Wifredo Lam
Wifredo Lam diante de La Jungla (1943) e La Mañana verde (1943) em seu estúdio em Havana. La Silla (1943) está sobre o piso, 1943 Foto: Wifredo Lam Archives, Paris

A sala de Wifredo Lam na 35ª Bienal de São Paulo é um dos marcos positivos desta edição. O artista cubano foi reconhecido por Picasso, Breton e pelos surrealistas logo que chegou a Paris em 1938. Antes, ainda muito jovem, foi para Espanha onde fez parte de seus estudos de arte. Só depois, como grande parte dos artistas de sua geração, é que se fixa em Paris. Mesmo com a amizade próxima de Picasso, Lam conseguiu desenvolver uma obra personalista, reconhecida no mundo e que suscitou o desejo de possui-la por parte de importantes museus e colecionadores. Das oito obras agora expostas em sala especial na 35ª Bienal, duas são do Malba (Buenos Aires), duas do Centre Georges Pompidou (Paris), e as demais pertencem a colecionadores particulares.

Jacques Leenhardt, crítico francês, com trânsito fluído pelas universidades da América Latina, proferiu palestra nesta Bienal sobre o artista e, entre os muitos compromissos no Brasil, dá uma sucinta entrevista à arte!brasileiros.

ARTE!✱ – Hoje o decolonialismo está na pauta da academia, nos discursos políticos, nas manifestações estudantis de rua. No livro Mi pintura, Wifredo Lam escreveu “Minha pintura foi um ato de descolonização”. Você poderia comentar?

Jacques Leenhardt – Acho muito perigoso querer incluir um artista da importância e da complexidade de Wifredo Lam imediatamente no debate “decolonial”, que tomou um rumo muito distante da busca de síntese que caracteriza sua obra pictórica. O importante, e que vem em primeiro lugar, deve ser: ver e meditar acerca das obras.

Le sombre Malembo
“Le sombre Malembo, dieu des carrefours”, 1943, de Wifredo Lam. Crédito: Reprodução

É claro que Lam era um anticolonialista. Anticolonial por meio de uma preocupação constante em construir a possibilidade de um modo de ser diferente. Isso lança luz sobre debates que muitas vezes são simplistas demais. Lam trabalhou a partir de várias origens e heranças culturais que, em suas próprias contradições, constituíram sua identidade. Ele fala de seu “antigo desejo de integrar na pintura toda a transculturação que havia ocorrido em Cuba entre aborígenes, espanhóis, africanos, chineses, imigrantes franceses, piratas e todos os elementos que compõem o Caribe. E eu reivindico”, disse, “todo esse passado para mim. Acredito que essas transculturações transformaram essas pessoas em uma nova entidade de valor humano indiscutível.”

Nessas poucas palavras, posso ver os contornos de sua posição ideológica. Por meio da noção de transculturação, que ele toma emprestada de seu amigo, o antropólogo cubano Fernando Ortiz, ele deixa claro que o advento de um ser humano no auge de sua humanidade exige a destruição de barreiras, sejam elas raciais, econômicas, sociais ou nacionais.

Esse é o trabalho que ele realiza em suas pinturas, nas quais retrata e supera a violência que caracteriza as relações humanas. Assim como as guerras e os poderes não democráticos, a colonização explorou toda essa violência. Ela deve ser combatida, assim como seus efeitos posteriores, por meio da aceitação e da abertura, e não por meio de novas violências.

A Bienal fez muito bem, acho, em incluir seu trabalho nesse debate altamente atual, pois pode-se dizer que muitas de suas principais pinturas, como El tercer Mundo (1956), Os Abalochas dançam para Dhambala, deus da unidade (1970), são apelos para curar as feridas da história. O objetivo de seu trabalho é tornar possível a reunificação do que foi brutalmente separado. A onipresença de lâminas e tesouras em suas pinturas fala do estado do mundo, não de seu futuro. Em 1943, ele pintou A Selva, uma metáfora das trágicas condições históricas criadas pela indústria açucareira e seu modo de produção escravagista. A partir de então, durante as décadas de 1950 e 1970, Lam construiu uma coreografia de figuras e símbolos em suas pinturas, extraídas das diferentes culturas que o nutriram, em particular a santeria cubana e o vodu haitiano. Se suas figuras parecem dançar na tela, é porque o artista está transmitindo a elas um movimento de transcendência que tende a uma unidade perdida. Acredito que essa seja sua luta anticolonial.

Le Matin vert
“Le Matin vert”, 1943, Wifredo Lam. Crédito: Reprodução

ARTE!✱ – O aprendizado de Wifredo Lam na Espanha pré-revolucionária, numa época de muitas discussões sobre o futuro daquele país, imprimiu qual tipo de influência na obra do artista?

Leenhardt – O aprendizado espanhol de Lam o levou ao desenho de Dürer e à pintura de Goya, que ele revisitou mais tarde, seguindo Picasso, por meio da representação multifocal do cubismo. Matisse lhe trouxe uma concepção antiperspectivista do espaço pictórico que o ajudou a se distanciar de sua própria herança europeia. Nenhuma dessas tradições se perdeu desde então, e todas alimentaram seu trabalho com essa multiplicidade.

ARTE!✱ A sala de Wifredo Lam nesta 35ª Bienal de São Paulo exibe algumas obras fundamentais feitas no contexto de exílio político e de suas jornadas transatlânticas pelos mares dos navios negreiros. O que você destacaria?

Leenhardt – As oito pinturas expostas na Sala Especial ilustram o ponto de virada da década de 1940: expulso pela Guerra Civil Espanhola e, depois de se estabelecer em Paris em 1938, expulso pelas tropas alemãs, Lam retornou a Cuba e embarcou na grande síntese transcultural que o torna tão contemporâneo. Compreendendo que não era chinês, nem africano, nem europeu, ele descobriu que era “caribenho”, parte desse arquipélago de culturas que a violência da história havia criado no coração da indústria açucareira. Em seus olhos, assim como nos olhos de seus amigos martinicanos Aimé Césaire e Edouard Glissant, do próprio coração das contradições que constituem esse arquipélago, surge a possibilidade de imaginar, de sonhar e de pintar, um futuro para a humanidade. ✱

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