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Movimentos espraiados

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Criada em 2005 pela Galeria Vermelho, em São Paulo, a mostra de performances Verbo já constituiu parcerias com instituições diversas ao longo de sua trajetória de quase 20 anos, a exemplo do Centro Cultural São Paulo e de festivais do gênero fora do país. Em 2018, iniciou uma sólida colaboração com o espaço Chão SLZ, de São Luís, realizando, numa mesma edição, apresentações nas capitais paulista e maranhense.

Em sua 17ª edição, que acontece de 19 de julho a 11 de agosto, a Verbo amplia ainda mais seu raio de alcance, realiza ações também no Centro Cultural Vale Maranhão (CCVM) e espraia-se para a Fortaleza, onde será abrigada na recém-inaugurada Pinacoteca do Ceará. Diretor artístico da Galeria Vermelho, Marcos Gallon ressalta que a capital cearense já tem uma “tradição ligada a práticas do corpo”, a exemplo da Bienal Internacional de Dança do Ceará, e que a aproximação com a Pinacoteca se deu de forma bilateral.

“A gente buscou a Pinacoteca, e eles responderam de forma positiva”, conta  Gallon, que compara a hercúlea empreitada de realizar a Verbo em três cidades a “uma turnê de banda de rock”. “Mas tem sido genial com eles, porque, apesar das parcerias que tivemos no passado, é bastante diferente colaborar com uma instituição com esse porte gigantesco”.

Também curador da Verbo, Gallon explica que as mais de 30 ações previstas, com artistas de cinco países, serão divididas em programações distintas para cada cidade. Apenas a seleção de vídeos e filmes será exibida em todas as praças. Neste ano, em vez de ter início, como de costume, em São Paulo, a mostra irá primeiramente para o Nordeste e terminará na capital paulista Segundo Gallon, a Verbo não repete o programa pois “cada cidade tem contextos distintos”.

“Em Fortaleza, por exemplo, a gente tem vários artistas com uma prática ligada ao espaço público. Essa é uma das características da produção no campo da performance na cidade. E agora a gente está trazendo isso para dentro de uma instituição”, explica. “Já a característica principal da Verbo em São Luís serão as práticas mais ligadas a povos ancestrais, a descendentes de povos indígenas, porque há um grande número de artistas lá que produz nesse eixo. É um lugar marcado pela religiosidade, pelas ancestralidades e pela música. E, em São Paulo, a gente vai fazer meio que vai fazer um pot-pourri de tudo isso”.

Entre 2005 e 2007, a Verbo apresentou apenas performances de artistas convidados. A partir de 2008, passou a fazer uma chamada aberta por meio de editais. Naquele primeiro ano, conta Gallon, foram 400 inscritos – nesta edição, receberam 300 propostas, dos quais apenas cerca de uma dezena corresponde a convites diretos. Segundo ele, a mostra não é feita a partir de um recorte curatorial a priori.

“Samantha [Moreira, coordenadora do Chão SLZ e também curadora do evento] e eu sempre criamos as edições a partir dos projetos que recebemos, lemos tudo, identificamos algumas questões que aparecem, e, a partir delas, construímos a curadoria de cada edição”, conta.

“Quando a gente articulou essa parceria com a Pinacoteca do Ceará, a gente achou importante ter uma pessoa também dessa nova instituição, acompanhando a seleção de projetos. Até porque somos um corpo estranho no cenário de Fortaleza, que é muito fértil”, prossegue Gallon. “Contar com a Carolina [Vieira, gerente artística da instituição] foi genial, porque ela trouxe os contextos de Fortaleza. Pôde nos falar ‘olha, esse artista daqui é importante'”.

Gallon afirma que esta 17ª edição é muito especial. “Desde 2016, com tudo por que a gente passou nesses últimos anos no Brasil, a maior parte dos projetos trazia um conteúdo político e ativista muito intenso. Com a mudança que houve de 2022 para 2023, a gente sentiu uma transformação no conteúdo dos projetos. Essa edição é não apenas mais abrangente em termos de territorialidade, porque ela se espraia para Fortaleza, mas também em termos de suas temáticas, que são mais abrangentes e universais”.

Como exemplo da maior pluralidade de conteúdos que a 17ª edição da Verbo abarca, Gallon cita a artista dinamarquesa Lilibeth Cuenca Rasmussen, cuja performance vai questionar qual o papel do turista no mundo pós-pandêmico, se é mero observador ou interfere. E ainda o trabalho da artista mexicana Tania Candini, um nome recorrente da mostra, que atua muito com as questões da mulher nos dias de hoje, e vai se apresentar na Galeria Vermelho, em São Paulo.

“Ela vai apresentar uma ação que é um coro de mulheres que emite os sons de fêmeas de animais em situação de alerta, de vigilância, de defesa territorial, de acasalamento”, conta o curador. “Ela está apontando para um universo que não é humano, uma discussão superpertinente, porque cada vez mais se discute os direitos da natureza”.

A lista de artistas convidados tem ainda nomes como Aline Motta (RJ), Yhuri Cruz (RJ), André Vargas (RJ), a dupla Eduardo Bruno e Waldírio Castro (CE), Elilson (PE), entre outros. Sobre Bruno e Castro, Gallon destaca que eles têm “um trabalho muito potente em Fortaleza e vão fazer uma performance chamada Clínica de reabilitação de homofóbicos“. Na ação, que terá início no centro de Fortaleza e será finalizada na Pinacoteca, os performers irão distribuir panfletos de divulgação da clínica fictícia, juntos a uma caixa de som portátil que toca um jingle do estabelecimento, em looping.

A recorrência de convidados, explica Samantha, tem uma razão de ser. A seu ver, são artistas fundamentais dentro dessa prática, e a Verbo, além de ser um festival anual de performances, “é um processo de formação e pesquisa também, que acompanha a evolução do trabalho desses artistas, algo que, por sua vez, cria expectativa junto ao público de revê-los”, diz. Para a curadora, essa continuidade também faz da mostra uma referência no segmento, “um patrimônio de memória sobre a prática da performance no Brasil e fora dele também”.

Samantha também comenta a programação de São Luís, cuja produção ela naturalmente acompanha mais de perto. Na capital maranhense, ela ressalta o desejo de se criar um fluxo entre artistas locais e de fora, entendendo a programação como algo não somente voltado para o público, mas também para o processo formativo dos participantes.

“Aline Motta e Yhuri Cruz, ambos do Rio, têm pesquisas muito próximas com o Maranhão. E eles não vão apenas para realizar as performances, ficam um tempo expandido, que possibilita a gente criar outras redes, amarrações e vínculos, fomentar a produção local. Muitos desses artistas desejam esses encontros, essas pontes”, conclui.

Choque Cultural, 20 anos de rupturas

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Uma das essências do grafite é expor conflitos, liberar energias, expor as farpas do sistema e criar uma arte instantânea, feita muitas vezes no escuro da noite, temperada com humor e resíduos ideológicos. Sintonizada com outros cosmos, há 20 anos a galeria Choque Cultural surge no circuito paulistano de arte interessada numa produção expandida, diversificada, fora do sistema tradicional de arte e que envolve outros interlocutores. Mariana Martins e Baixo Ribeiro, arquitetos e pesquisadores, abriram-se para a arte do tattoo, performance, hip hop, skate, rock punk, tudo sintonizado com a dissolução das fronteiras culturais de uma sociedade mediatizada. Eles acreditavam que o mundo da arte precisava dessa energia nova. Uma “desordem” provocadora torna-se então a mola propulsora de um programa estético cujas ideias emergem de rupturas e não de continuidades. A dimensão poética é impulsionada por sua função socializadora. Nesse contexto, a crítica formal, conservadora, que observa esse tipo de arte a distância, deu lugar a um vislumbre mais “esperto” com tentáculos em exposições experimentais de artistas e público jovens emergentes. Pioneira na arte urbana no Brasil, a Choque, logo nos primeiros anos de atividade, torna-se referência de contemporaneidade com cruzamentos de poéticas desbravadoras.

Sempre houve uma ansiedade generalizada de restituir a arte à vida, ao cotidiano e ao social. Baixo Ribeiro lembra que a Choque, acima de tudo, é uma ideia que deu certo. “Na verdade, é um conceito que, trocando em miúdos, quer dizer que, quando os diferentes são colocados em choque, eles geram energia, e a gente consegue direcionar essa energia para uma criação de impacto social. Basicamente esse é o nosso método”.

Pesquisadores inquietos, o casal amplia algumas reflexões sobre a cor tatuando seus corpos, dando vida e movimento a um emaranhado de traços que escolheram. Literalmente demonstram que a percepção do fenômeno cromático vai muito além do limite de uma tela, de um vídeo ou de um muro. O espírito do grafite começa aí, com a ideia de andar pela rua, de performar do jeito que bem entender e com quem aparecer.

Três nomes estão por trás da Choque. Além do casal fundador, atua também o historiador Eduardo Saretta, integrante do coletivo de arte SHN. E é Saretta quem faz a maior parte das viagens para organizar as produções internacionais. “Ele é responsável pelo contato com os artistas do exterior”, diz Baixo. O trio organiza exposições, com residências e intervenções pela cidade. Foi assim com a ação Buenos Aires na Choque, em 2009, quando por dois meses dez artistas fizeram residência em São Paulo e realizaram várias intervenções pela cidade. Entre eles estava TEC, artista argentino que faz parte do elenco da Choque desde 2006.

Como surgiu a ideia de lançar uma galeria tão diferente das já existentes? “Eu entrei na FAU/USP em 1982 e encontrei a Mariana e vários artistas. A gente saía de rolê com Alex Flemming, Mauricio Villaça, Carlos Matuck, Arthur Fajardo, que faziam grafite. Eram artistas que tinham uma visão da cidade como plataforma de comunicação e também de arte”. Formavam um grupo posterior ao de Alex Vallauri, pioneiro do movimento no Brasil, de Hudinilson Júnior, John Howard, Walter Silveira, autor do icônico Hendrix Mandrake Mandrix (1978/2018). Eles usavam a cidade como lugar de comunicação e como questão poética. “Hoje muita coisa está de volta e muitos trabalhos/poesias, feitos à maneira de lambe-lambe, estão estampados especialmente no centro de São Paulo. A diversidade artística é grande, alguns trabalhos são impressos em xilogravuras, outros misturam tudo e há os que se inspiram no poema haikai”.

A geração de grafiteiros posterior a Vallauri, segundo Baixo, não se ligou a eles. “O Speto, um dos artistas reconhecidos, não olhava para a obra de Vallauri”. Ele estava em contato com o hip hop, movimento forte que mistura música, dança, skate, algo ligado ao comportamental. Esse grupo queria desenvolver seu próprio estilo, fazer algo mais autoral. “O movimento musical influenciou muitos artistas, provocando a possibilidade de o artista do grafite ser um autor”. Na passagem dos anos 1990 para o 2000 foi que surgiu o grafite assinado, quando a Choque percebeu que havia artistas que dominavam a grande escala. “A gente pensou que poderia ter um mercado, a maioria dos artistas trabalhava na publicidade”. Quando o hip hop aparece com preocupação operária e fabril, as letras passam a ser feitas com spray. “Os artistas estavam animados com os trabalhos diversificados, e nesse caldo aparecem Merlin, Speto, Nunca, Os Gêmeos, entre outros, de uma geração de grafiteiros que veio para ficar”.

Com o clima de mudanças, a Choque acolhe vários tipos de colaboração, como expor em conjunto em museus e galerias daqui ou do exterior. Foi assim que a galeria se apresentou com parte de seu elenco na Jonathan Levine, em Nova York. “Essa exposição foi muito importante porque foi noticiada no New York Times, que considerou a exposição como algo novo”. Em 2009, outro marco importante, o Museu de Arte de São Paulo (Masp) recebe a Choque com a mostra De dentro para fora, de fora para dentro, com a curadoria do trio. Entre as experiências que deram certo, Baixo considera um divisor de águas a exposição Choque Cultural na Fortes Vilaça, em 2006, no início da galeria. “Uma experiência profissionalizante para os jovens artistas”.

De Dentro para Fora/De Fora para Dentro
Panorâmica da exposição De Dentro para Fora/De Fora para Dentro, no Masp, 2009. Foto: Flavio Samello

Em 2002 eles decidiram produzir gravuras e com preços acessíveis a novos colecionadores. “Só que não dava para apenas vender gravuras”. A casa em que eles estavam instalados era local de trabalho. “No porão as paredes estavam repletas de pixo, stickers e no andar de cima a gente deixava o local mais arrumado para receber os compradores de gravuras”.

A efervescência que pairava na Choque não era suficiente para unir alguns grupos supostamente análogos. Baixo lembra que alguns tatuadores por exemplo não conheciam os artistas do grupo do grafite. “Para juntá-los, decidimos fazer a mostra Calaveras (Caveiras), no Dia dos Mortos, reunindo 15 artistas do grafite e 15, da tatuagem, que comercializaram seus trabalhos entre eles”. O público da Choque viu a exposição como espaço para compra de gravura. Passaram por lá pessoas da moda, da cultura digital, do vídeo ou aqueles simplesmente atraídos pela ebulição. “Chegaram também curadores, donos de empresas de publicidade, gente da área das artes como Carla Camargo, Emanoel Araújo, José Olympio, para conversar”. Foi daí que eles decidiram discutir o espaço da arte e organizaram a exposição Cata Lixo. “Falamos com o dono do restaurante próximo à galeria que abriu o espaço para que a gente fizesse qualquer coisa. Na casa de artefatos indígenas, também próxima, o proprietário sugeriu que a gente procurasse o grafiteiro Nunca, que tinha contato com artistas indígenas, e assim organizamos uma exposição com trabalhos do Diego Karaja”. O conjunto de ações realizadas pela Choque Cultural nessas duas décadas reafirma a galeria como local onde as emergências estéticas contemporâneas encontram vários canais para dialogar. ✱

A imagem em curto-circuito

Helena Almeida
Parte da obra de Helena Almeida, Estudo para um enriquecimento interior, 1977-1978. Acrílica sobre fotografia, políptico de seis, 53 x 42 cm (cada), Coleção Altice, Lisboa

Helena Almeida (1934-2018), artista portuguesa cuja obra é revisitada em ampla antologia no Instituto Moreira Salles, percorreu ao longo de mais de 50 anos uma investigação ao mesmo tempo diversa e renitente, que tem sua própria imagem como eixo central e a fotografia como principal meio de expressão. Surpreendentemente fiel a um leque restrito de procedimentos, temas e indagações, ela toca de forma cirúrgica em algumas das questões que mais mobilizaram a arte a partir a partir do final da década de 1960, como a autorrepresentação e a discussão acerca da expansão dos limites e possibilidades das várias linguagens artísticas.

Partindo quase sempre de sua própria imagem, de forma fragmentada ou integral, sozinha ou interagindo com elementos provocadores como fios, pinceladas ou uma perna masculina à qual a sua está atada, Helena coloca-se como corpo concreto, presença incontornável que sustenta e ao mesmo tempo provoca um curto-circuito dos códigos da imagem. É evidente a relação entre o trabalho de Helena Almeida e movimentos dominantes       nos anos 1960, como o minimalismo e a arte conceitual. O que ela nos oferece, sintetiza a curadora Isabel Carlos, é a “presença reiterada de si mesma”. “A imagem do meu corpo não é a minha imagem, não estou a fazer espetáculo”, dizia a própria Helena.

O ato de posar sempre lhe foi familiar, pois desde menina servia de modelo para o pai, também artista, o escultor Leopoldo de Almeida. Talvez esse tempo de espera, a imobilidade alargada no tempo e no espaço do ateliê, expliquem algumas peculiaridades de sua produção, tão próxima e ao mesmo tempo avessa ao caráter teatral dos happenings e performances que tanto marcaram a cena artística nos anos iniciais de sua carreira. A artista verbalizava claramente que lhe interessava não a ação em si, o confronto entre criador e público, mas o registro, a captação daquele momento preciso que parece condensar a força do gesto, tal qual um still de cinema. Ou uma sucessão de fotogramas, que remetem à lógica dos quadrinhos, criando uma linha temporal, explorada em algumas das séries em exposição, a exemplo de Tela habitada, de 1976.

Seu trabalho é sutil e provocativo, combina uma elegância nostálgica com um desejo permanente de subverter relações e hierarquias, lançando mão muitas vezes de uma ironia fina. A artista anula fronteiras entre os gêneros, questiona os limites tênues entre o plano e o volume, entre o real e o representado. E usa a fotografia não por sua excelência técnica ou exatidão mimética. Não à toa é seu marido, o arquiteto Artur Rosa, que faz a maior parte desses registros. “Eu quero uma fotografia tosca, expressiva, como registro de uma vivência, de uma ação”, explicou ela em entrevista concedida à curadora e relembrada no catálogo da exposição. 

Tela rosa para vestir, obra de 1969, que serve de capítulo inaugural da mostra do IMS, é uma espécie de síntese do trabalho que será desenvolvido nas décadas a seguir. Ao vestir, literalmente, um quadro, Helena se aproxima daquilo que vinham fazendo outros artistas interessados em anular a distância entre corpo e obra. Além disso, brinca com essa ideia de superioridade da pintura e se debruça sobre o gesto de pintar e de um de seus principais atributos, a cor, provocativamente presente apenas no título, já que a imagem é em branco e preto. Nas mãos de Helena, a cor assume um aspecto curioso e fundamental, já que pontua de forma magnética suas construções visuais. Ela surge de forma intensa, contracenando com a artista, seja na mancha azul que é devorada, exalada ou guardada no bolso, na nódoa vermelha que tinge seu pé fazendo vibrar a escala de cinzas ao redor, ou ainda no negro intenso com que ela se funde em Negro exterior.

O desenho, o outro elemento constitutivo da construção pictórica, é também explorado com maestria por Helena, que nos apresenta uma série de investigações em que o traço se transforma em nexo real, físico. Seja na forma de um incômodo, como em Sente-me, ou elemento que se quer livre, como em Saída negra, um livro em branco do qual as palavras, refeitas em forma de linha, parecem escapar. Mais uma vez, nota-se um reiterado anseio em buscar a autonomia: do risco, do gesto, do corpo.

Outro aspecto ecoa com intensidade na obra da artista portuguesa: seu ponto de partida, como mulher trabalhando em um país submetido por décadas à ditadura salazarista e apartado do centro da produção contemporânea – que ela vivencia intensamente em uma longa permanência em Paris no início dos anos 1970. O verbo habitar é recorrente em sua trajetória, está presente nos títulos dos trabalhos e é reiterado no nome escolhido para a mostra por Isabel Carlos. A casa/ateliê é o espaço em que sua arte se desenvolve, sempre. Espaço protegido, às vezes claustrofóbico, às vezes ampliado por meio de espelhamentos, aberturas. São poucas, mas muito concretas as referências arquitetônicas incorporadas nas imagens, a ponto de a curadora sugerir que, para ela, “o rodapé é o ponto de encontro entre pintura, arquitetura e fotografia”. Na entrevista já mencionada, Helena dá a pista dessa confluência de elementos, que permite a passagem da experiência individual para o caráter universal que toda obra potente parece perseguir: “O que me interessa é sempre o mesmo: o espaço, a casa, o teto, o canto, o chão; depois, o espaço físico da tela, mas o que eu quero é tratar de emoções”.

Essa relação entre experimentação conceitual, poética e vivencial garante à obra de Helena Almeida uma familiaridade comovente com outras artistas que trilharam a mesma seara no mesmo período. São muitos os ecos entre sua produção e uma série de artistas brasileiras e latino-americanas, que, como ela, dedicaram-se a investigar a relação entre imagem e corpo, fotografia e identidade. Podemos citar, por exemplo, Lygia Pape, Lenora de Barros, Liliana Potter e até mesmo Iole de Freitas, que têm um recorte de sua obra dos anos 1970 – mais cortante e experimental – sendo exibido atualmente no mesmo IMS.

Não fosse europeia, ela estaria perfeitamente integrada a propostas de revisão da arte feminista latino-americana, como a pesquisa Mulheres radicais, mostrada em 2018 na Pinacoteca do Estado. Essa sintonia torna ainda mais surpreendente o fato de que tenha sido necessário esperar tanto tempo (sua única participação de destaque em mostra no país foi na 28ª Bienal de São Paulo) para que uma artista portuguesa de renome em seu país, com uma vasta produção e uma afinidade intensa com um tipo de arte frequentemente desenvolvido no Brasil, tivesse uma primeira exposição individual no país. ✱

Arte épica no coração secreto do Brasil

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Por Paulo Herkenhoff

Conheci o trabalho de Marcos Zacariades, em 2019, na Art Rio e fiquei muito impressionado. Na época, eu não tinha noção do que mais havia do pensamento dele e hoje vejo que foi apenas a ponta do iceberg. Mesmo em meio ao corre-corre da feira, imediatamente achei que aquele trabalho faria muito bem ao acervo do MAR (Museu de Arte do Rio), e generosamente Marcos aceitou doar, mas não entregou a peça. Fiquei com medo, afinal peça doada e não recolhida pode vir a ser peça não recebida. Depois compreendi se tratar de um excesso de rigor, disse que estava insatisfeito com alguns elementos, que precisava repensar e refazer algumas questões. Então, ali, já tive uma noção inteira de que era um artista rigoroso em termos de forma.

Depois tivemos mais um encontro no Rio e tive acesso a outras imagens do seu trabalho e pensei em escrever sobre ele, conversamos sobre sua obra, a exposição, o livro e, finalmente, fui visitar sua mostra O tempo espelhado, em exibição na cave subterrânea da Vinícola UVVA, na cidade de Mucugê, em plena Chapada Diamantina. Para mim foi uma grande revelação encontrar aquela exposição, naquele lugar, com aquela força. Tenho dito que, embora não tenha visto tudo o que se expôs este ano no Brasil, mas vi bastante, eu acho difícil que tenha uma exposição que supere em rigor formal, em vigor político e intelectual a mostra que hoje temos naquela galeria. O trabalho do Marcos tem uma grande abrangência, um diapasão de muita largueza. É o que eu acho que é uma obra épica.

O susto começou logo no primeiro dia e se seguiu depois, com a visita a Igatu, pequena vila a poucos quilômetros de Mucugê, onde Marcos Zacariades vive e, desde 2002, mantém a Galeria Arte & Memória. Igatu é uma cidade de pedras, e cada pedra tem uma história que vai se desenrolando. Essas pedras são marcos de vida. Eu me lembrava o tempo todo do poema de Drummond – “no meio do caminho tinha uma pedra” –, que podia ser uma pedra que exigia suor, que causava dor, perdas, mas também podia ser aquela pedra que seria valiosa e que sua venda daria para garantir o requeijão na mesa do garimpeiro.

Não digo que foi uma aventura, foi uma descoberta de que talvez cada um de nós brasileiros pertença àquela história. Aquela história se desenrola dentro de cada um de nós brasileiros porque ali, dentro daquela usina de pensamento, surgem dramas, surge poesia, surge a questão do trabalho. É o que eu chamo de diagrama de alteridade, de sociabilidade, uma arte que pensa na devolução à sociedade, pensa no outro, incorpora o outro no trabalho e como sujeito econômico da obra. Acho que o que existe em Igatu e na galeria da Vinícola UVVA é uma gema ainda não trazida à luz, em termos do olhar brasileiro.

Essa é uma questão primeira. A outra questão foi encontrar naquela vastidão a experiência da UVVA e da Fazenda Progresso. A atuação da Família Borré é ímpar, exemplar, um paradigma. Para além do agronegócio e da cultura do vinho, ali existe arte. A vinícola ostenta uma arquitetura espetacular, com um mobiliário de designers brasileiros como Sergio Rodrigues. Há um processo de valorização da cultura brasileira. E, quando se trata de uma galeria de arte que se mistura às barricas, que mostra o solo da Chapada Diamantina com suas camadas, nós estamos falando de uma totalidade de percepção do mundo, da geografia humana, da geografia cultural e dessa correlação entre culturas.

Quando vejo essa revelação, o que posso dizer é que Fabiano Borré é um empresário moderno que entende que o capital financeiro também deve ser convertido em capital simbólico. Isso eu digo por que acho que ele está ao lado de grandes empresários modernos, como foi Ivoncy Ioschpe, como é a família Setúbal com o Itaú Cultural, como foi Julio Landmann na condução da Bienal de São Paulo, e outros que fazem essa conversão de capital financeiro em capital simbólico, como uma forma de devolução à sociedade de parte do que afere com o trabalho coletivo.

Igatu é um lugar de mulheres modernas. Digo moderna no sentido da mulher que não tem medo de trabalhar para sobreviver. Lá eu conheci figuras inspiradoras como Nívia, diretora de uma escola e também grande doceira, e Dona Zelita, com seus quase 90 anos, ainda cuidando da casa, do seu pé de araçá. É a mulher que melhor sabe arear uma bacia em Igatu e tem a máxima de que aquilo que “se precisa, se preserva”, que dá nome a uma das obras de Zacariades. Tudo é muito entrelaçado, a tradição de Igatu é também a sua modernidade. Através de Marcos, Igatu pensa uma modernidade que se finca na tradição do diamante, do cascalho de Herberto Sales, na inovação de Kátia, da Pipoca Moderna, um carrinho de pipoca adaptado que fica na praça e na escola com livros à disposição das crianças.

Então o que fica para mim é que Marcos Zacariades produz algo absolutamente inesperado. Uma exposição que é um grande argumento em favor da recondução da civilização brasileira, que é capaz de lançar um grito contra todo tipo de violência, todo tipo de destruição, todo tipo daquilo que faz mal à sociedade, que faz mal aos corpos. É uma exposição que diz que é possível um diálogo entre as diferenças, um diálogo que vem do mais profundo rincão, que é um centro exemplar do mundo também. O centro do mundo é sempre onde está um grande artista. Para mim o grande desafio agora é dar conta dessa complexidade. Será que é possível reduzir essa exposição a palavras? ✱

I Seminário Latino-americano: Relatos, memória e reparação

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Vivenciamos, de 15 anos para cá, uma importante mobilização pública, internacional, em defesa de lutas anti-hegemônicas, para a conscientização e profunda compreensão da existência de um racismo estrutural e a necessidade de sua definitiva abolição; para a defesa e o respeito à escolha ou mudança de gênero; a defesa do reconhecimento dos povos originários, aqueles que, no caso da maioria dos países colonizados foram usurpados de suas terras, culturas e religião. É fato que este movimento obrigou a que governos e instituições de países colonizadores começassem a se reposicionar sobre os espólios retirados de suas ex-colônias. Inúmero/as pesquisadores, como Anne Lafont, Bénédicte Savoy e, Felwine Sarr estudaram especialmente o perverso apagamento de mulheres e homens negros em obras exibidas em museus europeus e americanos, assim como lançaram luz sobre a necessidade de devolver obras usurpadas ao longo de anos aos países de origem, com o propósito de rever políticas de relacionamento e ética internacional. A maioria das matérias e dos artigos desta edição reflete o impacto deste debate e a importância que alcançou.

arte!brasileiros acompanha, desde seu lugar de atuação, de forma genuína, todo este movimento, e vem realizando uma serie de encontros internacionais. Dentre os mais recentes, aquele organizado em 2021, o VI Seminário; Em Defesa da Cultura e da Natureza, em parceria com o Goethe Institut, e, no ano passado, o VII Seminário Internacional: Cultura, Democracia e Reparação, junto ao Sesc SP.

Aprofundano-nos no debate, lançamos agora o I Seminário Latino-americano: Relatos, memória e reparação, que tem por objetivo dar início a uma efetiva troca de reflexões sobre a nossa história colonial como continente e que pretende debater o impacto que essas novas narrativas contra-hegemônicas têm tido no sistema da cultura e da arte contemporânea em diferentes partes do mundo e, mais especificamente, na América Latina.

Desta vez em parceria com BIENALSUR23, a Bienal Internacional de Arte Contemporânea do Sul, nascida na cidade de Buenos Aires, Argentina, que em sua quarta edição inaugura várias mostras em diferentes cidades do país,  a arte!brasileiros abre mais um espaço na busca por diluir fronteiras, e se junta, com parte da sua equipe, a renomados curadores, acadêmicos, artistas, historiadores e profissionais da cultura, de diferentes partes da América Latina e da Europa para apresentar, durante os dias 3 e 4 de agosto de 2023, entre as 18h e 21h, em quatro mesas, questões sobre democracia e reparação, a decolonização na prática, o lugar do relato, da memória, as narrativas, a ficção e o real.

O encontro, que se realizará no Auditorio Sede Rectorado Juncal de la Universidad Nacional de Tres de Febrero (UNTREF), Juncal 1319, Ciudad de Buenos Aires, Argentina, receberá a catedrática de História da Arte Moderna e Contemporânea, da Universidad Complutense de Madrid, e curadora independente Estrella de Diego, nascida em Madri. Estrella também faz parte da Real Academia de Bellas Artes de San Fernando, Espanha. O curador e diretor da Fundação Nabuco em Recife, Moacir dos Anjos, atual Coordenador-geral do Museu do Homem do Nordeste. Foi curador da 29ª Bienal de São Paulo (2010) e do pavilhão brasileiro na 54ª Bienal de Veneza (2011). A investigadora, professora e curadora do Palais de Glace, em Buenos Aires, Federica Baeza, doutora em História e Teoria das Artes na Faculdade de Filosofía y Letras da Universidade de Buenos Aires. A antropóloga feminista Rita Laura Segato, escritora argentina residente entre Brasília, Tilcara e Buenos Aires, especialmente reconhecida por suas investigações, junto aos povos indígenas e às comunidades latino-americanas, sobre violência de gênero, racismo e colonialidade. Ana Gonçalves Magalhães, historiadora da arte, Professora Livre-docente, curadora e, atualmente, diretora do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP, 2020-2024). Ana Maria foi coordenadora editorial e assistente curatorial da Fundação Bienal de São Paulo entre 2001 e 2008. Nicolas Soares, artista, pesquisador, curador e gestor cultural formado pela Escola de Belas Artes da UFBA, em Salvador, e Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Artes da UFES, em Vitória, Espírito Santo. Diretor do Museu de Arte do Espírito Santo – MAES (Secult-ES). Aline Motta, artista brasileira que nasceu em Niterói (RJ) e combina diferentes técnicas e práticas artísticas em seu trabalho, como fotografia, vídeo, instalação, performance e colagem. De modo crítico, suas obras reconfiguram memórias, em especial as afro-atlânticas, e constroem novas narrativas que invocam uma ideia não linear do tempo. O coletivo de investigação e produção artística Declinación Magnética (Aimar Arriola, Jose Manuel Bueso, Diego del Pozo, Eduardo Galvagni, Sally Gutiérrez, Julia Morandeira e Silvia Zayas), fundado em 2013, na Espanha, formado por artistas visuais, teóricos e curadores cujo trabalho partem da tomada de consciência dos estudos pós-coloniais e decoloniais. O italiano Eugenio Viola, curador-chefe do Museo de Arte Moderno de Bogotá (MAMBO). Florencia Battiti, curadora, crítica de arte e docente de arte contemporânea. Diretora executiva do Parque de la Memoria, Florencia obteve, em 2013, a bolsa Trabucco com um projeto de investigação sobre a irrupção da memória política na arte argentina durante os anos 1990. Por último, para debater o cruzamento entre a filosofia e a tecnologia, Tomás Balmaceda, doutor em filosofia e professor na UBA y UdeSA, fundador e integrante do GIFT (Grupo de Inteligencia Artificial, Filosofía y Tecnología), parte de IIF/SADAF CONICET. E o psicanalista e professor da USP Christian Dunker.

O Seminário será transmitido via streaming pelos websites institucionais da BIENALSUR e da arte!brasileiros, com tradução simultânea (espanhol-português, português-espanhol). O encontro será gravado na íntegra e posteriormente editado para a sua livre reprodução em canais e instituições parceiros e apoiadores.

Nesta 63ª edição, a revista estabelece alguns diálogos com o I Seminário Latino-americano: Relatos, memória e reparação por meio de alguns de seus textos, a exemplo do artigo Concreto, em que Nicolas Soares discorre sobre a reestruturação sociocultural que vem ocorrendo sobretudo na arte; na reportagem sobre a exposição de Sheroanawe Hakihiiwe, um artista ianomâmi que faz uma espécie de arquivo pictórico do cotidiano e do imaginário de seu povo; sobre as emergências culturais nas instituições e entre artistas, numa entrevista com o antropólogo argentino Néstor García Canclini; sobre o diálogo com sexodissidências em destaque na 35ª Bienal de São Paulo; na matéria de capa, com Antonio Obá, que traz na poesia e brutalidade da sua obra a essência da memória contra a segregação racialBoa leitura e bom encontro! Esperamos por vocês presencial ou virtualmente! ✱

Ecletismo marca coleção Cerruti

É bastante particular a história de uma das coleções mais impressionantes da Europa. Francesco Federici Cerruti (1922-2015) foi um dos mais ricos empresários do ramo gráfico – ele imprimia listas telefônicas e com elas fez fortuna. Apesar disso, tinha uma vida quase monástica. Vivia em um apartamento modesto em Turim, perto da empresa. Não casou nem teve histórias públicas com amantes. Seu passatempo era colecionar, tanto livros raros, como móveis e arte, o que reunia em uma casa de campo em Rivoli, construída para seus pais, nos anos 1960, mas que se recusaram a morar a lá. Por fora, ela tem um desenho modernista, mas por dentro é como um palácio do século XVIII ou XIX em miniatura.

Nesta casa, Cerruti dormiu apenas uma vez. Mas era nesse ambiente que ele passava os domingos lendo jornais e apreciando suas obras, que datam do século XIV à arte contemporânea, cujo nome mais célebre é Andy Warhol. No total, ela abriga 300 pinturas e esculturas, 300 móveis e 200 livros raros.
Em vida, Cerruti criou uma fundação para manter seu acervo – já que ele não teve herdeiros –, e o Castello di Rivoli foi escolhido para administrar o museu-casa. Foram quase quatro anos, entre 2016 e 2019, que Carolyn Christov-Bakarkiev se dedicou a organizar o acervo.

“A ideia foi manter as obras de arte como estavam na casa, mas, ao mesmo tempo, garantir as condições de segurança e clima de um museu”, explica. Apesar de ser uma casa, a curadora aponta um caráter dramático em sua constituição. “Esta casa foi uma espécie de teatro para o Cerruti, ele nunca viveu lá, não havia sequer gás na cozinha. Independentemente do período, que vai de 1300 até o século XX, as obras eram exibidas em um ambiente doméstico”, explica a diretora.

E esse “espírito doméstico” foi mantido para evitar o cubo branco dominante nos espaços expositivos típicos do século XX. “O museu de arte moderna criou um espaço branco que gera valor para o trabalho, mas que também o distancia de sua função que é elaborar a vida por meio do simbólico, para usar um termo lacaniano. Então busquei manter esse espírito doméstico”, diz ainda Carolyn.

Ela compara a casa de Cerruti a outro espaço organizado pelo escritor turco Orhan Pamuk, em Istambul, um museu ficcional criado junto com o livro O Museu da inocência. A diferença obvia é que enquanto no museu de Pamuk os personagens que ele aborda são de fato ficcionais, Cerruti, apesar de todo o mistério em torno de sua história, foi ele mesmo que reuniu toda a coleção, comprando as obras especialmente em galerias e leilões. O próprio Castello di Rivoli, lembra a curadora, também possui história semelhante, já que foi uma residência da família Savoy. “Cerruti me ajuda a olhar o Castello di Rivoli de forma renovada”, diz Carolyn.

O acervo é bastante eclético, com um tom bastante internacional, sem buscar assim refletir a produção italiana, especialmente do movimento Arte Povera, que tinha muitos artistas vivendo na região. Assim, nomes estelares como Francis Bacon e o próprio Warhol, são alguns dos contemporâneos mais proeminentes, mas os modernistas são imensa maioria na coleção, entre eles Kandinsky, Miró, Renoir, Chagall, Egon Schiele, Giacometti, Magritte e Picasso. Claro, italianos de renome também foram incluídos, caso de Morandi, Giorgio de Chirico, Lucia Fontana, Giacomo Balla e Modigliani. A última aquisição de Cerruti ocorreu em 1914, cinco anos antes de sua morte, em um leilão da Sotheby’s, uma pintura de Renoir, Jovem mulher com rosas, de 1897.

Enquanto museus devem se preocupar em constituir acervos que tratem da história da arte de uma forma ampla e inclusiva, coleções como a de Cerruti refletem a mente de um colecionador, e visitar a casa é como adentrá-la. ✱

Uma conversa com Antonio Obá

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Escutar Antonio Obá, numa conversa demorada, pausada, reflexiva, falando de sua infância, da construção de sua carreira, de seus encontros traz, primeiramente, muita calma e, ao final, a certeza de o quanto suas memórias se refletem diretamente na sua obra.

Em Revoada, a exposição aberta em junho deste ano, na recém-inaugurada Pinacoteca Contemporânea, em São Paulo, Antonio Obá desenvolveu um trabalho em diálogo com o edifício e a história do novo museu, que foi uma instituição de ensino construída nos anos 1950 e atribuída a Ramos de Azevedo, engenheiro e arquiteto responsável pelos projetos, entre outros, do Teatro Municipal e da própria Pinacoteca do Estado.

Na instalação, mãos suspensas, moldadas com silicone nos corpos de crianças e jovens que frequentaram as oficinas na Ocupação 9 de Julho do MSTC e no ateliê da Pinacoteca Contemporânea, entre março e abril de 2023, e depois forjadas em gesso branco, evocam, segundo ele, “mãos livres em pleno voo; mãos – o próprio ideal de sustento e liberdade presentes no ofício ao qual se dedicam. Mãos antes acorrentadas, hoje quase sem peso ou pesar, mas cientes de todos os traumas, como um ex-voto. [1]

Não é por acaso que Obá transcende a pintura, a escultura e as instalações em imagens de corpos ou crianças suspensas e, às vezes, fantasmagóricas. Ele se lembra que aos 8 anos se deparou com um salão de ex-votos na histórica igreja de Trindade, inaugurada em 1912, como o primeiro Santuário do Divino Pai Eterno, popularmente denominado Santuário Velho ou Igreja Matriz, em Goiás. Um cenário de que se recorda fotograficamente e que lhe trouxe uma enorme sensação de abismo, em que ficou “parado, suspenso”, entre “fascinado e seduzido por um mistério”.

Wade in the water
Wade in the water (after Adriana Varejão), 2019

A mesma impressão, comentará mais tarde, voltou a ter quase 20 anos depois quando se defrontou com obras do artista inglês Francis Bacon, uma de suas referências na pintura e cuja potência e visualidade o capturaram, como se ele estivesse diante de um “buraco”, algo que estava ausente e o fascinava também.

O educador

Obá nasceu em 1983, em Ceilândia, no Distrito Federal, onde mora e trabalha até hoje. Desde sempre desenhou e pintou, mas cresceu como educador.

Trabalhou como professor no Centro Educacional 15 de Ceilândia, lecionou sobre arte e processos criativos, como professor do ensino médio, no Centro de Desenvolvimento de Potencial Criativo (CRIAR), para crianças e adultos em Taguatinga, cidade satélite de Brasília. Sempre lhe interessou o lugar que a arte e a comunicação ocupam como motivadores da autonomia, da curiosidade e do conhecimento. Como um lugar de disrupção na aprendizagem. Para ele, o campo das artes visuais “passa pela contribuição para o desenvolvimento socioeducativo humano”.

Uma das características do começo de seu percurso é ter estado muito à margem do circuito tradicional de arte, mesmo durante o período em que participou de uma coletiva no Centro Cultural Renato Russo, em 2013, em Brasília.

Um momento determinante na sua carreira foi quando decidiu trancar sua matrícula na faculdade de publicidade e optou por estudar artes visuais na UNB. Ao mesmo tempo, frequentou o Centro Cultural Elefante, uma casa de artistas criada em 2013 pela gestora paulistana Flavia Gimenes e o artista plástico carioca Matias Mesquita que, recém-chegados a Brasília, construíram na Asa Norte da capital federal um espaço de experimentação de desenho, escultura, gravura e modelagem. É aí quando começou a ter contato com a produção de artistas nacionais e internacionais. Viajou para Inhotim, conheceu o trabalho de Adriana Varejão, que lhe serviu de inspiração para a sua obra Wade in the water (After Adriana Varejão), de 2019.

A pesquisa de Obá

Alguns significantes perpassam a obra de Obá: crianças, suspensão, ambiguidade. Suas crianças têm rostos marcados, quase adultos. “Elas figuram como agentes do tempo que parecem ter a consciência que lhes é própria, mas sem nenhuma inocência. São crianças que sabem, crianças que lembram”, dizem Yuri Quevedo e Ana Maria Maia, no texto especialmente escrito para o catálogo da exposição Revoada.

Para Obá, “são como ibejis”, referindo-se às figuras simbólicas da cultura iorubá que, de forma geral, dentro dos contextos culturais do continente africano, chama de Ibeji a um orixá-criança que nomeia duas entidades infantis gêmeas. Por serem gêmeos, são associados a um princípio da dualidade humana: sorte e azar. Por serem crianças, são ligados a tudo que se inicia e brota: à nascente de um rio, ao nascimento dos seres humanos, ao germinar das plantas etc. Elas possuem um quê de leveza que lhes permite flutuar. “Mas têm que ser cuidadosos porque, caso contrário, podem atrapalhar o trabalho. […] São a criança que há dentro de nós”, diz Obá.

Suas obras trazem histórias de segregação da raça negra, de episódios de injustiças cometidas em diferentes épocas, em lugares distintos do mundo, contra negros ou negras. Em Os Banhistas n. 3 – Espreita, 2020, cujo detalhe ilustra nossa capa, Obá faz referência a uma história ocorrida em 1964, num estabelecimento ainda à época reservado a brancos, em Saint Augustine, na Flórida (EUA).

Naquela ocasião, no hotel Motor Lodge, o líder do movimento antissegracionista Martin Luther King Jr. haveria tentado almoçar e foi impedido. Ao insistir, foi preso. Dias depois, um grupo de manifestantes mergulhou na piscina em sinal de protesto, e o gerente do hotel chegou a despejar um galão de ácido muriático na água. Na obra, crianças nadam tranquilas, mas na espreita, junto de um crocodilo que alude à época em que crianças escravizadas eram usadas como iscas.

Na trilogia Strange Fruit (fruto estranho), Obá evoca a canção homônima de Billie Holiday e do poeta Abel Meeropol, que escreveram sobre o linchamento de dois homens negros em 1930 no estado norte-americano de Indiana. O horror do caso foi retratado pelo fotógrafo Lawrence Beitler: os corpos, pendendo de árvores, eram observados pela multidão branca.

A ideia de corpos suspensos está sempre presente, também nas crianças pintadas sobre linhos brancos. Em Chandelier – Crianças suspensas, elas também são elevadas, como santificadas. 

O reconhecimento do público

“Cresci vendo meus dois pais trabalhando e criando relações afetivas, isso foi formador […] Sempre foi importante produzir com um tempo ao meu sabor […], sem presa, […] mas passei dez anos sem tirar férias”, diz, acerca da pressão que envolve um artista, quando passa a ser mais reconhecido e solicitado por compromissos ligados a exposições individuais e mostras coletivas.

Para Obá, o trabalho e os encontros são fundamentais durante a carreira. Um deles foi com Flavia Gimenez, no Elefante, e outro, em 2015, com Renato Silva, da galeria Mendes Wood DM, onde realizou em 2016 a sua primeira exposição, Antonio Obá. A partir daí realizou várias mostras com a galeria, dentre elas Pele de Dentro (Mendes Wood DM, Nova York, EUA, 2018) e Outros Ofícios (Mendes Wood DM, Bruxelas, Bélgica, 
2021).

Antonio Obá participou de várias coletivas nacionais e internacionais, com destaque para o 36º Panorama da Arte Brasileira, MAM, São Paulo, Brasil
 (2018), a Enciclopédia Negra, Pinacoteca, São Paulo (2021), Tuymans / Cahn / Oba (Bourse de Commerce (2021/2022) e a 12ª Bienal de Liverpool, Inglaterra, Reino Unido (2023), entre outras.

Suas obras estão presentes em várias coleções de relevo, a exemplo do Museu de Arte Moderna de São Paulo, do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, do Museu de Arte do Rio, da
 Pinacoteca do Estado de São Paulo, da Pinault Collection, do 
Pérez Art Museum Miami 
e do 
Jumex Museo, do México, para citar apenas alguns.

Atualmente, prepara uma próxima exposição, a ser aberta no fim de 2023 na sede paulista da galeria. Desde 2016 vem ganhando amplíssimo reconhecimento institucional, nacional e internacional. Ao final da conversa, outra certeza: a de que o Ibeji, em Obá, vem aflorando num crescendo, na ambiguidade da leveza e da contundência, atento e forte, como é preciso. ✱


 

[1] Texto de Antonio Obá, presente no catálogo da exposição Revoada

Síntese cosmológica

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Na década de 1990, Juan Bosco Hakihiiwe, ianomâmi da Amazônia venezuelana, desenvolveu, junto à artista mexicana Laura Anderson Barbata, técnicas de produção de papel com fibras vegetais – de cana-de-açúcar, banana, milho, amoreira etc. – que passou a usar como suporte para seus desenhos. Neles, buscava traduzir, por meio de elementos mínimos e repetidos, não somente a paisagem, como o imaginário de sua comunidade.

Cerca de 30 anos depois, o Masp apresenta a exposição Sheroanawe Hakihiiwe: tudo isso somos nós, individual que reúne mais de uma centena de desenhos, monotipos e pinturas do artista, que passou a assinar com o nome derivado de Sheroana, a comunidade onde nasceu no município de Alto Orinoco. O conjunto – vindo de sua galeria, a ABRA, em Caracas, e de colecionadores brasileiros – cobre cerca de duas décadas de sua produção – de 2015 a 2022 – e permite ao público observar, entre outros aspectos, a recente ampliação do leque de cores de que Sheroanawe lança mão.

Sheroanawe Hakihiiwe, Hema ahu
Sheroanawe Hakihiiwe, Hema ahu [Teia de aranha com orvalho pela manhã] [Spider Web with Dew in the Morning], 2021. Acrílica sobre papel de algodão, 51.2 x 69.2 cm, Coleção Galería ABRA, Caracas, Venezuela. Foto: Cortesia Galería ABRA/María Teresa Hamon
“Muito da produção inicial do Sheroanawe tinha, não vou dizer um limite da cor, mas sempre a referência ao preto e ao vermelho. Que é justamente uma conexão que o artista faz com as pinturas corporais e faciais da sua comunidade e de seu entorno. A gente encontra, por exemplo, sempre o preto, vermelho e branco fazendo referência à cobra coral”, conta André Mesquita, curador da exposição.

“Mas Sheroanawe expandiu a sua paleta de uns três anos para cá. Ele tem utilizado azul e amarelo, por exemplo, além de ter pintado também em tecido. Embora esses procedimentos, de alguma forma, tenham se modificado ao longo do tempo, claro que os temas de que ele tem tratado permanecem. É quase a criação de uma catalogação ou de um arquivo mesmo. Uma memória daquilo que ele encontra nos aspectos ritualísticos de sua comunidade, no fazer cotidiano, nos utensílios, bem como um registro da fauna e da flora que cerca a vida na floresta”.

David Ribeiro, assistente curatorial da mostra, destaca que a produção de Sheroanawe está muito “relacionada aos períodos em que ele fica na floresta, com as pessoas do seu povo”. Momentos em que ele recolhe referências diversas da “cosmo ecologia” de sua comunidade, “uma relação com o ambiente, com o cosmos, mais profunda e complexa”. Segundo Ribeiro, Sheroanawe observa os padrões que são utilizados na pintura facial, na pintura corporal ou na produção da cestaria, detalhes de animai, plantas, pedras.

“E é um olhar bastante minucioso que ele lança sobre o entorno, sobre as pessoas, sobre o ambiente onde ele vive. E do qual ele vai extraindo sínteses”, diz. “Numa floresta, nessa confusão de elementos, Sheroanawe busca as unidades mínimas dessa grandiosidade, pequenos símbolos, que ele transpõe para o papel, que são representações dessa complexidade. Como a Laura Barbata afirma, o trabalho dele é mais do que abstração simples ou minimalismo, é um mapa bastante complexo de uma infinidade de significados que ele apreende a partir de sua observação”.

Mesquita comenta que, inicialmente, ao observar a produção de Sheroanawe, uma relação com o minimalismo veio à sua cabeça, um pouco por causa da sua formação “como pesquisador, muito interessado, já há muitos anos, nas práticas da arte conceitual”. Em algum momento, afirma o curador, aparecem na prática de Sheroanawe “processos como a serialização a repetição”, que já vimos em diversos trabalhos de artistas norte-americanos, europeus ou brasileiros.

“Mas a gente não faz essa leitura da obra do Sheroanawe e nem tenta canonizá-lo, no sentido de trazer sua produção para uma leitura ocidental”, pondera o curador. “O que eu acho, muitas vezes, é que o trabalho dele se encontra com todos esses trabalhos tidos como conceituais, minimalistas, mas ele tem uma natureza diferente. De alguma maneira, a presença dele subverte um pouco esse cânone, aquilo com que a gente está tão acostumado. O trabalho dele traz essas fricções, essas tensões”.

Para Mesquita, a escolha de Sheroanawe pela repetição, serialização ou minimalismo se dá “em referência às pinturas corporais da comunidade, numa busca por preencher todos os espaços possíveis, numa folha de papel, com um mesmo símbolo, que é um pouco dessa prática que a comunidade tem da pintura corporal de preencher todo o corpo com o mesmo desenho”, conclui.

Por fim, Ribeiro ressalta também como Sheroanawe tem um olhar muito sensível para a floresta e atribui uma grandiosidade para coisas às quais a gente mal dá importância, a exemplo de uma gota de orvalho numa teia de aranha pela manhã. Ele salienta, ainda, que o artista coloca tudo em pé de igualdade, seja a pintura facial, uma pata de animal, uma folha, tentando nos dizer que tudo isso é a mesma coisa.

“E não à toa esse foi o título que ele sugeriu para a exposição, tudo isso somos nós. Tudo aquilo constitui o povo ianomâmi. Não existe diferença entre o que é humano, o que é animal, o que é vegetal e o que é mineral. Tudo isso precisa ser conservado em conjunto, cuidado em conjunto. É um conceito de meio ambiente de uma sofisticação muito grande”. ✱

Colaboradores da edição #63

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EDUARDO SIMÕES é jornalista de cultura, com passagens por O Globo e Folha de S.Paulo, na cobertura de cinema e literatura. Foi editor da arte!brasileiros, em 2015, e de diversos títulos de lifestyle. Ele assina os textos sobre Sheronawe Hakihiiwe, a 17ª edição da Verbo e uma entrevista com o antropólogo Néstor Canclini.

FABIO CYPRIANO, crítico de arte e jornalista, é diretor da Faculdade de Filosofia, Comunicação, Letras e Artes da PUC-SP e faz parte do conselho editorial da arte!brasileiros. Neste número, entrevista a curadora Carolyn Christov-Bakargiev e escreve sobre o projeto Art of the Treasure Hunt, na Toscana, Itália.

MARIA HIRSZMAN é jornalista e crítica de arte. Trabalhou no Jornal da Tarde e em O Estado de São Paulo. É pesquisadora em história da arte, com mestrado pela USP. Para este número, Maria se debruça sobre a individual Fotografia Habitada, de Helena Almeida, em cartaz no IMS Paulista.

NICOLAS SOARES é artista, pesquisador, curador e gestor cultural formado pela Escola de Belas Artes da UFBA, em Salvador, e Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Artes da UFES, em Vitória. Diretor do Museu de Arte do Espírito Santo, assina um artigo sobre a revisão histórica impulsionada a partir do Sul Global.

PAULO HERKENHOFF é curador e crítico de arte. Autor de diversos livros, Herkenhoff também dirigiu diversas instituições de arte. Foi, entre outros, curador-chefe do MAM Rio e curador geral da 24ª Bienal de São Paulo. Herkenhoff escreve sobre O tempo espelhado, mostra de Marcos Zacariades, “uma obra épica”, em suas palavras.

Fotos: arquivo pessoal

Colaboradores da edição #62

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BITU CASSUNDÉ foi curador do Museu de Arte Contemporânea do Ceará e coordenou o Laboratório de Artes Visuais do Porto Iracema das Artes. Integrou a equipe curatorial do projeto À Nordeste, no Sesc 24 de Maio (SP). Vive e trabalha no Crato (CE), no Centro Cultural do Cariri. Nesta edição, escreve sobre o pintor Chico da Silva.


JOTABÊ MEDEIROS é repórter e biógrafo, entre outros, do cantor Belchior. Foi repórter de O Estado de S.Paulo e Folha de S.Paulo, editor-assistente da Veja SP, editor na TV Gazeta e Carta Capital. Faz um raio X das mudanças no MinC, além de entrevistas com os novos presidentes do Iphan (Leandro Grass) e Ibram (Fernanda Castro).

MARIA HIRSZMAN é jornalista e crítica de arte. Trabalhou no Jornal da Tarde e em O Estado de São Paulo. É pesquisadora em história da arte, com mestrado pela USP. Para este número, Maria escreve sobre a recém-inaugurada Pinacoteca Contemporânea, de São Paulo.



TADEU CHIARELLI é curador, crítico de arte e professor titular no curso de Artes Visuais da USP. Foi diretor da Pinacoteca de São Paulo e do Museu de Arte Contemporânea da USP. Também já atuou como curador-chefe do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP). Para esta edição, assina um artigo sobre o 8 de janeiro de 2023.


THEO MONTEIRO é bacharel em História e mestre em História Social pela Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da USP. Atuou, de 2016 a 2020, como curador assistente no Instituto Tomie Ohtake e hoje trabalha na equipe curatorial da Galeria Nara Roesler. É de sua autoria o texto sobre o pintor José Antônio da Silva.

Fotos: arquivo pessoal