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Impasse persiste na questão dos editais da Lei Paulo Gustavo em São Paulo

Artistas fazem vigília em frente à sede do Ministério Público de São Paulo por mudanças nos editais da Lei Paulo Gustavo Foto: Divulgação
Artistas fazem vigília em frente à sede do Ministério Público de São Paulo por mudanças nos editais da Lei Paulo Gustavo Foto: Divulgação

Uma reunião na manhã desta terça-feira, 26, em São Paulo, entre a secretária de Cultura, Economia e Indústria Criativas de São Paulo, Marília Marton, e representantes de artistas, gestores, produtores e coletivos culturais de São Paulo, em São Paulo, trouxe alguns tímidos avanços em um impasse que se acentua a três dias do encerramento das inscrições para os editais da Lei Paulo Gustavo no Estado.

Os representantes dos artistas pedem ao governo do Estado que suspenda os editais para que sejam sanados os pontos de desvirtuamento que eles apresentam em relação ao texto original da lei. O governo do Estado demonstrou disposição para o diálogo e até prometeu fazer algumas mudanças, a mais expressiva delas quanto à exigência de que o CNPJ das empresas postulantes aos recursos tenham mais de cinco anos de atividade para que possam participar. O tempo exigido cairia de cinco para três anos. A secretária, contudo, condicionou as alterações à ampliação de prazo, pelo governo federal, do uso dos recursos pelos entes federativos – atualmente, o prazo final para o uso dos valores transferidos pela União vai até 31 de dezembro deste ano.

Mas a ação do governo pode vir a ser inócua, já que, na tarde da segunda-feira, 25, a Defensoria Pública da União no Estado de São Paulo entrou com uma Ação Civil Pública na 14ª Vara da Justiça Federal Cível, pedindo liminar para suspensão dos editais “em virtude das violações à legalidade e à finalidade” da Lei Paulo Gustavo. O defensor público federal Guillermo Rojas de Cerqueira César assinalou também o caráter restritivo das publicações do governo e pediu o bloqueio temporário dos recursos e uma audiência de conciliação para sanar os vícios da seleção. A ação da Defensoria Pública se somou a outras 23 que já estão sendo protocoladas desde a semana passada pelos artistas insatisfeitos. Hoje, também o Ministério Público do Trabalho (Procuradoria Regional do Trabalho da 2ª Região) entrou no caso, o que amplia o espectro de definições do âmbito de alcance da Lei Paulo Gustavo, dada sua característica de geração de empregos e o caráter de emergência social.

O prazo para inscrições em alguns editais da Lei Paulo Gustavo já se encerram à meia-noite desta terça-feira, como é o caso da produção de longas-metragens, longas-metragens de baixo orçamento, produção de séries e webséries e licenciamento de obras. A suspensão, se for arbitrada pela Justiça, fará com que esse prazo seja eventualmente reaberto.

A Lei Paulo Gustavo é uma lei federal de fomento à cultura que foi construída em 2021 e aprovada em 2022 – com amplo apoio do Congresso Nacional e da comunidade artística nacional. A exemplo da Lei Aldir Blanc (LAB), de 2020, trata-se de uma legislação emergencial que dispõe sobre ações destinadas ao setor cultural (em decorrência dos efeitos econômicos e sociais da pandemia de Covid-19). Em todo o País, estão sendo injetados, até o final deste ano, R$ 3,8 bilhões na cultura por meio da LPG (R$ 355 milhões foram destinados a São Paulo).

“Me desculpe, Anita dear”

"A Ressurreição de Lázaro" (1928), de Anita Malfatti. Cortesia: Museu de Arte Sacra de São Paulo
"A Ressurreição de Lázaro" (1928), de Anita Malfatti. Cortesia: Museu de Arte Sacra de São Paulo

Em setembro de 1928, de volta a São Paulo após cinco anos em Paris, Anita Malfatti deparou-se com o marasmo cultural da cidade. Marasmo enganoso, diga-se, semelhante àquele que também parecia ali imperar no final de 1917, quando ela abriu a exposição das obras que produzira no exterior e no Brasil[1]. Naquela vez, a mostra foi recebida com certa indiferença, mas logo se tornaria objeto de polêmica entre “passadistas” e os futuros “modernistas”.

Em 1929, mais experiente, quando Anita abre a individual para mostrar sua produção parisiense, deve ter percebido que, sob aquela aparente placidez, havia uma convulsão no ambiente paulistano, um sorvedouro que poderia tragá-la, caso não ficasse atenta. No entanto, tudo fazia crer que a exposição seria recebida sem polêmicas. Afinal, ainda em novembro do ano anterior, o amigo Mário de Andrade publicara um artigo sobre sua experiência francesa, contextualizando a produção de Anita no clima de “volta ao passado”, de refluxo pelo qual teria passado uma fração significativa da arte internacional, a partir da eclosão da I Grande Guerra.

Preocupado em explicar e, mais do que isso, naturalizar aquele refluxo notado na produção da amiga, o crítico inicia suas considerações afirmando que, cada período artístico era dividido em três etapas: Construtivismo (termo aqui entendido como sinônimo de “Primitivo”), Classicismo e, por fim, Romantismo. Na primeira fase, seria estabelecida uma série de leis relativas à forma e que, ao evoluir, acabaria levando a arte a atingir um patamar mais apurado, chegando, assim, ao Classicismo. Na medida em que essas leis do período “Primitivo” forjavam o período “clássico”, elas começavam a se misturar, buscando integrar a arte aos “dramas da vida social”, dando início, então, à última etapa do ciclo, o “Romantismo” que, por sua vez, em um futuro não distante, daria ensejo a um novo Construtivismo e assim por diante.[2]

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Estabelecidos esses pressupostos, Mário os aplicava à trajetória individual de qualquer artista, porém, invertendo aquela ordem inicial. Se no plano mais amplo de uma determinada sociedade um novo ciclo sempre se iniciava com o Construtivismo – para elevar-se ao Classicismo para depois desaguar no Romantismo – a evolução de cada artista começava de maneira desestruturada e ambígua – “Romântica” – para, na sequência, tornar-se “Primitiva” e depois “Clássica”.

Mário usava a trajetória da amiga Anita para explicitar seu ponto de vista:

[…] Quem via as exposições que a artista fez por aqui antes da última viagem à Europa, se recorda por certo da “extravagância” dos quadros que ela então apresentava. De fato, as teorias dela então, imbuídas do Expressionismo deformador que ela seguira na Alemanha, a tinham levado para pesquisa duma exacerbação romântica formidável, em que poucos puderam perceber o enorme temperamento apaixonado, dramático, impregnado de misticismo da artista. O que viam era que Anita Malfatti não pusera os olhos numa figura e pusera cabelos verdes noutra. O que viam eram os processos técnicos da artista e não a personalidade dela, a sua força expressiva, o seu fenômeno doloroso de “filha do século”.

É que Anita Malfatti estava então no período “Primitivismo” da arte dela. E a preocupavam essencialmente as doutrinas da pintura, as manifestações genéricas e particulares da Técnica. Estava adquirindo as forças técnicas que lhe faltavam para que, combinadas com a forças expressivas que já possuía, ela atingisse o Classicismo, quero dizer, o equilíbrio perfeito da sua personalidade.[3]

Assim o crítico associava a produção de Anita ao retorno à ordem[4], enaltecendo a controversa pintura Ressurreição de Lázaro[5]. Apesar da densidade do artigo, estranha-se o elogio de Mário àquela produção, uma pintura que nada acrescenta ao prestígio de Anita, pelo contrário[6].

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Em uma postura aparentemente diversa daquela externada por Mário de Andrade, o crítico Raul Polillo[7] (de quem Anita não era amiga) sintetizou como entendeu a exposição da pintora: “Do modernismo, aí, não há coisa alguma. Como passadismo, é ingênuo e falho em habilidade e até de significação espiritual […][8]“. Importante considerar que as palavras de Polillo, situando a produção de Anita em uma espécie de limbo entre modernidade e tradição, salientavam, também, tanto a falta de qualidade técnica das obras apresentadas (“é ingênuo e falho em habilidade”), quanto sua irrelevância do ponto de vista estético e/ou filosófico (falta de “significação espiritual”.

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Em 1917, no artigo que Monteiro Lobato publicou sobre a exposição de Anita, o crítico afirmou que, por respeito ao talento da pintora, não faria como outros que, ao se referirem às produções de “moças que pintam”, concediam a elas meia dúzia de adjetivos bombons[9]. Pois foram adjetivos bombons o que concederam os amigos de Anita, Oswald de Andrade, Guilherme de Almeida e Yan de Almeida Prado quando se pronunciaram sobre sua exposição de 1929. Para Oswald, a pintora se transformara na “nossa” Marie Laurencin; Almeida, por sua vez, atentava para a “feminilidade” de sua produção e Almeida Prado louvava sua “sinceridade”[10].

Como bem salientou Marta R. Batista, somente Menotti Del Picchia – outro amigo da pintora – demonstraria perplexidade perante sua produção, em artigo publicado em 20 de fevereiro de 1929. Ali, perguntava-se sobre o que teria ocorrido com a pintura recente de Anita e se elas poderiam ser caracterizadas, de fato, como uma evolução[11]. Nesse texto, Menotti, “perplexo”, externa sua opinião de forma discreta. Porém, naquela mesma edição do Correio Paulistano, o cronista, em outro artigo – agora assinando “Helios” –, joga a produção de Malfatti no meio de uma crise que começava a tomar conta do modernismo paulista, crise essa que o levaria para seu iminente e definitivo desmoronamento. Aqui se explicitava o redemoinho por onde a pintura “francesa” de Anita poderia ser tragada. Helios começa assim o artigo:

O modernismo estético de S. Paulo passa por gravíssima crise.

Não sei mesmo se escapará de tão sério achaque […] Talvez a “antropofagia” de Oswald d’Andrade despertou neles a gula de comerem-se uns aos outros… O certo [é] que se fez uma barafunda, onde ninguém mais se compreende.[12]

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Apesar de inúmeras outras crises anteriores[13], é conhecido o colapso sofrido pelo modernismo de São Paulo, entre 1928 e 1929, quando as várias correntes que se formaram em seu interior intensificam as disputas internas até tornarem os valores de 1922 algo do passado.

Para o que aqui nos interessa, o texto de Helios mostra que aquele colapso também atingiu em cheio o setor das artes visuais, afetando a recepção da obra de Anita.

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Se, no início do modernismo de São Paulo, alguns jovens intelectuais da cidade cerraram forças em torno das produções de Malfatti e Victor Brecheret – então entendidas como representantes inequívocos da arte moderna –, agora seriam justamente os dois artistas os primeiros que veriam suas obras questionadas enquanto exemplos verdadeiramente originais de modernidade. Voltando ao texto de Helios:

O fato é que Brecheret – o formidável escultor de Eva, que com Anita Malfatti representou na arte plástica o grito de reação – começa a ser considerado passadista… Para mim, o criador ciclópico de tantas coisas admiráveis, apesar de se ter metido por um beco de arte perigoso, intelectualístico [sic] e amaneirado, continua a ser um dos maiores artistas nascidos no Brasil.

Anita vai pela mesma rampa, no conceito dos que precipitam a arte pela ladeira abismal de todos os “ismos” … Anita também, como Brecheret, precisa fazer uma marcha-a-ré e voltar àquelas expressões sadias e fortes da arte pessoal e admirável, que já soube documentar com belíssimas telas. Mas Anita é ainda, com Brecheret, santo do meu mais alto culto. Grande talento, grande sensibilidade, grande cultura[14].

Esse morde e assopra, tão típico das crônicas de Menotti, não escondeu que o dissenso tinha sido instalado na percepção que os modernistas tinham sobre as produções recentes dos pioneiros Brecheret e Malfatti[15]. Ou melhor, não escondia que, naquela circunstância de crise, era possível que um modernista de primeira hora, como Menotti, publicasse comentários pouco agradáveis à produção dos amigos Brecheret e Malfatti. Afinal, circunstanciais ou não, tais considerações demonstravam que os heróis pioneiros do modernismo de São Paulo não eram intocáveis.

A perplexidade e a decepção manifestadas por Del Picchia foram aprofundadas na Revista de Antropofagia, segunda dentição, no texto do intelectual Oswaldo Costa, jornalista próximo a Oswald de Andrade, identificado com o movimento antropofágico e sem nenhum vínculo com o modernismo de 1922[16]. Assinando “Tamandaré”[17], Costa escreve justamente para proclamar a falência do modernismo de 1922 e para destruir a “igrejinha” em que Mário de Andrade supostamente arvorava-se como sumo pontífice.

Não por acaso o título de seu longo artigo é Moquém, uma grelha produzida com gravetos pelos indígenas para assar alimentos. A metáfora é óbvia: no artigo, Costa assa os modernistas não ligados, ou críticos, ao movimento antropofágico, e os devora, sugando-os até os ossos. Mário de Andrade era o principal prato a ser devorado.

Apesar de sua fome generalizada por modernistas (entre eles Paulo Prado, por exemplo) é sobre Andrade que recai a fome do articulista, sempre focado no desejo não apenas de desautorizar o escritor, mas de humilhá-lo. Da lavra de Mário, Costa respeitava apenas Macunaíma. De resto, para ele, não sobrava nada para ampliar a reputação do intelectual: Mário estava ligado a camarilhas, praticava o compadrio, bajulava seus amigos e, tão péssimo quanto, ele falava bem de quem não merecia.

É com tal propósito que, após criticar o fato do autor de Macunaíma ter elogiado o pintor “passadista” Navarro da Costa[18], que “Tamandaré” volta-se para as produções de Brecheret e Malfatti. Pelos elogios suspeitos que ambos haviam recebido de Mário de Andrade, eles também deveriam ser, se não devorados, pelo menos mordidos. Afinal, era Mário “quem se baba diante dos pastiches cretinos de Brecheret – […]. Quem destaca na exposição de Anita, o que nela havia de ruim, o Lázaro[19].

Tamandaré estava interessado em lançar um novo ciclo para a literatura e para as artes em São Paulo. Para ele, o modernismo de 1922 não teria passado de uma “preparação” para o movimento antropofágico.

Assim pensando foi que, em artigo publicado por ocasião da primeira exposição de Tarsila do Amaral em São Paulo, ainda em 1929, que Costa – agora assinando Antônio Raposo – saúda Tarsila como a grande revelação da arte moderna: “pelo espírito de unidade que nela se observa, pelo extraordinário poder criador e pelo profundo sentimento das nossas coisas que revela a ilustre pintora, é, sem dúvida, a primeira grande e séria ofensiva do Modernismo brasileiro”.[20]

Se Tarsila era a “primeira grande e séria ofensiva do Modernismo brasileiro”, que lugar caberia a Anita Malfatti, a “sensitiva”?

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O que, na produção de Anita, teria levado três comentaristas tão distintos entre si, quanto Polillo, Del Picchia e Costa, a se posicionarem de maneira tão semelhante sobre ela? Afinal, o primeiro atentou, entre outros aspectos, para a “habilidade falha” da artista, demonstrada na exposição de 1929; o segundo propôs que ela voltasse para a pintura “sadia e forte” e para a arte “pessoal” e “sadia do início de carreira”[21],  e o terceiro decretava que Ressurreição de Lázaro – considerada a principal pintura de Anita por Mário de Andrade – era simplesmente “ruim”.

É em Ressureição de Lázaro que estão sintetizados os principais problemas da produção de Anita, visíveis não apenas nela, mas em toda sua produção dos anos 1920.

As obras parisienses de Anita, de modo geral, atestam quão distante estava a artista em relação ao seu aparente interesse inicial pelas linguagens de vanguarda do início do século XX. É certo, no entanto, que, na exposição protagonizada por ela em 1917, a pintora já dera sinais evidentes de certo distanciamento das vanguardas. Afinal, se parte da crítica e dos estudiosos consideraram, por exemplo, O homem amarelo e Mulher de cabelos verdes (ambos de 1915/16), como índices da aderência da artista às vanguardas, Tropical (1916c.) e Índia (1917) – também apresentadas naquela exposição – indicavam que, em Anita, havia também o interesse por uma produção menos comprometida com os pressupostos das vanguardas do início do século.

Assim, uma análise menos apaixonada da produção da pintora do início de carreira mostrará que, se ela experimentou os estilemas de diversas correntes da vanguarda do início do século XX, ela também foi sensível aos primeiros indícios do início do retorno à ordem na arte que se processava na Europa e nas Américas[22].

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Esse interesse de Anita pelo retorno à ordem, no âmbito do modernismo de São Paulo, não era em si mesmo um problema, pois tal volta ou fixação a um tipo de arte figurativa mais ou menos convencional (dependendo de cada caso), era lugar-comum na produção de vários outros artistas, inclusive aqueles ligados ao modernismo da cidade, como Tarsila, Di Cavalcanti e Lasar Segall, entre outros[23]. O problema é que, dentro das possibilidades de uma arte figurativa, mas não acadêmica e ligada a um modernismo “moderado” – como o retorno à ordem poderia ser interpretado –, Anita optara, como sugeriu Pollilo, por se estabelecer num limbo entre a modernidade e a tradição, com uma produção passível de severas restrições técnicas, também percebidas por Mário de Andrade (que, lembremos, não apreciara Ressurreição de Lázaro.

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Como comentado, Mário de Andrade, no artigo de 1928, atentou positivamente para a aderência de Anita ao retorno à ordem e, mesmo não apreciando Ressurreição de Lázaro, elogiou o trabalho. No entanto, mais de dez anos depois, em 1939, em carta enviada do Rio para a amiga, ele relembra que mentira publicamente a respeito da obra apenas para ajudá-la. Escreve também que a sua produção pictórica havia perdido a singularidade do início de carreira, pois Anita teria cedido às pressões do meio. Reivindicando seu direito de questioná-la, o crítico continua:

[…] Me desculpe, Anita dear, lhe dizer essas coisas […] Mas si você fizer a liquidação do seu passado, uma coisa lhe sobra sempre, este seu amigo […] Você foi a maior vítima do ambiente infecto em que vivemos. Todas as forças da cidade se viraram contra você […] Até sua família […]. E com isso você mudou de rumo, consentida. Mas me diga uma coisa: a mudança melhorou sua vida e sua arte? Me parece que não. E se você tivesse continuado a subir, a progredir naquele destino espontâneo que era o seu, porque lhe nascia da carne, você estaria rica? Por certo que não. Mas, através dos obstáculos, um consolo lhe ficava e quem sabe que grandezas artísticas? Você teria sido você. O que eu lhe digo é desagradável, eu sei. Mas se lembre […] E se lembre ainda daquele homem ao qual você mesmo veio dizer que sabia que ele mentira publicamente nos elogios que fizera ao seu Lázaro, na amiga intenção de conseguir alguma coisa, uma compra do Governo etc. pra você.[24]

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O que Mário escreveu acima assemelha-se ao que manifestou Del Picchia em 1929 sobre o “desvio” ocorrido na produção da pintora e ao que Polillo, no mesmo período, mencionara sobre a dimensão ingênua e falha de sua produção. Assim, tanto Mário quanto Menotti acreditavam que a amiga teria deixado sua veia espontânea, “pessoal e admirável”, nunca mais voltando a ser a pintora original do início de carreira, enquanto Polillo sublinhava a pouca sofisticação técnica das pinturas de 1929.

Essa não foi a primeira e nem a última vez que Mário explicitava que, para ele, após as pressões sofridas a partir de 1917, Anita nunca mais voltara à qualidade de seus trabalhos iniciais. Esse seu posicionamento, por sua vez, tem dado a entender – para a maioria dos estudiosos da questão –, que o crítico sentia falta da Anita “expressionista”.

Porém, apesar de um ou outro lamento do crítico pelo fato de a amiga ter perdido seu elã “expressionista”, sabe-se que Mário nunca foi um apoiador incondicional das experimentações das vanguardas, pelo contrário[25].

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Já no primeiro texto que Mario escreveu sobre o trabalho da amiga, em 1921 – a pretexto de uma individual da pintora em São Paulo –, fica claro o seu desconforto em relação aos últimos trabalhos de Anita. Tanto isso é verdadeiro que ele afirma não ter certeza se a artista, mesmo já sendo “uma realização”, iria adquirir – em seu trabalho futuro – “maior profundeza da alcançada em certos quadros já feitos”[26]. Sintomaticamente Mário se dedica a analisar mais a produção de Anita até 1917, do que aquela levada a efeito posteriormente. Interessante salientar o quanto o crítico, já impregnado por suas leituras sobre o retorno à ordem, consegue perceber que em determinadas obras produzidas por Anita até 1917, já havia uma “ciência construtiva”, reflexos da “serena arquitetura de Ingres ou dos artistas do Renascimento”:

E a ciência construtiva… Anita afasta-se totalmente do impressionismo. Representa com eficácia o retorno à construção equilibrada, que é um dos anseios da arte contemporânea. O equilíbrio dalgumas obras suas como Cabeça de negro, a Mulata vendedora de fruta, o Homem amarelo, o Retrato de Lalive denotam uma ciência abalizada e um conhecimento profundo da serena arquitetura dum Ingres ou dos artistas do Renascimento. O equilíbrio é justamente a sua maior qualidade, como a cor é a sua maior força expressiva[27]

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Em pelo menos duas cartas remanescentes da correspondência entre Sergio Milliet (então em Paris) e Mário de Andrade, esse último demonstra sua preocupação com Anita, em seu estágio parisiense. Na primeira, datada de agosto de 1924, ele parece comentar consternado algo que Milliet teria escrito sobre a amiga: “E Anita? O que todos vocês me dizem sobre ela me horroriza. Estará perdida mesmo? Ainda conservo uma esperança[28]. Em 10 de dezembro do mesmo ano, Mário desabafa, aparentemente se referindo ao próprio Sérgio e a Oswald: “O Oswald está em Paris. Já o viste? Acho que vocês são um pouco injustos com Anita. Ela me mandou um desenho excelente e os croquis de várias composições novas. Excelentemente bem construídos”[29]. Tentando convencer Milliet sobre as qualidades da produção da amiga, Mário, antes, parece pretender convencer a si mesmo sobre a pertinência dos caminhos que Anita então percorria.

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Após a exposição de 1917, o interesse de Anita pela tradição levou-a a estudar com o conservador Pedro Alexandrino. Sublinhando a continuidade de tal interesse, quando chega em Paris, em 1923, por algum tempo ela consegue ser orientada por Maurice Denis, artista que iniciou a carreira no final do século XIX no grupo dos nabis, e que, naquele início dos anos 1920, dedicava-se à pintura decorativa e religiosa.

Um dos pintores mais interessantes surgidos na França no final do século XIX, Denis – tendo como parâmetro inicial a obra do hoje pouco estudado pintor, também francês, Puvis de Chavannes –, desenvolveu uma produção que explorava com radicalismo a cor e a dimensão planar da pintura. Também naquele final de século, Denis já manifestava interesse em explorar a grande tradição da arte dos primitivos italianos.

Se no início Denis foi considerado um “radical”, a partir do início do século XX sua veia experimental exauriu-se, dando lugar a uma produção que, ao buscar revitalizar a temática religiosa, começa a produzir – na maioria das vezes – pastiches insignificantes da pintura do primeiro renascimento italiano. Ligado à pintura mural, como Chavannes, Denis decorou igrejas e capelas pela França com o intuito de revigorar a pintura religiosa, decadente em seu país, desde meados do século XIX.

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Mário de Andrade acreditava que o que poderia ter levado Anita a se aproximar de Denis seria o fato de que ela, além de mística – ou justamente por isso – sempre amara “a obra dos religiosos Primitivos Italianos”.[30] Ao optar pela condução de Denis, no entanto, a pintora deixou qualquer possibilidade de vir a ser orientada por algum artista em voga na época – Léger e Gleizes, entre outros –, orientação que a aproximasse do percurso de Tarsila, atenta ao caráter transformador das produções daqueles artistas.

Refletindo sobre sua fase parisiense, percebe-se que, mesmo quando deixou a orientação de Denis, Anita continuou interessada pela pintura religiosa, optando por um tema sacro – a ressurreição de Lázaro – para realizar a pintura que deveria coroar seu estágio de especialização em Paris. Não foi apenas a opção pelo tema religioso que aproxima Ressurreição de Lázaro da produção de Maurice Denis. Embora sem conseguir interpretar técnica e plasticamente a tradição dos primitivos italianos – a habilidade “falha”, notada por Pollilo –, Anita tentou levar para a tela a maneira como seu orientador resolvia a adequação das formas no espaço pictórico. Porém, o resultado não foi suficientemente bom, e aquilo que deveria ser a interpretação moderna, mas “moderada” do universo visual do primeiro renascimento, mostrou-se aquém de qualquer expectativa. Uma pintura “ruim”, como escrevera Oswaldo Costa.

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Eclética e, portanto, permeável às várias tendências que pululavam por Paris nos anos 1920, Anita também se aproximaria da produção de Matisse que, por sua vez, superara Denis na produção de uma pintura em que a cor e a forma se uniam para celebrar a pintura e a vida. Anita se aproxima de Matisse, mas parece não o alcançar. Mesmo em obras como La rentrée, 1925/1927 e Interior de Mônaco, 1925c.[31], Matisse está lá, mas a partir de uma visão pouco comprometida com a realidade pictórica – a ele tão cara. Uma aproximação “literária”, no caso da primeira, e intimidada, no caso da segunda.

A dispersão que caracteriza sua produção parisiense apenas encontrará um encaminhamento positivo na série de desenhos de nus que Anita ali produziu – ponto alto, não somente de suas obras daquele período, mas de toda a sua trajetória.

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Como visto, em 1921, ao se referir à produção inicial de Anita, Mário escrevera sobre a “arquitetura de Ingres”. No ano seguinte, ele volta a se referir a Ingres em seu Prefácio interessantíssimo, ao afirmar que os pintores modernos desdenhavam tanto Delacroix quanto Whistler, “para se apoiarem na calma construtiva de Rafael, de Ingres, do Greco”[32]. Esses textos confirmam que, longe de qualquer vanguardismo, desde o início Mário pensava a pintura dentro dos padrões do retorno à ordem. De fato, artistas tão tradicionais quanto El Greco, Rafael e Ingres passavam a servir como parâmetros para os “primitivos” do século XX, como Picasso, Matisse – e por que não? – Anita Malfatti. Afinal, como apontado, o melhor da produção da artista encontra-se na série de desenhos que produziu em Paris, desenhos em que os postulados sobre arte de Jean Auguste Dominique Ingres ficam evidentes como um de seus principais norteadores.

Ingres assim doutrinava seus estudantes:

O desenho é a probidade da arte.

[…] É preciso desenhar sempre, desenhar com os olhos quando não se pode usar o lápis […]

Ao estudar a natureza, só tenham olhos a princípio para o conjunto. Interroguem-no, e somente a ele. Os pormenores são de pouca importância e devem ser submetidos à razão. As formas amplas, isso sim! A forma é o fundamento e a condição de tudo; até a fumaça deve ser expressa pelo traço.

[…] Tenham inteira nos olhos e na mente a figura que querem representar; a execução deve ser apenas a realização dessa imagem já possuída, preconcebida.[33]

Somente a última recomendação parece ter sido obedecida apenas parcialmente pois, apesar de todo o rigor gráfico visível em seus desenhos, é perceptível, igualmente, como Anita, em muitos daqueles desenhos, deixa fluir a linha, permitindo que ela, sozinha, encontre seu desfecho.[34] No mais, aqueles desenhos se configuram como a própria explicitação gráfica, daquilo que Mário havia escrito em 1922: a “calma construtiva” que deveria imperar na arte moderna, fazendo ressoar uma nova era para a arte no Brasil, uma arte “Primitiva”, estruturante e estruturadora.

***

Anita e Mário possuíam as mesmas concepções sobre o que deveria imperar na arte e, sobretudo, na pintura moderna: a “calma construtiva”, a “arquitetura de Ingres” ou – como escrevera o crítico a Tarsila quando ela também estava em Paris: “Creio que não cairás no cubismo. Aproveita deste apenas os ensinamentos, Equilíbrio, Construção, Sobriedade. Cuidado com o abstrato, a pintura tem campo próprio […]”[35].

Anita também não “caiu no cubismo”. Pelo contrário, desenvolveu sua produção pictórica respondendo às demandas que então operavam na cena parisiense, embora somente demonstrasse uma forte qualidade em seus desenhos já mencionados que, donos de uma autoconsciência impressionante, raramente serviram de base para suas pinturas[36].

No entanto, além dessa habilidade pouco requintada que caracterizou sua produção pictórica e que, como visto, foi comentada por praticamente todos aqueles que escreveram sobre sua produção, a pintura de Anita deixou de cumprir outro compromisso assumido pelos demais modernistas: em sua fase parisiense ela desprezou o “assunto” Brasil, não misturando ao seu modernismo “moderado” e à dimensão “primitiva” de seu imaginário, os temas locais, como queria Mário e como realizaram Tarsila, Di e Segall.

Afinal, Mário entendia que a arte moderna deveria abarcar a tradição, a ênfase à maestria do métier e, por último, que reabilitasse e valorizasse os assuntos nacionais. Essas prerrogativas iam ao encontro do que pensava o crítico sobre como deveria ser a arte moderna no Brasil: atenta à estética moderna europeia, porém com adoção apenas de suas versões mais moderadas; atenta à necessidade de adotar uma configuração moderna, porém não a ponto de “cair no cubismo” ou tornar-se não-figurativa. Esses, de fato, eram os limites da liberdade estética do movimento que Mário capitaneava. Era impossível produzir uma arte não figurativa ou mesmo ligada a alguma outra corrente radical da arte moderna sob o risco de ver o “assunto” brasileiro impossibilitado de impregnar a produção dos artistas.

Anita, por sua vez, produzia uma pintura moderadamente moderna, porém claudicante na questão da realização técnica e alheia ao assunto brasileiro. Em suas pinturas ela não conseguiu criar o que concebeu Tarsila em sua fase pau-brasil, por exemplo, um primitivismo preocupado com elementos figurativos “puros” de “uma sensibilidade intimista”, formulados numa ambiência brasileira, para Mário, inegável[37]. E não tivera, como Di Cavalcanti, uma visão apenas predatória das vanguardas históricas, preocupando-se em retirar delas o que poderia caracterizar uma moderada visualidade moderna impregnando assuntos “tipicamente” brasileiros[38].

Anita, como entendeu Raul Polillo, permaneceu naquele limbo entre a tradição e a modernidade, com problemas sérios de realização em suas pinturas. De volta a São Paulo e após a exposição de 1929, sua trajetória – praticamente estagnada durante os anos 1920[39] –, caiu em profundo declínio.

A partir daí – como Marta Rossetti Batista [40] magistralmente descreveu e analisou –, Anita foi aos poucos se aproximando da pintura naif, ou seja, da maneira de pintar daqueles que não tiveram formação no campo da arte erudita.[41].

***

Cadáver insepulto do modernismo de São Paulo[42], em 1955 ela escreve uma carta póstuma para Mário, falecido dez anos antes. A certa altura Anita declara:

[…] Tenho medo de ter desapontado a você. Quando se espera tanto de um amigo, este fica assustado, pois sabe que por nós mesmos nada podemos fazer e ficamos querendo, querendo ser grandes artistas e tristes de ficarmos aquém da expectativa.

Procurei todas as técnicas e voltei à simplicidade, diretamente; não sou mais moderna nem antiga, mas escrevo e pinto o que me encanta […][43]

***

É de se notar o quanto, nesta carta, Malfatti parece conformada com o fato de sua produção não ter assumido o sentido que seu amigo queria a ela conferir. Anita parece consciente de ter escapado da narrativa triunfal que Mário e os outros escreveram sobre a arte em São Paulo durante a primeira metade do século XX. A artista acabara por retirar a si mesma do papel de heroína, de pioneira do modernismo, para transformar-se em “mártir” – alguém que caiu logo na primeira batalha, incapaz de prosseguir na guerra. É patético como a artista reconhece que teria falhado frente às expectativas que Mário e os outros colocavam em seu devir. Pior: ela dá sinais de concordar com esse veredito, como se ele não fosse fruto de uma narrativa arbitrária e triunfalista que o modernismo de São Paulo queria escrever sobre si.

[1] – Aqui faço referência à Mostra de Arte Moderna Anita Malfatti, protagonizada pela artista e realizada em São Paulo, entre 12 de dezembro de 1917 a 10 de janeiro de 1918, tradicionalmente entendida como o início do modernismo de São Paulo. Além dos trabalhos da artista também foram exibidas algumas obras de suas colegas e do secretário da Art Students League, onde Anita estudou em seu estágio novaiorquino. Sobre o assunto ler, entre outros: BATISTA, Marta Rossetti. Anita Malfatti no tempo e no espaço. Biografia e estudo da obra. São Paulo: Editora 34/Edusp, 2006; CHIARELLI, Tadeu. Um jeca nos vernissages. Monteiro Lobato e o desejo de uma arte nacional no Brasil. São Paulo: Edusp, 1995.

[2] – Em outros textos publicados naquela mesma década, Mario afirmou que a arte mais interessante de então encontrava-se no período Construtivo – ou Primitivo –, quando os artistas mais inquietos começavam a buscar os elementos estruturais, “eternos”, da arte que haviam sido suprimidos durante o período Romântico anterior – leia-se as vanguardas históricas do início do século 20. Como exemplo, é possível lembrar que, em algumas ocasiões, o crítico se referiu à produção de Lasar Segall como “primitiva”: “E por isso o comparam com Giotto, com Signorelli e os quatrocentistas italianos”. Voltarei a este assunto. Mário de Andrade, “Lasar Segall I”. Diário de São Paulo, 23/12/1927; Apud  CHIARELLI, Tadeu. Um modernismo que veio depois. São Paulo: Alameda, 2012 p. 101.

[3] – Mário de Andrade. “Anita Malfatti”, Diário Nacional. Apud CHIARELLI, Tadeu. Pintura não é só beleza. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2000, p. 58.

[4] – Fenômeno ocorrido na arte europeia entre as duas guerras mundiais, esse refluxo – também conhecido como “retorno à ordem” (ou “chamado a ordem”), tomou conta da produção artística de vários centros europeus e americanos (não apenas dos Estados Unidos, mas também entre países como México, Argentina e outros). Sobre o retorno à ordem no Brasil, consultar, entre outros, CHIARELLI, Tadeu. Pintura não é só beleza. Florianópolis, op. cit. e BATISTA, Marta Rossetti. Os artistas brasileiros na Escola de Paris. Anos 1920. São Paulo Editora 34, 2012, entre outros.

[5] – Na mostra de 1929 a artista destacava três obras: Ressurreição de Lázaro (1928/29) pertencente ao acervo do Museu de Arte Sacra de São Paulo; Puritas (1927c.) e Mulher do Pará c. – pertencentes a acervos particulares.

[6] – Segundo carta posterior de Mário de Andrade para Anita (que voltará a ser mencionada), ele teria emitido elogios falsos sobre a pintura, visando influenciar o Governo na compra de Ressureição de Lázaro. Na carta, Mário afirma que a própria pintora teria lembrado que, pela amizade entre ambos, ele mentira publicamente sobre a obra, fornecendo-lhe qualidades que ela não possuía. Ler: ANDRADE, Mário. Mário de Andrade. Cartas a Anita Malfatti. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989.

[7] – Raul Polillo, intelectual não conectado com os modernistas, sempre teve uma visão crítica sobre os protagonistas daquele movimento. Visão essa que não o impediu de valorizar a potência da escultura de Victor Brecheret.

[8] – Raul Polillo, “O futurismo que se esqueceu de evoluir”. Diário de São Paulo, São Paulo, 7 de fevereiro de 1929 (Apud: BATISTA, Marta Rossetti. Anita Malfatti no tempo e no espaço. Biografia e estudo da obra. São Paulo: Editora 34/Edusp, 2006, p. 365, Nota 10.)

[9] – Monteiro Lobato. “A propósito da Exposição Malfatti”. O Estado de São Paulo. Edição noturna; São Paulo20 de dezembro de 1917

[10] – BATISTA, Marta Rossetti. Op. cit. p. 366.

[11] – Idem. No texto, a autora faz referência ao artigo de Menotti Del Picchia “Anita Malfatti”. Correio Paulistano. São Paulo, 20 de fevereiro de 1929

[12] – Helios (Menotti Del Picchia). “Crise no modernismo”. Correio Paulistano. São Paulo. 20 de março de 1929.

[13] – Já em 1923 é possível perceber as primeiras crises no movimento modernista de São Paulo. A relação entre Anita e Tarsila, por exemplo, ficou comprometida já em 1923, reforçando o distanciamento entre ambas, não somente no campo das relações interpessoais, mas também do ponto de vista de escolhas estéticas. Houve também rompimentos entre Menotti e Mário de Andrade, desentendimentos entre Oswald e Di Cavalcanti por causa de Tarsila (mencionados em ANDRADE, Mário. Cartas a Anita Malfatti. Op. cit. p. 126.). 1928 começa intensificando os desentendimentos entre Oswald e Menotti, Mário e Oswald, dentre tantos outros, o que enfraqueceria os liames que ligavam todos os protagonistas paulistas da Semana de Arte Moderna de 1922.  Sobre esse assunto consultar, entre outros: Gênese de Andrade. “Amizade em Mosaico: a correspondência de Oswald a Mário de Andrade”. Teresa revista de literatura brasileira [8/9]. São Paulo. P. 61-188, 2008; Tadeu Chiarelli. “Antropofagia versus modernismo”. São Paulo. Revista ARTE!Brasileiros. São Paulo, 15 de julho de 2022. https://artebrasileiros.com.br/opiniao/conversa-de-barr/oswaldo-costa/

[14] – Helios (Menotti Del Picchia). Op. cit.

[15] – De fato, a “reprimenda” passada por Menotti a Brecheret e Malfatti não significava que os dois artistas não fossem admirados pelo intelectual. Sobretudo em relação a Brecheret, a leitura de textos de Menotti publicados no Correio Paulistano e outros periódicos, desde todos os anos 1920 e na década seguinte, é inegável o apoio que o escritor continua concedendo ao artista. Tal postura demonstra que aquela “reprimenda” foi circunstancial, provavelmente com o intuito de atingir Mário de Andrade, devido à influência que o crítico exercia sobre os dois artistas. Para tornar a situação ainda mais complexa, seria importante lembrar que, em 1930, Mário de Andrade também se posicionaria de maneira contrária aos encaminhamentos que Brecheret então vinha dando à sua escultura. Mario de Andrade. “Victor Brecheret”. Diário Nacional, S. Paulo, 20 jan. 1930. Apud,  CHIARELLI, Tadeu. Pintura não é só beleza. Op. cit. p. 61.

[16] – Oswaldo Costa aparece ao lado de Oswald de Andrade e Pagu, em foto tirada em torno de 1930. Consultar, CAMPOS, Augusto. Pagu. Vida-obra. São Paulo: Editora Brasiliense, 1982, Caderno de Fotos.

[17] – Uma das versões da palavra tupi, “Tamandaré”, afirma que ela significa “repovoador”. Segundo a lenda, um pajé soube por Tupã que ele inundaria a terra. Ele, então teria construído um barco salvando, assim, a ele e à sua família. Findo o dilúvio, ele repovoaria a terra. É interessante o uso desse pseudônimo por Oswaldo Costa. O intelectual aqui aparece como aquele que, depois da destruição (antropofágica) povoara de novo o mundo. https://lugaresdememoria.com.br/tamandare-a-terra-do-diluvio-nordestino/

[18] – Mário de Andrade. “Moderno-Antimoderno”. Terra roxa e outras terras. São Paulo n.3. 31 de fevereiro de 1926, p. 3. Sobre o interesse de Mário de Andrade por Navarro da Costa, consultar: Tadeu Chiarelli. “Não cairás no cubismo. Mário de Andrade e as artes visuais”. Revista Ciência e Cultura. https://revistacienciaecultura.org.br/?artigos=nao-cairas-no-cubismo-mario-de-andrade-e-as-artes-visuais

 [19]  – Tamandaré (Oswaldo Costa). “Moquem”. I, II, III, IV, V. Revista de Antropofagia. 2ª. Dentição. Diário de São Paulo. São Paulo 7 de abril de 1929; 14 de abril de 1929; 24 de abril de 1929; 1 de maio de 1929; 8 de maio de 1929.

[20] –  Anônimo (Antônio Raposo – Oswaldo Costa). “Exposição Tarsila do Amaral”, Correio Paulistano. São Paulo, 21 de setembro de 1929. Apud – AMARAL, Aracy. Tarsila. Sua obra e seu tempo. São Paulo: Perspectiva/Edusp, 1975 vol.1 p. 465.

[21] – Ou seja, as obras que a artista havia produzido em seus estágio alemão e norte-americano.

[22] – Na sequência veremos que Mário de Andrade também foi sensível a essa característica da produção inicial da amiga.

[23] – Em textos anteriores tive a oportunidade de demonstrar que, na São Paulo modernista, as artes visuais estavam mais ligadas ao retorno à ordem do que propriamente às vanguardas. Sobre o assunto, consultar CHIARELLI, Tadeu. Pintura não é só beleza, op. cit. e CHIARELLI, Tadeu. Um modernismo que veio depois. São Paulo: Alameda, 2012.

[24] – ANDRADE, Mário. Cartas a Anita Malfatti. op. cit. p.146.

[25] – Inclusive, como tive a oportunidade de afirmar em outro texto, para Mário de Andrade o termo “expressionismo” era o nome geral dado a todos os “ismos” e não estava morrendo (como queria Wilhelm Worringer, mas “evoluindo” para o “realismo”: “Da mesma forma é fácil ver no realismo a que atingiram Picasso (em certas obras), Kirling (sic), Dix, Grozs, Severini e tantos outros, apenas uma desintelectualização do expressionismo, que vai conduzindo a deformação artística para uma sensorialidade mais legitimamente plástica”  Mário de Andrade, “Questões de arte”. Diário Nacional. 30.9.1927. Apud CHIARELLI, Tadeu. Pintura não é só beleza. Op. Cit. p. 53.

[26] – Mário de Andrade. “Anita Malfatti”. Jornal de Debates. São Paulo. 5 out. 1921. Apud BATISTA, Marta R. Anita Malfatti no tempo e no espaço. Op. cit. p.272.

[27] – Idem, p. 274. Segundo notas de Marta Rossetti Batista na mesma página, a obra Mulata vendedora de fruta refere-se à obra já citada aqui e hoje conhecida como Tropical (nota 42). No original, por algum erro de gráfica, “arquitetura dum Ingres” foi grafado “arquitetura dum Inglês” (nota 43).

[28] – Carta de Mário de Andrade para Sérgio Milliet, de 11 de agosto de 1924. IN DUARTE, Paulo. Mário de Andrade por ele mesmo. Edição comemorativa dos 40 anos de falecimento de Mario de Andrade. São Paulo, Editora Hucitec/Prefeitura do Município de São Paulo, Secretaria Municipal de Cultura, 1985. p.298.

[29] – Carta de Mário de Andrade a Sérgio Milliet, datada de 10 de dezembro de 1924. In DUARTE, Paulo. Op. cit. p. 299 e segs. Aracy Amaral informa que numa carta escrita de Paris, por Oswald a Mário de Andrade, no dia 18 de abril de 1923, em determinado momento o primeiro escreve: “Anita é uma passadista”. AMARAL, Aracy (org.). Correspondência Mário de Andrade & Tarsila do Amaral. São Paulo: Edusp/IEB USP, 2001, p. 65, nota 5.

[30] – Mário de Andrade. Diário Nacional.

[31] – A primeira obra pertence a uma coleção particular paulista; a segunda pertence ao acervo Museu de Arte de São Paulo (MASP) – Comodato: Coleção BM&F.

[32] – Mário de Andrade. “Prefácio Interessantíssimo”. Paulicéia desvairada, 1922. Apud CHIARELLI, Tadeu. Pintura não é só beleza. A crítica de arte de Mário de Andrade. Op. cit. p. 21.

[33] – Jean Auguste Dominique Ingres. Pensées. Seleção de H. Delabord, 1870 IN LICHTENSTEIN, Jacqueline (org.). A pintura. O desenho e a cor. São Paulo: Editora 34, vol. 9, 2006, p. 84.

[34] – Talvez uma herança de seu período “expressionista” vivenciado nos anos 1910? Talvez.

[35] – Carta de Mário de Andrade a Tarsila do Amaral, datada de 16 de junho de 1923. IN AMARAL, Aracy (org.). Correspondência Mario de Andrade & Tarsila do Amaral. Edusp/IEBUSP, 2001 p. 75.

[36] – Lembro aqui a pintura Nu reclinado, s.d. pertencente a uma coleção particular de São Paulo.

[37] – Chamo a atenção aqui para o texto que Mário publicou sobre a artista. Mário de Andrade. Texto para o catálogo da exposição da artista em S. Paulo, em 1929. Apud BATISTA, Marta Rossetti (e outras). Brasil primeiro tempo modernista p.124

[38] – Sobre o assunto, consultar: Mário de Andrade. “Di Cavalcanti”, Diário Nacional, S. Paulo, 8 de maio, 1932 Apud BATISTA, Marta Rossetti (e outras). Op. cit. p. 158.

[39] – Lembrar que Menotti Del Picchia duvidava se teria havido “evolução” no estágio parisiense da artista.

[40] – Refiro-me ao livro da pesquisadora: Anita Malfatti no tempo e no espaço. Op. cit.

[41] – Neste sentido Anita se aproxima bastante da trajetória de Fúlvio Pennacchi, também voltado, durante grande parte de sua vida, em pintar “como os puros”. Sobre o assunto ler: “Sobre a experiência brasileira de Fúlvio Pennacchi” in CHIARELLI, Tadeu. Um modernismo que veio depois. Op. cit. p.191.

[42] – “Cadáver insepulto” porque a trajetória profissional de Anita escancara as contradições do movimento modernista. Sobre a trajetória de Anita como “cadáver insepulto”, consultar: Domingos Tadeu Chiarelli. “Anita Malfatti no tempo e no espaço” (resenha). Revista do Instituto de Estudos Brasileiros da USP, v.1 p. 179, 1987.

[43] – Tadeu Chiarelli. “Anita Malfatti no tempo e no espaço” (resenha). Revista do Instituto de Estudos Brasileiros da USP, v.1 p. 179, 1987.

35ª Bienal de São Paulo: Ana Pi

Vista da instalação "ANTENA IA MBAMBE Mimenekenu Ê lá Tempo!", de Ana Pi e Taata Kwa Nkisi Mutá Imê. Crédito: Levi Fanan/Fundação Bienal de São Paulo
Vista da instalação "ANTENA IA MBAMBE Mimenekenu Ê lá Tempo!", de Ana Pi e Taata Kwa Nkisi Mutá Imê. Crédito: Levi Fanan/Fundação Bienal de São Paulo

Um diálogo em deslocamento e entre gerações”: assim Ana Pi define o trabalho que desenvolveu em parceria com Taata Kwa Nkisi Mutá Imê, sacerdote do candomblé de quem é filha há 18 anos, e que pode ser visto logo na entrada da Bienal. Trata-se de uma estrutura metálica composta por quatro antenas em movimento, com mais de sete metros de altura, que se conecta com uma série de referências de grande força simbólica como búzios, palhas da costa, sementes de baobá, monitores que exigem imagens e fotografias coletadas ao longo da pesquisa e a voz de Taata falando sobre os inquices, entidades soberanas no candomblé. Para desenvolver esse projeto, a dupla percorreu milhares de quilômetros, capturando vestígios e elementos poéticos em uma série de países e instituições (como o Instituto Fundamental da África Negra, em Dakar, o Museu do Quai Branly, ou Museu das Artes e Civilizações da África, Ásia, Oceania e Américas, em Paris, ou a Porta do Não Retorno, Em Uidá-Benim), agora amalgamados num conjunto bastante complexo de referências, como um comentário vivo acerca das encruzilhadas e potencialidades.

“Quando falamos de tempo, estamos disputando algo de futuro, de continuidade da vida e não somente da vida humana”, afirma ela, enfatizando a importância de valorizar novos caminhos. Ana Pi – que também colaborou, como coreógrafa, com o trabalho que Julien Creuzet expõe na mostra – celebra que a Bienal esteja confraternizando “com algumas ideias de mundo que não é essa hegemônica, que polui, que deixa gente passando fome”. Ela relembra que esta é a primeira edição do evento pós-pandemia. E acrescenta: “Não podemos esquecer que mais de 700 mil pessoas faleceram e ainda não foram rezadas. Nossas cosmovisões vêm para tratar disso”. ✱

 

 

35ª Bienal de São Paulo: Luana Vitra

"Pulmão da mina", instalação de Luana Vitra. Crédito: Levi Fanan/Fundação Bienal de São Paulo
"Pulmão da mina", instalação de Luana Vitra. Crédito: Levi Fanan/Fundação Bienal de São Paulo

O ferro é a espinha dorsal da pesquisa de Luana Vitra e imanta a instalação que ela criou especialmente para a 35ª Bienal de São Paulo. O elemento – acompanhado por outros metais como o cobre e a prata – se desdobra numa miríade de significados na obra da artista mineira, incorporando referências de caráter biográfico, poético, simbólico, histórico e até mesmo metafísico, ao corporificar a ideia de transmutação da matéria e do espaço, pela ação transformadora do ar e da ferrugem.

Luana cresceu na cidade mineira de Contagem, e a extração e processamento do minério marcam sua história. Seu bisavô, Domingos Zacarias, por exemplo, morreu de silicose, doença decorrente da inalação de resíduos ligados a seu trabalho nas minas. Para além dos nexos familiares diretos, dessa trama de histórias presentes nesses lugares onde sua família habita, ela relembra também importância central da cultura africana para o desenvolvimento da atividade mineradora no período colonial brasileiro. Afinal, veio da África a tecnologia necessária para extrair os metais.

Opressão e estratégias de defesa se coadunaram nesse processo, deixando pegadas fascinantes que agora Luana incorpora em seu trabalho. Uma das formas de proteção usadas por aqueles que eram obrigados a trabalhar nas minas era a de levar canários para dentro dos túneis subterrâneos para avaliar a qualidade do ar. Sensível aos gases tóxicos, o pássaro sinalizava antecipadamente que o ar estava irrespirável, salvando várias vidas. “Me interessa pensar como o ar foi um veículo de vida e liberdade”, afirma.

Na obra de Luana essa potência se encadeia num discurso pleno de referências simbólicas e signos concretos. Em uma grande área aberta de 100 metros no segundo andar do pavilhão, ela combina pequenas e sedutoras esculturas representando pássaros, uma série de flechas metálicas, em referência direta a Ogum (orixá associado, entre outras coisas, ao ferro e à tecnologia, protetor dos artesãos e dos ferreiros) a outros elementos como ervas, conchas e o azul anil – outra alusão à presença africana –, criando uma instalação potente, que aviva todo o espaço. A artista, que também atua no campo da dança e da performance, estabelece uma coreografia espacial e cria sintonia com o mote das “coreografias impossíveis” escolhido para esta Bienal. A montagem, processo fundamental para a artista, promove tensões, equilíbrios e repetições. “É aí que acontece o encantamento das coisas. É minha assinatura, quase como uma ladainha, um milagre”, diz.

Luana, que acaba de ganhar o Prêmio Pipa deste ano, diz-se muito feliz em participar dessa edição. Para ela, a mostra quebra uma lógica única, desvia de um curso, de uma trilha pronta e permite abrir “um caminho em uma floresta densa”, por trazer pela primeira vez curadores negros e ter 80% de pessoas não brancas entre os participantes.

35ª Bienal de São Paulo: Castiel Vitorino Brasileiro

A instalação "Montando a história da vida", de Castiel Vitorino Brasileiro, na 35ª Bienal de São Paulo. Foto: Patricia Rousseaux
A instalação "Montando a história da vida", de Castiel Vitorino Brasileiro, na 35ª Bienal de São Paulo. Foto: Patricia Rousseaux

A associação entre práticas diversas de arte e a acurada pesquisa sobre a violência colonial perpetrada contra a cultura material e espiritual de matriz africana são aspectos marcantes da produção de Castiel Vitorino Brasileiro, autora de uma das instalações mais potentes da atual edição da Bienal. Montando a história da vida é, segundo ela, sobre a metamorfose da alma, apesar de partir de um dado histórico: a perseguição das religiões afrobrasileiras no país. Como uma unidade em que se condensa índices do cotidiano, a instalação assume a forma de um pedaço de terra indevassável, no qual repousam elementos reconfortantes e altamente arquetípicos como uma casa sem telhado (que a artista chama de museu e que abriga suas pinturas), troncos de eucalipto, uma canoa usada, vinda de Pirapora (MG), que traz as marcas do tempo, uma promessa de roça, alguidares – recipiente associado a diferentes culturas e muito fortemente a entidades de umbanda.

Ela se diz interessada pelas transmutações da vida e da matéria, em suas várias dimensões e expressas em contradições como a do eucalipto, que gera ao mesmo tempo óleos essenciais de cura e explorações de grande impacto ambiental. “Busco um tempo espiralado, entre tempo e construção”, explica Castiel, que também é mestre em psicologia clínica e medicinas africanas e recusa rótulos e qualquer tentativa de generalização ou categorização como artista negra ou trans. “Não somos cotistas”, provoca.

Ao contrário de outros trabalhos seus, como Quarto de cura (instalação que a destacou como uma das jovens promessas da arte brasileira dos últimos anos), desta vez Castiel não permitiu a entrada dos visitantes na instalação, querendo gerar essa sensação de interdito, forçando as pessoas a bisbilhotarem, a exercitarem uma coreografia pessoal em torno do terreno. Ainda receosa com o ambiente violento no país, ela optou por não apresentar performances durante a Bienal.

Mais jovem artista da Bienal, Castiel também está presente nas mostras Dos Brasis, em cartaz no Sesc Belenzinho, e Ensaio para o Museu das Origens, uma ação conjunta entre o Instituto Tomie Ohtake e o Itaú Cultural, duas exposições que dialogam intensamente com a proposta da Bienal. A artista deve realizar uma performance ainda este ano na Serpentine, em Londres. Parte desses trabalhos integra um projeto de longa duração que ela vem desenvolvendo, intitulado Kalunga: a origem das espécies, em que se contrapõe ao falocentrismo, a figuras como Freud e Darwin, e trata poética e plasticamente de mar; deslocamento e dor; morte, vida e prazer.

 

35ª Bienal de São Paulo: A dança do possível

Seu Jovenil segurando o retrato do seu tio, Otávio Caetano, mestre da cupópia e festeiro da comunidade, sem data. Quilombo Cafundó, 35ª Bienal de São Paulo. Cortesia: CEDAE - Centro de Documentação Cultural Alexandre Eulálio, Universidade Estadual de Campinas
Seu Jovenil segurando o retrato do seu tio, Otávio Caetano, mestre da cupópia e festeiro da comunidade, sem data. Quilombo Cafundó, 35ª Bienal de São Paulo. Cortesia: CEDAE - Centro de Documentação Cultural Alexandre Eulálio, Universidade Estadual de Campinas

A maneira como percebemos a realidade da vida em sociedade é dialeticamente afetada pelas experiências que nela desenvolvemos, pela multiplicidade das relações construídas e das hierarquias produzidas e estabelecidas nos territórios regidos pelo capitalismo em sua versão periférica. Se existir um consenso qualquer a propósito dessa 35ª Bienal de São Paulo – Coreografias do impossível, ele, provavelmente, confirmará, ou não, a ascensão das sensibilidades contra-hegemônicas, que repelem e resistem a outras vocações disciplinadas pela heteronormatividade excludente e, por consequência, racista, xenófoba, frequentemente misógina e infalivelmente homo e transfóbica.

Esse léxico prospectado para a construção das narrativas constituídas a contrapelo do poder é, na sua forma afirmativa, historicamente novo, um conjunto de conceitos que participam da pretensão de ultrapassar crônicas até aqui consolidadas, permitindo assim a revisão paulatina de programas tidos como paradigmáticos.

Nas experiências nascidas do enfrentamento à necropolítica (definição de Achille Mbembe) não é insignificante que as periféricas instituições socioculturais do país se apresentem, em maior ou menor grau, e a partir de suas vocações e atributos constitucionais, como territórios eróticos e erotizantes, simbolica e sincreticamente. Exu deus afro-atlântico e Eros – personificação grega do desejo, que, como Exu, é mensageiro da fertilidade – unem-se na oposição a Tânatos, regente da morte e de suas pulsões.

Essa opção se explicita em organizações como os quilombos e aldeamentos, mas também nos museus de comunidades e favelas, que os há em várias formas e feitios como, por exemplo, a interessante Comunidade Cultural Quilombaque, criada em 2005 no bairro de Perus, na região Noroeste de São Paulo. Eles e seus congêneres, não apenas sobreviveram à necropolítica que pauta nosso cenário histórico, mas, além disso, lograram desenvolver léxicos, tecnologias, discursos e práticas de resistência e repelência à violência, simbólica e, às vezes, letal, a que estiveram e ainda estão expostos.

O título que nomeia a mostra bienal de São Paulo, Coreografias do impossível, sugere, claro, uma gama variada de interpretações, entre elas aquela que, presumivelmente, pondera sobre a irrupção de uma produção que, contrariando certa expectativa reacionária, não foi interrompida, apesar dos ingentes esforços que diuturnamente tem promovido contra ela.

Se instituições como a Bienal de São Paulo, e os grandes museus e as instituições análogas da cidade e do país, têm o condão de projetar o poder político, econômico e simbólico da classe, do gênero e da raça de quem, afinal, organiza e patrocina eventos dessa magnitude, isto não acontece à revelia e à margem da vontade de outros grupos, mas, pelo contrário, sinaliza para um processo de disputas que vai exigindo revisão de práticas (e de acervos) concomitante ao aprofundamento de teses que resultem em ações mais democráticas e, por isso, mais inclusivas. Não é, portanto, destituída de sentido a presença nos pavilhões dos movimentos sociais e seus análogos, como o Quilombo Cafundó, a Cozinha Ocupação 9 de Julho, MTST (movimento dos trabalhadores sem teto) que não se confundem, mas reiteram potências que outras estratégias no campo da arte já vinham evidenciando vide a Frente 3 de Fevereiro, aliás participante da Bienal.

REPARAÇÃO

Não se deve exagerar sobre o caráter supostamente liberal da instituição que franqueou ao público o acesso a obras de teor contestatório, pelo contrário, foi justamente a “pressão” organizada das parcelas oprimidas pelo epistemicídio e pelo horror econômico que vem exigindo a circulação e o acesso às representações artísticas e intelectuais presentes nesta Bienal. Aliás, a ascensão de negras, negros, originários e outros grupos marginalizados também é devedora das conquistas de políticas públicas que recentemente promoveram ações afirmativas e de reparação, notadamente visando criar acesso à educação superior.

No centro do pavilhão térreo que dá acesso à exposição, uma discreta estrutura branca e cruciforme sustenta, em cada uma das suas bases, uma televisão, em que são apresentados filmes documentários sobre a bailarina e coreógrafa afro-americana Katherine Dunham (1909-2006). Lendária, Dunham teve, e continua tendo, um papel relevante na sua área e mesmo fora dela, já que teve atuação destacada na luta por direitos civis em seu país. Dunham, através da sua atuação nos palcos, procurou erodir e contestar a dicotomia que opõe conhecimento assim chamado “erudito” àquele de extração “popular”. Sua dança atualiza a importância dessa linguagem pois trata-se da manifestação que participa religiosa e secularmente do centro de cosmogonias que foram duramente reprimidas, justamente por participarem de maneira constitutiva do universo simbólico e cotidiano dos colonizados e oprimidos, que através da dança preservaram (protegeram) seus corpos em sintonia com suas mentes.

E é emblemático que neste mesmo primeiro piso esteja presente o trabalho do também pioneiro artista e curador negro Emanoel Araújo (1944-2022). Falecido há exato um ano, ele também foi um dos artífices dos caminhos que nos trouxeram até aqui e a alguns dos resultados presentes nesta exposição.

Essas escolhas sugerem um projeto curatorial que recusa o epistemicídio a que são submetidas as populações a que, significativamente, muitos dos artistas presentes na mostra pertencem.

No museu criado por Araújo em 2004, o Afro Brasil, que recentemente incorporou ao seu nome o nome de seu criador, há marcada presença de obras realizadas com materiais também recorrentes nesta bienal, quais sejam, a terra, a argila, cerâmica e madeira, além de tecelagens de cunho artesanal. Materiais que, além de constituírem obras, dão origem a tecnologias como aquela empregada por Denilson Baniwa na roça de milho que cultiva num dos pavilhões da exposição.

Rommulo Vieira da Conceição, artista e professor baiano radicado em Porto Alegre, no sul do país, apresenta proposições instalativas que investigam arquiteturas a partir da reprodução colorida de alguns de seus elementos. Elas existem em contraste com o branco e as curvas modernas do prédio da Bienal. Conceição, afrodescendente, não replica na sua obra os protestos militantes. Embora existam elementos que sutilmente sugiram sua origem étnica, não é sobre esse tema que o artista se debruça. Essa, digamos, fronteira, que estabelece o campo da militância, da arte participativa e do suposto formalismo apolítico é cada vez mais obsoleta, pois não é exatamente de tensão que trata a obra, mas da realocação, de deslocamento de significados e de sentidos.

O trabalho da fotógrafa Rosa Gauditano, por exemplo e a propósito, amplia o debate em torno de uma história lésbica no país, mas para além disso revela a gravidade de uma obra até então pouco considerada. A história que ela apresenta a partir das suas fotos, apesar dos avanços observados em certos círculos, continua em geral na surdina. Aqui ela ganha amplitude, como se estabelecesse uma “zona temporária de liberdade”, que fora desse território é interditada pela agenda dos assim autodenominados conservadores.

A sedimentação de um vocabulário que traduza as inquietações dos divergentes permitirá que ele seja incorporado ao repertório das ideias e ações do cotidiano. Banalizado, esse mesmo glossário pode injustamente sugerir que já existe uma equitativa representação de classe, gênero e raça no ambiente da arte. Pode, pior ainda, sugerir o predomínio de um grupo, antes estigmatizado e relegado, sobre outro, que sempre foi incensado e super representado. Os quatro curadores dessa Bienal, Diane Lima, Grada Kilomba, Hélio Menezes e Manuel Borja-Villel, trazendo para o centro do pavilhão produções historicizadas, como a de Emanoel Araújo ou em processo de historicização, como a obra de Rosa Gaditano e Sidney Amaral (1973-2017), assumem o risco de sinalizar para a necessidade de, justamente, validar a permanência e a circulação das experiências e histórias de hoje a partir de outras que um dia também foram percebidas como divergentes.

Vitória histórica dos povos indígenas: STF derruba a insidiosa tese do Marco Temporal

Deputada federal Celia Xakriaba comemora a decisão com a anciã Isabela Xokleng. Foto: Scarlett Rocha
Deputada federal Celia Xakriaba comemora a decisão com a anciã Isabela Xokleng. Foto: Scarlett Rocha

O Supremo Tribunal Federal (STF), na tarde desta quinta-feira, 21, decidiu refutar, por maioria, a tese do Marco Temporal como critério para a demarcação de terras indígenas. Nove ministros – Edson Fachin (relator), Alexandre de Moraes, Cristiano Zanin, Gilmar Mendes, Luís Roberto Barroso, Dias Toffoli, Luiz Fux, Rosa Weber e Carmen Lúcia – entenderam que o direito à terra pelas comunidades indígenas independe do fato de estarem ocupando o local em 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição Federal. Dois ministros, Nunes Marques e André Mendonça, divergiram. O julgamento começou em agosto de 2021 e é um dos maiores da história do STF. Ele se estendeu por 11 sessões, as seis primeiras por videoconferência, e duas foram dedicadas exclusivamente a 38 manifestações das partes do processo, de terceiros interessados, do advogado-geral da União e do procurador-geral da República.

É uma vitória histórica para os povos indígenas brasileiros, que lutam há 30 anos para que o Estado brasileiro cumpra o compromisso firmado em 1988, quando da adoção da nova Constituição Federal: concluir a demarcação de terras em cinco anos. O resultado do julgamento do recurso servirá de parâmetro para a resolução de, pelo menos, 266 casos semelhantes que estão suspensos, segundo a assessoria de imprensa do STF.

A HIPÓTESE

O Marco Temporal que estava em julgamento no STF era uma tese jurídica perigosíssima, que ameaçava não apenas a integridade dos povos indígenas brasileiros, mas também o meio ambiente (entorno natural dos territórios indígenas, e por eles protegido), e mobilizou os povos indígenas do país todo. Muitos compareceram em peso a Brasília para acompanhar o julgamento do recurso. Vieram lideranças do Nordeste, do Sudeste, do Sul e do Norte do país. O chamado Marco Temporal foi o nome dado ao Recurso Extraordinário (RE) 1017365, no qual o plenário do STF discutiu a definição do estatuto jurídico-constitucional das relações de posse das áreas de tradicional ocupação indígena (e desde quando deveria prevalecer essa ocupação).

A hipótese do Marco Temporal, agora rechaçada pela maioria do STF, pregava que os povos indígenas teriam direito de ocupar atualmente apenas as terras que ocupavam ou já disputavam na data de promulgação da Constituição de 1988. Ela se contrapunha à teoria do indigenato, segundo a qual o direito dos povos indígenas sobre as terras é anterior à criação do Estado brasileiro, cabendo a este apenas demarcar e declarar os limites territoriais. Os deputados ligados ao agronegócio agora falam em “insegurança jurídica” com a decisão e prometem estendê-la no Congresso.

POSSE TRADICIONAL

Os ministros que confirmaram a teoria do indigenato concordam com o direito dos povos originários. O relator do caso, Edson Fachin, lembrou em seu voto que a legislação brasileira sobre a tutela da posse indígena estabeleceu, desde 1934, uma sequência da proteção nas Cartas Constitucionais. Segundo Fachin, os direitos territoriais indígenas, previstos no artigo 231 da Constituição, visam à garantia da manutenção de suas condições de existência e vida digna, o que os torna direitos fundamentais. Segundo o mesmo dispositivo da Constituição, a posse tradicional indígena é distinta da posse civil e abrange, além das terras habitadas por eles em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. “No caso das terras indígenas, a função econômica da terra se liga, visceralmente, à conservação das condições de sobrevivência e do modo de vida indígena, mas não funciona como mercadoria para essas comunidades”, ressaltou.

Já os ministros Nunes Marques e André Mendonça, que votaram a favor do Marco Temporal, defendiam uma reconfiguração dos direitos indígenas no país. Para Nunes Marques, a posse tradicional não deve ser confundida com posse imemorial, sendo necessária a comprovação de que a área estava ocupada na data da promulgação da Constituição ou que teria sido objeto de esbulho, ou seja, que os indígenas tenham sido expulsos em decorrência de confliito pela posse.

O ministro Dias Toffoli considerou que a Constituição Federal de 1988, ao assegurar aos indígenas o direito às terras tradicionais, partiu da concepção dos próprios povos sobre seu território, para permitir que a ocupação se estabeleça conforme seus usos, seus costumes e suas tradições. Cristiano Zanin afirmou que a Constituição de 1988 é clara ao dispor que a garantia de permanência nas terras tradicionalmente ocupadas é indispensável para a concretização dos direitos fundamentais básicos desses povos. Alexandre de Moraes defendeu que, prevalecendo a hipótese do Marco Temporal, a demarcação de terras de uma comunidade retirada à força do local antes da promulgação da Constituição seria impossível. A ministra Rosa Weber explicou que os direitos desses povos sobre as terras por eles ocupadas são direitos fundamentais que não podem ser mitigados e acrescentou que a noção da posse tradicional não se esgota na posse atual ou na posse sica das terras.

O caso concreto que originou o julgamento surgiu em uma reintegração de posse requerida pelo Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (IMA), que pleiteava uma área localizada em parte da Reserva Biológica do Sassafrás (SC), declarada pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) como de tradicional ocupação indígena. No recurso, a Funai contestou decisão do Tribunal Regional da 4ª Região (TRF-4), para quem não foi demonstrado que as terras seriam tradicionalmente ocupadas pelos indígenas e confirmou a sentença em que fora determinada a reintegração de posse.

MinC apoia artistas e reforça que Lei Paulo Gustavo é para das assistência e não para complicar

Representantes de fóruns, sindicatos e coletivos de artistas, durante audiência pública na Assembleia Legislativa
Representantes de fóruns, sindicatos e coletivos de artistas, durante audiência pública na Assembleia Legislativa

Em uma audiência pública com dezenas de artistas, produtores e gestores de cultura na tarde de quarta-feira, 20, na Assembleia Legislativa, na capital paulista, ativistas do setor pediram a revogação imediata dos editais da Lei Paulo Gustavo (LPG) elaborados pela Secretaria de Cultura, Economia e Indústrias Criativas do Estado de São Paulo. Na manhã desta quinta-feira, 21, o próprio Ministério da Cultura, responsável pela execução da lei, soltou um comunicado advertindo para os desvios de finalidade de editais públicos.

A Lei Paulo Gustavo é uma lei federal de fomento à cultura que foi construída em 2021 e aprovada em 2022, com amplo apoio do Congresso Nacional e da comunidade artística nacional. A exemplo da Lei Aldir Blanc (LAB), de 2020, trata-se de uma legislação emergencial que dispõe sobre ações destinadas ao setor cultural (em decorrência dos efeitos econômicos e sociais da pandemia de Covid-19). Em todo o país, estão sendo injetados, até o final deste ano, R$ 3,8 bilhões na cultura por meio da LPG. Então, por que os artistas estão tão empenhados na suspensão de sua aplicação em São Paulo?

Segundo os diagnósticos apresentados por representantes dos setores artísticos e coletivos diversos aos deputados estaduais, os problemas decorrem do seguinte: os 24 editais publicados neste mês  de setembro pela Secretaria de Cultura do Estado deverão ser distribuídos para apenas 900 projetos culturais, conforme estimativa do governo estadual. Isso representa 677,7% menos do que a Lei Aldir Blanc (que destinou R$ 264 milhões para São Paulo em 2020) conseguiu beneficiar em 2020, quando atingiu cerca de 7 mil projetos e iniciativas.

Os estudos dos coletivos artísticos apontam para outras formas de exclusão contidas nos editais. Os editais paulistas da LPG em São Paulo privilegiam grandes produções e propõem a concentração desses recursos – enquanto a Lei Aldir Blanc tinha uma média de R$ 37 mil  por projeto (e o próprio PROAC 2023 do governo do Estado tem um valor médio em torno de R$ 100 mil), a LPG distribuirá uma média de recursos média superior a R$ 400 mil.

A análise também apontou que 21 dos 24 editais destinam-se a projetos de pessoas jurídicas, em detrimento das pessoas físicas (o que é um contrassenso, para uma lei emergencial, já que quem mais sofreu as consequências da pandemia foram as pessoas físicas). Os editais ainda exigem que essas pessoas jurídicas tenham ao menos cinco anos de funcionamento legal, o que, além de ser um número arbitrário, desconsidera as centenas de pessoas que durante os últimos anos saíram do trabalho informal para abrir suas empresas culturais e voltar à formalidade. Os ativistas veem aí um direcionamento flagrante.

DESVIO DE FINALIDADE

O conjunto de editais, segundo os relatórios entregues na Assembleia Legislativa, contribui para tornar a LPG (se for mantida essa publicação), injusta, restritiva, totalmente desalinhada com o que versa o texto da lei e ainda atendendo a desvio de finalidade, já que os editais de audiovisuais (a maior parte dos recursos) desconsideram desigualdades regionais e históricas, retirando a obrigação de que ao menos 50% dos inscritos sejam de fora da capital. Isso é contrário ao texto da lei, que pede desconcentração territorial.

O impasse em São Paulo, a pouco mais de uma semana de se encerrarem as inscrições para pleitear os recursos da legislação, já preocupa o Ministério da Cultura. O comunicado desta quinta-feira, assinado pelo secretário executivo do ministério, Márcio Tavares, adverte para a necessidade de que sejam observadas algumas peculiaridades da Lei Paulo Gustavo. O Ministério da Cultura salienta que os editais da legislação não se enquadram nas regras da Lei de Licitações e Contratos Administrativos, pois não se trata de contratação de serviços e aquisições de bens. “Assim, os estados, Distrito Federal e municípios devem abster-se de utilizar esses dispositivos para a execução das seleções públicas de fomento cultural”, avisa o texto.

O comunicado lembra que os agentes culturais que porventura forem contemplados com recursos dos editais só deverão focar no cumprimento de suas propostas (a efetivação do projeto é o critério primordial da prestação de contas), e que a exigência de relatório de execução financeira será uma medida excepcional. O espírito da lei é o de socorrer uma área fragilizada e vulnerabilizada pela pandemia e seus efeitos e pela “blitz” de obscurantismo empreendida pelo antigo governo de Jair Bolsonaro contra o setor, notoriamente crítico e independente em relação aos desmandos de uma gestão autoritária e fundada em preconceitos de gênero, raça e origem social.

Preocupados com o esgotamento dos prazos, os artistas, ativistas e gestores decidiram, na audiência pública da Assembleia Legislativa, procurar a secretária de Cultura, Economia e Indústrias Criativas, Marilia Marton, e também o próprio governador do Estado, Tarcísio de Freitas, para suspender com urgência o processo em curso com os 24 editais publicados. O setor diz que o governo do Estado ignorou as deliberações anteriores à publicação dos editais que foram fruto de pactuação, debates e discussões durante meses em todas as regiões de São Paulo, e pedem que esses subsídios voltem a ser considerados numa possível republicação.

 

Traumas do regime escravocrata são abordados em cenário hollywoodiano

Arjan Martins, Sem título. Crédito: Cortesia do artista e A Gentil Carioca

Nos amplos salões em estilo rococó hollywoodiano, que parecem cenário de um musical de Fred Astaire e Ginger Rogers, 12 artistas negros e negras abordam o trauma da escravidão no período das navegações, na mostra Um oceano para lavar as mãos, com curadoria de Marcelo Campos e Filipe Graciano.

A exposição inaugura o Centro Cultural Sesc Quitandinha, em Petrópolis (RJ), com uma área expositiva de cerca de 3 mil metros quadrados, que funciona no andar térreo da edificação com o exterior em estilo normando-francês.

Construído em 1944 para ser o maior hotel casino da América do Sul, o Palácio Quitandinha durou pouco em sua principal função, já que o presidente Dutra, em 1946, proibiu os jogos no país, dificultando a vida do próprio hotel, que em 1962 fechou suas portas. Transformado em condomínio de luxo, as áreas sociais atualmente são administradas pelo Sesc.

Para a mostra, o maior espaço do Quitandinha, onde funcionava o salão de jogos do casino, é ocupado por uma imensa instalação com seis telas de Aline Motta, que, como é de seu costume, parte de memórias familiares para tratar de questões sobre identidade e a condição afro-atlântica.

A sala tem na área central uma abóboda de 18 metros acima do piso, feita para reverberar o som das fichas e do gelo nos copos da então elite carioca. Agora tornou-se um espaço de reflexão sobe questões sociais que muitos dos que lá pisaram devem ter tido responsabilidade direta sobre o racismo estrutural que segue no país. Ou mais precisamente, como aponta Campos, “o modo como os artistas negros lidam com o período das navegações”.

Ainda segundo o curador, a exposição também busca “repensar Petrópolis”, conhecida por ser a cidade imperial, já que durante o verão era lá que vivia D. Pedro 2º, tornando-se assim a capital do país. Ao mesmo tempo, a região abrigou vários quilombos, entre eles Tapera, no Vale das Videiras, comunidade quilombola reconhecida pela Fundação Palmares, em 2011. Ao menos outros três quilombos são conhecidos na área.

Por isso, não deixa se ser notável que a inauguração do centro cultural observe esses traumas da sociedade brasileira a partir da produção negra atual, e com dois curadores bastante engajados neste debate: Marcelo Campos é curador adjunto da mostra Dos Brasis, em cartaz no Sesc Belenzinho, além de curador chefe do Museu de Arte do Rio; enquanto Filipe Graciano é idealizador do Museu de Memória Negra, em Petrópolis, e coordenador de Promoção da Igualdade Racial do município.

A primeira sala da mostra, apesar do espaço não ser exatamente linear, é ocupado por Ayrson Heráclito com um de seus trabalhos mais icônicos, o díptico O sacudimento da Casa da Torre e O Sacudimento da Maison des Esclaves em Gorée (2015). Neles, ações performáticas de “sacudimento” exorcizam dois edifícios históricos, situados em margens oposta do Oceano Atlântico, de seu passado colonial e escravagista.  Participam ainda da mostra Arjan Martins, Azizi Cypriano, Cipriano,

Juliana dos Santos, Lidia Lisbôa, Moisés Patrício, Nádia Taquary, Rosana Paulino, Thiago Costa e Tiago Sant’ana.

Forrobodó, ou 20 anos de A Gentil Carioca

Abertura Forrobodó, A Gentil Carioca, Rio de Janeiro, 2023. Foto: Mariana Alves

Como poucas galerias de arte, A Gentil Carioca transforma suas aberturas especiais numa grande festa de rua. No último sábado, não foi diferente: a mostra Forrobodó lotou a vizinhança com performances, músicas e muita dança para comemorar os 20 anos do icônico espaço do Rio, movido por loucura e arte. Ocupando os casarões dos anos 1920, a Gentil mais uma vez faz história ao apresentar uma coletiva abrangente com obras de 60 artistas, sob a curadoria de Ulisses Carrillon. “A ideia foi também celebrar o potencial estético, erótico e político das ruas.” A galeria não se considera um espaço fechado, funciona de maneira expandida pelas redondezas e incorpora a população anônima que circula pelo centrão do Rio à procura de bugigangas baratas na zona do Saara, o maior centro de comércio de rua do Estado do Rio. A notável interação não é buscada por Márcio Botner, Laura Lima e Ernesto Neto, trio de artistas e proprietários. Ela acontece espontaneamente, e a diversidade de interesses pode se transformar em um carnaval potencializado pela miscigenação

A integração das poéticas e das situações geradas pela coletiva é uma espécie de liturgia como síntese das artes. Carrillon defende a exposição também como um “ato de experimentar outras intelectualidades, outros conhecimentos do corpo, na intenção de convocar uma dramaturgia dos objetos, dos mares aos mercados, do céu ao inferno.” Defendendo suas escolhas ele cita Adriana Varejão que refez o Brodway Boogie-Woogie, do Mondrian, especialmente para essa data, uma obra desenvolvida com formas geométricas básicas, como linhas retas, quadrados e retângulos, e cores primárias. Fora das salas da galeria, o artista carioca, Cabelo extrapolou suas performances endiabradas e, como sempre, magnetizou o público. Dentro do prédio, outros trabalhos funcionaram na quietude do ambiente como as peças de Maria Laet que joga com várias implicações do tempo, da ilusão, do fazer sossegado sempre pressa.

Há experiências que funcionam na percepção de novos espaços. Instalada em plena rua, a Bandeira, de Antonio Dias, virou um marco do evento. O pano, de um vermelho revolucionário, balançou livre no alto de um dos edifícios, flutuando sobre uma animada multidão. Histórias não faltam para esse conjunto de obras. A Gentil tinha pouquíssimo tempo de funcionamento quando Antonio Dias entra na galeria para ver o trabalho de um jovem paraibano, assim como ele. “Era o Fabiano Gonper cujos trabalhos encantaram Antonio, contamos um pouco sobre o projeto da galeria e foi para ele que vendi a primeira obra de arte da minha vida, tem uma foto dele nesse dia”, lembra Botner.

Outro destaque é o backlight de Carlos Vergara com imagens de grupos de negros divertindo-se pelas ruas fantasiados de caciques indígenas. Bela Geiger aparece com um trabalho novo, sob o título Incógnita, que ela apresentará no mês que vem na Espanha. O Disco Voador, de Laura Lima, foi também foi alterado, mas um conceito permanece vivo, o equilíbrio da escultura que se instaura na fantasia, no jogo da multiplicidade de suas vontades. Arjan Martins expande sua paixão pelo mar, não pelo Atlântico das rotas negreiras, mas um mar universal, de beleza e águas poderosas e coloridas, capazes de criar formas de espumas. Essa obra já está comprada por um colecionador estrangeiro e, encerrada a exposição, seguirá para Europa. Essa grande coletiva, tão importante quanto ruidosa, reúne várias gerações até chegar aos artistas que a Gentil representa e outros mais que os galeristas acreditam que ainda virão.

Marcio Botner

INÍCIO DESNORTEADO 

Marcio Botner nunca foi um garoto prodígio, mas o destino o empurrava naturalmente para a cultura. “Arte é uma coisa antiga na minha vida. Aos 13 anos, achava que ia ser ator. Fiz teatro, fui lá estudar Stanislavski até que estreei, na peça de Brecht O rei e o mendigo, encenada por apenas dois atores.” Botner era o mendigo que viraria rei, se não estragasse tudo logo que abriu a boca. “Na minha primeira fala me atrapalhei e disse a última frase da peça, quando me tornaria rei. Fiquei paralisado e não demos continuidade ao espetáculo, as pessoas ficaram perplexas, embora a maioria fosse colegas que estudavam também teatro além de parentes, alguns até xingaram. As cortinas foram fechadas e eu, atônito, desisti do meu sonho.”

Alguns anos depois Botner decidiu fazer cursos de artes visuais e se aprofundar. Um dia, entusiasmado, falou para si mesmo. “Isso é o que eu quero fazer na minha vida”. Animado foi estudar no Parque Lage, onde ficou muitos anos e encontrou vários artistas. “O Arjan estava lá, era mais velho do que eu e havia outros artistas bacanas, a Laura Lima é desse período, o Ernesto Neto não estava mais lá, era de uma geração posterior.” Durante sua permanência no Parque, Botner ia germinando a ideia de criar um espaço de arte. “O desejo foi materializado no encontro com Laura Lima e Ernesto Neto. “A Gentil surgiu onde era meu ateliê, em pleno centrão do Rio de Janeiro, perto do Saara, depois ocupamos o andar de baixo e ainda outros prédios. A Elsa se junta a nós, um tempo depois. Naquela época não tinha ideia do que era ser um galerista, nunca trabalhei numa galeria como assistente, nem em museus.” Então, muitos projetos nasceram do encontro dos três colegas, que apostavam em um desejo quase juvenil. Márcio não sabe precisar, mas imagina que cada um deles deve ter colocado algo por volta de R$ 500. “No início eu trabalhava sozinho, fazia de tudo e quando chegava o horário do almoço, simplesmente colocava uma plaquinha sobre a mesa: Fui almoçar, volto já. Começamos lidando com mil improvisos, sempre resolvidos entre nós três.” 

Muita gente não sabe que Botner é artista, e é justamente esse lado, segundo ele, que o ajuda a levar a galeria, a sua maneira de pensar, não só na arte como na vida como um todo. “Eu adoro ser galerista, ativista como você falou, que é mais do que simplesmente lançar o artista, na realidade é trabalhar para pensar o lado social, político e artístico de tantos projetos. Eu acho que esse lado de ser artista é o fundamental.” Botner fala de tantos gatilhos que eles têm que acionar manobrando arte. “Quando a gente estreou o Abre Alas, há 19 anos, pensamos que seria apenas um evento, eu nem pensava que haveria continuidade, acho que nem a Laura nem o Neto.” Quando a Gentil chegou ao terceiro ano, alguns artistas já iam avisando: “estou preparando trabalhos para o Abre Alas”. Foram os artistas que decidiram dar continuidade ao projeto, foi quase uma imposição, eles perceberam que as pessoas acreditavam que o projeto havia chegado para ficar, assim como a galeria. “Um dia Neto e eu fomos à abertura de uma mostra no Centro Hélio Oiticica, que fica próximo da Gentil, de repente um artista zangado chegou até a gente e reclamou que não foi convidado a expor na próxima exposição que iria ser aberta. “O clima ficou desagradável e o Neto, genial, teve uma saída, disse a ele que se quisesse expor havia uma parede externa da galeria, que chamamos de piscina. Vai lá, leva a obra e coloca você mesmo na parede e se mais alguém quiser participar, tudo bem.” Quando Botner foi ver tinha mais de 30 obras, de vários artistas. “É isso aí, temos que escutar o artista e usar isso da melhor maneira para que os conceitos ganhem mais força.” 

Entre os projetos que ele destaca está o Projeto Camisa Educação. Resumindo: cada artista que expõe na Gentil cria uma camisa com a palavra educação, para o dia da abertura e com isso já se formou uma grande coleção. Entre outros projetos, há o que se pode chamar de “núcleo duro” do conceito da galeria, o Alalaô, definido como a arte pública que enaltece as ruas, e que acontece na praia do Arpoador no Rio. 

Pergunto para onde desagua toda essa produção. Sem modéstia, Botner diz que desde o início da Gentil eles são convidados para as grandes feiras internacionais. “As feiras representam muita coisa para a Gentil, encontro com curadores, artistas, diretores de museus. Nesses 20 anos já houve momento de eu estar muito cansado.” Desses grandes eventos ele ainda cita a Bienal de São Paulo, que em sua opinião representa muito para todos os artistas que sempre aprendem alguma coisa e para os brasileiros também, por toda a história da instituição que é a segunda mais antiga do mundo (1951), perdendo apenas para Veneza (1895). 

“Não se pode esquecer que a Guernica de Picasso já foi exposta por aqui”, em sua segunda edição (1953/1954)”. A Gentil Carioca exerce um protagonismo empírico desde o dia em que Botner, Neto e Laura Lima, sentados num bar, comendo sardinha frita e tomando chope, decidiram inventar uma galeria diferente e chegaram a esse modelo que é a cara do Rio, “e do mundo”, arremata Botner.

A irreverência da Gentil não tem limites. Botner vai avisando que vai fazer um grande evento dentro do cemitério da Consolação, vizinho da A Gentil Carioca em São Paulo. “Vamos homenagear os modernistas que estão lá enterrados: Mário de Andrade, Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade, entre outros”. Quem viver verá!