Abertura Forrobodó, A Gentil Carioca, Rio de Janeiro, 2023. Foto: Mariana Alves

Como poucas galerias de arte, A Gentil Carioca transforma suas aberturas especiais numa grande festa de rua. No último sábado, não foi diferente: a mostra Forrobodó lotou a vizinhança com performances, músicas e muita dança para comemorar os 20 anos do icônico espaço do Rio, movido por loucura e arte. Ocupando os casarões dos anos 1920, a Gentil mais uma vez faz história ao apresentar uma coletiva abrangente com obras de 60 artistas, sob a curadoria de Ulisses Carrillon. “A ideia foi também celebrar o potencial estético, erótico e político das ruas.” A galeria não se considera um espaço fechado, funciona de maneira expandida pelas redondezas e incorpora a população anônima que circula pelo centrão do Rio à procura de bugigangas baratas na zona do Saara, o maior centro de comércio de rua do Estado do Rio. A notável interação não é buscada por Márcio Botner, Laura Lima e Ernesto Neto, trio de artistas e proprietários. Ela acontece espontaneamente, e a diversidade de interesses pode se transformar em um carnaval potencializado pela miscigenação

A integração das poéticas e das situações geradas pela coletiva é uma espécie de liturgia como síntese das artes. Carrillon defende a exposição também como um “ato de experimentar outras intelectualidades, outros conhecimentos do corpo, na intenção de convocar uma dramaturgia dos objetos, dos mares aos mercados, do céu ao inferno.” Defendendo suas escolhas ele cita Adriana Varejão que refez o Brodway Boogie-Woogie, do Mondrian, especialmente para essa data, uma obra desenvolvida com formas geométricas básicas, como linhas retas, quadrados e retângulos, e cores primárias. Fora das salas da galeria, o artista carioca, Cabelo extrapolou suas performances endiabradas e, como sempre, magnetizou o público. Dentro do prédio, outros trabalhos funcionaram na quietude do ambiente como as peças de Maria Laet que joga com várias implicações do tempo, da ilusão, do fazer sossegado sempre pressa.

Há experiências que funcionam na percepção de novos espaços. Instalada em plena rua, a Bandeira, de Antonio Dias, virou um marco do evento. O pano, de um vermelho revolucionário, balançou livre no alto de um dos edifícios, flutuando sobre uma animada multidão. Histórias não faltam para esse conjunto de obras. A Gentil tinha pouquíssimo tempo de funcionamento quando Antonio Dias entra na galeria para ver o trabalho de um jovem paraibano, assim como ele. “Era o Fabiano Gonper cujos trabalhos encantaram Antonio, contamos um pouco sobre o projeto da galeria e foi para ele que vendi a primeira obra de arte da minha vida, tem uma foto dele nesse dia”, lembra Botner.

Outro destaque é o backlight de Carlos Vergara com imagens de grupos de negros divertindo-se pelas ruas fantasiados de caciques indígenas. Bela Geiger aparece com um trabalho novo, sob o título Incógnita, que ela apresentará no mês que vem na Espanha. O Disco Voador, de Laura Lima, foi também foi alterado, mas um conceito permanece vivo, o equilíbrio da escultura que se instaura na fantasia, no jogo da multiplicidade de suas vontades. Arjan Martins expande sua paixão pelo mar, não pelo Atlântico das rotas negreiras, mas um mar universal, de beleza e águas poderosas e coloridas, capazes de criar formas de espumas. Essa obra já está comprada por um colecionador estrangeiro e, encerrada a exposição, seguirá para Europa. Essa grande coletiva, tão importante quanto ruidosa, reúne várias gerações até chegar aos artistas que a Gentil representa e outros mais que os galeristas acreditam que ainda virão.

Marcio Botner

INÍCIO DESNORTEADO 

Marcio Botner nunca foi um garoto prodígio, mas o destino o empurrava naturalmente para a cultura. “Arte é uma coisa antiga na minha vida. Aos 13 anos, achava que ia ser ator. Fiz teatro, fui lá estudar Stanislavski até que estreei, na peça de Brecht O rei e o mendigo, encenada por apenas dois atores.” Botner era o mendigo que viraria rei, se não estragasse tudo logo que abriu a boca. “Na minha primeira fala me atrapalhei e disse a última frase da peça, quando me tornaria rei. Fiquei paralisado e não demos continuidade ao espetáculo, as pessoas ficaram perplexas, embora a maioria fosse colegas que estudavam também teatro além de parentes, alguns até xingaram. As cortinas foram fechadas e eu, atônito, desisti do meu sonho.”

Alguns anos depois Botner decidiu fazer cursos de artes visuais e se aprofundar. Um dia, entusiasmado, falou para si mesmo. “Isso é o que eu quero fazer na minha vida”. Animado foi estudar no Parque Lage, onde ficou muitos anos e encontrou vários artistas. “O Arjan estava lá, era mais velho do que eu e havia outros artistas bacanas, a Laura Lima é desse período, o Ernesto Neto não estava mais lá, era de uma geração posterior.” Durante sua permanência no Parque, Botner ia germinando a ideia de criar um espaço de arte. “O desejo foi materializado no encontro com Laura Lima e Ernesto Neto. “A Gentil surgiu onde era meu ateliê, em pleno centrão do Rio de Janeiro, perto do Saara, depois ocupamos o andar de baixo e ainda outros prédios. A Elsa se junta a nós, um tempo depois. Naquela época não tinha ideia do que era ser um galerista, nunca trabalhei numa galeria como assistente, nem em museus.” Então, muitos projetos nasceram do encontro dos três colegas, que apostavam em um desejo quase juvenil. Márcio não sabe precisar, mas imagina que cada um deles deve ter colocado algo por volta de R$ 500. “No início eu trabalhava sozinho, fazia de tudo e quando chegava o horário do almoço, simplesmente colocava uma plaquinha sobre a mesa: Fui almoçar, volto já. Começamos lidando com mil improvisos, sempre resolvidos entre nós três.” 

Muita gente não sabe que Botner é artista, e é justamente esse lado, segundo ele, que o ajuda a levar a galeria, a sua maneira de pensar, não só na arte como na vida como um todo. “Eu adoro ser galerista, ativista como você falou, que é mais do que simplesmente lançar o artista, na realidade é trabalhar para pensar o lado social, político e artístico de tantos projetos. Eu acho que esse lado de ser artista é o fundamental.” Botner fala de tantos gatilhos que eles têm que acionar manobrando arte. “Quando a gente estreou o Abre Alas, há 19 anos, pensamos que seria apenas um evento, eu nem pensava que haveria continuidade, acho que nem a Laura nem o Neto.” Quando a Gentil chegou ao terceiro ano, alguns artistas já iam avisando: “estou preparando trabalhos para o Abre Alas”. Foram os artistas que decidiram dar continuidade ao projeto, foi quase uma imposição, eles perceberam que as pessoas acreditavam que o projeto havia chegado para ficar, assim como a galeria. “Um dia Neto e eu fomos à abertura de uma mostra no Centro Hélio Oiticica, que fica próximo da Gentil, de repente um artista zangado chegou até a gente e reclamou que não foi convidado a expor na próxima exposição que iria ser aberta. “O clima ficou desagradável e o Neto, genial, teve uma saída, disse a ele que se quisesse expor havia uma parede externa da galeria, que chamamos de piscina. Vai lá, leva a obra e coloca você mesmo na parede e se mais alguém quiser participar, tudo bem.” Quando Botner foi ver tinha mais de 30 obras, de vários artistas. “É isso aí, temos que escutar o artista e usar isso da melhor maneira para que os conceitos ganhem mais força.” 

Entre os projetos que ele destaca está o Projeto Camisa Educação. Resumindo: cada artista que expõe na Gentil cria uma camisa com a palavra educação, para o dia da abertura e com isso já se formou uma grande coleção. Entre outros projetos, há o que se pode chamar de “núcleo duro” do conceito da galeria, o Alalaô, definido como a arte pública que enaltece as ruas, e que acontece na praia do Arpoador no Rio. 

Pergunto para onde desagua toda essa produção. Sem modéstia, Botner diz que desde o início da Gentil eles são convidados para as grandes feiras internacionais. “As feiras representam muita coisa para a Gentil, encontro com curadores, artistas, diretores de museus. Nesses 20 anos já houve momento de eu estar muito cansado.” Desses grandes eventos ele ainda cita a Bienal de São Paulo, que em sua opinião representa muito para todos os artistas que sempre aprendem alguma coisa e para os brasileiros também, por toda a história da instituição que é a segunda mais antiga do mundo (1951), perdendo apenas para Veneza (1895). 

“Não se pode esquecer que a Guernica de Picasso já foi exposta por aqui”, em sua segunda edição (1953/1954)”. A Gentil Carioca exerce um protagonismo empírico desde o dia em que Botner, Neto e Laura Lima, sentados num bar, comendo sardinha frita e tomando chope, decidiram inventar uma galeria diferente e chegaram a esse modelo que é a cara do Rio, “e do mundo”, arremata Botner.

A irreverência da Gentil não tem limites. Botner vai avisando que vai fazer um grande evento dentro do cemitério da Consolação, vizinho da A Gentil Carioca em São Paulo. “Vamos homenagear os modernistas que estão lá enterrados: Mário de Andrade, Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade, entre outros”. Quem viver verá!

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