo assim, Davi acaba fazendo uma espécie de coautoria da obra, escolhendo da paleta de cores a deixar vestígios na obra, como esperma ou pedaços de roupa.

Escultura em cerâmica da artista italiana Marta Pierobon dispostas na lareira do Castello di Brolio, uma das sedes do percurso Art of the Treasure Hunt, 2023. Foto: Fabio Cypriano

Já em Fèlsina, Hennessy apresenta quatro artistas: a russa Alexandra Sukhareva, Marta Pierobon, a única a ocupar os dois espaços, Aidan Salakhova, do Azerbaijão, e o norte-americano Bob Wilson. Enquanto em Brolio as obras foram dispostas em habitáveis espaços do castelo, em Fèlsina elas estão exibidas na própria vinícola, em adegas onde o vinho está armazenado em dezenas de barris para amadurecimento, criando um contraste inusitado, como o manto criado por Salakhova, de mármore de Carrara, onde a artista vive atualmente. 

Arredores

Além destes dois espaços, o percurso inclui outras vinícolas que já possuem coleções de arte permanentes, como é o caso do Castello di Ama, uma espécie de Inhotim local, já que os artistas criaram impressionantes instalações para o próprio lugar.

Desde 1999, 16 artistas foram comissionados para produzir obras para o espaço, entre eles o francês Daniel Buren, o italiano Michelangelo Pistoletto, o indiano Anish Kapoor e o cubano Carlos Garaicoa. É dele uma das obras mais curiosas, Yo no quiero ver más a mis vecinos, realizada em 2006, composta por diversas miniaturas de famosos muros que impõe limites como a Muralha da China. O diálogo com a região é bastante obvio, já que muitas construções da região são, elas mesmas, envoltas por grandes muros medievais, caso do Castelo de Radda, sede de outra vinícola importante.

Outro ponto alto da coleção foi realizado por Louise Bourgeois (1911- 2010), este com a ajuda de um assistente que foi até o local, fez diversas fotos, e a francesa naturalizada norte-americana projetou uma instalação para a vinícola. Topiaria é uma escultura que se vê por uma fenda de dentro da adega, em forma de uma mulher sentada, mas de seu corpo forma-se uma rosa, de onde brota água.

Telas da artista brasileira Lia D Castro, no Castello di Brolio, sua primeira exibição na Itália. Foto: Divulgação

Além de locais públicos, os participantes do final de semana de abertura visitaram duas coleções privadas, uma em Florença, do britânico Christian Levett, que reúne um grande acervo de mulheres artistas, entre elas Elaine de Kooning (1918-1989), Mira Schendel (1919-1988), Louise Bourgeois e Tracey Emin. Várias dessas obras foram adquiridas do leilão do acervo do cantor George Michael.

Já a segunda coleção privada visitada foi da suíça Suzanne Syz, que na década de 1980 viveu em Nova York e se tornou amiga de figuras icônicas da arte contemporânea, como Andy Warhol, Jean-Michel Basquiat, Julian Schnabel e Francesco Clemente, todos exibidos em sua casa nos arredores de Siena, junto a outros artistas mais recentes, como o italiano Francesco Jodice, a suíça Silvie Fleury e o alemão Carsten Höller. “Colecionar é dar apoio a jovens artistas e eu faço isso com o coração”, defendeu Suzanne ao grupo, próxima ao retrato que Warhol fez dela e seu filho Marc. Definitivamente, não é só vinho de qualidade que se encontra na Toscana. ✱

*Fabio Cypriano viajou a convite da organização de Art of the Treasure Hunt

Movimentos espraiados

No Barraco da Constância Tem!, "A", 2023. Foto: Breno de Lacerda
No Barraco da Constância Tem!, "A", 2023. Foto: Breno de Lacerda

Criada em 2005 pela Galeria Vermelho, em São Paulo, a mostra de performances Verbo já constituiu parcerias com instituições diversas ao longo de sua trajetória de quase 20 anos, a exemplo do Centro Cultural São Paulo e de festivais do gênero fora do país. Em 2018, iniciou uma sólida colaboração com o espaço Chão SLZ, de São Luís, realizando, numa mesma edição, apresentações nas capitais paulista e maranhense.

Em sua 17ª edição, que acontece de 19 de julho a 11 de agosto, a Verbo amplia ainda mais seu raio de alcance, realiza ações também no Centro Cultural Vale Maranhão (CCVM) e espraia-se para a Fortaleza, onde será abrigada na recém-inaugurada Pinacoteca do Ceará. Diretor artístico da Galeria Vermelho, Marcos Gallon ressalta que a capital cearense já tem uma “tradição ligada a práticas do corpo”, a exemplo da Bienal Internacional de Dança do Ceará, e que a aproximação com a Pinacoteca se deu de forma bilateral.

“A gente buscou a Pinacoteca, e eles responderam de forma positiva”, conta  Gallon, que compara a hercúlea empreitada de realizar a Verbo em três cidades a “uma turnê de banda de rock”. “Mas tem sido genial com eles, porque, apesar das parcerias que tivemos no passado, é bastante diferente colaborar com uma instituição com esse porte gigantesco”.

Também curador da Verbo, Gallon explica que as mais de 30 ações previstas, com artistas de cinco países, serão divididas em programações distintas para cada cidade. Apenas a seleção de vídeos e filmes será exibida em todas as praças. Neste ano, em vez de ter início, como de costume, em São Paulo, a mostra irá primeiramente para o Nordeste e terminará na capital paulista Segundo Gallon, a Verbo não repete o programa pois “cada cidade tem contextos distintos”.

“Em Fortaleza, por exemplo, a gente tem vários artistas com uma prática ligada ao espaço público. Essa é uma das características da produção no campo da performance na cidade. E agora a gente está trazendo isso para dentro de uma instituição”, explica. “Já a característica principal da Verbo em São Luís serão as práticas mais ligadas a povos ancestrais, a descendentes de povos indígenas, porque há um grande número de artistas lá que produz nesse eixo. É um lugar marcado pela religiosidade, pelas ancestralidades e pela música. E, em São Paulo, a gente vai fazer meio que vai fazer um pot-pourri de tudo isso”.

Entre 2005 e 2007, a Verbo apresentou apenas performances de artistas convidados. A partir de 2008, passou a fazer uma chamada aberta por meio de editais. Naquele primeiro ano, conta Gallon, foram 400 inscritos – nesta edição, receberam 300 propostas, dos quais apenas cerca de uma dezena corresponde a convites diretos. Segundo ele, a mostra não é feita a partir de um recorte curatorial a priori.

“Samantha [Moreira, coordenadora do Chão SLZ e também curadora do evento] e eu sempre criamos as edições a partir dos projetos que recebemos, lemos tudo, identificamos algumas questões que aparecem, e, a partir delas, construímos a curadoria de cada edição”, conta.

“Quando a gente articulou essa parceria com a Pinacoteca do Ceará, a gente achou importante ter uma pessoa também dessa nova instituição, acompanhando a seleção de projetos. Até porque somos um corpo estranho no cenário de Fortaleza, que é muito fértil”, prossegue Gallon. “Contar com a Carolina [Vieira, gerente artística da instituição] foi genial, porque ela trouxe os contextos de Fortaleza. Pôde nos falar ‘olha, esse artista daqui é importante'”.

Gallon afirma que esta 17ª edição é muito especial. “Desde 2016, com tudo por que a gente passou nesses últimos anos no Brasil, a maior parte dos projetos trazia um conteúdo político e ativista muito intenso. Com a mudança que houve de 2022 para 2023, a gente sentiu uma transformação no conteúdo dos projetos. Essa edição é não apenas mais abrangente em termos de territorialidade, porque ela se espraia para Fortaleza, mas também em termos de suas temáticas, que são mais abrangentes e universais”.

Como exemplo da maior pluralidade de conteúdos que a 17ª edição da Verbo abarca, Gallon cita a artista dinamarquesa Lilibeth Cuenca Rasmussen, cuja performance vai questionar qual o papel do turista no mundo pós-pandêmico, se é mero observador ou interfere. E ainda o trabalho da artista mexicana Tania Candini, um nome recorrente da mostra, que atua muito com as questões da mulher nos dias de hoje, e vai se apresentar na Galeria Vermelho, em São Paulo.

“Ela vai apresentar uma ação que é um coro de mulheres que emite os sons de fêmeas de animais em situação de alerta, de vigilância, de defesa territorial, de acasalamento”, conta o curador. “Ela está apontando para um universo que não é humano, uma discussão superpertinente, porque cada vez mais se discute os direitos da natureza”.

A lista de artistas convidados tem ainda nomes como Aline Motta (RJ), Yhuri Cruz (RJ), André Vargas (RJ), a dupla Eduardo Bruno e Waldírio Castro (CE), Elilson (PE), entre outros. Sobre Bruno e Castro, Gallon destaca que eles têm “um trabalho muito potente em Fortaleza e vão fazer uma performance chamada Clínica de reabilitação de homofóbicos“. Na ação, que terá início no centro de Fortaleza e será finalizada na Pinacoteca, os performers irão distribuir panfletos de divulgação da clínica fictícia, juntos a uma caixa de som portátil que toca um jingle do estabelecimento, em looping.

A recorrência de convidados, explica Samantha, tem uma razão de ser. A seu ver, são artistas fundamentais dentro dessa prática, e a Verbo, além de ser um festival anual de performances, “é um processo de formação e pesquisa também, que acompanha a evolução do trabalho desses artistas, algo que, por sua vez, cria expectativa junto ao público de revê-los”, diz. Para a curadora, essa continuidade também faz da mostra uma referência no segmento, “um patrimônio de memória sobre a prática da performance no Brasil e fora dele também”.

Samantha também comenta a programação de São Luís, cuja produção ela naturalmente acompanha mais de perto. Na capital maranhense, ela ressalta o desejo de se criar um fluxo entre artistas locais e de fora, entendendo a programação como algo não somente voltado para o público, mas também para o processo formativo dos participantes.

“Aline Motta e Yhuri Cruz, ambos do Rio, têm pesquisas muito próximas com o Maranhão. E eles não vão apenas para realizar as performances, ficam um tempo expandido, que possibilita a gente criar outras redes, amarrações e vínculos, fomentar a produção local. Muitos desses artistas desejam esses encontros, essas pontes”, conclui.

Choque Cultural, 20 anos de rupturas

Baixo Ribeiro e Mariana Martins
Baixo Ribeiro e Mariana Martins, na Choque Cultural, 2004. Foto: Rui Mendes

Uma das essências do grafite é expor conflitos, liberar energias, expor as farpas do sistema e criar uma arte instantânea, feita muitas vezes no escuro da noite, temperada com humor e resíduos ideológicos. Sintonizada com outros cosmos, há 20 anos a galeria Choque Cultural surge no circuito paulistano de arte interessada numa produção expandida, diversificada, fora do sistema tradicional de arte e que envolve outros interlocutores. Mariana Martins e Baixo Ribeiro, arquitetos e pesquisadores, abriram-se para a arte do tattoo, performance, hip hop, skate, rock punk, tudo sintonizado com a dissolução das fronteiras culturais de uma sociedade mediatizada. Eles acreditavam que o mundo da arte precisava dessa energia nova. Uma “desordem” provocadora torna-se então a mola propulsora de um programa estético cujas ideias emergem de rupturas e não de continuidades. A dimensão poética é impulsionada por sua função socializadora. Nesse contexto, a crítica formal, conservadora, que observa esse tipo de arte a distância, deu lugar a um vislumbre mais “esperto” com tentáculos em exposições experimentais de artistas e público jovens emergentes. Pioneira na arte urbana no Brasil, a Choque, logo nos primeiros anos de atividade, torna-se referência de contemporaneidade com cruzamentos de poéticas desbravadoras.

Sempre houve uma ansiedade generalizada de restituir a arte à vida, ao cotidiano e ao social. Baixo Ribeiro lembra que a Choque, acima de tudo, é uma ideia que deu certo. “Na verdade, é um conceito que, trocando em miúdos, quer dizer que, quando os diferentes são colocados em choque, eles geram energia, e a gente consegue direcionar essa energia para uma criação de impacto social. Basicamente esse é o nosso método”.

Pesquisadores inquietos, o casal amplia algumas reflexões sobre a cor tatuando seus corpos, dando vida e movimento a um emaranhado de traços que escolheram. Literalmente demonstram que a percepção do fenômeno cromático vai muito além do limite de uma tela, de um vídeo ou de um muro. O espírito do grafite começa aí, com a ideia de andar pela rua, de performar do jeito que bem entender e com quem aparecer.

Três nomes estão por trás da Choque. Além do casal fundador, atua também o historiador Eduardo Saretta, integrante do coletivo de arte SHN. E é Saretta quem faz a maior parte das viagens para organizar as produções internacionais. “Ele é responsável pelo contato com os artistas do exterior”, diz Baixo. O trio organiza exposições, com residências e intervenções pela cidade. Foi assim com a ação Buenos Aires na Choque, em 2009, quando por dois meses dez artistas fizeram residência em São Paulo e realizaram várias intervenções pela cidade. Entre eles estava TEC, artista argentino que faz parte do elenco da Choque desde 2006.

Como surgiu a ideia de lançar uma galeria tão diferente das já existentes? “Eu entrei na FAU/USP em 1982 e encontrei a Mariana e vários artistas. A gente saía de rolê com Alex Flemming, Mauricio Villaça, Carlos Matuck, Arthur Fajardo, que faziam grafite. Eram artistas que tinham uma visão da cidade como plataforma de comunicação e também de arte”. Formavam um grupo posterior ao de Alex Vallauri, pioneiro do movimento no Brasil, de Hudinilson Júnior, John Howard, Walter Silveira, autor do icônico Hendrix Mandrake Mandrix (1978/2018). Eles usavam a cidade como lugar de comunicação e como questão poética. “Hoje muita coisa está de volta e muitos trabalhos/poesias, feitos à maneira de lambe-lambe, estão estampados especialmente no centro de São Paulo. A diversidade artística é grande, alguns trabalhos são impressos em xilogravuras, outros misturam tudo e há os que se inspiram no poema haikai”.

A geração de grafiteiros posterior a Vallauri, segundo Baixo, não se ligou a eles. “O Speto, um dos artistas reconhecidos, não olhava para a obra de Vallauri”. Ele estava em contato com o hip hop, movimento forte que mistura música, dança, skate, algo ligado ao comportamental. Esse grupo queria desenvolver seu próprio estilo, fazer algo mais autoral. “O movimento musical influenciou muitos artistas, provocando a possibilidade de o artista do grafite ser um autor”. Na passagem dos anos 1990 para o 2000 foi que surgiu o grafite assinado, quando a Choque percebeu que havia artistas que dominavam a grande escala. “A gente pensou que poderia ter um mercado, a maioria dos artistas trabalhava na publicidade”. Quando o hip hop aparece com preocupação operária e fabril, as letras passam a ser feitas com spray. “Os artistas estavam animados com os trabalhos diversificados, e nesse caldo aparecem Merlin, Speto, Nunca, Os Gêmeos, entre outros, de uma geração de grafiteiros que veio para ficar”.

Com o clima de mudanças, a Choque acolhe vários tipos de colaboração, como expor em conjunto em museus e galerias daqui ou do exterior. Foi assim que a galeria se apresentou com parte de seu elenco na Jonathan Levine, em Nova York. “Essa exposição foi muito importante porque foi noticiada no New York Times, que considerou a exposição como algo novo”. Em 2009, outro marco importante, o Museu de Arte de São Paulo (Masp) recebe a Choque com a mostra De dentro para fora, de fora para dentro, com a curadoria do trio. Entre as experiências que deram certo, Baixo considera um divisor de águas a exposição Choque Cultural na Fortes Vilaça, em 2006, no início da galeria. “Uma experiência profissionalizante para os jovens artistas”.

De Dentro para Fora/De Fora para Dentro
Panorâmica da exposição De Dentro para Fora/De Fora para Dentro, no Masp, 2009. Foto: Flavio Samello

Em 2002 eles decidiram produzir gravuras e com preços acessíveis a novos colecionadores. “Só que não dava para apenas vender gravuras”. A casa em que eles estavam instalados era local de trabalho. “No porão as paredes estavam repletas de pixo, stickers e no andar de cima a gente deixava o local mais arrumado para receber os compradores de gravuras”.

A efervescência que pairava na Choque não era suficiente para unir alguns grupos supostamente análogos. Baixo lembra que alguns tatuadores por exemplo não conheciam os artistas do grupo do grafite. “Para juntá-los, decidimos fazer a mostra Calaveras (Caveiras), no Dia dos Mortos, reunindo 15 artistas do grafite e 15, da tatuagem, que comercializaram seus trabalhos entre eles”. O público da Choque viu a exposição como espaço para compra de gravura. Passaram por lá pessoas da moda, da cultura digital, do vídeo ou aqueles simplesmente atraídos pela ebulição. “Chegaram também curadores, donos de empresas de publicidade, gente da área das artes como Carla Camargo, Emanoel Araújo, José Olympio, para conversar”. Foi daí que eles decidiram discutir o espaço da arte e organizaram a exposição Cata Lixo. “Falamos com o dono do restaurante próximo à galeria que abriu o espaço para que a gente fizesse qualquer coisa. Na casa de artefatos indígenas, também próxima, o proprietário sugeriu que a gente procurasse o grafiteiro Nunca, que tinha contato com artistas indígenas, e assim organizamos uma exposição com trabalhos do Diego Karaja”. O conjunto de ações realizadas pela Choque Cultural nessas duas décadas reafirma a galeria como local onde as emergências estéticas contemporâneas encontram vários canais para dialogar. ✱

A imagem em curto-circuito

Helena Almeida
Parte da obra de Helena Almeida, Estudo para um enriquecimento interior, 1977-1978. Acrílica sobre fotografia, políptico de seis, 53 x 42 cm (cada), Coleção Altice, Lisboa

Helena Almeida (1934-2018), artista portuguesa cuja obra é revisitada em ampla antologia no Instituto Moreira Salles, percorreu ao longo de mais de 50 anos uma investigação ao mesmo tempo diversa e renitente, que tem sua própria imagem como eixo central e a fotografia como principal meio de expressão. Surpreendentemente fiel a um leque restrito de procedimentos, temas e indagações, ela toca de forma cirúrgica em algumas das questões que mais mobilizaram a arte a partir a partir do final da década de 1960, como a autorrepresentação e a discussão acerca da expansão dos limites e possibilidades das várias linguagens artísticas.

Partindo quase sempre de sua própria imagem, de forma fragmentada ou integral, sozinha ou interagindo com elementos provocadores como fios, pinceladas ou uma perna masculina à qual a sua está atada, Helena coloca-se como corpo concreto, presença incontornável que sustenta e ao mesmo tempo provoca um curto-circuito dos códigos da imagem. É evidente a relação entre o trabalho de Helena Almeida e movimentos dominantes       nos anos 1960, como o minimalismo e a arte conceitual. O que ela nos oferece, sintetiza a curadora Isabel Carlos, é a “presença reiterada de si mesma”. “A imagem do meu corpo não é a minha imagem, não estou a fazer espetáculo”, dizia a própria Helena.

O ato de posar sempre lhe foi familiar, pois desde menina servia de modelo para o pai, também artista, o escultor Leopoldo de Almeida. Talvez esse tempo de espera, a imobilidade alargada no tempo e no espaço do ateliê, expliquem algumas peculiaridades de sua produção, tão próxima e ao mesmo tempo avessa ao caráter teatral dos happenings e performances que tanto marcaram a cena artística nos anos iniciais de sua carreira. A artista verbalizava claramente que lhe interessava não a ação em si, o confronto entre criador e público, mas o registro, a captação daquele momento preciso que parece condensar a força do gesto, tal qual um still de cinema. Ou uma sucessão de fotogramas, que remetem à lógica dos quadrinhos, criando uma linha temporal, explorada em algumas das séries em exposição, a exemplo de Tela habitada, de 1976.

Seu trabalho é sutil e provocativo, combina uma elegância nostálgica com um desejo permanente de subverter relações e hierarquias, lançando mão muitas vezes de uma ironia fina. A artista anula fronteiras entre os gêneros, questiona os limites tênues entre o plano e o volume, entre o real e o representado. E usa a fotografia não por sua excelência técnica ou exatidão mimética. Não à toa é seu marido, o arquiteto Artur Rosa, que faz a maior parte desses registros. “Eu quero uma fotografia tosca, expressiva, como registro de uma vivência, de uma ação”, explicou ela em entrevista concedida à curadora e relembrada no catálogo da exposição. 

Tela rosa para vestir, obra de 1969, que serve de capítulo inaugural da mostra do IMS, é uma espécie de síntese do trabalho que será desenvolvido nas décadas a seguir. Ao vestir, literalmente, um quadro, Helena se aproxima daquilo que vinham fazendo outros artistas interessados em anular a distância entre corpo e obra. Além disso, brinca com essa ideia de superioridade da pintura e se debruça sobre o gesto de pintar e de um de seus principais atributos, a cor, provocativamente presente apenas no título, já que a imagem é em branco e preto. Nas mãos de Helena, a cor assume um aspecto curioso e fundamental, já que pontua de forma magnética suas construções visuais. Ela surge de forma intensa, contracenando com a artista, seja na mancha azul que é devorada, exalada ou guardada no bolso, na nódoa vermelha que tinge seu pé fazendo vibrar a escala de cinzas ao redor, ou ainda no negro intenso com que ela se funde em Negro exterior.

O desenho, o outro elemento constitutivo da construção pictórica, é também explorado com maestria por Helena, que nos apresenta uma série de investigações em que o traço se transforma em nexo real, físico. Seja na forma de um incômodo, como em Sente-me, ou elemento que se quer livre, como em Saída negra, um livro em branco do qual as palavras, refeitas em forma de linha, parecem escapar. Mais uma vez, nota-se um reiterado anseio em buscar a autonomia: do risco, do gesto, do corpo.

Outro aspecto ecoa com intensidade na obra da artista portuguesa: seu ponto de partida, como mulher trabalhando em um país submetido por décadas à ditadura salazarista e apartado do centro da produção contemporânea – que ela vivencia intensamente em uma longa permanência em Paris no início dos anos 1970. O verbo habitar é recorrente em sua trajetória, está presente nos títulos dos trabalhos e é reiterado no nome escolhido para a mostra por Isabel Carlos. A casa/ateliê é o espaço em que sua arte se desenvolve, sempre. Espaço protegido, às vezes claustrofóbico, às vezes ampliado por meio de espelhamentos, aberturas. São poucas, mas muito concretas as referências arquitetônicas incorporadas nas imagens, a ponto de a curadora sugerir que, para ela, “o rodapé é o ponto de encontro entre pintura, arquitetura e fotografia”. Na entrevista já mencionada, Helena dá a pista dessa confluência de elementos, que permite a passagem da experiência individual para o caráter universal que toda obra potente parece perseguir: “O que me interessa é sempre o mesmo: o espaço, a casa, o teto, o canto, o chão; depois, o espaço físico da tela, mas o que eu quero é tratar de emoções”.

Essa relação entre experimentação conceitual, poética e vivencial garante à obra de Helena Almeida uma familiaridade comovente com outras artistas que trilharam a mesma seara no mesmo período. São muitos os ecos entre sua produção e uma série de artistas brasileiras e latino-americanas, que, como ela, dedicaram-se a investigar a relação entre imagem e corpo, fotografia e identidade. Podemos citar, por exemplo, Lygia Pape, Lenora de Barros, Liliana Potter e até mesmo Iole de Freitas, que têm um recorte de sua obra dos anos 1970 – mais cortante e experimental – sendo exibido atualmente no mesmo IMS.

Não fosse europeia, ela estaria perfeitamente integrada a propostas de revisão da arte feminista latino-americana, como a pesquisa Mulheres radicais, mostrada em 2018 na Pinacoteca do Estado. Essa sintonia torna ainda mais surpreendente o fato de que tenha sido necessário esperar tanto tempo (sua única participação de destaque em mostra no país foi na 28ª Bienal de São Paulo) para que uma artista portuguesa de renome em seu país, com uma vasta produção e uma afinidade intensa com um tipo de arte frequentemente desenvolvido no Brasil, tivesse uma primeira exposição individual no país. ✱

Arte épica no coração secreto do Brasil

O banquete de migalhas
Instalação O banquete de migalhas, Marcos Zacariades, 2014. Fotos: Rafael Martins
Por Paulo Herkenhoff

Conheci o trabalho de Marcos Zacariades, em 2019, na Art Rio e fiquei muito impressionado. Na época, eu não tinha noção do que mais havia do pensamento dele e hoje vejo que foi apenas a ponta do iceberg. Mesmo em meio ao corre-corre da feira, imediatamente achei que aquele trabalho faria muito bem ao acervo do MAR (Museu de Arte do Rio), e generosamente Marcos aceitou doar, mas não entregou a peça. Fiquei com medo, afinal peça doada e não recolhida pode vir a ser peça não recebida. Depois compreendi se tratar de um excesso de rigor, disse que estava insatisfeito com alguns elementos, que precisava repensar e refazer algumas questões. Então, ali, já tive uma noção inteira de que era um artista rigoroso em termos de forma.

Depois tivemos mais um encontro no Rio e tive acesso a outras imagens do seu trabalho e pensei em escrever sobre ele, conversamos sobre sua obra, a exposição, o livro e, finalmente, fui visitar sua mostra O tempo espelhado, em exibição na cave subterrânea da Vinícola UVVA, na cidade de Mucugê, em plena Chapada Diamantina. Para mim foi uma grande revelação encontrar aquela exposição, naquele lugar, com aquela força. Tenho dito que, embora não tenha visto tudo o que se expôs este ano no Brasil, mas vi bastante, eu acho difícil que tenha uma exposição que supere em rigor formal, em vigor político e intelectual a mostra que hoje temos naquela galeria. O trabalho do Marcos tem uma grande abrangência, um diapasão de muita largueza. É o que eu acho que é uma obra épica.

O susto começou logo no primeiro dia e se seguiu depois, com a visita a Igatu, pequena vila a poucos quilômetros de Mucugê, onde Marcos Zacariades vive e, desde 2002, mantém a Galeria Arte & Memória. Igatu é uma cidade de pedras, e cada pedra tem uma história que vai se desenrolando. Essas pedras são marcos de vida. Eu me lembrava o tempo todo do poema de Drummond – “no meio do caminho tinha uma pedra” –, que podia ser uma pedra que exigia suor, que causava dor, perdas, mas também podia ser aquela pedra que seria valiosa e que sua venda daria para garantir o requeijão na mesa do garimpeiro.

Não digo que foi uma aventura, foi uma descoberta de que talvez cada um de nós brasileiros pertença àquela história. Aquela história se desenrola dentro de cada um de nós brasileiros porque ali, dentro daquela usina de pensamento, surgem dramas, surge poesia, surge a questão do trabalho. É o que eu chamo de diagrama de alteridade, de sociabilidade, uma arte que pensa na devolução à sociedade, pensa no outro, incorpora o outro no trabalho e como sujeito econômico da obra. Acho que o que existe em Igatu e na galeria da Vinícola UVVA é uma gema ainda não trazida à luz, em termos do olhar brasileiro.

Essa é uma questão primeira. A outra questão foi encontrar naquela vastidão a experiência da UVVA e da Fazenda Progresso. A atuação da Família Borré é ímpar, exemplar, um paradigma. Para além do agronegócio e da cultura do vinho, ali existe arte. A vinícola ostenta uma arquitetura espetacular, com um mobiliário de designers brasileiros como Sergio Rodrigues. Há um processo de valorização da cultura brasileira. E, quando se trata de uma galeria de arte que se mistura às barricas, que mostra o solo da Chapada Diamantina com suas camadas, nós estamos falando de uma totalidade de percepção do mundo, da geografia humana, da geografia cultural e dessa correlação entre culturas.

Quando vejo essa revelação, o que posso dizer é que Fabiano Borré é um empresário moderno que entende que o capital financeiro também deve ser convertido em capital simbólico. Isso eu digo por que acho que ele está ao lado de grandes empresários modernos, como foi Ivoncy Ioschpe, como é a família Setúbal com o Itaú Cultural, como foi Julio Landmann na condução da Bienal de São Paulo, e outros que fazem essa conversão de capital financeiro em capital simbólico, como uma forma de devolução à sociedade de parte do que afere com o trabalho coletivo.

Igatu é um lugar de mulheres modernas. Digo moderna no sentido da mulher que não tem medo de trabalhar para sobreviver. Lá eu conheci figuras inspiradoras como Nívia, diretora de uma escola e também grande doceira, e Dona Zelita, com seus quase 90 anos, ainda cuidando da casa, do seu pé de araçá. É a mulher que melhor sabe arear uma bacia em Igatu e tem a máxima de que aquilo que “se precisa, se preserva”, que dá nome a uma das obras de Zacariades. Tudo é muito entrelaçado, a tradição de Igatu é também a sua modernidade. Através de Marcos, Igatu pensa uma modernidade que se finca na tradição do diamante, do cascalho de Herberto Sales, na inovação de Kátia, da Pipoca Moderna, um carrinho de pipoca adaptado que fica na praça e na escola com livros à disposição das crianças.

Então o que fica para mim é que Marcos Zacariades produz algo absolutamente inesperado. Uma exposição que é um grande argumento em favor da recondução da civilização brasileira, que é capaz de lançar um grito contra todo tipo de violência, todo tipo de destruição, todo tipo daquilo que faz mal à sociedade, que faz mal aos corpos. É uma exposição que diz que é possível um diálogo entre as diferenças, um diálogo que vem do mais profundo rincão, que é um centro exemplar do mundo também. O centro do mundo é sempre onde está um grande artista. Para mim o grande desafio agora é dar conta dessa complexidade. Será que é possível reduzir essa exposição a palavras? ✱