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Vitória histórica dos povos indígenas: STF derruba a insidiosa tese do Marco Temporal

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O Supremo Tribunal Federal (STF), na tarde desta quinta-feira, 21, decidiu refutar, por maioria, a tese do Marco Temporal como critério para a demarcação de terras indígenas. Nove ministros – Edson Fachin (relator), Alexandre de Moraes, Cristiano Zanin, Gilmar Mendes, Luís Roberto Barroso, Dias Toffoli, Luiz Fux, Rosa Weber e Carmen Lúcia – entenderam que o direito à terra pelas comunidades indígenas independe do fato de estarem ocupando o local em 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição Federal. Dois ministros, Nunes Marques e André Mendonça, divergiram. O julgamento começou em agosto de 2021 e é um dos maiores da história do STF. Ele se estendeu por 11 sessões, as seis primeiras por videoconferência, e duas foram dedicadas exclusivamente a 38 manifestações das partes do processo, de terceiros interessados, do advogado-geral da União e do procurador-geral da República.

É uma vitória histórica para os povos indígenas brasileiros, que lutam há 30 anos para que o Estado brasileiro cumpra o compromisso firmado em 1988, quando da adoção da nova Constituição Federal: concluir a demarcação de terras em cinco anos. O resultado do julgamento do recurso servirá de parâmetro para a resolução de, pelo menos, 266 casos semelhantes que estão suspensos, segundo a assessoria de imprensa do STF.

A HIPÓTESE

O Marco Temporal que estava em julgamento no STF era uma tese jurídica perigosíssima, que ameaçava não apenas a integridade dos povos indígenas brasileiros, mas também o meio ambiente (entorno natural dos territórios indígenas, e por eles protegido), e mobilizou os povos indígenas do país todo. Muitos compareceram em peso a Brasília para acompanhar o julgamento do recurso. Vieram lideranças do Nordeste, do Sudeste, do Sul e do Norte do país. O chamado Marco Temporal foi o nome dado ao Recurso Extraordinário (RE) 1017365, no qual o plenário do STF discutiu a definição do estatuto jurídico-constitucional das relações de posse das áreas de tradicional ocupação indígena (e desde quando deveria prevalecer essa ocupação).

A hipótese do Marco Temporal, agora rechaçada pela maioria do STF, pregava que os povos indígenas teriam direito de ocupar atualmente apenas as terras que ocupavam ou já disputavam na data de promulgação da Constituição de 1988. Ela se contrapunha à teoria do indigenato, segundo a qual o direito dos povos indígenas sobre as terras é anterior à criação do Estado brasileiro, cabendo a este apenas demarcar e declarar os limites territoriais. Os deputados ligados ao agronegócio agora falam em “insegurança jurídica” com a decisão e prometem estendê-la no Congresso.

POSSE TRADICIONAL

Os ministros que confirmaram a teoria do indigenato concordam com o direito dos povos originários. O relator do caso, Edson Fachin, lembrou em seu voto que a legislação brasileira sobre a tutela da posse indígena estabeleceu, desde 1934, uma sequência da proteção nas Cartas Constitucionais. Segundo Fachin, os direitos territoriais indígenas, previstos no artigo 231 da Constituição, visam à garantia da manutenção de suas condições de existência e vida digna, o que os torna direitos fundamentais. Segundo o mesmo dispositivo da Constituição, a posse tradicional indígena é distinta da posse civil e abrange, além das terras habitadas por eles em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. “No caso das terras indígenas, a função econômica da terra se liga, visceralmente, à conservação das condições de sobrevivência e do modo de vida indígena, mas não funciona como mercadoria para essas comunidades”, ressaltou.

Já os ministros Nunes Marques e André Mendonça, que votaram a favor do Marco Temporal, defendiam uma reconfiguração dos direitos indígenas no país. Para Nunes Marques, a posse tradicional não deve ser confundida com posse imemorial, sendo necessária a comprovação de que a área estava ocupada na data da promulgação da Constituição ou que teria sido objeto de esbulho, ou seja, que os indígenas tenham sido expulsos em decorrência de confliito pela posse.

O ministro Dias Toffoli considerou que a Constituição Federal de 1988, ao assegurar aos indígenas o direito às terras tradicionais, partiu da concepção dos próprios povos sobre seu território, para permitir que a ocupação se estabeleça conforme seus usos, seus costumes e suas tradições. Cristiano Zanin afirmou que a Constituição de 1988 é clara ao dispor que a garantia de permanência nas terras tradicionalmente ocupadas é indispensável para a concretização dos direitos fundamentais básicos desses povos. Alexandre de Moraes defendeu que, prevalecendo a hipótese do Marco Temporal, a demarcação de terras de uma comunidade retirada à força do local antes da promulgação da Constituição seria impossível. A ministra Rosa Weber explicou que os direitos desses povos sobre as terras por eles ocupadas são direitos fundamentais que não podem ser mitigados e acrescentou que a noção da posse tradicional não se esgota na posse atual ou na posse sica das terras.

O caso concreto que originou o julgamento surgiu em uma reintegração de posse requerida pelo Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (IMA), que pleiteava uma área localizada em parte da Reserva Biológica do Sassafrás (SC), declarada pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) como de tradicional ocupação indígena. No recurso, a Funai contestou decisão do Tribunal Regional da 4ª Região (TRF-4), para quem não foi demonstrado que as terras seriam tradicionalmente ocupadas pelos indígenas e confirmou a sentença em que fora determinada a reintegração de posse.

MinC apoia artistas e reforça que Lei Paulo Gustavo é para das assistência e não para complicar

Em uma audiência pública com dezenas de artistas, produtores e gestores de cultura na tarde de quarta-feira, 20, na Assembleia Legislativa, na capital paulista, ativistas do setor pediram a revogação imediata dos editais da Lei Paulo Gustavo (LPG) elaborados pela Secretaria de Cultura, Economia e Indústrias Criativas do Estado de São Paulo. Na manhã desta quinta-feira, 21, o próprio Ministério da Cultura, responsável pela execução da lei, soltou um comunicado advertindo para os desvios de finalidade de editais públicos.

A Lei Paulo Gustavo é uma lei federal de fomento à cultura que foi construída em 2021 e aprovada em 2022, com amplo apoio do Congresso Nacional e da comunidade artística nacional. A exemplo da Lei Aldir Blanc (LAB), de 2020, trata-se de uma legislação emergencial que dispõe sobre ações destinadas ao setor cultural (em decorrência dos efeitos econômicos e sociais da pandemia de Covid-19). Em todo o país, estão sendo injetados, até o final deste ano, R$ 3,8 bilhões na cultura por meio da LPG. Então, por que os artistas estão tão empenhados na suspensão de sua aplicação em São Paulo?

Segundo os diagnósticos apresentados por representantes dos setores artísticos e coletivos diversos aos deputados estaduais, os problemas decorrem do seguinte: os 24 editais publicados neste mês  de setembro pela Secretaria de Cultura do Estado deverão ser distribuídos para apenas 900 projetos culturais, conforme estimativa do governo estadual. Isso representa 677,7% menos do que a Lei Aldir Blanc (que destinou R$ 264 milhões para São Paulo em 2020) conseguiu beneficiar em 2020, quando atingiu cerca de 7 mil projetos e iniciativas.

Os estudos dos coletivos artísticos apontam para outras formas de exclusão contidas nos editais. Os editais paulistas da LPG em São Paulo privilegiam grandes produções e propõem a concentração desses recursos – enquanto a Lei Aldir Blanc tinha uma média de R$ 37 mil  por projeto (e o próprio PROAC 2023 do governo do Estado tem um valor médio em torno de R$ 100 mil), a LPG distribuirá uma média de recursos média superior a R$ 400 mil.

A análise também apontou que 21 dos 24 editais destinam-se a projetos de pessoas jurídicas, em detrimento das pessoas físicas (o que é um contrassenso, para uma lei emergencial, já que quem mais sofreu as consequências da pandemia foram as pessoas físicas). Os editais ainda exigem que essas pessoas jurídicas tenham ao menos cinco anos de funcionamento legal, o que, além de ser um número arbitrário, desconsidera as centenas de pessoas que durante os últimos anos saíram do trabalho informal para abrir suas empresas culturais e voltar à formalidade. Os ativistas veem aí um direcionamento flagrante.

DESVIO DE FINALIDADE

O conjunto de editais, segundo os relatórios entregues na Assembleia Legislativa, contribui para tornar a LPG (se for mantida essa publicação), injusta, restritiva, totalmente desalinhada com o que versa o texto da lei e ainda atendendo a desvio de finalidade, já que os editais de audiovisuais (a maior parte dos recursos) desconsideram desigualdades regionais e históricas, retirando a obrigação de que ao menos 50% dos inscritos sejam de fora da capital. Isso é contrário ao texto da lei, que pede desconcentração territorial.

O impasse em São Paulo, a pouco mais de uma semana de se encerrarem as inscrições para pleitear os recursos da legislação, já preocupa o Ministério da Cultura. O comunicado desta quinta-feira, assinado pelo secretário executivo do ministério, Márcio Tavares, adverte para a necessidade de que sejam observadas algumas peculiaridades da Lei Paulo Gustavo. O Ministério da Cultura salienta que os editais da legislação não se enquadram nas regras da Lei de Licitações e Contratos Administrativos, pois não se trata de contratação de serviços e aquisições de bens. “Assim, os estados, Distrito Federal e municípios devem abster-se de utilizar esses dispositivos para a execução das seleções públicas de fomento cultural”, avisa o texto.

O comunicado lembra que os agentes culturais que porventura forem contemplados com recursos dos editais só deverão focar no cumprimento de suas propostas (a efetivação do projeto é o critério primordial da prestação de contas), e que a exigência de relatório de execução financeira será uma medida excepcional. O espírito da lei é o de socorrer uma área fragilizada e vulnerabilizada pela pandemia e seus efeitos e pela “blitz” de obscurantismo empreendida pelo antigo governo de Jair Bolsonaro contra o setor, notoriamente crítico e independente em relação aos desmandos de uma gestão autoritária e fundada em preconceitos de gênero, raça e origem social.

Preocupados com o esgotamento dos prazos, os artistas, ativistas e gestores decidiram, na audiência pública da Assembleia Legislativa, procurar a secretária de Cultura, Economia e Indústrias Criativas, Marilia Marton, e também o próprio governador do Estado, Tarcísio de Freitas, para suspender com urgência o processo em curso com os 24 editais publicados. O setor diz que o governo do Estado ignorou as deliberações anteriores à publicação dos editais que foram fruto de pactuação, debates e discussões durante meses em todas as regiões de São Paulo, e pedem que esses subsídios voltem a ser considerados numa possível republicação.

 

Traumas do regime escravocrata são abordados em cenário hollywoodiano

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Nos amplos salões em estilo rococó hollywoodiano, que parecem cenário de um musical de Fred Astaire e Ginger Rogers, 12 artistas negros e negras abordam o trauma da escravidão no período das navegações, na mostra Um oceano para lavar as mãos, com curadoria de Marcelo Campos e Filipe Graciano.

A exposição inaugura o Centro Cultural Sesc Quitandinha, em Petrópolis (RJ), com uma área expositiva de cerca de 3 mil metros quadrados, que funciona no andar térreo da edificação com o exterior em estilo normando-francês.

Construído em 1944 para ser o maior hotel casino da América do Sul, o Palácio Quitandinha durou pouco em sua principal função, já que o presidente Dutra, em 1946, proibiu os jogos no país, dificultando a vida do próprio hotel, que em 1962 fechou suas portas. Transformado em condomínio de luxo, as áreas sociais atualmente são administradas pelo Sesc.

Para a mostra, o maior espaço do Quitandinha, onde funcionava o salão de jogos do casino, é ocupado por uma imensa instalação com seis telas de Aline Motta, que, como é de seu costume, parte de memórias familiares para tratar de questões sobre identidade e a condição afro-atlântica.

A sala tem na área central uma abóboda de 18 metros acima do piso, feita para reverberar o som das fichas e do gelo nos copos da então elite carioca. Agora tornou-se um espaço de reflexão sobe questões sociais que muitos dos que lá pisaram devem ter tido responsabilidade direta sobre o racismo estrutural que segue no país. Ou mais precisamente, como aponta Campos, “o modo como os artistas negros lidam com o período das navegações”.

Ainda segundo o curador, a exposição também busca “repensar Petrópolis”, conhecida por ser a cidade imperial, já que durante o verão era lá que vivia D. Pedro 2º, tornando-se assim a capital do país. Ao mesmo tempo, a região abrigou vários quilombos, entre eles Tapera, no Vale das Videiras, comunidade quilombola reconhecida pela Fundação Palmares, em 2011. Ao menos outros três quilombos são conhecidos na área.

Por isso, não deixa se ser notável que a inauguração do centro cultural observe esses traumas da sociedade brasileira a partir da produção negra atual, e com dois curadores bastante engajados neste debate: Marcelo Campos é curador adjunto da mostra Dos Brasis, em cartaz no Sesc Belenzinho, além de curador chefe do Museu de Arte do Rio; enquanto Filipe Graciano é idealizador do Museu de Memória Negra, em Petrópolis, e coordenador de Promoção da Igualdade Racial do município.

A primeira sala da mostra, apesar do espaço não ser exatamente linear, é ocupado por Ayrson Heráclito com um de seus trabalhos mais icônicos, o díptico O sacudimento da Casa da Torre e O Sacudimento da Maison des Esclaves em Gorée (2015). Neles, ações performáticas de “sacudimento” exorcizam dois edifícios históricos, situados em margens oposta do Oceano Atlântico, de seu passado colonial e escravagista.  Participam ainda da mostra Arjan Martins, Azizi Cypriano, Cipriano,

Juliana dos Santos, Lidia Lisbôa, Moisés Patrício, Nádia Taquary, Rosana Paulino, Thiago Costa e Tiago Sant’ana.

Forrobodó, ou 20 anos de A Gentil Carioca

Como poucas galerias de arte, A Gentil Carioca transforma suas aberturas especiais numa grande festa de rua. No último sábado, não foi diferente: a mostra Forrobodó lotou a vizinhança com performances, músicas e muita dança para comemorar os 20 anos do icônico espaço do Rio, movido por loucura e arte. Ocupando os casarões dos anos 1920, a Gentil mais uma vez faz história ao apresentar uma coletiva abrangente com obras de 60 artistas, sob a curadoria de Ulisses Carrillon. “A ideia foi também celebrar o potencial estético, erótico e político das ruas.” A galeria não se considera um espaço fechado, funciona de maneira expandida pelas redondezas e incorpora a população anônima que circula pelo centrão do Rio à procura de bugigangas baratas na zona do Saara, o maior centro de comércio de rua do Estado do Rio. A notável interação não é buscada por Márcio Botner, Laura Lima e Ernesto Neto, trio de artistas e proprietários. Ela acontece espontaneamente, e a diversidade de interesses pode se transformar em um carnaval potencializado pela miscigenação

A integração das poéticas e das situações geradas pela coletiva é uma espécie de liturgia como síntese das artes. Carrillon defende a exposição também como um “ato de experimentar outras intelectualidades, outros conhecimentos do corpo, na intenção de convocar uma dramaturgia dos objetos, dos mares aos mercados, do céu ao inferno.” Defendendo suas escolhas ele cita Adriana Varejão que refez o Brodway Boogie-Woogie, do Mondrian, especialmente para essa data, uma obra desenvolvida com formas geométricas básicas, como linhas retas, quadrados e retângulos, e cores primárias. Fora das salas da galeria, o artista carioca, Cabelo extrapolou suas performances endiabradas e, como sempre, magnetizou o público. Dentro do prédio, outros trabalhos funcionaram na quietude do ambiente como as peças de Maria Laet que joga com várias implicações do tempo, da ilusão, do fazer sossegado sempre pressa.

Há experiências que funcionam na percepção de novos espaços. Instalada em plena rua, a Bandeira, de Antonio Dias, virou um marco do evento. O pano, de um vermelho revolucionário, balançou livre no alto de um dos edifícios, flutuando sobre uma animada multidão. Histórias não faltam para esse conjunto de obras. A Gentil tinha pouquíssimo tempo de funcionamento quando Antonio Dias entra na galeria para ver o trabalho de um jovem paraibano, assim como ele. “Era o Fabiano Gonper cujos trabalhos encantaram Antonio, contamos um pouco sobre o projeto da galeria e foi para ele que vendi a primeira obra de arte da minha vida, tem uma foto dele nesse dia”, lembra Botner.

Outro destaque é o backlight de Carlos Vergara com imagens de grupos de negros divertindo-se pelas ruas fantasiados de caciques indígenas. Bela Geiger aparece com um trabalho novo, sob o título Incógnita, que ela apresentará no mês que vem na Espanha. O Disco Voador, de Laura Lima, foi também foi alterado, mas um conceito permanece vivo, o equilíbrio da escultura que se instaura na fantasia, no jogo da multiplicidade de suas vontades. Arjan Martins expande sua paixão pelo mar, não pelo Atlântico das rotas negreiras, mas um mar universal, de beleza e águas poderosas e coloridas, capazes de criar formas de espumas. Essa obra já está comprada por um colecionador estrangeiro e, encerrada a exposição, seguirá para Europa. Essa grande coletiva, tão importante quanto ruidosa, reúne várias gerações até chegar aos artistas que a Gentil representa e outros mais que os galeristas acreditam que ainda virão.

Marcio Botner

INÍCIO DESNORTEADO 

Marcio Botner nunca foi um garoto prodígio, mas o destino o empurrava naturalmente para a cultura. “Arte é uma coisa antiga na minha vida. Aos 13 anos, achava que ia ser ator. Fiz teatro, fui lá estudar Stanislavski até que estreei, na peça de Brecht O rei e o mendigo, encenada por apenas dois atores.” Botner era o mendigo que viraria rei, se não estragasse tudo logo que abriu a boca. “Na minha primeira fala me atrapalhei e disse a última frase da peça, quando me tornaria rei. Fiquei paralisado e não demos continuidade ao espetáculo, as pessoas ficaram perplexas, embora a maioria fosse colegas que estudavam também teatro além de parentes, alguns até xingaram. As cortinas foram fechadas e eu, atônito, desisti do meu sonho.”

Alguns anos depois Botner decidiu fazer cursos de artes visuais e se aprofundar. Um dia, entusiasmado, falou para si mesmo. “Isso é o que eu quero fazer na minha vida”. Animado foi estudar no Parque Lage, onde ficou muitos anos e encontrou vários artistas. “O Arjan estava lá, era mais velho do que eu e havia outros artistas bacanas, a Laura Lima é desse período, o Ernesto Neto não estava mais lá, era de uma geração posterior.” Durante sua permanência no Parque, Botner ia germinando a ideia de criar um espaço de arte. “O desejo foi materializado no encontro com Laura Lima e Ernesto Neto. “A Gentil surgiu onde era meu ateliê, em pleno centrão do Rio de Janeiro, perto do Saara, depois ocupamos o andar de baixo e ainda outros prédios. A Elsa se junta a nós, um tempo depois. Naquela época não tinha ideia do que era ser um galerista, nunca trabalhei numa galeria como assistente, nem em museus.” Então, muitos projetos nasceram do encontro dos três colegas, que apostavam em um desejo quase juvenil. Márcio não sabe precisar, mas imagina que cada um deles deve ter colocado algo por volta de R$ 500. “No início eu trabalhava sozinho, fazia de tudo e quando chegava o horário do almoço, simplesmente colocava uma plaquinha sobre a mesa: Fui almoçar, volto já. Começamos lidando com mil improvisos, sempre resolvidos entre nós três.” 

Muita gente não sabe que Botner é artista, e é justamente esse lado, segundo ele, que o ajuda a levar a galeria, a sua maneira de pensar, não só na arte como na vida como um todo. “Eu adoro ser galerista, ativista como você falou, que é mais do que simplesmente lançar o artista, na realidade é trabalhar para pensar o lado social, político e artístico de tantos projetos. Eu acho que esse lado de ser artista é o fundamental.” Botner fala de tantos gatilhos que eles têm que acionar manobrando arte. “Quando a gente estreou o Abre Alas, há 19 anos, pensamos que seria apenas um evento, eu nem pensava que haveria continuidade, acho que nem a Laura nem o Neto.” Quando a Gentil chegou ao terceiro ano, alguns artistas já iam avisando: “estou preparando trabalhos para o Abre Alas”. Foram os artistas que decidiram dar continuidade ao projeto, foi quase uma imposição, eles perceberam que as pessoas acreditavam que o projeto havia chegado para ficar, assim como a galeria. “Um dia Neto e eu fomos à abertura de uma mostra no Centro Hélio Oiticica, que fica próximo da Gentil, de repente um artista zangado chegou até a gente e reclamou que não foi convidado a expor na próxima exposição que iria ser aberta. “O clima ficou desagradável e o Neto, genial, teve uma saída, disse a ele que se quisesse expor havia uma parede externa da galeria, que chamamos de piscina. Vai lá, leva a obra e coloca você mesmo na parede e se mais alguém quiser participar, tudo bem.” Quando Botner foi ver tinha mais de 30 obras, de vários artistas. “É isso aí, temos que escutar o artista e usar isso da melhor maneira para que os conceitos ganhem mais força.” 

Entre os projetos que ele destaca está o Projeto Camisa Educação. Resumindo: cada artista que expõe na Gentil cria uma camisa com a palavra educação, para o dia da abertura e com isso já se formou uma grande coleção. Entre outros projetos, há o que se pode chamar de “núcleo duro” do conceito da galeria, o Alalaô, definido como a arte pública que enaltece as ruas, e que acontece na praia do Arpoador no Rio. 

Pergunto para onde desagua toda essa produção. Sem modéstia, Botner diz que desde o início da Gentil eles são convidados para as grandes feiras internacionais. “As feiras representam muita coisa para a Gentil, encontro com curadores, artistas, diretores de museus. Nesses 20 anos já houve momento de eu estar muito cansado.” Desses grandes eventos ele ainda cita a Bienal de São Paulo, que em sua opinião representa muito para todos os artistas que sempre aprendem alguma coisa e para os brasileiros também, por toda a história da instituição que é a segunda mais antiga do mundo (1951), perdendo apenas para Veneza (1895). 

“Não se pode esquecer que a Guernica de Picasso já foi exposta por aqui”, em sua segunda edição (1953/1954)”. A Gentil Carioca exerce um protagonismo empírico desde o dia em que Botner, Neto e Laura Lima, sentados num bar, comendo sardinha frita e tomando chope, decidiram inventar uma galeria diferente e chegaram a esse modelo que é a cara do Rio, “e do mundo”, arremata Botner.

A irreverência da Gentil não tem limites. Botner vai avisando que vai fazer um grande evento dentro do cemitério da Consolação, vizinho da A Gentil Carioca em São Paulo. “Vamos homenagear os modernistas que estão lá enterrados: Mário de Andrade, Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade, entre outros”. Quem viver verá!

Jacques Leenhardt analisa a obra de Wifredo Lam

A sala de Wifredo Lam na 35ª Bienal de São Paulo é um dos marcos positivos desta edição. O artista cubano foi reconhecido por Picasso, Breton e pelos surrealistas logo que chegou a Paris em 1938. Antes, ainda muito jovem, foi para Espanha onde fez parte de seus estudos de arte. Só depois, como grande parte dos artistas de sua geração, é que se fixa em Paris. Mesmo com a amizade próxima de Picasso, Lam conseguiu desenvolver uma obra personalista, reconhecida no mundo e que suscitou o desejo de possui-la por parte de importantes museus e colecionadores. Das oito obras agora expostas em sala especial na 35ª Bienal, duas são do Malba (Buenos Aires), duas do Centre Georges Pompidou (Paris), e as demais pertencem a colecionadores particulares.

Jacques Leenhardt, crítico francês, com trânsito fluído pelas universidades da América Latina, proferiu palestra nesta Bienal sobre o artista e, entre os muitos compromissos no Brasil, dá uma sucinta entrevista à arte!brasileiros.

ARTE!✱ – Hoje o decolonialismo está na pauta da academia, nos discursos políticos, nas manifestações estudantis de rua. No livro Mi pintura, Wifredo Lam escreveu “Minha pintura foi um ato de descolonização”. Você poderia comentar?

Jacques Leenhardt – Acho muito perigoso querer incluir um artista da importância e da complexidade de Wifredo Lam imediatamente no debate “decolonial”, que tomou um rumo muito distante da busca de síntese que caracteriza sua obra pictórica. O importante, e que vem em primeiro lugar, deve ser: ver e meditar acerca das obras.

Le sombre Malembo
“Le sombre Malembo, dieu des carrefours”, 1943, de Wifredo Lam. Crédito: Reprodução

É claro que Lam era um anticolonialista. Anticolonial por meio de uma preocupação constante em construir a possibilidade de um modo de ser diferente. Isso lança luz sobre debates que muitas vezes são simplistas demais. Lam trabalhou a partir de várias origens e heranças culturais que, em suas próprias contradições, constituíram sua identidade. Ele fala de seu “antigo desejo de integrar na pintura toda a transculturação que havia ocorrido em Cuba entre aborígenes, espanhóis, africanos, chineses, imigrantes franceses, piratas e todos os elementos que compõem o Caribe. E eu reivindico”, disse, “todo esse passado para mim. Acredito que essas transculturações transformaram essas pessoas em uma nova entidade de valor humano indiscutível.”

Nessas poucas palavras, posso ver os contornos de sua posição ideológica. Por meio da noção de transculturação, que ele toma emprestada de seu amigo, o antropólogo cubano Fernando Ortiz, ele deixa claro que o advento de um ser humano no auge de sua humanidade exige a destruição de barreiras, sejam elas raciais, econômicas, sociais ou nacionais.

Esse é o trabalho que ele realiza em suas pinturas, nas quais retrata e supera a violência que caracteriza as relações humanas. Assim como as guerras e os poderes não democráticos, a colonização explorou toda essa violência. Ela deve ser combatida, assim como seus efeitos posteriores, por meio da aceitação e da abertura, e não por meio de novas violências.

A Bienal fez muito bem, acho, em incluir seu trabalho nesse debate altamente atual, pois pode-se dizer que muitas de suas principais pinturas, como El tercer Mundo (1956), Os Abalochas dançam para Dhambala, deus da unidade (1970), são apelos para curar as feridas da história. O objetivo de seu trabalho é tornar possível a reunificação do que foi brutalmente separado. A onipresença de lâminas e tesouras em suas pinturas fala do estado do mundo, não de seu futuro. Em 1943, ele pintou A Selva, uma metáfora das trágicas condições históricas criadas pela indústria açucareira e seu modo de produção escravagista. A partir de então, durante as décadas de 1950 e 1970, Lam construiu uma coreografia de figuras e símbolos em suas pinturas, extraídas das diferentes culturas que o nutriram, em particular a santeria cubana e o vodu haitiano. Se suas figuras parecem dançar na tela, é porque o artista está transmitindo a elas um movimento de transcendência que tende a uma unidade perdida. Acredito que essa seja sua luta anticolonial.

Le Matin vert
“Le Matin vert”, 1943, Wifredo Lam. Crédito: Reprodução

ARTE!✱ – O aprendizado de Wifredo Lam na Espanha pré-revolucionária, numa época de muitas discussões sobre o futuro daquele país, imprimiu qual tipo de influência na obra do artista?

Leenhardt – O aprendizado espanhol de Lam o levou ao desenho de Dürer e à pintura de Goya, que ele revisitou mais tarde, seguindo Picasso, por meio da representação multifocal do cubismo. Matisse lhe trouxe uma concepção antiperspectivista do espaço pictórico que o ajudou a se distanciar de sua própria herança europeia. Nenhuma dessas tradições se perdeu desde então, e todas alimentaram seu trabalho com essa multiplicidade.

ARTE!✱ A sala de Wifredo Lam nesta 35ª Bienal de São Paulo exibe algumas obras fundamentais feitas no contexto de exílio político e de suas jornadas transatlânticas pelos mares dos navios negreiros. O que você destacaria?

Leenhardt – As oito pinturas expostas na Sala Especial ilustram o ponto de virada da década de 1940: expulso pela Guerra Civil Espanhola e, depois de se estabelecer em Paris em 1938, expulso pelas tropas alemãs, Lam retornou a Cuba e embarcou na grande síntese transcultural que o torna tão contemporâneo. Compreendendo que não era chinês, nem africano, nem europeu, ele descobriu que era “caribenho”, parte desse arquipélago de culturas que a violência da história havia criado no coração da indústria açucareira. Em seus olhos, assim como nos olhos de seus amigos martinicanos Aimé Césaire e Edouard Glissant, do próprio coração das contradições que constituem esse arquipélago, surge a possibilidade de imaginar, de sonhar e de pintar, um futuro para a humanidade. ✱

O grande coro de vozes negras, indígenas e LGBTQIAPN+

Um dos primeiros trabalhos de Coreografias do impossível no térreo do Pavilhão da Bienal de São Paulo é o pedestal de um monumento. Essa base serviu para uma performance da artista de origem maya-caqchiguel, da Guatemala, Marilyn Boror Bor, na qual suas pernas foram cimentadas. Após alguns minutos, contudo, ela deixou o pedestal vazio.

Durante a 35ª Bienal de São Paulo, Monumento vivo será visto como um pedestal que não idolatra a ninguém e tem em sua base escrito: “Em memória dos defensores da terra; em memória dos guias espirituais, em agradecimento aos presos políticos; em agradecimento aos líderes comunitários; para os rios, os lagos, as colinas, as montanhas.”

O vazio do monumento é um gesto que me parece simbolizar a mostra, organizada por Diane Lima, Grada Kilomba, Hélio Menezes e Manuel Borja-Villel, na primeira vez em que uma equipe com maioria negra, em nada menos que 72 anos de história, é responsável pela Bienal de São Paulo.

Não é uma mostra de trabalhos com efeitos sensacionalistas, aqueles que se costumam chamar de obras de bienal, mas, como o Monumento vivo, apontam para gestos que buscam questionar o cânone universal, sem, contudo, colocar outro no lugar. E isso é muito bom.

É como o trilho de trem sem serventia, que está logo na entrada da exposição, parte da instalação Parliament of Ghosts (Parlamento de fantasmas) de Ibrahim Mahama, artista de Gana, que lembra das iniciativas dos colonizadores na África com toda sua violência estrutural. Ao lado, contudo, ele recria arquibancadas de tijolos vermelhos do salão de seu estúdio, um local para criação e diálogo.

Seria então essa uma bienal decolonial? Esse não é um conceito reivindicado pela equipe curatorial, mas não há dúvida que a opção foi elencar uma serie de iniciativas e narrativas que questionam a história oficial, por meio de trabalhos e gestos não necessariamente no campo da arte convencional.

Entre eles estão tanto coletivos atuais, como a paulistana Frente 3 de Fevereiro e o argentino Archivo de la Memoria Trans Argentina (AMT), a trabalhos de quase dois séculos atrás, como os do boliviano Melchor María Mercado (1816-1871).

Mercado é visto com o Álbum de paisagens, tipos humanos e costumes, realizado entre 1841 e 1869, que faz uma narrativa bastante surrealista sobre a nação boliviana em seus primórdios, ironizando o poder político e apontando para a corrupção da elite colonial. É genial.

Já a Frente 3 de Fevereiro é vista em uma instalação que conta e contextualiza sua história, marcada por denúncias em espaços públicos, como as icônicas faixas Onde estão os negros e Zumbi somos nós estendidas em estádios do campeonato brasileiro de futebol, em 2005. Na instalação, por meio de recursos tecnológicos, Dona Maurinete Lima (1942-2018), uma das criadoras do movimento, surge narrando o trabalho. É comovente.

Enquanto isso, o coletivo argentino AMT apresenta uma seleção de imagens de seu acervo de 12 mil peças, que tem por objetivo conectar pessoas, chegando a reunir mais de mil mulheres trans, em 2018. O arquivo também é acessível de forma online, e na mostra parece uma nuvem de imagens.

Essas três iniciativas apontam para como esta Bienal visa mais do que olhar para o campo da arte, expondo iniciativas que repercutem na cultura de forma mais ampla. É o caso também da série de fotos de Rosa Gauditano feitas por dois meses em 1978, das 23h às 6h, com as frequentadoras do Ferro’s Bar, tradicional bar lésbico no centro de São Paulo, uma série censurada pela revista Veja, e agora encenada com como fosse exibida em um ambiente boêmio. Nas imagens, há uma intimidade incomum com as mulheres, em uma época que o fotojornalismo ainda era marcado por frieza e distanciamento. São esses gestos inovadores, mesmo que invisíveis quando realizados, que essa Bienal expõe. O impossível se tornando possível por pequenos movimentos.

Sobre silenciamento, aliás, é particularmente tocante a seleção de trabalhos de Aurora Cursino dos Santos (1896-1959), que fez parte de sua produção no hospital psiquiátrico do Juquery, internada após uma vida que mesclou casamento, viagens pela Europa e prostituição. Momentos de sua vida são narradas em suas pinturas, que a curadoria expõe de forma a perceber como elas eram feitas sobre pacotes de chiclete. Outros internos em manicômios, como Stella do Patrocínio, Arthur Bispo do Rosario e Ubirajara Ferreira Braga também comparecem em Coreografias do impossível com amplas séries de trabalhos.

Agora, é inegável que esta Bienal também tem uma presença retumbante da produção de dentro do sistema da arte, especialmente em obras de mulheres como Citra Sasmita, Rosana Paulino e Carmézia Emiliano. A nova série de Rosana, pinturas de grandes dimensões de mulheres que criam raízes e se mesclam a árvores, é de tirar o fôlego, assim como também são impressionantes as pinturas de Citra. A artista de Bali apresenta o projeto Timur Merah (Leste Vermelho), no qual mulheres indonésias de longos cabelos negros interpretam nuas vários papeis, humanos e animais, retomando aqui a perspectiva que faz da natureza uma grande família, como em Rosana Paulino. Essa visão holística é vista também nos quadros de Carmézia, que expõe o dia a dia dos povos Macuxi, em Roraima. Aliás, há uma constelação de trabalhos indígenas, seja nos poéticos vídeos de Aida, Edmar e Roseana Yanomami, seja nas pinturas do Movimento dos Artistas Huni Kuin (Mahku), ou nas obras de Denilson Baniwa e Edgar Calel.

NÃO LINEAR

Como se percebe, a mostra é cheia de fricções, mas não é nada literal, o que é um alívio, já que não há um conceito que delimite como se olhar os trabalhos. A temporalidade também é algo relativizado na mostra, sem dispor as obras como se fizessem parte de uma linearidade cartesiana. Um dos destaques nesse sentido é a pintura de Juan van der Hamen y León, o Retrato de Dona Catalina de Erauso. A freira alferes, de cerca de 1625, que apresenta uma imagem masculinizada de uma monja, apontando para um sexualidade líquida já no século XVII, ao lado dos documentos do século XVI que apontam a escravizada Xica Manicongo como a primeira travesti do Brasil.

Aliás, o retrato é o tema do vídeo Uma voz para Erauso. Um epílogo para um tempo trans, da dupla espanhola Helena Cabello e Ana Carceller, que há dois anos trouxe a público a complexa figura do barraco espanhol, que se livrou do binarismo de gênero.

A questão LGBTQIAPN+ de fato é um eixo forte da mostra, e outro trabalho que merece atenção é o filme Línguas desatadas, de 1989, feito por Marlon Riggs (1957-1994), um documentário autoral sobre a vida de gays negros nos Estados Unidos.

Ao reunir obras e trabalhos de distintos períodos, como esses últimos três, esta Bienal opta por ser menos explícita em relação ao tempo presente, como muitas mostras deste gênero costumam fazer, mas falam de debates atuais sob uma perspectiva mais ampla, transformando a exposição em um contexto mais museográfico.

A morte é companheira
“A morte é companheira”, de Ubirajara Ferreira Braga. Foto: Patricia Rousseaux

Essa impressão é reforçada pela própria arquitetura da exposição. Não é fácil enfrentar o pavilhão modernista de Oscar Niemeyer, que com sua amplitude e linhas curvas, tendem a dominar os espaços. O grupo de arquitetos Vão, sabiamente, usou dessas curvas para questionar o próprio espaço, reorganizando o percurso do prédio – do primeiro andar pula-se para o terceiro para se encerrar a visita no segundo andar, fechando-se ainda o vão central, em uma gesto radical, mas eficaz.

Paredes brancas, poucas salas com intervenção mais radical, essa é uma Bienal de muito respiro e grandes espaços, mas que também conduz o visitante a ambientes mais íntimos quando necessário. É com muita elegância que se aborda as mazelas do mundo em (im)possíveis gestos de superação.

Elegância e crítica estão presentes nas obras selecionadas de Sidney Amaral (1973-2017) para a mostra. Em sua pintura O estrangeiro (2011), ele se autorretrata como um barqueiro que estaria nos subterrâneos obscuros do pavilhão da Bienal, sem ter a chance de pertencimento a este território – daí o título da obra. Agora em 2023, quem diria, ele não é mais um estrangeiro, mas parte de um grande coro de corpos negros, o maior que essa bienal já viu. Finalmente, o impossível ficou agora possível. ✱

Poesia em trânsito

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Com 121 artistas e mais de mil obras ocupando uma área de 30 mil metros quadrados, a 35ª Bienal de São Paulo concentrará ao longo dos próximos meses as atenções do circuito das artes no país. Esse poder imantador se dá pela atração de milhares de visitantes ao Pavilhão, mas sobretudo pela enorme capilaridade desse processo, capaz de transformar as questões centrais discutidas na mostra em elementos centrais do debate, da produção e da disseminação do pensamento sobre arte. Sob o tema Coreografias do impossível, a mostra agrupa uma quantidade recorde de artistas não brancos, cujas poéticas desafiam uma noção eurocêntrica e linear da história, resgatam tradições, jogam luz sobre questões e comunidades invizibilizadas. Predominam com grande intensidade as estratégias comunitárias, a combinação de diferentes linguagens e técnicas e uma permanente sedução dos sentidos.

Quem abre a 35ª Bienal de São Paulo é Ibrahim Mahama, artista de Gana que já foi destaque na Bienal de Veneza, com uma amplíssima instalação composta por elementos como um trilho de trem, uma série de vasos de cerâmica que pontuam o espaço e uma grande arquibancada de tijolos, que deve receber uma série de ações ligadas ao programa público do evento, que conta com uma extensa programação de performances, debates e conversas. (disponível em 35.bienal.org.br/agenda).

A sensação inicial de amplitude se prolonga ao logo de praticamente toda a exposição, graças à expografia projetada pelo escritório Vão, que propôs o fechamento parcial das aberturas que conectam a lateral do segundo andar ao vão central, criando espaços mais livres para os vários núcleos expositivos e possibilitando uma quebra da ideia já consolidada de que o terceiro andar funcionaria quase que naturalmente como um espaço mais museológico dentro da Bienal.

A transdisciplinaridade, em termos de conceito e linguagem, é uma das marcas dessa edição. O hermetismo prenunciado nos primeiros textos curatoriais deu lugar a um conjunto leve e fluido, em que a diversidade poética e o espírito coletivista parecem predominar. Chamam atenção a recorrência de trabalhos realizados em parceria e o grande número de coletivos, artísticos e políticos. Movimentos como o coletivo Ayllu, a cozinha da Ocupação 9 de julho (que assume o restaurante), a Frente 3 de Fevereiro, o Giap (Grupo de Investigación em arte y política) ou ainda o Zumví Arquivo Afro, apenas para citar alguns, têm presença marcante na mostra. Convém lembrar que a própria curadoria responde por esse princípio agregador, sendo assinada conjuntamente por Diane Lima, Grada Kilomba e Manuel Borja-Villel, num cuidadoso equilíbrio entre gêneros, origens e formações.

TEMPO ESPIRALAR

Alguns elementos parecem pontuar toda 35ª Bienal de São Paulo, revelando afinidades entre os mais diferentes autores. A forma circular ou serpenteada, que remete à ideia de tempo espiralar e à critica ao pensamento modernista ocidental e ao conceito linear de progresso – derivado do pensamento de Leda Maria Martins –, é recorrente na mostra. Compreender a história como campo aberto de possibilidades é uma estratégia comum dos convidados da 35ª Bienal de São Paulo e seu conceito de tempo espiralar. São muitos os trabalhos que ilustram essa relação, como Uma voz para Erauso. Epílogo para um tempo trans, de Helena Cabello e Ana Carceller. Ou a potente instalação de Ayrson Heráclito e Tiganá Santana, que conduz o visitante numa viagem imersiva e sensorial pela mata. A terra, as ânforas, vasos e alguidares são também materiais constantes, indícios de culturas milenares, de pertencimento a tradições massacradas, mas que permanecem de pé, a exemplo das obras de Castiel Vitorino Brasileiro, Daniel Lie, M’Barek Bouhchichi, entre outros.

O tom não é de urgência, apesar de já termos passado da hora de superar as questões políticas, sociais, ambientais ali abordadas. Não impera tampouco a resignação, mas uma certa sabedoria em entender os múltiplos tempos entrecruzados. O tempo do horror da escravidão e o da sabedoria dos habitantes da floresta, o tempo do drama dos imigrantes abandonados à própria sorte e aquele das vítimas da LGBTfobia, da brutalidade colonial e do sofrimento psíquico. São trabalhos que, na maioria das vezes, oscilam entre “esperança e desespero”, como sintetiza Carles Guerra no texto de apresentação da artista filipina Geraldine Javier. Ou que possuem, na definição de Diane Lima, “uma beleza terrível”.

Nous sommes ce qui vous ne voulez pas voi
“Nous sommes ce qui vous ne voulez pas voi”, 2023, M’barek Bouhchichi. Foto: Levi Fanan_Fundação Bienal de São Paulo

A ideia de coreografia, presente no título da mostra, ecoa por todos os andares do Pavilhão. São muitos os trabalhos que parecem flutuar no espaço, expandir-se de forma invisível, como Pulmão da mina: o ar também alaga, de Luana Vitra. Obras como a instalação de Niño de Elche fazem literalmente o público dançar; Pauline Boudry e Renate Lorenz investigam o movimento do corpo e fundem de forma desconcertante o espaço do vídeo e o espaço físico da exposição; isso sem falar nas referências históricas como Katherine Dunham. Mas não se trata apenas de uma presença importante de trabalhos e artistas vinculados à dança, ao movimento e à música, mas da ênfase em trabalhos que se constroem a partir do movimento – real ou simbólico – no tempo e no espaço. Assim é o trabalho de Ana Pi e do sacerdote do candomblé Taata Kwa Nkisi Mutá Imê: quatro hastes de bronze que se movem de forma sincronizada, como antenas, sobre um chão de vestígios, imagens e falas costuradas a partir das experiências coletadas pela dupla numa longa jornada que conecta África, França, Brasil, em busca de identidades, memórias e afetos. “Acelerar emoções é o papel da arte”, diz a artista.

Julien Creuzet, originário da Martinica e que representará a França na próxima Bienal de Veneza, também faz da dança elemento central de seu trabalho. Em parceria com alguns coreógrafos, entre eles Ana Pi, ele coloca para dançar esculturas tradicionais africanas ao ritmo de músicas contemporâneas como o hip hop. Ele se contrapõe assim, mesclando ironia e olhar agudo contra estereótipos, à argumentação defendida pelos cineastas Alain Resnais, Chris Marker e Ghislain Cloquet em As Estátuas também morrem (1953), de que os ídolos seriam cadáveres quando saem de seu ambiente de culto e proteção e são transferidas para os museus e mobiliza assim um poder permanentemente renovável de resistência.

Brincando animada
“Brincando animada”, 2023, Tadáskía. Foto: Patricia Rousseaux

Kitlat Tahimik também dialoga com o cinema – sem usar câmera ou película. Sua narrativa temporal se faz a partir de objetos. Coloca em confronto monstros e mitos, modernos e antigos, com acidez e provocação ao mostrar Mickey Mouse, com uma motosserra em mãos, prestes a castrar uma figura mitológica ancestral de enorme falo, algo como um deus da fertilidade, ou reconstrói o cavalo de troia em conexão com armamentos de última geração. Até mesmo uma obra que aparentemente seria só um exercício cinético, uma experimentação sedutora com a luz e a cor, toca em feridas profundas e propõe rever lógicas perversas de dominação. Em sua instalação Pink-Blue, Kapwani Kiwanga associa luzes fluorescentes usadas em dois dos mais terríveis ambientes de controle da sociedade contemporânea: as instituições psiquiátricas e as prisões. Enquanto no primeiro a iluminação branca supostamente acalmaria instintos agressivos, no segundo a cor azul era usada para dificultar a localização das veias, dificultando assim o consumo de drogas injetáveis. ✱

“Dos Brasis – Arte e Pensamento Negro” incentiva a produção afro-brasileira

 

Com curadoria geral de Igor Simões, a exposição reúne 240 artistas de todos os estados brasileiros que apresentam trabalhos em diversas linguagens artísticas. A partir de 2024, uma parte da mostra circulará em espaços do Sesc por todo o país pelos próximos 10 anos.

O espaço expositivo se divide em sete núcleos que trazem como referência pensamentos de importantes intelectuais como Beatriz Nascimento, Emanoel Araújo, Guerreiro Ramos, Lélia Gonzales e Luiz Gama.

“Dos Brasis é a prova de que nunca houve invisibilidade ou silêncio entre os artistas negros brsileiros. O que existiu foi uma escuta seletiva e uma visão seletiva”, aponta Simões.

arte!brasileiros visitou a mostra, em cartaz no Sesc Belenzinho, e conversou com o curador. Assista:

 

SERVIÇO
Sesc Belenzinho: Rua Padre Adelino, 1000 – Belém, São Paulo – SP
Em cartaz até 31 de março de 2024
Visitação: de terça a sábado, das 10h às 21h; domingos e feriados, das 10h às 18h

Na Galeria Estação, “Reversos e Transversos” busca dissolver dicotomia entre arte popular e erudita

Tia Sinoa, 2019, Dalton Paula. Foto: Paulo Rezende
Tia Sinoa, 2019, Dalton Paula. Foto: Paulo Rezende

O que tornam as esculturas do baiano Agnaldo dos Santos (1926-1962) mais prestigiadas pelo sistema da arte do que as carrancas de seu conterrâneo – e confessada referência em sua formação artística – Mestre Guarany (1884-1985)? Ou ainda a produção da pintora pernambucana Lúcia Suanê (1922-2020) abismalmente menos valorizada do que as obras de Alfredo Volpi (1896-1988), com quem guarda aproximações poéticas e de linguagem?

Na exposição Reversos e Tranversos: artistas fora do eixo (e amigos) nas bienais, em cartaz na Galeria Estação, o artista e curador Ayrson Heráclito investiga como questões de raça ou gênero, entre outras, provavelmente estão na base da paulatina segregação ocorrida entre os artistas ditos populares e aqueles tidos como eruditos, num processo consolidado ao longo de sete décadas pelas bienais.

“O Volpi, este artista imigrante italiano, que havia sido pintor de paredes, foi eleito por um grupo como um grande mestre, de grande inteligência formal, o que o retirou de um limbo de artista primitivo, sem elaboração. Quase contemporânea do Volpi, a Lúcia não teve essa mesma sorte. Será que foi uma questão de gênero?”, questiona Heráclito, em entrevista à arte!brasileiros. “Ambos, como artistas, foram próximos, mas hoje existe uma grande distância de legitimação. Então, fazemos nesta mostra uma ponte entre os artistas para salientar o abismo que há entre essas produções no reconhecimento pelo sistema da arte brasileira. Volpi não é esteticamente superior a Lúcia; ambos são muito importantes em suas construções e complexidades. Mas não são vistos nesta horizontalidade”.

Reversos e Transversos começou a ser concebida no ano passado, depois que Vilma Eid, galerista à frente da Estação, viu a exposição Yorùbáiano, em que Heráclito reuniu na Pinacoteca de São Paulo quase 40 anos de sua minha produção artística. Eid já conhecia também seu trabalho como curador, na mostra Histórias afro-atlânticas, apresentada em 2018 pelo Masp. Heráclito, por sua vez, considera-se um “grande visitante” da Estação, “galeria que tem um acervo muito diverso, sobretudo de artistas afro-brasileiros e, mais recentemente, cada vez mais artistas indígenas”.

Convite aceito, o curador, que também é um dos artistas selecionados para 35ª Bienal de São Paulo, inicialmente pensou em fazer mostras individuais na galeria, “nomes que eu achava importante apresentar para galeria e apresentar, principalmente, para o sistema da arte de São Paulo”, diz. “Com o desenvolvimento das nossas conversas, surgiu a ideia de fazer algo no contexto da 35ª Bienal. Veio então a ideia de pensar em muitos artistas, que estão na galeria, e tiveram uma história na legitimação das bienais, sobretudo as de São Paulo, na Bienal Latino-americana, na Naïf e na Mostra do Redescobrimento: Brasil+500”.

A exposição reúne trabalhos realizados com técnicas e suportes distintos, por 42 artistas de diferentes gerações, criações em sua maioria pertencentes ao acervo da Estação. Colocadas lado a lado, as obras falam por si mesmas: ora estética, formal ou tematicamente parelhas, indagam por que alguns artistas foram reconhecidos e outros, não. Além dos exemplos citados acima, Heráclito menciona Antonio Poteiro (1925-2010) em contraponto com Djanira, Marepe (1970) e Alcides Pereira dos Santos (1932-2007) e ainda um caso emblemático:

“Em 1951, na primeira Bienal de São Paulo, existiam muitos desses artistas [tidos como populares] na seleção da mostra. E o Heitor dos Prazeres [1898-1966], que é esse grande artista multimídia, que está sendo muito celebrado hoje, com uma grande exposição CCBB, e mostras paralelas em galerias privadas, ganhou uma medalha de prata, com a tela Moenda, lembra o curador. “O Heitor é um artista importantíssimo para pensar justamente esse momento de virada de uma arte moderna para uma arte, digamos assim, pop. Em seguida, a gente vai assistindo esses artistas sendo desconvidados, de certa forma, ou não convidados para participar das bienais”.

Heráclito conta que em suas pesquisas para Reversos e Transversos conseguiu identificar “alguns momentos até muito tensos, ao mesmo tempo reflexivos”, quando, por exemplo, na Bienal de São Paulo, a pop art entra no Brasil, com artistas como Andy Wahrol, Rauschenberg, Jasper Johns e Roy Lichtenstein. “Com a chegada deles a essa instituição importantíssima no mundo inteiro, que cria sistema de arte, os artistas ditos populares saem, são desconvidados, porque perdem espaço. E nesse momento se articula uma nociva ideia de que a arte contemporânea brasileira não poderia ser compreendida a partir daquelas referências populares”, afirma.

O curador ressalta que artistas como J. Cunha (1948), Aurelino dos Santos (1942) e mesmo Heitor dos Prazeres estabelecem relações “com um pop, com essa cultura de massa, a partir dessa perspectiva dos grandes centros urbanos, das grandes cidades”. Ainda assim, são alijados do sistema da arte. Entre os contemporâneos também presentes na exposição, Heráclito cita Xadalu Tupã Jekupé, selecionado para a 1ª Bienal das Amazônias, e Dalton Paula (1982), para ele um “exemplo de superação”.

“Quando começou a produzir, Dalton estava muito mais próximo da Bienal Naïf – um termo que acho muito preconceituoso, porque retira do artista o conhecimento e a sabedoria; é como se conhecimento fosse alguma coisa só acadêmica ou livresca – do que da Bienal de São Paulo. Hoje é um dos poucos artistas contemporâneos brasileiros que estão em grandes museus do mundo como MoMA. Justamente porque o mundo está mudando. Os conceitos estão sendo transformados, assim como a historiografia da arte, não só brasileira, mas mundial”.

MODERNISTAS, LINA E ABDIAS

Heráclito pondera que o “embate da arte popular como uma arte identitária no Brasil” teria sido inaugurado, de certa forma, pelos modernistas. “Foram dois projetos modernistas que se destacaram naquele período: o sudestino, em torno de Mário de Andrade, da antropofagia etc., e o nordestino, em torno de Gilberto Freyre, com o movimento regionalista”, lembra. “Esses dois projetos são muito distintos, mas tinham algo em comum, que era pensar a cultura popular como a identidade da arte brasileira, já que no século XIX toda a produção de arte brasileira era uma cópia da Europa. Mas os modernistas ainda vão estabelecer uma dicotomia entre a arte do povo, primitiva, autodidata, e a arte da elite, acadêmica ou uma arte mais de vanguarda”.

Segundo o curador, entre esses dois polos modernistas, Lina Bo Bardi (1914-1992) e Abdias do Nascimento (1914-2011) foram fundamentais em sua luta para “para desmanchar, dissolver essa dicotomia entre o erudito e o popular”, algo que busca reverberar em Reversos e Transversos. Para Heráclito, Lina foi muito importante porque começou a pensar os espaços expositivos de uma forma imersiva e refletir, sobretudo, sobre a questão afro, a questão indígena e a formação da própria cultura brasileira.

“E essa é uma cultura que se constrói a partir de diálogos, de negociações entre toda essa diversidade que é o Brasil. Mas Lina começa a construir todo esse sentido de uma forma não hierárquica, ela coloca tudo no mesmo patamar. Uma escultura do Aleijadinho com um ferro de um santeiro, como José Adário (1947). Uma carranca de Mestre Guarany com uma pintura de Portinari (1903-1962) ou Djanira (1914-1979)”, diz.

Já Abdias do Nascimento, ressalta o curador, promoveu uma reflexão importante em sua formação: aqueles artistas populares, ditos primitivos, eram tratados daquela forma porque eram negros. “Ele me ensinou, também, que dentro da história da arte brasileira há o racismo estrutural. E pensar esse racismo estrutural, a misoginia, as questões de gênero e sociais para mim é fundamental para desenhar os novos caminhos da história da arte brasileira”, argumenta.

“O que nós estamos fazendo com essa exposição é tentar escrever um capítulo, um artigo, sobre esses temas. Por isso que os textos [apresentados na mostra] são muito importantes para acompanhar não só o que está sendo exibido. São um discurso, um posicionamento político e ideológico frente a questões que são importantíssimas”, afirma. “E esse período da Bienal é um momento mais que perfeito, porque existe uma confluência muito grande. Não é à toa que a Bienal de São Paulo, nessa edição, é mais negra, feita não só por artistas, mas também curadores negros”.

SERVIÇO
Reversos e Transversos: artistas fora do eixo (e amigos) nas bienais
Até 28/10
Curadoria: Ayrson Heráclito
Galeria Estação – Rua Ferreira Araújo, 625 – Pinheiros – São Paulo (SP)
Horários: segunda a sexta, das 11h às 19h; sábados, das 11h às 15h; não abre aos domingos
Entrada:

Esquecer? Jamais! Lembrar? Sempre!

Em seu livro, Esculpir o tempo, o cineasta russo Andrei Tarkovsky (1932-1986) nos lembrava que: “o tempo constitui uma condição da existência do nosso ‘eu’. assemelha-se a uma espécie de meio de cultura que é destruído quando dele não mais se precisa, quando se rompem os elos entre a personalidade individual e as condições de existência”.

O tempo que nos cerca está diretamente ligado à memória. Memória de um tempo que vivemos, memória que nos alegra e que nos assombra. No caso do Marcelo Brodsky, 68 anos, fotógrafo argentino e ativista de direitos humanos, a memória é uma maneira de apontar e nos lembrar das crueldades do mundo: das perseguições, das injustiças, dos genocídios, das ditaduras! E a linguagem que ele escolheu para preservar esta memória foi a fotografia. Descendente de judeus russos emigrados para a Argentina, Brodsky nasceu em Buenos Aires, em 1954, e começou a fotografar na década de 1980, período em que esteve exilado em Barcelona por conta da ditadura militar em seu país natal. Na Espanha, enquanto cursava economia e fotografia, começou uma série de registros fotográficos em torno da imigração, tema presente em toda sua carreira. “Como artista judeu, necessito de imagens para expressar a importância da memória e explorar a relação com o tempo presente”, declara Brodsky.

Desta forma, o fotógrafo, durante sua carreira, resolveu acompanhar os percursos dos exilados, escolheu ser a voz dos que desapareciam pelas mãos dos ditadores, sofriam ou eram rechaçados pelas sociedades ocidentais, por suas escolhas políticas, por questões raciais. Suas imagens, suas narrativas poético-políticas podem ser acompanhadas no Museu Judaico de São Paulo (MUJ) na exposição Marcelo Brodsky: Exílios, Escombros, Resistências, uma retrospectiva de sua carreira com curadoria do crítico Márcio Seligmann-Silva: “A obra de Brodsky nasce de sua trajetória como exilado político, onde cruzam-se histórias de violência e destruição que desenham um painel da Modernidade, sendo  um local de aniquilação, mas também palco de lutas, de sonhos e de utopias”, pontua o curador sobre o artista, que trabalha na zona de encontro entre arte, história, arquivo e circuitos de informação. O caráter revolucionário da fotografia como registro contra o esquecimento é ressaltado pelo curador no texto expositivo. “Marcelo Brodsky é um artista fotógrafo, além de colecionar, ele intervém em outras fotografias, escrevendo, desenhando”.

Sã0 130 imagens histórias, revisitadas, recontextualizadas, que atravessam a história das ditaduras e suas feridas na América Latina, mas também apontam para o genocídio na Namíbia, no início do século XX, e a questão dolorosa dos refugiados e imigrantes no mar Mediterrâneo.

EIXOS CURATORIAIS

Para dar conta de tantas problemáticas a exposição organizada ao redor em três eixos: a questão dos Exílios como o primeiro deles, em séries como Migrantes – No Mediterrâneo e Abrir as Pontes, sobre problemas humanitários e a questão dos refugiados. No segundo eixo, Escombros, ele traz outra série, Remains – Escombros – AMIA, referente ao ataque terrorista sofrido pela Asociación Mutual Israelita Argentina em 1994, que deixou 85 mortos. Já em Resistências, o terceiro eixo, abre-se uma nova perspectiva para além das histórias de violência captadas por suas lentes, como, por exemplo, intervenções em que aparecem injustiças durante o período da ditadura na América Latina, questões de gênero e raciais nos Estados Unidos e no mundo afora.

Não poderia faltar na exposição a questão do assassinato da Marielle Franco em 2018. A fotografia da vereadora, realizada por Bernardo Guerreiro, foi multiplicada em diferentes cores ao estilo das séries Death and Disasters, de Andy Warhol. Pena que ficou faltando a imagem do motorista, também assassinado junto com a vereadora, Anderson Gomes.

A exposição, como bem pontua o curador, é “um colecionismo crítico de imagens dos séculos XX e XXI. Ou, como nos lembrava o filósofo da memória Henri Bergson (1859-1941), “na realidade, não há percepção que não esteja impregnada de lembranças”.

SERVIÇO

Marcelo Brodsky: Exílios, Escombros, Resistências
Até 5/11
Curadoria: Márcio Seligmann-Silva

Museu Judaico de São Paulo Rua Martinho Prado, 128 Bela Vista São Paulo (SP)
Horários: terça a domingo, das 10h às 19h (última entrada às 18h30), exceto  quinta-feira, que abre ao meio-dia e fecha às 21h
Ingressos: R$ 20 inteira; R$10 meia. Sábados: gratuitos