Fernando Leite está em cartaz no Paço Imperial, no centro do Rio de Janeiro, com sua exposição individual, Ex-ótica. A mostra tem curadoria de Paulo Herkenhoff e apresenta 54 obras divididas em quatro séries de trabalhos.
Em entrevista para a arte!brasileiros, o artista aponta que, enquanto Herkenhoff percebe um diálogo entre as obras, pelas questões comuns que envolvem a relação entre arte e natureza, Leite encara os conjuntos como “programas distintos, que podem, cada um obedecendo e desobedecendo aos critérios que criei, me levar a caminhos muito específicos”.
Foi a partir de 2007 que Leite começou a fotografar para atender demandas do seu trabalho como designer gráfico. “A edição da imagem em photoshop, que eu comecei a realizar para os livros de arte, me apresentou a fotografia como um campo de atuação, de interferência, em que eu poderia editar, manipular, fazer cortes, mudar perspectivas, alterar cores, enfim, um vasto campo de construção visual”, explica.
Em 2014, trabalhou com Paulo Herkenhoff numa exposição no Museu de Arte do Rio (MAR) sobre a coleção Pororoca, de arte da Amazônia. O trabalho intenso resultou em uma exposição e um livro de 500 páginas. Ao longo do processo, Leite, que era responsável pelo projeto gráfico, mergulhou em obras de artistas, fotógrafos, escritores e pesquisadores que se relacionavam com um território natural. “A narrativa dos personagens de Milton Hatoum percorrendo trechos de rio para ir de um bairro a outro; as fotografias de Luiz Braga e Octavio Cardoso nas margens de rios; as performances de Luciana Magno no meio da floresta; assim como tantas outras obras, me fez perguntar a mim mesmo: ‘e o seu território natural?’, ‘e a sua floresta?’, ‘o seu rio?’. Minha resposta foi olhar para a Mata Atlântica, ou para o que restou dela, que era o meu entorno. A primeira pintura Ver te parece ser uma resposta a essa pergunta, e que me levou a empreender mais objetivamente os passeios fotográficos à Floresta da Tijuca”.
Fernando Leite, Ver te, Jardim 2022. Foto: Thales Leite
Fernando Leite, Igapó, 2019. Foto: Thales Leite
Fernando Leite, Igapó, 2022. Foto: Thales Leite
Fernando Leite, Cannabis, 2023. Foto: Thales Leite
Fernando Leite, Cannabis, 2022. Foto: Thales Leite
As imagens em preto e branco que o francês Marcel Gautherot (1910-1996) registrou das áreas alagadas da Floresta Amazônica da década de 1940 serviram de referência para a série Igapós (2017-2023). Nesta, foi necessário que o artista exercitasse a imaginação para inventar e relacionar as cores que compõem o projeto. “Eu uso a fotografia como um guia, como um caminho já percorrido anteriormente pelo olhar, e que me deixa à vontade para trabalhar as relações das manchas, das áreas de cor, das matérias gordas da tinta”.
Leite não enxerga o terceiro núcleo, Mira (2020), como uma série, mas como um trabalho único, feito com mais de 20 pinturas produzidas em óleo sobre madeira durante o período mais restrito da pandemia da covid-19, em 2020. Neste trabalho, o céu é o protagonista, a partir de registros criados em diferentes horários.
“Nossa história recente envolve dois componentes trágicos, a pandemia e o bolsonarismo. Difícil escapar de alguma desestruturação. Comecei o tratamento com canabidiol (CBD) há cerca de dois anos, para tratar insônia, ansiedade e depressão. O resultado foi surpreendente, e o percurso extremamente produtivo”, revela. A partir dessa experiência, Fernando Leite foi atrás de imagens de flores de Cannabis e criou a quarta série que integra a mostra entre 2022 e 2023. “Acho que fundamentalmente a minha relação com a cannabis é poética e afetiva. Mas não deixo de perceber que o objeto de meu interesse parece ser um curativo delicado e ainda assim potente. Potente nas feridas psíquicas, patológicas e também políticas. Cannabis não dá suporte a violência, estupidez e burrice”.
Fernando Leite e Paulo Herkenhoff trabalham juntos desde 2008. Leite foi o designer gráfico de diversos projetos dos quais Herkenhoff foi o autor. De acordo com o artista, entre livros e exposições, a dupla divide mais de 40 grandes projetos no currículo. “Eu sei o que o diálogo artista-curador é capaz de produzir, já vi os ‘milagres’ que o embate crítico pode produzir para condução de problemas de uma obra ou mesmo para a produção de novas questões. Então estou muito grato de poder contar com esse diálogo que se fortalece nesse momento. O texto [de Paulo Herkenhoff] imanta a pintura de significados, produzindo um vertiginoso salto semântico. Acredito que a partir dessa generosa condução teórica, eu precise criar agora uma resposta significante ou então apresentar uma nova pergunta”, conclui.
A dimensão transformadora da arte cria personagens que se diferenciam dos demais pela força criadora e continuidade inesgotáveis. Marta Minujin: Ao vivo, em cartaz a partir deste sábado (29/7) na Pinacoteca Luz, reafirma essa máxima exibindo uma produção alegórica, interestelar, atemporal, que celebra 60 anos de arte e delírio da icônica artista argentina.
Tudo o que se vê por trás desse repertório estético já rompeu convenções, criou muito barulho e não dissocia vida e obra alimentadas também por energias coletivas produzidas por amigos famosos como Allan Kaprow, pioneiro do happening e o lendário Andy Warhol.
O público que chega à Pinacoteca é recebido por um trabalho gigante inflável de 17 metros, a Escultura de los deseos (Escultura dos desejos, 2022), em que Minujín explora a natureza plástica dos materiais que produzem o ritmo. Essa obra de clima festivo foi feita para o Lollapalooza Argentino. O recorte afinado de Ana Maria Maia, curadora da mostra, traz dezenas de obras que compõem a “ópera” Minujín, síntese dos desejos típicos de uma artista nascida e socializada com gatilhos ambiciosos e produtivos, com objetivo claro de criar uma arte autoral inconfundível.
A artista plástica argentina Marta Minujín. Foto: Sofia Ungar
Obra da panorâmica “Marta Minujín: Ao vivo”, Pinacoteca Luz. Foto: Levi Fanan
Obra da panorâmica “Marta Minujín: Ao vivo”, Pinacoteca Luz. Foto: Levi Fanan
Obra da panorâmica “Marta Minujín: Ao vivo”, Pinacoteca Luz. Foto: Levi Fanan
Obra da panorâmica “Marta Minujín: Ao vivo”, Pinacoteca Luz. Foto: Levi Fanan
Obra da panorâmica “Marta Minujín: Ao vivo”, Pinacoteca Luz. Foto: Levi Fanan
A exposição não é itinerante, foi pensada e desejada pela Pinacoteca, segundo a curadora. “A América Latina está na programação dos próximos anos do museu, e Minujín surge como um dos primeiros nomes da lista. Começamos a visitar o ateliê dela, em Buenos Aires, no começo do ano passado.” A mostra foi pensada em conjunto, e as obras escolhidas são o fio condutor de uma produção que atravessa vários movimentos internacionais de arte. O diretor da Pinacoteca, Jochen Volz, ressalta no catálogo que a ideia de realizar uma exposição de Minujín vem desde 2018, quando a artista participou da coletiva Mulheres radicais: arte latino-americana, 1960-1985, organizada por Cecilia Fajardo-Hill e Andrea Giunta.
A exposição inaugural de Minujin foi em 1959 no Teatro Agón, em Buenos Aires, quando ela tinha apenas 16 anos. Dois anos depois obteve bolsa de estudos do National Endowment for the Arts o que lhe permitiu fixar-se em Paris, onde iniciou as estruturas habitáveis, cobertas por colchões encontrados entre os resíduos dos hospitais parisienses. Em 1963 criou La Destrucción, seu primeiro happening, quando reuniu obras com colchões e convidou colegas para destruí-las. Era o início de uma vida agitada com experiências internacionais performáticas que lhe permitiram, ainda jovem, criar uma voz feminina inovadora na competitiva e fechada cena artística portenha da época, dominada por artistas vestidos de tweed e gravata. Abrindo caminhos, Marta inventou sua maneira de lidar com a arte e com o sistema.
Entre vários trabalhos em exposição na Pinacoteca destaca-se El Batacazo (1965), por ter sido premiado no Instituto Di Tella de Buenos Aires (1963/1969), quando o espaço era o epicentro da vanguarda argentina e por onde passaram celebridades internacionais. De happenings, às instalações e ambientações, quase nada escapou da programação desse icônico instituto que pulsava em plena Calle Florida. O Prêmio Internacional Di Tella transformou-se em vitrina para o mundo da arte, quando a instituição fazia ponte com museus importantes como o MoMA e galerias influentes, como a do marchand Leo Castelli, em Nova York. Com essa premiação, Minujín chamou a atenção de Aldo Pellegrini, poeta, ensaísta e crítico de arte, que participou do júri, mas quem a lançou, de fato, foi Romero Brest, que dirigia o Di Tella. Entre 1970 e 1980, Minujín tornou-se uma artista internacional, conhecida por suas performances e instalações singulares.
A artista sempre atuou no Brasil, onde tem muitos amigos. Em 1978, a convite do crítico Walter Zanini, integrou a mostra Poéticas visuais, no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP), organizada por Julio Plaza e Zanini, que à época era diretor do museu. Meses depois, participou da 1ª Bienal Latino-Americana de São Paulo, cujo tema foi Mitos e magia, que foi transformado na paródia Mitos e vadios, uma intervenção organizada por Ivald Granato num estacionamento da rua Augusta, com performances de vários artistas, como Minujín, Oiticica, Aguilar e Regina Vater.
O arco conceitual da mostra abrange o neoconcretismo, a tropicália, a psicodelia, entre outros movimentos presentes na produção de Minujín. Em um de seus processos midiáticos, em 1976, criou a ação Comunicando con tierra, em que ela propõs intercambiar o solo latino-americano com interlocutores de todo o continente. Marta foi a Machu Picchu, no Peru, e coletou 23 kg de terra, dividindo-a em pacotes de um quilo, e enviou 23 deles a artistas de cidades diferentes da América Latina. No Brasil, foi José Roberto Aguilar que misturou a terra recebida com a de São Paulo, e Hélio Oiticica juntou a terra de Machu Picchu com a do Rio de Janeiro. Depois de receber todas as 23 misturas, ela voltu a Machu Picchu onde enterrou tudo de volta.
Minujín costuma dizer que política atrapalha a criação, mas, na verdade, seu trabalho toca na política à maneira dela, na convocação do corpo, na insurgência na dança, na brincadeira, no jogo. Ana Maria lembra que a artista tem séries importantes que falam do fato de ela ser latino-americana, de se colocar na cena internacional como mulher latino-americana. Um dos trabalhos mais icônicos, e eminentemente político, é o que reflete sobre o rombo que a ditadura militar argentina deixou nos cofres do governo. A curadora lembra que durante o período de redemocratização, a inflação tornou-se incontornável, o endividamento com potências internacionais foram às alturas. Então, em 1985, Minujín comentou esse episódio na fotoperformance argentina con maíz, “el oro latinoamericano” (O pagamento da dívida externa argentina com milho, “o ouro latino-americano”), na qual ela e Andy Warhol personificaram estereótipos de seus países de origem: no caso, uma argentina devedora e um estadunidense credor. Enquanto Minujín forjava um pagamento baseado em sacas de cereal, os índices de inflação na Argentina chegavam a picos altíssimos.
Marta Minujín e Andy Warhol na na fotoperformance “El pago de la deuda externa argentina con maíz, ‘el oro latinoamericano'” (1985). Foto: Leonor Amarante
Marta Minujín em seu ateliê em Paris, dentro de sua obra “Colchones” (Colchões), 1963. Foto: Leonor Amarante
Obelisco acostado (Obelisco tombado), 1978, de Marta Minujín
Obra da performance “Comunicando con tierra”, 1976, de Marta Minujín. Foto: Leonor Amarante
Outro caminho que Minujín adotou para intervir no imaginário geopolítico regional foi atuando no espaço público, conforme se vê nos trabalhos que ocupam uma das salas da exposição. Depois de El obeliscoacostado (O obelisco tombado), de 1978, que criou a viagem imaginária do monumento desde a Praça da República, em Buenos Aires, até o interior do pavilhão da Fundação Bienal de São Paulo, Minujín começou a criar uma série de projetos superdimensionados para serem instalados em ruas de diferentes cidades e países. Hoje a artista soma vários deles e não para de ser convidada para criar muito mais ainda.
SERVIÇO Marta Minujín: Ao vivo Curadoria: Ana Maria Maia Até 28/01/2024
Pinacoteca Luz (1º andar) – Praça da Luz, 2
Horários: de quarta a segunda, das 10h às 18h (entrada até 17h)
O que me levou a ler todo o romance biográfico de autoria de Luiza Lobo, Fábrica de Mentiras: do Vale do Café ao Arco do Triunfo [1], foi meu interesse por Eufrásia Teixeira Leite.
Há muitos anos lia, aqui ou ali, alguma referência sobre essa mulher. Nascida em 1850 em Vassouras, no interior do Rio de Janeiro, viveu em Paris a maior parte de sua vida, vindo a falecer, no entanto, em 1930, na antiga capital federal, vítima de uma doença que a impediu de voltar para a França.
Eufrásia é lembrada sobretudo por seu relacionamento amoroso com o intelectual e abolicionista brasileiro Joaquim Nabuco, mas seu nome também é lembrado como o de pioneira no campo das finanças, sendo a primeira, ou uma das primeiras mulheres, a investir na Bolsa de Valores de Paris, em pleno século XIX. Recentemente, Eufrásia começou a ser estudada também pelo fato de ter sido possuidora de um significativo conjunto de roupas de alguns dos principais costureiros parisienses de sua época, dentre eles Charles Worth [2].
Mas, na verdade, o que me deixou curioso a respeito de Eufrásia foram as menções esporádicas sobre o fato dela ter sido proprietária de uma significativa coleção de arte formada em Paris durante o período em que ela viveu naquela cidade, na passagem do século XIX para o XX.
Não sou daqueles que vão direto ao assunto e, assim, ao invés de procurar logo os capítulos em que poderia encontrar dados sobre a empresária e sua coleção, me dediquei à leitura integral do romance que, diga-se de passagem, caracteriza-se muito mais pela repetição e repetição de informações (sendo, portanto, merecedor do pente fino de uma boa revisão) do que, propriamente, por ser um texto de cunho, se não literário, pelo menos agradável.
Foi, portanto, pelo meu interesse pelo colecionismo que mergulhei nesse romance biográfico de Luiza Lobo, que trata da vida não apenas de Eufrásia, mas também de outros membros de sua família (ou a ela agregados), nascidos ou não no Vale do Paraíba fluminense. Foram páginas e páginas percorridas antes de chegar à parte do escrito que me interessava, ou seja, aquele o qual o Arco do Triunfo do título do romance faz referência: a vida da milionária Eufrásia Teixeira Leite, uma das personagens mais singulares da comunidade brasileira em Paris.
Luiza Lobo parece oscilar na caracterização de Eufrásia. Embora reitere à exaustão dados sobre suas relações com Joaquim Nabuco – “Quincas, o Belo” –, que conhecera por intermédio de seu pai e com quem teria tido um caso por mais de uma década [3], a autora não deixa de mencionar (ou criar) também outros “rabichos” de Eufrásia com o intuito, talvez, de enfatizar a liberalidade ou a autonomia da personagem. Se não foi “noiva” de nenhum deles – como o fora de Nabuco –, a milionária de Vassouras teria tido lá seu interesse de mulher despertado por Antônio, um escravizado, e com – quem diria! – Gaston d’Orléans, o conde d’Eu, marido de sua amiga, a notória princesa Isabel.
A ênfase nesse interesse de Eufrásia por homens tão diferentes entre si, pelo menos no romance, sublinha sua suposta personalidade de mulher liberada e que, como herdeira de uma respeitável riqueza deixada pelos pais (espólio que fez crescer exponencialmente), não se deixou tragar pelo destino de todas as mulheres brasileiras de sua época e classe social: o casamento [4].
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Em 1873, Eufrásia e sua irmã Francisca – mais velha cinco anos –, mudaram-se para Paris, após o falecimento do pai, em 1872 [5]. Única responsável pela condução de formidável fortuna, Eufrásia ficaria conhecida por ter sido uma das primeiras mulheres a se tornar uma grande financista, ampliando em muito o que ela e irmã haviam recebido como herança. Transformada em mulher de negócios, grande investidora, aos poucos ampliou seus interesses financeiros para vários pontos da Europa, das Américas (incluindo o Brasil) e do Oriente Próximo.
Acompanhando a leitura de Fábrica de mentiras, fica-se sabendo que esse perfil de financista – aliado ao seu interesse por arte e cultura –, teria levado Eufrásia a iniciar uma coleção de arte, a partir de uma visita à segunda exposição impressionista, em 1876, em Paris. Segundo ainda Luiza Lobo, Eufrásia teria começado a se interessar por formar uma coleção de arte, assessorada por um agente e connoisseur de nome Albert Guggeinheim – supostamente primo de Solomon e Peggy (no futuro, grandes colecionadores de arte):
Foi ele que lhe apresentou os ateliês dos novos pintores impressionistas, um mercado ainda pouco explorado, e seria seu agente na compra de quadros de arte e de finanças, nos seus investimentos na Bolsa de Paris. Mostrou-lhe que investir em obras de arte estava na ordem do dia, e aqueles pintores representavam excelente negócio em termos de custo e benefício, Eufrásia sonhava em constituir uma grande coleção de arte particular para adornar as paredes da sua futura residência, e igualmente como investimento [6].
Se no romance, Albert Guggenheim é retratado como um sujeito ligado à grande finança, um investidor antenado sobre o campo da arte moderna além de parente de dois dos principais colecionadores internacionais do século passado [7], as autoras de um estudo intitulado A sinhazinha emancipada – Miridan Britto Falci e Hildete Pereira de Melo –, apresentam um perfil mais prosaico de Guggenheim: “Foi feita uma pesquisa genealógica sobre ele, encontrou-se dezenas de Albert Guggenheim, mas as pistas que foram seguidas não apontam dados positivos, ou seja, tidos como verídicos. Não foi encontrado nenhum Albert Guggenheim que tenha vivido em Paris nos anos 1920 e 1930 […]” [8]. Essa não evidência não significa, é claro que ele não tenha existido de fato.
Antes, no mesmo livro, as autoras, após esmiuçarem a troca de correspondência entre Guggenheim e Eufrásia (quando ela se encontra no Rio de Janeiro, em 1930, ano de seu falecimento), afirmam: “Acreditamos que a leitura destas cartas permita concluir que Guggenheim era um empregado, espécie de secretário particular de Eufrásia, hábito comum da elite europeia naqueles anos”. [9]
Um mero secretário particular ou – como o identificou Luiza Lobo – agente financeiro, connoisseur e parente dos dois dos principais tubarões da arte do início do século passado? Pode ser que a romancista tenha, de fato, edulcorado a biografia de Guggenheim. Porém, o que é importante guardar para averiguações futuras é que Albert Guggenheim estava ao lado de Eufrásia desde os anos 1870, podendo, sim, ter tido participação na constituição da coleção de arte da milionária, fosse apenas seu secretário ou não.
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Conforme o romance, a coleção que Eufrásia teria formado era exibida em salas e corredores do palacete, por ela adquirido em 1877. Essa residência definitiva em Paris, possuía quatro andares além da mansarda, e era localizada perto do Arco do Triunfo e da avenida Champs Elysées.
Embora seu primeiro contato com a arte moderna possa ter sido durante a segunda mostra impressionista, Eufrásia teria iniciado sua coleção, não propriamente com os impressionistas “históricos”, mas com aqueles de uma geração mais nova, os “modernistas”:
Ela continuava a frequentar as Exposições de Paris e a comprar muitos quadros de artistas que apenas emergiam nos ateliês, os modernistas, a preços módicos. As paredes do palacete da rue de Bassano, 40 […], ficavam repletas com os modernistas Pierre Bonnard,, Fernand Léger, Amadeo [sic] Modigliani, Piet Mondrian, um Pablo Picasso, Georges Seurat, Wassily Kandinsky […] Aconselhada por Albert Guggenheim, Eufrásia apostava, de forma pioneira, num mundo artístico novo, futurista, para além da Belle Époque e do art déco… uma arte não figurativa, sem objeto definido, pura imaginação… [10]
Luiza Lobo reforça o papel de Albert Guggenheim nesse direcionamento da coleção da milionária brasileira:
[…] Albert aconselhou Eufrásia que não investisse naqueles quadros impressionistas, já valorizados no mercado de arte internacional. Havia outros, excelentes, que eram desprezados por serem ousados demais: dos modernistas! Por preços ainda não explorados, poderiam constituir uma bela coleção temática particular para a rue de Bassano, 40 […] [11]
Seriam verídicas essas informações contidas em Fábrica de Mentiras ou não passam de fantasias da autora que, prima em quinto grau de Eufrásia, deve ter crescido ouvindo as histórias e lendas que cercam a vida da famosa parente?
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Frutos de exageros literários ou não, Luiza Lobo relata certos aspectos da coleção e de algumas obras pertencentes à prima distante que merecem atenção. Em primeiro lugar poderia ser apontado o retrato de Eufrásia, pintado pelo francês Carolus-Duran, artista de prestígio na cena parisiense do final do XIX, que se especializou em retratos de personalidades da sociedade local.
A pintura requintada, típica dos retratos do artista, apresenta a imagem de Eufrásia como um uma mulher bela, decidida e não sem alguma sensualidade. A obra, por seu tratamento, faz lembrar a grande tradição da pintura cortesã francesa, atualizada, digamos assim, pela dimensão mundana da alta sociedade de Paris na segunda metade do século 19. Captada a partir dos mesmos procedimentos usados para a retratação das damas da aristocracia e alta burguesia parisiense de então, a imagem de Eufrásia na pintura, a colocava como membro indiscutível daquele pequeno grande mundo.
Hoje pertencente ao acervo do Museu Casa da Hera[12], em Vassouras, (segundo a autora de Fábrica de Mentiras), a pintura teria sido expedida para a antiga residência de Eufrásia em Vassouras – que depois abrigaria o museu citado –, por não se adequar à característica modernista do restante de sua coleção parisiense [13].
Luiza Lobo refere-se à pouca expressividade de obras da coleção de Eufrásia que sobreviveram aos problemas surgidos com seu espólio, após seu falecimento. Ela assim relata a situação do acervo “francês” que restou no palacete em que Eufrásia morou em Paris:
No pouco acesso que se tem da parte francesa do testamento, […], realmente causa espécie o ínfimo valor alcançado pelo conteúdo da casa, vários serviços de jantar com 50 peças, de Saxe, faiança de Gubbio, mobiliário e assim por diante. Mas, além de um Watteau e dois tapetes de valor, a coleção de quadros vendida é pífia, nada que se aproxime do que Lenita, a segunda filha de Georgina [e prima de Eufrásia], ao visitar o solar, viu nas suas paredes. Uma coleção importante de arte, principalmente de impressionistas e modernistas. O único quadro que poderia se aproximar, pela data, da arte modernista é um Fantin-Latour, Baigneuses (Banhistas), no valor de 20 contos, mas que é pura arte romântica, totalmente distante de um Picasso. Ele é de 1879 e se encontra hoje no Museu de Belas Artes de Lyon! Já outro de seus quadros, Fleurs et fruits (Flores e frutas), de 1865, não reconhecido na Exposição dos Impressionistas, está hoje no Museu d’Orsay. Como terão chegado lá? Vendidos em leilão, com o inventário? Vendidos aos poucos ou junto com a coleção completa, da qual não há rastro? [14]
Mlle. Euphrasie, Georges Rouault, 1914. Foto: Reprodução
“Flores e Frutos”, Fantin-Latour, 1865. Foto: Reprodução
Essa descrição pôde ser confirmada e ampliada por meio da leitura do estudo de Falci e Melo que, revisando o espólio de Eufrásia, além dos artistas citados por Lobo, atentam também para a existência na coleção de obras de Ziem, Vinet, Dael e Henri Harpignies, entre outros. [15]
Em levantamento junto aos sites dos museus citados por Lobo, não foi encontrada a imagem de Baigneuses, no acervo do Museu de Belas Artes de Lyon, mas, naquele do Museu d’Orsay foi encontrada a imagem de uma pintura com o título Fleurs et Fruits, de 1865 – uma natureza-morta tradicional, típica de Fantin-Latour, cujo obra se desenvolveu entre a pintura naturalista/romântica da segunda metade do XIX, e as especulações estéticas levadas adiante pelos impressionistas e seu entorno.
Lobo cita ainda uma terceira obra pertencente à coleção “modernista” de Eufrásia, um seu retrato pintado por Georges Rouault:
O falecimento de Eufrásia, em 13 de setembro de 1930, foi noticiado até pelo Figaro, entre muitos outros jornais de Paris e do Rio. O quadro de Georges Rouault, de 1914, intitulado Mlle Euphrasie et son chien a representa, com traços imaginativos, elegantíssima na sua redingote, puxando pela coleirinha o querido cãozinho branco Quiqui. O quadro pertencia a seu médico, o dr. Maurice Gerardin, que o doou, em 1953, para o Museu de Arte Moderna de Paris [16]
Em busca no site do Museu de Arte Moderna da cidade de Paris, foi encontrada a obra Mlle. Euphraise, de 1914, retrato de mulher que parece puxar algo por uma correia. A data confere com a obra intitulada por Luiza Lobo como Mlle Euphraise et son chien, assim como o fato de que ele teria sido doado ao Museu pelo dr. Maurice Gerardin.
Esse retrato de Eufrásia pintado por Rouault é muito diferente daquele pintado por Carolus-Duran: ele parece fazer parte de uma série de rápidas pinturas produzidas pelo artista em meados dos anos 1910, retratos em que a celeridade da anotação pictórica e o humor que caracterizam algumas figuras destoam, e muito, de sua produção mais conhecida.
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A partir de Fábrica de Mentiras, conclui-se que o destino da maioria dos itens da coleção de arte formada por Eufrásia Teixeira Leite em Paris é desconhecido. Pelo que a autora indica – e pelo que foi dado confirmar nos sites dos museus mencionados –, sua coleção deve estar espalhada pelo mundo, sendo que, no Brasil, parece que se encontram apenas o retrato pintado por Carolus-Duran e mais um pastel, também retratando Eufrásia, de autor desconhecido, além de um retrato a óleo de sua irmã, Francisca também, sem data.
Luiza Lobo, no entanto, especula sobre o que poderia ter ocorrido com o acervo da milionária, no período em que ela já se encontrava no Brasil, mas mantinha seus interesses cuidados em Paris por Albert Guggenheim:
Contudo, em 24 de outubro de 1929, despenca vertiginosamente a Bolsa de Valores de Nova York. Albert percebe pelas cartas de Eufrásia que sua situação de saúde é desesperadora… está doente, provavelmente desenganada, presa no Rio […] nesse momento, ele podia tomar decisões por si. Estava praticamente de posse daquela coleção de arte única no mundo, que ele próprio ajudara a reunir, […] Quais eram os pintores, quantos quadros pendiam daquelas paredes, na mansão de quatro andares e uma mansarda? Quem saberia dizer, ao certo? Na verdade, Eufrásia nunca providenciara uma catalogação [17]
O que se segue, pode ser entendido como pura especulação da autora que, tentando pensar como sua prima/personagem, deixa a imaginação voar:
Ela se torturava. E se ele vendesse a pinacoteca para seu primo Solomon Guggenheim, que pretendia reunir uma coleção de arte?
[…] o famoso Solomon Robert Guggenheim, compra imensa quantidade de quadros, aproveitando a baixa da Grande depressão […] Ele adquiriu muitas coleções particulares a preços módicos, no período de entreguerras […] Em 1943, inaugura o Museu Guggenheim, no prédio branco em caracol, belo projeto de Frank Lloyd Wright […]
Quantos Robert Delaunay, Pierre Bonnard, Juan Gris, Wassily Kandinsky, Fernand Léger, Henri Rousseau, Georges Seurat, não terão provindo, nessas coleções, da “poderosa brasileira” de Paris […]
Ou teria parte da coleção de Eufrásia sido vendida para a prima de Albert, a milionária Peggy Guggenheim, única herdeira do poderoso Benjamin, que naufragou com a mulher no Titanic, em 1912, deixando-a milionária […] E se a princesa Winnaretta Polignac-Signac [herdeira da Singer, fábrica de máquinas de costura e amiga de Eufrásia] fizesse uma oferta irrecusável, para ostentá-los na sua nova Fundação Singer-Polignac, recém-inaugurada, em 1928, no seu palacete da Avenida Henri-Martin? [18]
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Como visto, Eufrásia Teixeira Leite foi uma das mulheres mais singulares de seu tempo e – tendo em vista seu perfil de financista aguerrida – a possibilidade de ter constituído uma coleção de arte protagonizada por artistas surgidos após o impressionismo não é algo remoto. Pelo contrário, parece que iria ao encontro dessa persona concebida por ela própria: uma mulher moderna, dona de seu corpo, financista interessada em negócios de risco. Portanto, uma investidora capaz de criar uma coleção de arte moderna, apostando na possibilidade da futura valorização daquele patrimônio.
Seria importante que algum/a profissional com interesse no colecionismo do século XIX/XX, se debruçasse sobre o assunto, tendo em vista os rastros aparentemente concretos deixados por esse acervo em alguns museus da França. A recuperação de dados sobre essa ainda hipotética coleção, poderia levantar questões de interesse sobre o colecionismo internacional na passagem do XIX para o XX, além de alguma reflexão mais aprofundada sobre o gosto dessa Eufrásia que, nascida sinhazinha fluminense[19], construiu para si a imagem de mulher vitoriosa num universo masculino.
A sensibilidade dessa sinhá aparentemente moderna estava mais ligada à radicalidade de um artista como Georges Rouault ou à delicadeza de Fantin-Latour? A arte moderna de fato falava à sua sensibilidade, ou não passava de puro investimento, sendo a pintura mais conservadora o que mais a sensibilizava? [20]
[1] – LOBO, Luiza. Fábrica de Mentiras: do Vale do Café ao Arco do Triunfo. Rio de Janeiro: Editora 7 Letras, 2022. O romance é baseado na biografia de alguns membros ligados direta ou indiretamente a Eufrásia Teixeira Leite, sendo que a vida dessa personagem é o elemento de maior destaque na obra
[2] – Pelo menos parte dessa coleção de trajes integra o acervo do Museu Casa da Hera, antiga residência da família Teixeira Leite. Mais tarde voltarei a mencionar o Museu.
[3] – Um “noivado” um tanto clandestino, recheado de encontros secretos no Rio de Janeiro, Paris, Veneza e outras cidades
[4] – Dentro do quadro das “singularidades” de Eufrásia, é importante sublinhar o fato de que ela deixou toda a sua fortuna para as áreas de educação e saúde da cidade de Vassouras.
[6] – LOBO, Luiza. Op. cit. p. 365. Pelo que tudo indica, e poderá ser comparado adiante, a autora, quando usa a expressão “novos pintores impressionistas” está se referindo, não aos impressionistas “pioneiros”, mas àqueles surgidos logo depois do início do movimento Por outro lado, o interesse de Eufrásia pelas artes visuais, pode ser atestado a partir do texto dos estudiosos Flávio Oscar N. Bragança e Priscila Faulhaber que afirmam que o nome da milionária brasileira, “aparece também como membro associado do anuário de 1904, da Socièté des amis du Louvre, organização que buscava recursos da iniciativa privada na aquisição de obras de arte para o Museu”. “Eufrásia Teixeira Leite entre as finanças e a moda”. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros da USP. São Paulo: Universidade de São Paulo, n. 84, abril 2023, p 148. https://www.revistas.usp.br/rieb/article/view/211002/193550
[8] “- FALCI, Miridan/MELO, Hildete Pereira de. A sinhazinha emancipada. Eufrásia Teixeira Leite (1850-1930). A paixão e os negócios na vida de uma ousada mulher do século XIX, 2ª. São Paulo: Hucitec Editora, 2021, p. 159.
[12] – O referido museu foi instituído na residência em que Eufrásia e Francisca passaram os primeiros anos de suas vidas.
[13] – Segundo escreveu Luiza Lobo: “Anos depois, em 1924, [Eufrásia] trouxe de navio o quadro revolucionário [em que ela havia sido retratada com os cabelos curtos] e mandou pendurá-lo no antigo salão de baile abandonado da Chácara da Hera, pois não combinava com sua coleção de modernistas, em Paris”. (op. cit. p; 422).
[14] – LOBO, Luiza. Fábrica de Mentiras: do Vale do Café ao Arco do Triunfo. Rio de Janeiro: Editora 7 Letras, 2022. p. 483.
[15] – FALCI, Miridan Britto/ MELO, Hildete Pereira de. Op. cit. p. 158. Outro dado interessante é fornecido pelo livro das duas estudiosas. A certo momento elas comentam que, já doente no Rio de Janeiro, e sem condições para escrever pessoalmente a Guggenheim, Eufrásia solicita que seu amigo Torres Guimarães o faça. Na carta endereçada ao suposto secretário particular, dentre outras preocupações de Eufrásia que Guimarães transmite, está um dos pedidos expressos de Eufrásia: “mandar arejar a sua casa da rua Bassano, especialmente o andar térreo e fazer o favor de verificar os quadros e objetos não pendurados a fim de evitar possível deterioração – (umidade, ratos etc.). Carta de Torres Guimarães, do dia 10 de julho de 1930 (Apud FALCI, Miridan Britto/MELO, Hildete Pereira de. Op. cit. p.110/111).
[19] – Sinhazinha cuja herança que recebeu tinha com origem, em última instância o café e, consequentemente o comércio de escravizados.
[20] – Quando este artigo estava prestes a ser publicado, recebi um e-mail de Antônio Xavier, historiador e pesquisador do Museu Casa da Hera – Vassouras, RJ – em que ele gentilmente cede uma série importante de informações sobre Eufrásia e sua fortuna. A certa altura de suas considerações, o historiado assim se pronuncia sobre o que teria acontecido com a coleção de arte moderna supostamente amealhada por Eufrásia: “Quando de sua morte em 1930, Eufrásia deixou um legado monetário considerável, algo em torno de 1,8 tonelada de ouro 24k (padrão na época, que pelos fatores da crise desencadeada pelo Crack de 29 estava muito valorizado), que colocariam esta senhora como uma bilionária, pelos padrões atuais. É de se esperar que muito desta fortuna estivesse na forma de obras de arte. /A questão é que, em suas vontades finais (e seu testamento) ela havia mandado converter todos seus pertences e posses em Títulos do Tesouro. Assim, moedas correntes de diversas nacionalidades, títulos negociáveis, ações (de dezenas de companhias e indústrias ao redor do planeta), créditos reembolsáveis, promissórias a receber, mobiliário, imóveis e propriedades, joias e obras de arte foram vendidas, cobradas e leiloadas, para que não ocorressem os intermináveis inventários e contestações dos que queriam (e achavam) ter direito a uma fração desta imensa fortuna. /A intenção primeira de Eufrásia era deixar todos os seus bens materiais para o Papa Pio XI (como chefe da Igreja Católica Romana), talvez uma influência da falecida amiga, Princesa Isabel. /Pessoas próximas a ela e de sua confiança devem tê-la feito mudar de ideia quanto a destinação desta dinheirama. Ficou determinado então que uma parte deste dinheiro seria empregado na construção de um hospital, uma escola para meninas e outra para meninos, além de algumas benfeitorias em Vassouras e doações para pobres e desamparados (no Rio de Janeiro e em Paris). Sendo tão “conservadora”, não há evidências de que Eufrásia tivesse obras de arte modernas, talvez algumas impressionistas, mas suponho que o academicismo fosse mais “seu estilo”.” (e-mail recebido dia 06 de julho de 2023).
Na sua quarta edição, a BIENALSUR23, plataforma internacional de arte contemporânea, confirma sua proposta inicial de construir uma rede colaborativa global que reivindica o direito à cultura. A atual edição se iniciou no começo de julho e se estende até dezembro de 2023, e finca presença em mais de 70 cidades, em 28 países dos cinco continentes do globo.
A BIENALSUR foi fundada em 2017 pelos argentinos Aníbal Jozami, economista, educador e colecionador, e a pesquisadora e doutora em história da arte Diana Wechsler, reitor emérito e vice-reitora da Universidad Tres de Febrero (UNTREF), respectivamente.
A BIENALSUR23 escolheu e incluiu obras e projetos selecionados em editais internacionais abertos e alguns artistas-chave para ajudar a reforçar um dos objetivos centrais das urgências deste momento: desenvolver ações centradas na problemática do meio ambiente, nas perspectivas de gênero, na construção de relatos, no fenômeno internacional das fake news e em seu impacto sobre a democracia. Para aqueles que desejam se aprofundar nas temáticas contemporâneas abordadas por projetos como a BIENALSUR — especialmente no contexto acadêmico — vale considerar a possibilidade de bachelorarbeit schreiben lassen com foco em arte, política cultural e responsabilidade social.
Em diversas províncias argentinas, as aberturas se sucederam criando um tecido diverso.
Em todos os casos é importante salientar que esta BIENALSUR não é espalhafatosa: as instalações e as obras parecem se importar em comunicar ideias e não impactar o público com soluções espetaculosas.
Regina Silveira, “Biscoito arte”, 1976, na coletiva EXTRA/ordinario, em cartaz no MAR (Museo Provincial de Arte Contemporaneo). Foto: Gerson Zanini
Em cada cidade as mostras ocupam museus, casas históricas, espaços ligados às tradições do lugar. Na Argentina, os estados, como Rio de Janeiro e Minas Gerais, são denominados de províncias. Por ocasião da BIENALSUR, cidades da Provincia de Buenos Aires, como Mar del Plata e La Plata, a Provincia de Córdoba e de Tucumán inauguraram inúmeras exposições. Em Mar del Plata, vale destacar a participação da brasileira Regina Silveira na coletiva EXTRA/ordinario, em cartaz no MAR (Museo Provincial de Arte Contemporaneo).
No Museo Provincial de Fotografía de Córdoba, no Palacio Dionisi, e no Museo de Bellas Artes Emilio Caraffa foram abertas as mostras Como escapar del planeta Tierra e Naturocultura, respectivamente. Artistas de Argentina, Brasil, Chile, Colombia, Espanha e França abordam a relação humana com a natureza.
“Juan Reos, argentino, apela às nuvens como elementos de distração e faz delas esculturas monumentais e efêmeras que parecem pressagiar algo indecifrável. Yo-Yo Gonthier, francês, também os utiliza como protagonistas em um vídeo em que uma grande nuvem gigante é movida por um grupo de pessoas, na tentativa de refletir sobre a ideia de migração e retorno”, comenta o curador argentino da mostra, Francisco Medail.
Obra da exposição “Entre-tejidos”, El Cercado. Foto: Divulgação
Obra da exposição “Entre-tejidos”, El Cercado. Foto: Divulgação
Obra da mostra “A escultura e a ruína”, no Museo Provincial Escultor Juan Carlos Iramain. Foto: Divulgação
Obra da mostra “A escultura e a ruína”, no Museo Provincial Escultor Juan Carlos Iramain. Foto: Divulgação
Obras da exposição “Cómo escapar del planeta Tierra”, no Museo Provincial de Fotografía Palacio Dionisi. Foto: Divulgação
Obras da exposição “Cómo escapar del planeta Tierra”, no Museo Provincial de Fotografía Palacio Dionisi. Foto: Divulgação
Na Provincia de Tucumán, no Noroeste argentino, participam destacados artistas italianos, Maria Lai (1919-2013), uma das artistas mais importantes da segunda metade do século XX na Itália, assim como Antonio Della Guardia e Letizia Calori.
Obras vinculadas ao trabalho têxtil feminino e à precarização do trabalho na contemporaneidade, que modifica a relação do sujeito com o mundo, estão em Entre-tejidos, no Museo de la Universidad Nacional de Tucumán, que apresenta as criações das Randeras de El Cercado. Já no Museo Móvil de la Randa (MUMORA) estão os trabalhos das argentinas Jimena Travaglio e Ángeles Jacobi, assim como da italiana Maria Lai.
No Museo Provincial Escultor Juan Carlos Iramain, a mostra La escultura y la ruina coloca em diálogo retratos escultóricos e desenhos do argentino Juan Carlos Iramain (1900-1973), dos anos 1930, com os mineiros indígenas da Puna, com as cabeças de cimento do escultor argentino Rodrigo Díaz-Ahl retratando trabalhadores do conurbano bonaerense, populações separadas no tempo, partícipes, porém, da mesma vulnerabilidade,
No Centro Cultural Virla, La mirada caminante: vídeos dos argentinos Julia Levstein, Nicolás Martella e Cintia Clara Romero, sobre ações produzidas em diferentes geografias a partir do ato de andar. E a partir do dia 20 de julho, sucessivas aberturas serão realizadas na cidade de Buenos Aires. ✱
A curadora Carolyn Christoph-Bakargiev. Foto: Andrea Guermani
A repercussão do anúncio da aposentadoria de Carolyn Christoph-Bakargiev, que há mais de 20 anos, entre idas e vindas, está no Castello di Rivoli, assustou a ela própria. Ela dirige desde 2016 o primeiro museu de arte contemporânea da Itália, prestes a comemorar seus 40 anos, em 2024.
Em sua visão, uma “não notícia” acabou saindo em todos os veículos de arte e jornais importantes. “Creio que isso significa, em um nível simbólico, que muita gente quer dizer não, quer parar, não quer ser escravo de máquinas”, conta Carolyn, em seu escritório no museu, rodeada de livros e pastas, e na companhia de seu cachorro Dr. Jivago, com quem precisa entrar por uma entrada especial, longe do público.
Parar, no entanto, não significa deixar de trabalhar. Ela já tem uma grande mostra sendo preparada para Paris, em 2024, dedicada à Arte Povera, na Bourse de Commerce. Será a primeira exposição que não irá tratar da coleção de François Pinault, no edifício histórico que é mantido pelo magnata francês.
O que Carolyn vai ganhar com a aposentadoria aos 66 anos, que ela comemora em dezembro próximo, é estar livre da burocracia administrativa. “Estou me aposentando de instituições; não vou mais dirigir, participar de conselho, encontrar ministros de cultura, políticos. Estou me aposentando disso tudo e, tenho esperança, de me tornar jovem novamente”, conta, sorrindo.
Nesses mais de 20 anos no Castello di Rivoli – ela entrou em 2002, como curadora-chefe, após dois anos no PS1, de Nova York – os museus em geral passaram por uma intensa transformação. Caminhar pela coleção do próprio museu italiano reflete essas mudanças, deixando de contar uma história da arte norte-americana e eurocentrista, para se abrir a outras narrativas, entre elas a do chamado “sul-global”, termo que Carolyn não gosta muito. Ela prefere usar a expressão “inconformados com o cânone eurocêntrico”. Desse grupo, ela cita o artista sul-africano William Kentridge, o australiano Richard Bell, o norte-americano Jimmie Durham (1940- 2021) e a brasileira Maria Thereza Alves, todos seus amigos e com os quais já trabalhou diversas vezes.
Everydays: The First 5.000 Days, de Mike Winkelmann (Beeple). Inteiramente digital, a obra foi vendida por US$ 69,3 milhões pela casa de leilões Christie’s
Enquanto virou politicamente correta a inclusão desses “inconformados” no circuito da arte, muitas vezes essa seleção parece mais uma ação de marketing cultural, já que instituições usam essa estratégia como ação de publicidade. Não é o caso de Rivoli. “Não quero me vangloriar de ter amizade com artistas, mas essa é minha vida, e essas são alianças que construo há muito tempo”, relata. Com isso, não é apenas na coleção que os artistas estão presentes, mas em espaços de poder, como o Comitê Consultivo, no qual, dos sete membros, quatro são artistas, um é físico e os demais, curadores, algo bastante raro no Brasil.
“O museu pertence aos artistas”, defende Carolyn. “Como diretora de museu, esse é o elemento primário. Nossa função é como fazer para um trabalho de arte comunicar ao mundo o que ele significa para o artista. Trata-se de como torná-lo vivo, não inerte, morto”, explica.
Essa abertura para produções além do padrão ocidental teve origem, de certa forma, quando ela organizou a Bienal de Sydney, na Austrália, em 2007 e 2008. Foi no deserto, ao conhecer a produção aborígene com a amiga e curadora aborígene Hetti Perkins, que ela se deu conta de que os objetos por eles produzidos, mesmo que para serem vendidos para turistas, alcançavam resultados para a comunidade, como a construção de um hospital, e que, portanto, tinham um sentido importante. Ao mesmo tempo, ela entendeu ainda que mesmo objetos da cultura ocidental tinham um sentido mágico, como o crucifixo. “Então passei a olhar para a arte europeia, ou italiana, de forma mais antropológica”, resume.
Outro momento importante para a construção de suas alianças foi quando ela defendeu, em 2001, junto com Alana Heiss, então diretora do MoMA-PS1, de Nova York, a realização da mostra The Short Century: Independence and Liberation Movements in Africa, 1945-1994 (O século curto: movimentos de independência e liberação na África, 1945-1994), organizada pelo nigeriano Okwui Envezor, no início de 2002. A mostra foi um projeto para o museu Villa Stuck, em Munique, na Alemanha, e já tinha sido exibida emBerlim, na Casa das Culturas do Mundo.
Medusa – Rachel – Pietà, Bracha L. Ettinger, 2017-2022
“Foi a primeira mostra fora dos ateliês do Harlem dedicada a artistas africanos em Nova York. Ela realmente mudou o padrão da arte africana nos Estados Unidos, assim como transformou os museus no país”, defende.
Okwui, então seu amigo, foi o curador da Documenta 11, também em 2002, que com suas plataformas de debates em vários locais do mundo criou um novo paradigma para grandes mostras, que deixaram de se restringir apenas a um evento físico, mas funcionar também como um espaço de reflexão. Carolyn cuidou da edição da Documenta dez anos depois, em 2012, e da Bienal de Istambul, em 2015.
O passado do futuro
“Após Sydney, Documenta e Istambul decidi não fazer mais bienais ou grandes mostras internacionais. Eu parei para dar aulas, mas eu quis voltar a trabalhar em museus”, relembra. Ela retorna, então, a Rivoli em 2016. O museu, que teve como primeiro diretor o holandês Rudi Fuchs, também curador da Documenta, em 1982, funciona em um palácio que começou a ser construído no século IX, e chegou a ter a pretensão de ser uma espécie de Versalhes da família Savoy. Mas nunca chegou a ser acabado de fato, tendo sido bastante saqueado durante a invasão de Napoleão Bonaparte, no século XIX. Mesmo assim, é um lugar um tanto inusitado para ser o primeiro museu de arte contemporânea da Itália, especialmente porque artistas da Arte Povera estiveram bastante envolvidos em sua concepção.
“Dirigir um museu é organizar e cuidar de uma coleção. O que as pessoas veem são as exposições temporárias, mas o diretor de um museu constrói o passado de um futuro”, conta. A diferença para mostras do tipo bienal é que esse tipo de exposição, em sua concepção, é para “reagir sobre o aqui e agora”.
Não que isso não ocorra no museu. Neste momento, por exemplo, o Castello di Rivoli apresenta a exposição Artistas em Tempo de Guerra, concebida pela própria Carolyn antes mesmo da pandemia – esta seria a terceira etapa de uma série denominada Expressões, e que acabou coincidindo com a guerra na Ucrânia.
“Texas”, Alberto Burri, 1945
“Desastres de la Guerra”, Francisco José De Goya Y Lucientes, 1810-1815
Fotografia do diário do artista Nikita Kadan, 2023
LegendaComposition Avec Tour, Salvador Dalí, 1943
A exposição traz artistas que vivenciaram situações de conflito ao longo dos últimos séculos, seja Goya, na Espanha, como sua famosa série Os desastres da Guerra, do início do século XIX, passando pela fotógrafa Lee Miller, que retratou a liberação de campos de concentração e a própria casa de Hitler, em Munique, assim como Dinh Q Lê, que reúne uma série de desenhos produzidos durante a guerra no Vietnã nos anos 1960.
Essa sintonia com o tempo presente ocorre por conta de um método que Carolyn empresta de outra diretora da Documenta, a francesa Catherine David, responsável pela 10ª edição, em 1997. Para ela, o curador deve trabalhar com “as urgências”. “Enquanto você faz uma exposição você está tentando entender o mundo e trabalhar com artistas que também estão tentando entender o mundo para pessoas que, ao visitarem a exposição, possam tentar entender o mundo”, define a diretora do Castello di Rivoli. Se ela continuasse no museu, em 2024, a urgência seria tratar da questão digital.
“Estou muito interessada nos artistas digitais. Por isso procurei Beeple (o norte-americano Michael Joseph Winkelmann), que é o Andy Warhol de hoje. O que Warhol foi para a sociedade de consumo, Beeple é para a cultura digital, fazendo um crítica desse tempo”, afirma, com sua animação de sempre. Na verdade, ela já possui uma série de vídeos no YouTube com Beeple, em que ela ensina história da arte e ele, cultura digital.
Voltando às tarefas de diretora de museu, lá trata-se de outra temporalidade: “90% do trabalho tem a ver com a coleção, que é o que ninguém fala, mas é a parte mais importante, afinal o acervo é a narrativa de hoje que será contada no futuro.” E aqui, o método ela toma emprestado de sua mãe, uma arqueóloga italiana: “É preciso se colocar em sapatos do amanhã e olhar o hoje com uma perspectiva arqueológica.”
No entanto, com os crescentes cortes de verbas para museus públicos europeus, Carolyn se viu cada vez mais tendo que cuidar de “fundraising” e, dessa fase, ela quer se livrar. “Estar na direção do museu é gastar muito tempo e esforço para conseguir fundos, porque os museus públicos cada vez mais perdem apoio; então, quero poder voltar a dar aula, de vez em quando fazer uma grande exposição, mas, sobretudo, pensar e pensar junto com artistas”, conclui. ✱
Milhões de postos de trabalho no setor cultural foram atingidos em cheio no período mais crítico da pandemia de covid-19. Durante o confinamento, avanços tecnológicos e novos hábitos do público aceleraram mudanças na indústria cultural e provocaram uma revisão acerca de financiamentos, políticas públicas e estratégias de exibição, entre outras questões. A fim de analisar esse panorama, a Editora da Universidade de São Paulo (Edusp), em coedição com o Instituto de Estudos Avançados da USP (IEA-USP), lançou recentemente o livro Emergências Culturais: Instituições, Criadores e Comunidades no Brasil e no México. Feita em parceria com o Itaú Cultural, a publicação foi organizada pelo antropólogo argentino Néstor García Canclini e inclui ainda a participação dos pesquisadores Juan Ignacio Brizuela, Sharine Machado C. Melo e Mariana Martínez Matadamas.
A arte!brasileiros conversou com o professor Canclini – que há cerca de 20 anos estuda as crises em instituições culturais e os movimentos artísticos – a respeito das principais conclusões de Emergências Culturais e extrapolou o que é abordado pelo livro a fim de discutir outros aspectos urgentes do setor cultural no momento e no futuro próximo. Leia a seguir.
O antropólogo argentino Néstor García Canclini. Foto: Leonor Calasans
ARTE!✱ – Quais os maiores desafios encontrados ao longo desse processo de pesquisa? Houve também surpresas, positivas e/ou negativas?
Néstor García Canclini – Algo que foi muito significativo poder comparar dois países gigantes como o Brasil e o México, com políticas culturais de muitas décadas, bastante estruturadas, com investigações já feitas em cada um dos dois, porém, com contrastes. Esse confronto, em uma situação como a da pandemia, revelou inúmeras surpresas. No caso do Brasil, há mais estudos sobre a relação com Argentina, a importância do Brasil dentro do Mercosul, mas, poucas análises e comparações com o México. E, no caso do México, há um foco na economia, na cultura e nas imigrações, porém mais com os Estados Unidos do que com a América Latina.
Outras das surpresas importantes foi descobrir que no período do governo Bolsonaro, o Brasil foi, durante a pandemia, o país que mais entregou fundos de emergência para atividades culturais em toda América Latina. Há um estudo comparativo, que foi feito no primeiro ano da pandemia, em relação aos aumentos de emergência no orçamento de cultura em dez países latino-americanos. O Brasil está em primeiro lugar, com um aumento real de 143% do fundo dedicado à cultura em 2020. Em seguida vêm a Argentina, com 41%, em terceiro, o Equador, com 24%, e em quarto, Chile, com 15%.
Eu gostaria de mencionar brevemente duas explicações principais que dão esse lugar de tanto destaque ao Brasil. Em primeiro lugar, sabemos que o governo Bolsonaro não foi favorável ao desenvolvimento cultural, rebaixou o Ministério da Cultural a uma Secretaria e, com isso, reduziu os fundos. Entretanto, temos que dizer que existem duas explicações principais, que destacamos e analisamos no livro: no Brasil surge um movimento de milhares de artistas, criadores, gestores e animadores culturais logo no começo da pandemia. A pandemia começa em março de 2020 e, em abril, já se criam movimentos virtuais, que era a única forma de se comunicar para a maior parte dos museus, centros culturais etc. O público não podia ir às salas de cinema, de teatro etc., mas fez isso de forma virtual.
Houve milhares de artistas e gestores culturais que se reuniram para ver onde podiam obter fundos, pedir de forma solidária e coletiva, e chegaram a redigir uma lei, a Aldir Blanc, que foi proposta ao Congresso, porque sabiam que o melhor caminho não era a Secretaria de Cultura nem o Governo Executivo, mas sim o Congresso, onde havia pluralidade e havia muitos legisladores com disposição para colaborar com essas redes virtuais, para redigir a lei Aldir Blanc, que entregou mais de R$ 3 bilhões, ou seja, uns US$ 500 milhões, para distribui-los em municípios e nos estados. Houve obstáculos, inclusive da Secretaria de Cultura do governo, por meio da complexidade dos requisitos de uso do orçamento. Também por conta dos detalhes de controle financeiro que estabeleceram, mas o dinheiro foi distribuído a, aproximadamente, 75% dos municípios.
Essa mobilização enorme, que conseguiu a maior arrecadação de fundos na América Latina, foi resultado de uma organização sociocultural dos artistas e gestores culturais, que ocorria no Brasil desde 2004, quando foram criados os Pontos de Cultura no Brasil e um sistema nacional cultural a partir de uma iniciativa do Ministério da Cultura encabeçado por Gilberto Gil.
A segunda explicação importante que encontramos é a federalização do sistema nacional de cultura no Brasil. É uma federalização muito distinta se compararmos com o que ocorre no México, que é um Estado muito centralizado. Sabemos que essa federalização, durante a pandemia, favoreceu, por exemplo, que os estados comprassem vacinas de forma independente.
ARTE!✱ – Entre crise neoliberal, pandemia e o impacto de novas tecnologias, qual fator se revela mais contundente sobre as relações entre instituições, os artistas, as políticas públicas e o público em si? A emergência recente da inteligência artificial vai reconfigurar este cenário de algum modo?
Canclini – A pergunta é muito importante porque identifica três fatores que internacionalmente são muito significativos para o desenvolvimento cultural. Eu diria que os três, e a pandemia tem a limitação temporal de ter afetado alguns países severamente, durante dois anos o desenvolvimento cultural, mas a organização mundial da saúde declarou há cerca de um ano que ela já não era mais o principal problema social e econômico do mundo. A pandemia não é, nesse momento, uma questão decisiva para o desenvolvimento cultural, como são a crise neoliberal e o impacto das novas tecnologias. Isso não quer dizer que a pandemia não siga mostrando suas consequências, porque há muitas que tiveram que ser encerradas. No primeiro ano, em média, foram perdidos mais de 800 mil postos e empregos na América Latina.
As tecnologias mais recentes, como o ChatGPT, mostram que os artistas estão perdendo trabalho e aumentando a orientação manipuladora do público em benefício das corporações e da audiência massiva. Entretanto, há um papel articulador que a tecnologia virtual facilita de movimentos sociais, como esse movimento que mencionamos no Brasil de artistas e gestores culturais mobilizados em uma emergência e que conseguem fundos e público por meio de vias não tradicionais. Ainda quanto à inteligência artificial, é muito cedo para avaliar essa tecnologia, mas existem algumas evidências de que vão tirar o trabalho de artistas. Vi há pouco notícias da Espanha, onde os dubladores são muito importantes, que esses profissionais estão perdendo empregos porque os computadores podem simular a dublagem.
ARTE!✱ – No período em que foi foram feitas as pesquisas para o livro, houve uma consolidação das mudanças nos hábitos de consumo de cultura? Em caso afirmativo, como isso afeta a instituições?
Canclini – Sim. Estamos diante de um campo de investigação que necessita de maior estudo e de mais apoio dos recursos públicos para estimular a investigação acadêmica independente. Entretanto, há algumas pesquisas que eu gostaria de mencionar em países como Argentina, onde em 2022 foi realizada uma pesquisa de consumo cultural por parte do Sistema de Informação Cultural do país, um sistema público, e que mostra um retorno a visita a espaços físicos depois da pandemia. Às vezes, números superiores às estatísticas de público anteriores à pandemia. Mais visitas a museus, mais espetáculos presenciais, shows, feiras populares etc. Vemos que não se perdeu a relação do público apesar da conectividade da internet, mas que o retorno após o confinamento foi muito potente. Continuam conectados, mas buscam uma relação híbrida entre o acesso virtual e o acesso presencial.
ARTE!✱ – Em que medida as iniciativas institucionais e de política pública no campo da cultura, citadas no livro, vêm sendo bem-sucedidas e por quê? Que problemas ainda permanecem à margem das discussões e por quê?
Canclini – Uma lista grande de perguntas que requerem mais pesquisas. Sabemos que há uma desestabilização institucional política e socioeconômica em toda América Latina, mas que isso ocorre de modos distintos. E isso afeta a cultura, porque, notoriamente, os governos de direita são menos sensíveis ao desenvolvimento cultural público e tendem a ceder as iniciativas às empresas privadas. Mas, isso também mudou nos últimos anos, em parte por conta do triunfo de governos de direita em muitos países latino-americanos, em parte por conta da deterioração geral da situação econômica e social na América Latina e da redução da capacidade de consumo das classes média e baixa. As classes médias estão descendo de patamar, um pouco ao contrário do que ocorreu no primeiro governo Lula no Brasil, em que se dizia que 40% da população havia saído da pobreza e ido para a classe média. Agora está acontecendo o inverso. E não é um resultado só do neoliberalismo, mas de uma complexa trama de processos de mudança no desenvolvimento cultural. Isso é o que é necessário estudar um pouco melhor. E também há uma dificuldade das instituições públicas de cultura para adaptar e adequar a sua comunicação ampla à sociedade, assim como a participação dos artistas, criadores e empreendedores nas novas condições que as novas tecnologias contemporâneas criam.
ARTE!✱ – Saindo um pouco do escopo do livro, quais as implicações do cenário político convulsivo em todo o continente – e também no restante no mundo – sobre instituições, artistas e políticas públicas?
Canclini – Um aspecto que eu destacaria é que, assim como ocorreu uma desestabilização e um empobrecimento institucional, temos que mencionar a baixa capacidade das instituições de cultura, sociais, médicas, etc., de responder às demandas dos coletivos, das comunidades. E aqui destacaria, sobretudo, as demandas que cresceram nos últimos anos, dos movimentos feministas, indígenas, afro-americanos, ecológicos etc. Existem avanços, como por exemplo a descriminalização do aborto, a legitimação dos diferentes tipos de matrimônios, Mas também vemos o alto nível de conflito das reivindicações indígenas que não são atendidas, assim como as dos movimentos afro-americanos. Os movimentos indígenas são, historicamente, mais combativos na América Latina, mas na realidade temos 50 milhões de povos originários no continente, ao passo que são 150 milhões de afro-americanos, menos organizados.
Às vezes algumas manifestações chamam atenção a essa emergência por parte das instituições culturais. Eu destacaria a Bienal do Mercosul, realizada em Porto Alegre em formato virtual durante a pandemia, quando a curadora foi a Andrea Giunta. Ela elegeu as agendas dos grupos indígenas, das mulheres, de representantes de gêneros diversos e a criação artística com signos de gênero e de afro-americanos. E essa Bienal foi um salto de reconhecimento. Neste momento, a BIENALSUR, que tem sua base na Universidad Tres de Febrero, em Buenos Aires, mas inclui representantes artísticos de dezenas de países, da África até a Ásia, está tendo dando respostas a esse tipo de demanda que surge, dando por exemplo, uma importância muito grande aos movimentos ambientais. Então, existe essas erupções de respostas, mas é muito mais forte a intensidade e o volume das demandas.
ARTE!✱ – Outro tema emergente atualmente, o da restituição e das reparações, também não aparece entre os assuntos abordados no livro. Mas gostaria de saber se já é possível entender seu impacto nas instituições ou se ainda está tudo muito embrionário.
Canclini – Há uma longa história da relação entre instituições públicas estatais e povos originários. Há um boom recente, e há soluções, entre aspas, no caso de México e outros países da região Andina da América Latina, que criaram soluções, mas que não foram soluções, foram maneiras de arranjar uma convivência de forma muito precária. Hoje, há uma emergência mais enérgica com reivindicações às quais não se pode responder com repressão. Não se trata apenas de atender a essa emergência, mas também de encontrar novas formas de convivência social entre as muitas diversidades étnicas, de gênero etc., porque parte do que estamos vivendo globalmente nessa etapa do século XXI é uma explosão que torna muito difícil a convivência entre as culturas. Para mim, enquanto antropólogo, a intercultural idade é o grande tema e o grande desafio da antropologia contemporânea. A antropologia contemporânea, para mim, não é o estudo da cultura ou da cultura separada. Tem de ser isso, mas deve também entender os problemas da interculturalidade.
ARTE!✱ – Esta entrevista será publicada no contexto de nosso I Seminário Latino-americano: Relatos, Memória e Reparação, que abordará, entre outros assuntos, a construção de narrativas contra-hegemônicas nos últimos anos. As instituições culturais da América Latina estão abertas a essas narrativas? Essas narrativas, que vêm de grupos minoritários, têm alguma chance de aprimorar nossas democracias ou a resistência a elas é muito forte?
Canclini – Se consideramos um período como as duas primeiras décadas do século XXI, vemos todas as composições socioeconômicas e políticas, o aumento da pobreza, etc. por um lado; por outro, há efeitos positivos, conquistas dessas emergências explosivas de identidades e de atores sociais novos. Não gosto de usar a palavra identidade porque parece abstrata. São atores sociais que têm formas: de povos originários, dos distintos feminismos, dos afro-americanos etc. E conquistaram muitas coisas: as cotas universitárias no Brasil e em outros países, benefícios e direitos para as mulheres e também a possibilidade de as pessoas terem outras opções de gênero. E isso está institucionalizado, foi convertido em leis. Não há como diminuir a importância de se ter muitas mais mulheres nos parlamentos e em algumas presidências, de se ter a presença de presidentes de povos originários, como no caso da Bolívia. Sabemos que isso não é uma evolução ascendente e incessante. A corte dos Estados Unidos acaba de anular as cotas para afro-americanos nas universidades. E há algo que eu gostaria de destacar para finalizar. Às vezes, as conquistas não consistem exatamente em conseguir aquilo que se propôs, que se pedia às instituições, nem na aprovação de novas leis. As conquistas consistem em manter vivas as demandas, em não esquecer que há povos originários, que há afro-americanos, que não deve haver discriminações de gênero. Os museus estão mudando, de forma lenta, mas reconhecem essa diversidade. Em 2018, o coletivo Nosotras Proponemos fez uma exposição, no Museu Nacional das Belas Artes na Argentina, em que iluminou somente as obras realizadas por mulheres na coleção da instituição. E aí vimos o papel minoritário que as mulheres têm nas coleções dos museus em todo o mundo.
A urgência das reivindicações pela recolocação dos sujeitos e suas identidades dissidentes no interior da cultura se apresentam como frontes de batalha nos últimos anos e apontam para uma definitiva reestruturação sociocultural em muitas áreas, sobretudo na arte, a partir do fortalecimento das epistemologias das margens em direção ao centro. Sujeitos marginalizados, racializados, estereotipados pela herança histórica colonial europeia e suas afluências nos territórios emergentes – filhos da colônia –, recobram seus per(cursos)(calços) nas páginas solenes da História. A revisão histórica impulsionada pela tomada de uma epistemologia do sul (para todas e todos aquelas e aqueles que foram oprimidas e asfixiados por apenas uma possibilidade de ser/estar no mundo) está em curso, na tentativa de arrebentar as barricadas da Instituição da Arte e Cultura, porque é manifestação (no que tange ao sintoma e ao conflito) nas ruas e no pessoal como político. O globo geopolítico está reorientando seu eixo, e seus hemisférios se desqualificando das coordenadas de latitude e longitude cartesianas.
Por um lado, revolvemo-nos na estrutura em que os impedimentos sócio-históricos, que tentam conformar determinadas identidades, reforçam imagerias da racialização fragilizando sujeitos ao decorrer da História da Cultura. Em contraponto, percebemos as fricções, torções e rupturas no sistema da arte através de eventos emancipatórios elaborados por esses sujeitos. Em exercício de superar o figurativo, por exemplo, delineado por Debret, Rugendas, ou Christiano Júnior e tantos outros artistas coloniais de outrora, em que por tempos criaram representações de certa tipologia da imagem. Artistas negras/negros, indígenas e não-brancas/os, suas produções e as atenções recebidas continuam encobertas pelo paradigma do primitivismo [1], menos como forma e linguagem que criam, e sim, mais, ao que parece, como reforço da folclorização de um arcabouço colonial.
A última trincheira/A imagem emparedada, Nicolas Soares, 2020
Superar esta representação é dar cabo ao figurativo sob desígnio da iconografia. E da iconografia, no sentido de estandarte. Pois ainda a imagem é o engodo que orienta os sujeitos, as políticas e a organização de uma sociedade. A expectativa que a arte atual pesa sobre artistas negras/negros e indígenas, quer corresponder imagem x imaginário, e ainda determina quais e como imagens são (re)produzidas e consumidas, além de quais e como artistas devem produzir. A tomada de posição que artistas negras/negros e indígenas manobram no sistema da arte hoje deve sempre se opor à necessidade institucional de responder a uma iconografia que ainda exotiza corpos, modos de viver, espiritualidades e costumes por uma conduta do bom selvagem e do nós aqui por eles lá.
A alforria da imagem deveria escapar em direção a uma mobilização iconoclasta [2]. Menos a ilustração de cânones em seu caráter estereotipado, e sim, a supressão da imagem salvadora que extermina determinados sujeitos. A Representação já esteve em questão ao decorrer de uma História da Arte Ocidental, e sua aniquilação já foi meta a favor de uma arte pura, técnica e livre da narrativa iconográfica. O concretismo, como movimento artístico, reforçou as formas, os planos, as cores, os materiais, a espacialidade, e, principalmente, a não-subjetividade da arte como arte-mesmo. Nada dar-se a ver mais. A objetividade do quadrado preto sobre fundo branco, porém, escondia o requinte da representação em seu desempenho narrativo. Ainda era figura, ainda em sentido devocional à imagem.
Antianatomia, Luciano Feijão, 2020
A reelaboração da narrativa de si parte da concretude em que sujeitos racializados por este regime das imagens elaboram sua existência. É CONCRETA a segregação, como é CONCRETA a não-possibilidade de subjetivação, de individualização e dos afetos. CONCRETO armado sobre a história de apagamento; da não-imagem. CONCRETO estrutural que edificou a subalternização de uns a favor de poucos, justificada pela imagem. A estes artistas hoje, o CONCRETO se apresenta na fragmentação do corpo histórico na tensão por uma antianatomia [3] que seja antítese à Grande Representação. Este novo concreto se alia às experiências, ao cotidiano, aos materiais, às corporalidades não em contribuição à representação iconográfica da imagem de si – como reforço positivo à negação histórica do se ver –, mas ao exercício de deter a imagem, contudo não o discurso.
Entendemos que a emergência da produção de artistas negras/negros e indígenas deve responder para além de uma “agenda institucional identitária”, mas se estruturar no campo e no sistema da arte como fundamentais para os avanços de epistemologias outras, que tangenciam a hegemonia organizada por séculos de uma História da Arte ocidentalizada e europeizada. Pois, se no embate da arte está a própria arte – da vida como arte –, como nos reencontrar em saída à memória e à história? ✱
[1] O termo aqui se refere ao movimento europeu que definiu a barreira da produção de pensamento e artística entre a Europa moderna industrial e o resto do mundo.
[2] ICONOCLASTIA: Que ou quem se opõe ao culto das imagens; não respeita tradições, monumentos ou convenções. Ver Boris Groys; Arte Poder.
[3] Termo que dá título à pesquisa de Luciano Feijão (ES).
Com obras de três artistas autodeclarados trans e travesti (a carioca Tadáskía, a capixaba Castiel Vitorino Brasileiro e a baiana Ventura Fortuna), três artistas não bináries (o indiano Tejal Shah, o duo berlinense Pauline Boudry e Renate Lorenz e o indonésio-pernambucano Daniel Lie), o inventário vivo de um coletivo trans da Argentina (El Archivo de la Memoria Trans) e uma investigação sobre o registro de atuação da mais remota travesti não-indígena brasileira (Xica Manicongo, no século XVI), a 35ª Bienal de São Paulo tem quase 10% de sua escalação de artistas constituída pelas chamadas sexodissidências.
A mostra se propõe a apresentar dezenas de obras, peças, representações e instalações que buscam a presença histórica, o debate conceitual e o protagonismo queer na contemporaneidade, assentando sua nova edição, que começa em 6 de setembo, no trinômio corpo feminino, gênero e negritude de forma radical, além de intensificar o diálogo com a produção dos povos originários. Com o título Coreografias do impossível, a 35ª Bienal terá ao todo obras de 119 artistas, selecionados pelo coletivo curatorial formado por Diane Lima, Grada Kilomba, Hélio Menezes e Manuel Borja-Villel.
Ventura Profana, Resplandescente, 2019. Vídeo 5’20’’. Realização: Ventura Profana, podeserdesligado, Rainha F., Davi de Jesus do Nascimento, Davi Nascimento, Vedroso, Antoine Golay e Carlos Queirozi
Três representações do pioneirismo da mulher negra têm seu fulcro na evocação histórica, com Xica Manicongo (morta em 1591), Aurora Cursino dos Santos (1896-1959) e Stella do Patrocínio (1941-1992). Mulheres negras do passado, que experimentaram a violência da exclusão e do preconceito em sua forma mais cruel.
Xica Manicongo foi uma pessoa escravizada que viveu em Salvador, na Bahia, e trabalhou como sapateira na Cidade Baixa, conforme registros de documentos oficiais portugueses. Acusada de pertencer a uma “quadrilha de feiticeiros sodomitas”, Xica foi condenada pelo Santo Ofício a ser queimada viva em praça pública e ter seus descendentes desonrados até a terceira geração. Como Galileu, viu-se obrigada a negar a condição trans e vestir-se e comportar-se como um homem da época para sobreviver.
A pintora Aurora Cursino dos Santos (1896-1959) trabalhou como prostituta e viveu 15 anos internada no Complexo Psiquiátrico do Juquery, em São Paulo. Nesse manicômio, Aurora foi submetida a eletrochoques e, pouco antes de morrer, em 1955, foi lobotomizada. Seu refúgio no inferno psiquiátrico era a arte. Ela pintou cerca de 200 quadros, hoje reconhecidos como um tesouro da pintura e já exibidos em mostras no Museu de Arte de São Paulo (Masp), na própria Bienal de São Paulo e na Bienal de Berlim, Alemanha.
Stella do Patrocínio (1941-1992) foi uma poeta carioca que trabalhou como empregada doméstica e, ao morrer, foi enterrada como indigente. Sua saga é assombrosa: aos 21 anos, quando vivia em Botafogo, Rio de Janeiro, foi abordada por uma viatura policial ao tentar embarcar em um ônibus rumo à Central do Brasil. A polícia a levou a um pronto socorro, de onde ela foi enviada para o Centro Psiquiátrico Pedro II, no Engenho de Dentro. Diagnosticada com esquizofrenia, ficou internada involuntariamente pelo resto da vida.
Inaicyra Falcão, Ayán, princípio vibrante
A partir desse “edifício” histórico, vem assentar-se a representação que introduz a emergência e a assertividade das novíssimas artistas trans, como Castiel Vitorino Brasileiro, também escritora e psicóloga, de apenas 27 anos, que nasceu em um quilombo, o Morro da Fonte Grande, formou-se na Universidade Federal do Espírito Santo e fez mestrado no programa de Psicologia Clínica da PUC paulista. Estuda espiritualidades de matriz africana e busca enfatizar, em seu trabalho, a cultura ancestral em uma perspectiva decolonial.
Nessa direção atuam ainda Tadáskía, artista carioca de 30 anos, que lida com linguagens de desenho, fotografia, instalação e têxtil, e Ventura Fortuna, também de 30 anos, artista visual, performer, cantora, escritora e compositora trans de Catu, interior da Bahia (é também pastora missionária e cantora evangelista), que traz o debate vivo sobre a influência das igrejas neopentecostais na vida cotidiana.
No campo da dança, a pesquisadora e coreógrafa Inaicyra Falcão dos Santos, de 68 anos, promove um resgate das danças das culturas yorubá. “Nosso passado, entremeado por tantas diásporas, reivindica outras formas de se narrar nossas histórias”, diz Inaicyra. “Articular mundos é um gesto ético, estético e radical”.
Filha de Mestre Didi (1917-2013), lendário escritor, artista e sacerdote, e neta de Mãe Senhora, Ialorixá do candomblé́, Inaicyra é cantora lírica, doutora e pesquisadora das tradições afro-brasileiras na educação e nas artes performáticas, atuando na Unicamp.
Castiel Vitorino Brasileiro, sem título, série If memory was a place [Se a memória fosse um lugar]. Desenhos de carvão e aquarelaA DJ, percussionista e produtora Marta Supernova, de 29 anos (companheira da atriz global Bruna Linzmeyer), posiciona-se como uma artista de interesses voltados para “comunidades negrodescendentes, afroameríndias, ameafricanas, afrolatinas, LGBTQIAP+” e estratégias celebratórias. A mineira Malu Avelar instala na bienal a sua Sauna Lésbica, trabalho já consagrado em todo o País.
Entre outras personagens ainda mais remotas nessa reconstituição da opressão histórica está La Malinche (1406-1529), a escrava indígena da etnia nahua que serviu a Cortés, o conquistador espanhol sanguinário, como tradutora e amante. Considerada traidora pelo seu povo, Malinche e o duplo papel que exerceu a tornam uma das personagens mais controversas da cultura mexicana até hoje.
O duo Cabello e Carceller, formado pela parisiense Helena Cabello, de 60 anos, e Ana Carceller, de 61 anos, trabalha na intersecção entre fotografia, filme, vídeo, instalações e performance, explorando questões de gênero e sexualidade, poder e política. A artista balinesa Citra Sasmita, de 33 anos, atua no desvelamento dos preconceitos e das hierarquias sociais que cercam a mulher e os mitos femininos na cultura do Bali. A coreógrafa marroquina Bouchra Ouizgen, de 43 anos, cuja companhia é formada somente por mulheres, dançarinas e cantoras da tradição aïta (dos cabarés marroquinos), revê o feminino em um contexto entre o experimental e o tradicional.
O salvadorenho radicado em Nova York Guadalupe Maravilla, de 47 anos, traz à Bienal instalações que buscam relacionar arte e cura. Recuperando-se de um tipo raro de câncer, Guadalupe apresenta as esculturas de uma profunda pesquisa na sua cultura maia ancestral, objetos que perfazem narrativas indígenas complexas e de fundo espiritual. Maravilla chegou aos Estados Unidos atravessando a fronteira mexicana com “coiotes”, fugindo de uma guerra civil. Sem documentos, inverteu o axioma do destino imigrante: tornou-se mestre em artes pelo Hunter College, professor Virginia Commonwealth University e é presença frequente em exposições no MoMA e no Museu do Brooklyn, dois dos mais importantes de Nova York. Abandonou o antigo nome civil, Irvin Morázan, e adotou o pseudônimo do pai.
Entre os nomes que sustentam a conceituação histórica, estão diversas figuras fundamentais. É o caso de uma das mais proeminentes líderes da luta pelos direitos civis de Chicago, nos Estados Unidos (terra de onde emergiu Barack Obama): a poeta, escritora, educadora e doutora Margaret Taylor Goss Burroughs (1917-2011) criou instituições afro-americanas cruciais para a luta afirmativa, além de escrever livros de poemas referenciais, como o celebrado What shall I tell my children who are black? (O que devo dizer aos meus filhos que são negros?)
Castiel Vitorino Brasileiro, Eu sei respirar embaixo d’água. Me tirem daqui. Fotografia, 2021
Filha de mexicanos, a feminista, lésbica, ativista e escritora norte-americana Gloria Anzaldúa (1942-2004) nasceu em Raymondville, no Texas, e foi uma intelectual que buscou elaborar em sua obra a condição de mulher de fronteira, de enfrentamento da condição subalterna imposta aos imigrantes. Sua obra retratou a difícil missão de se estabelecer do outro lado da fronteira, criando um espaço cultural e político em que os indivíduos subalternos tivessem lugar e representação. “Cresci entre duas culturas, a mexicana (com uma grande influência indígena) e a americana (como um membro de um povo colonizado em nosso próprio território). Ódio, raiva e exploração são as características proeminentes desta paisagem”.
A globalidade do ódio é exumada em todas sua multiculturalidade, como na saga da escritora cigana Ceija Stojka (1933-2013), da Áustria, que viveu em um campo de concentração nazista destinado a ciganos, em Birkenau. O coletivo espanhol Flo6x8, de Sevilha, Espanha, parte de uma estratégia de flash mobs e da linguagem do flamenco para declarar sua insurgência em relação ao sistema financeiro global.
Nesse sentido, o flamenco ultra heterodoxo do assombroso cantor Niño de Elche (nome artístico de Francisco Molina, de 38 anos, nascido em Elche, na Costa Branca da Espanha) vem para balançar tudo que se conheça do gênero tradicional. Niño de Elche foi definido, pelo jornal El Mundo, como “o homem que bombardeou o flamenco”. Em um dos seus trabalhos mais recentes, Niño gravou os chamados “cantes de ida y vuelta”, subgênero do flamenco resultante do regresso à Espanha da emigração partida à América Latina (e que trouxe, na bagagem, as mudanças introduzidas pelos gêneros locais, como rumba, guajira ou colombiana). “Quis pegar nesse estilo que existe no flamenco e desmistificá-lo, ampliá-lo e ligá-lo a temáticas que me interessa tratar, como a escravatura, o colonialismo, a violência, as drogas, as relações comerciais e os fluxos fronteiriços”.
A amplitude de intercâmbios culturais da mostra é imensa. Vai até Roraima, de onde comparece a artista a indígena Macuxi Carmézia Emiliano, com representações do cotidiano e da cosmogonia de seu povo, e encontra em Paris o premiado cineasta israelense Amos Gitaï, que também é estrela da Bienal de Arquitetura de Veneza deste ano, mostra a obra Casa, Ruínas, Memórias, Futuro, na qual acompanha a história de uma casa no Oeste de Jerusalém durante 25 anos.
À parte o abstrato título, Coreografias do impossível, o exame do programa da Bienal, que será aberta em 6 de setembro no Ibirapuera com 120 convidados, revela uma rede de interrelações políticas no sentido mais amplo da palavra política e dos seus enfrentamentos contemporâneos.
A região do Chianti Classico, um dos mais sofisticados vinhos da Itália, na Toscana, desde o início de julho é palco de um inusitado percurso de obras de arte contemporânea, denominado ATH – Art of the Treasure Hunt (arte da caça ao tesouro). O tema deste ano é Mulheres na Toscana, mas a produção de nomes como Robert Wilson e John Giorno também fazem parte da programação.
Em sua quinta edição, esse percurso de arte contemporânea abrange desde duas vinícolas com obras instaladas especialmente para a versão 2023 quanto inclui outros espaços que já possuem uma coleção consolidada, caso do Castello di Ama, com nomes estelares como Louise Bourgeois, Michelangelo Pistoletto e Anish Kapoor, entre outros. O itinerário completo pode ser acessado em www.artthunt.com.
A responsável por ATH é a colecionadora Luziah Hennessy, que desde 2016 escolhe artistas e espaços para o percurso. Vivendo entre Florença e uma casa de campo na Toscana, foi por conhecer bem a região que ela deu início ao projeto. “Sempre indiquei aos meus amigos o que podia ser visto por aqui e fui descobrindo como havia muito de arte contemporânea na área”, relembra, em entrevista à arte!brasileiros, em sua casa na vila de Gaiole in Chianti, uma comuna com cerca de 2.300 habitantes.
Escultura de cerâmica da artista italiana Marta Pierobon instalada no quarto do Castelo di Brolio onde dormiu, em 1863, Vitorio Emanuelle II o primeiro rei da Itália. Foto: Fabio Cypriano
A abertura do percurso ocorreu no fim de semana de 30 de junho e 1 e 2 de julho, com um grupo de colecionadores, entre eles a argentina radicada no Brasil Frances Reynold, presidente do Instituto Inclusartiz, que visitaram coleções públicas e particulares, em Florença e na Toscana. Hennessy aproveita a oportunidade para levantar fundos para instituições filantrópicas com os convidados. Em 2023, ela conseguiu cerca de R$ 220 mil para a Fundação Walkabout, que fornece cadeiras de rodas para necessitados.
O fim de semana de abertura coincide com um dos mais importantes eventos da Toscana, o Palio de Siena, uma corrida de cavalos de tradição milenar. Ela ocorre desde o século XIII, e nela os 17 bairros da cidade – as contradas –disputam o primeiro lugar. “Organizo nesta época por conta da agenda dos grandes eventos de arte contemporânea na Europa e para se ter uma razão a mais para visitar a região”, explica Hennessy.
Castello di Brolio
O coração do percurso está nas vinícolas Castello di Brolio e Fèlsina, mas é na primeira onde a maioria das novas obras está instalada. Fundado em 1141, Brolio impressiona não só pela arquitetura medieval como pela própria história. Em 1863, Vitorio Emanuelle II o primeiro rei da Itália, passou uma estada lá, e seu quarto hoje pode ser visitado. Nessa habitação, em uma lareira e ao lado da cama, estão instaladas esculturas em cerâmica da artista italiana Marta Pierobon. “Eu não as fiz exatamente para esta exposição, mas achei que elas fariam sentido aqui”, contou, em português fluente, a artista.
Em outro espaço com menos pompa, mas não menos impressionante, estão obras de seis artistas de diversas gerações, entre elas as brasileiras Lia D Castro e Jac Leirner. Fazem parte da seleção de Hennessy ainda a espanhola June Crespo, a cubana Diana Fonseca, a coreana Jennie Jieun Lee e a alemã radicada nos Estados Unidos Kiki Smith. As telas de Lia foram escolhidas por Hennessy quando ela esteve no Brasil no início deste ano. “Creio que ela será uma artista ainda com grande projeção”, prevê a colecionadora, que repete a todos uma fala da artista: “Existem dois tipos de casamento: o de longa duração, e o de curta duração, que é com trabalhadoras do sexo”.
Na mostra, Lia, que usa a prostituição como ferramenta para seu trabalho artístico, o que chegou a chocar colecionadoras presentes, é vista em quatro telas que retratam um de seus clientes, Davi, que também assina todas as telas. “Para mim é muito importante trabalhar com a memória da apresentação, e não da representação, já que para a psicanálise de Frantz Fanon a representação é uma forma de destruição”, contou a artista em sua casa, em maio passado. Sendo assim, Davi acaba fazendo uma espécie de coautoria da obra, escolhendo da paleta de cores a deixar vestígios na obra, como esperma ou pedaços de roupa.
Escultura em cerâmica da artista italiana Marta Pierobon dispostas na lareira do Castello di Brolio, uma das sedes do percurso Art of the Treasure Hunt, 2023. Foto: Fabio Cypriano
Já em Fèlsina, Hennessy apresenta quatro artistas: a russa Alexandra Sukhareva, Marta Pierobon, a única a ocupar os dois espaços, Aidan Salakhova, do Azerbaijão, e o norte-americano Bob Wilson. Enquanto em Brolio as obras foram dispostas em habitáveis espaços do castelo, em Fèlsina elas estão exibidas na própria vinícola, em adegas onde o vinho está armazenado em dezenas de barris para amadurecimento, criando um contraste inusitado, como o manto criado por Salakhova, de mármore de Carrara, onde a artista vive atualmente.
Arredores
Além destes dois espaços, o percurso inclui outras vinícolas que já possuem coleções de arte permanentes, como é o caso do Castello di Ama, uma espécie de Inhotim local, já que os artistas criaram impressionantes instalações para o próprio lugar.
Desde 1999, 16 artistas foram comissionados para produzir obras para o espaço, entre eles o francês Daniel Buren, o italiano Michelangelo Pistoletto, o indiano Anish Kapoor e o cubano Carlos Garaicoa. É dele uma das obras mais curiosas, Yo no quiero ver más a mis vecinos, realizada em 2006, composta por diversas miniaturas de famosos muros que impõe limites como a Muralha da China. O diálogo com a região é bastante obvio, já que muitas construções da região são, elas mesmas, envoltas por grandes muros medievais, caso do Castelo de Radda, sede de outra vinícola importante.
Outro ponto alto da coleção foi realizado por Louise Bourgeois (1911- 2010), este com a ajuda de um assistente que foi até o local, fez diversas fotos, e a francesa naturalizada norte-americana projetou uma instalação para a vinícola. Topiaria é uma escultura que se vê por uma fenda de dentro da adega, em forma de uma mulher sentada, mas de seu corpo forma-se uma rosa, de onde brota água.
Telas da artista brasileira Lia D Castro, no Castello di Brolio, sua primeira exibição na Itália. Foto: Divulgação
Além de locais públicos, os participantes do final de semana de abertura visitaram duas coleções privadas, uma em Florença, do britânico Christian Levett, que reúne um grande acervo de mulheres artistas, entre elas Elaine de Kooning (1918-1989), Mira Schendel (1919-1988), Louise Bourgeois e Tracey Emin. Várias dessas obras foram adquiridas do leilão do acervo do cantor George Michael.
Já a segunda coleção privada visitada foi da suíça Suzanne Syz, que na década de 1980 viveu em Nova York e se tornou amiga de figuras icônicas da arte contemporânea, como Andy Warhol, Jean-Michel Basquiat, Julian Schnabel e Francesco Clemente, todos exibidos em sua casa nos arredores de Siena, junto a outros artistas mais recentes, como o italiano Francesco Jodice, a suíça Silvie Fleury e o alemão Carsten Höller. “Colecionar é dar apoio a jovens artistas e eu faço isso com o coração”, defendeu Suzanne ao grupo, próxima ao retrato que Warhol fez dela e seu filho Marc. Definitivamente, não é só vinho de qualidade que se encontra na Toscana. ✱
*Fabio Cypriano viajou a convite da organização de Art of the Treasure Hunt
Criada em 2005 pela Galeria Vermelho, em São Paulo, a mostra de performances Verbo já constituiu parcerias com instituições diversas ao longo de sua trajetória de quase 20 anos, a exemplo do Centro Cultural São Paulo e de festivais do gênero fora do país. Em 2018, iniciou uma sólida colaboração com o espaço Chão SLZ, de São Luís, realizando, numa mesma edição, apresentações nas capitais paulista e maranhense.
Em sua 17ª edição, que acontece de 19 de julho a 11 de agosto, a Verbo amplia ainda mais seu raio de alcance, realiza ações também no Centro Cultural Vale Maranhão (CCVM) e espraia-se para a Fortaleza, onde será abrigada na recém-inaugurada Pinacoteca do Ceará. Diretor artístico da Galeria Vermelho, Marcos Gallon ressalta que a capital cearense já tem uma “tradição ligada a práticas do corpo”, a exemplo da Bienal Internacional de Dança do Ceará, e que a aproximação com a Pinacoteca se deu de forma bilateral.
“A gente buscou a Pinacoteca, e eles responderam de forma positiva”, conta Gallon, que compara a hercúlea empreitada de realizar a Verbo em três cidades a “uma turnê de banda de rock”. “Mas tem sido genial com eles, porque, apesar das parcerias que tivemos no passado, é bastante diferente colaborar com uma instituição com esse porte gigantesco”.
Também curador da Verbo, Gallon explica que as mais de 30 ações previstas, com artistas de cinco países, serão divididas em programações distintas para cada cidade. Apenas a seleção de vídeos e filmes será exibida em todas as praças. Neste ano, em vez de ter início, como de costume, em São Paulo, a mostra irá primeiramente para o Nordeste e terminará na capital paulista Segundo Gallon, a Verbo não repete o programa pois “cada cidade tem contextos distintos”.
“Em Fortaleza, por exemplo, a gente tem vários artistas com uma prática ligada ao espaço público. Essa é uma das características da produção no campo da performance na cidade. E agora a gente está trazendo isso para dentro de uma instituição”, explica. “Já a característica principal da Verbo em São Luís serão as práticas mais ligadas a povos ancestrais, a descendentes de povos indígenas, porque há um grande número de artistas lá que produz nesse eixo. É um lugar marcado pela religiosidade, pelas ancestralidades e pela música. E, em São Paulo, a gente vai fazer meio que vai fazer um pot-pourri de tudo isso”.
Aline Motta, “A água é uma máquina do tempo”, 2023. Foto: Divulgação
Tania Candiani,
“Coro de vozes não humanas”, 2023. Foto: Divulgação
No Barraco da Constância Tem!, “A”, 2023. Foto: Breno de Lacerda
Entre 2005 e 2007, a Verbo apresentou apenas performances de artistas convidados. A partir de 2008, passou a fazer uma chamada aberta por meio de editais. Naquele primeiro ano, conta Gallon, foram 400 inscritos – nesta edição, receberam 300 propostas, dos quais apenas cerca de uma dezena corresponde a convites diretos. Segundo ele, a mostra não é feita a partir de um recorte curatorial a priori.
“Samantha [Moreira, coordenadora do Chão SLZ e também curadora do evento] e eu sempre criamos as edições a partir dos projetos que recebemos, lemos tudo, identificamos algumas questões que aparecem, e, a partir delas, construímos a curadoria de cada edição”, conta.
“Quando a gente articulou essa parceria com a Pinacoteca do Ceará, a gente achou importante ter uma pessoa também dessa nova instituição, acompanhando a seleção de projetos. Até porque somos um corpo estranho no cenário de Fortaleza, que é muito fértil”, prossegue Gallon. “Contar com a Carolina [Vieira, gerente artística da instituição] foi genial, porque ela trouxe os contextos de Fortaleza. Pôde nos falar ‘olha, esse artista daqui é importante'”.
Gallon afirma que esta 17ª edição é muito especial. “Desde 2016, com tudo por que a gente passou nesses últimos anos no Brasil, a maior parte dos projetos trazia um conteúdo político e ativista muito intenso. Com a mudança que houve de 2022 para 2023, a gente sentiu uma transformação no conteúdo dos projetos. Essa edição é não apenas mais abrangente em termos de territorialidade, porque ela se espraia para Fortaleza, mas também em termos de suas temáticas, que são mais abrangentes e universais”.
Como exemplo da maior pluralidade de conteúdos que a 17ª edição da Verbo abarca, Gallon cita a artista dinamarquesa Lilibeth Cuenca Rasmussen, cuja performance vai questionar qual o papel do turista no mundo pós-pandêmico, se é mero observador ou interfere. E ainda o trabalho da artista mexicana Tania Candini, um nome recorrente da mostra, que atua muito com as questões da mulher nos dias de hoje, e vai se apresentar na Galeria Vermelho, em São Paulo.
“Ela vai apresentar uma ação que é um coro de mulheres que emite os sons de fêmeas de animais em situação de alerta, de vigilância, de defesa territorial, de acasalamento”, conta o curador. “Ela está apontando para um universo que não é humano, uma discussão superpertinente, porque cada vez mais se discute os direitos da natureza”.
A lista de artistas convidados tem ainda nomes como Aline Motta (RJ), Yhuri Cruz (RJ), André Vargas (RJ), a dupla Eduardo Bruno e Waldírio Castro (CE), Elilson (PE), entre outros. Sobre Bruno e Castro, Gallon destaca que eles têm “um trabalho muito potente em Fortaleza e vão fazer uma performance chamada Clínica de reabilitação de homofóbicos“. Na ação, que terá início no centro de Fortaleza e será finalizada na Pinacoteca, os performers irão distribuir panfletos de divulgação da clínica fictícia, juntos a uma caixa de som portátil que toca um jingle do estabelecimento, em looping.
A recorrência de convidados, explica Samantha, tem uma razão de ser. A seu ver, são artistas fundamentais dentro dessa prática, e a Verbo, além de ser um festival anual de performances, “é um processo de formação e pesquisa também, que acompanha a evolução do trabalho desses artistas, algo que, por sua vez, cria expectativa junto ao público de revê-los”, diz. Para a curadora, essa continuidade também faz da mostra uma referência no segmento, “um patrimônio de memória sobre a prática da performance no Brasil e fora dele também”.
Samantha também comenta a programação de São Luís, cuja produção ela naturalmente acompanha mais de perto. Na capital maranhense, ela ressalta o desejo de se criar um fluxo entre artistas locais e de fora, entendendo a programação como algo não somente voltado para o público, mas também para o processo formativo dos participantes.
“Aline Motta e Yhuri Cruz, ambos do Rio, têm pesquisas muito próximas com o Maranhão. E eles não vão apenas para realizar as performances, ficam um tempo expandido, que possibilita a gente criar outras redes, amarrações e vínculos, fomentar a produção local. Muitos desses artistas desejam esses encontros, essas pontes”, conclui.