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Fotos: arquivo pessoal
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Fotos: arquivo pessoal
Até o dia 22 de outubro, a Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre (RS), recebe Ajuntamentos, do artista plástico mineiro Afonso Tostes. A exposição traz desdobramentos da mostra de mesmo nome que no início do ano marcou a estreia de Tostes na Galeria Luciana Brito, em São Paulo – até então, ele era representado na capital paulista pela Milan.
Na Fundação gaúcha, ao centro da expografia, o público encontra grandes esculturas de madeira que remetem a formas totêmicas, como bem definiu Luisa Duarte em seu texto curatorial para exposição realizada anteriormente em São Paulo. As obras foram criadas a partir de troncos, em sua maior parte recolhidos no Parque Ibirapuera, na capital paulista, mas também no Rio de Janeiro, onde Tostes mora.
Marcam essas esculturas uma “estabilidade tênue”, também como descrito por Duarte. Um equilíbrio delicado mantido, sugere Tostes, com o apoio de cunhas e estruturas delgadas e retorcidas, que imitam galhos, também feitas pelo artista com pedaços de madeira, e a que ele chama de bengalas.
“Eu comecei a desenvolver esses trabalhos há pelo menos uns cinco anos, antes mesmo da exposição na Luciana Brito, mas eles não haviam sido mostrados até então”, conta Tostes à arte!brasileiros.
“Eles, no entanto, não representam uma grande ruptura em relação à minha linha de trabalho, tampouco seguem uma sequência lógica. Meu processo criativo sempre está ligado aos materiais que vou recolhendo e com que eu vou convivendo dentro de meu estúdio”.
As ideias que afloram dessa convivência, afirma Tostes – dentro de seu campo de pesquisa sobre natureza, meio ambiente e relação com o ambiente, urbano ou natural – ficam “fervilhando” em sua cabeça até desaguarem nas obras que apresenta ao público. “Quando eu faço uma exposição como Ajuntamentos, estou não somente juntando aquelas ideias, como também trabalhando minhas referências, vivências, a observação daquilo que, eu entendo, me forma como artista”.
Tostes também afirma que essas obras refletem ainda suas ideias acerca do meio cultural e artístico numa estrutura mercadológica. “Uma estrutura também mais ampla, que define o que é arte contemporânea, em contraponto a informações que vêm de um lugar que não se relaciona com a arte como um produto, a ser exibido dentro de contextos mercadológicos, por sua vez, e por isso historicamente aceitos”.
Além das esculturas de madeira, em Ajuntamentos, Afonso Tostes reapresenta a série Reforma, com telas feitas a partir do pó da madeira, resultante do lixamento das esculturas, e que faz as vezes de “tinta”. Na Fundação Iberê Camargo, Tostes acrescentou novos trabalhos à mostra original, feitos in loco, durante duas temporadas em Porto Alegre, a exemplo de duas xilogravuras e uma série de gravuras.
O artista ressalta que a busca por uma ideia de essência e de simplicidade percorre toda a sua obra. Em texto feito para a exposição na Fundação Iberê Camargo, ele afirma que tenta “encontrar beleza na poética mais simples possível”. Isso, diz ele, é evidenciado em sua relação com estruturas – em criações anteriores, um exemplo disso é o “jardim de ossos” que em 2010 ele “plantou” no Museu da Casa Brasileira, em uma exposição com curadoria de Agnaldo Farias.
Em Ajuntamentos, seus troncos sustentados por bengalas são, novamente, estruturas, mas já “não tão confiáveis”, desequilibradas pelas próprias intervenções do artista, diz Tostes, seja pelo corte quanto pela tentativa de reconstrução “daquilo que não mais está lá”, ou seja, as árvores de onde vieram.
Tostes faz questão de ressaltar que Luciana Brito foi uma importante interlocutora no processo de criação de Ajuntamentos, tanto em São Paulo quanto em Porto Alegre. Já a galerista afirma que costuma trabalhar sempre de modo próximo aos artistas: “Eu lido muito deste jeito com aqueles que represento. É como uma parceria, em que conversamos sobre o projeto, ajudo com minha experiência com montagens etc.”, explica Luciana. “Ao mesmo tempo, eu dou muita liberdade aos artistas. Eles fazem suas exposições exatamente como planejaram”.
Parte desta parceria com Luciana Brito, que frequentava de modo recorrente o estúdio do artista, garantiu a Tostes a possibilidade de produzir suas peças, em especial os grandes troncos de madeira, em São Paulo, numa oficina que a galerista conseguiu prover. Também na Fundação Iberê Camargo, conta Luciana, a galeria foi bastante participante na instalação das obras de Tostes. “É preciso ressaltar que o Emilio Kalil também dá muita abertura para essas colaborações. Ao fim, foi um trabalho feito a seis mãos”, assevera.
Luciana salienta ainda que Ajuntamentos ampliou o leque artístico Afonso Tostes. “Ele abriu várias frentes em ambas exposições. Os trabalhos com jornais, que não haviam sido mostrados em São Paulo, são um exemplo. Já as esculturas são todas inéditas, e as pinturas estão fazendo muito sucesso porque ele sempre foi mais conhecido como escultor. Inclusive do ponto comercial podemos afirmar que a gente vendeu superbem”.
Ainda que haja novidades em Ajuntamentos, Luciana faz questão de ressaltar que há sempre muita coerência no trabalho de Tostes. “Ele tem uma investigação muito própria, em que se utiliza de materiais que vai encontrando e recolhendo, algo que também vale para as ferramentas que usa. Dentro desse universo, que pode parecer limitado, ele consegue uma variação superimportante de narrativas sobre a natureza”, argumenta. No panorama da arte contemporânea brasileira, afirma Luciana, Tostes tem uma presença de destaque, com um trabalho muito singular, em que é fiel à sua pesquisa como artista, desde os anos 1980 ou mesmo um pouco antes.
Sempre que se aproximava o aniversário de Vilma Eid, sua mãe costumava presentear a filha com uma obra de arte, fosse um quadro ou uma escultura. Aos 21 anos, já casada, sua mãe a levou para a Cosme Velho Galeria de Arte, do marchand Cesar Luiz Pires de Mello. Vilma recorda-se que havia paredes inteiras cheias de quadros, com uma iluminação escura. Isso não impediu que ela fixasse seu olhar em uma das pinturas que, ela reconhece, marcou um ponto de ruptura na sua relação com artes.
“Eu vi uma relva com dois boizinhos. Meu olho ficou grudado naquilo. Eu não sabia que era de José Antônio da Silva [1909-1996]”, conta Vilma. “Mas eu quis aquele trabalho, e tanto a minha mãe quanto o galerista me desaconselharam, falando que o artista era um primitivista, que a gente não sabe se vai dar em alguma coisa. ‘Escolha uma coisa mais moderna’, disseram. E eu acabei escolhendo outra obra”.
A pintura com relva e os bois, no entanto, não saíram da lembrança de Vilma. Nos anos 1980, ela soube que José Antônio da Silva morava em São Paulo, na Vila Mariana, e quis conhecê-lo. “Ele foi muito prestigiado em vida, participou de 17 bienais pelo mundo, seis delas a Bienal de São Paulo”, conta a galerista. “Sempre digo que foi ele quem me colocou nesta vida. Quando as pessoas me falam que escolhi esse nicho, eu digo que não escolhi nicho nenhum. Foi um despertar”.
À época, Vilma Eid era sócia de uma galeria aberta em 1986, mas ela já atuava no mercado de arte como uma marchand independente, uma trajetória que em 2023 comemora 40 anos. Ao passo que sua Galeria Estação – que até o dia 28/10 exibe a coletiva Reversos e Transversos – foi aberta em 2004, depois que ela reuniu uma coleção consistente, comprando muitas obras em viagens Brasil afora. Em 2024, a galeria completa duas décadas de atividades.
“Naquele momento, no entanto, eu não pensava em abrir outra galeria, porque o confisco das poupanças no Governo Collor, que havia afetado os negócios da galeria anterior, de que eu fora sócia, me deixou traumatizada”, diz. “Minha ideia inicial era deixar meu acervo exposto ao público, apenas. Com o passar dos tempos, vi que não iria dar certo, porque as pessoas queriam comprar, mas eu dizia que não vendia. E havia muitos artistas vivos ainda, que dependiam de mim. Então resolvi abrir a galeria”.
À época da inauguração, Vilma conta que a recepção de sua galeria, no mercado de arte brasileiro, não foi boa. As pessoas que vinham aqui me perguntavam ser um espaço expositivo do estado ou da prefeitura, achavam que era algo institucional, museológico”, conta a galerista. “Foi preciso fazer muita pressão, inclusive de amigos como o Marcelo Araújo e o Ivo Mesquita, para que houvesse uma aceitação por parte do mercado”.
Ao longos dessas décadas, Vilma reconhece que fez um “trabalho de formiga” pelo reconhecimento da arte dita popular. “Foi água em pedra dura tanto bate até que fura. Houve muita rejeição, porque havia uma confusão do que era arte e o que era artesanato”, conta. Seu trabalho, no entanto, surtiu efeito ao longo dos anos, não somente junto a colecionadores, mas também instituições, a exemplo do Masp.
“Foi uma epifania, que também se vê hoje na programação da Pinacoteca. E fora do Brasil houve ponto de virada, em 2012, quando a Fundação Cartier, de Paris, faz uma exposição com artistas chamados populares. O Hervé Chander, diretor da instituição, não somente leva dez artistas da Estação para a mostra, como adquire obras para o acervo da Fundação”.
Motivos para celebrar a trajetória de Vilma Eid e as efemérides deste e do ano que vem, como se vê, não faltam. A arte popular brasileira e seus artífices agradecem.
Presente em ao menos cinco exposições recentes, três delas ainda em cartaz, o baiano Acervo da Lage é uma das mais originais iniciativas no circuito da arte e cultura do país. Ele está na mostra Ensaios para o Museu das Origens, no Instituto Tomie Ohtake e no Itaú Cultural, em Dos Brasis, no Sesc Belenzinho, e César Bahia, no Museu de Arte do Rio (MAR), além de ter participado de A Memória é uma Invenção, no Museu de Arte Moderna do Rio (MAM Rio), e A Parábola do Progresso no Sesc Pompeia, ambas no ano passado.
Criado em 2010 pelos educadores Vilma Santos e José Eduardo Ferreira dos Santos, o Acervo da Laje reúne, em duas casas compradas pelo casal, uma coleção de centenas de obras que foram doadas pelos artistas ou seus amigos, muitas delas também encontradas para descarte. Como a primeira casa era em uma laje, o nome vem dessa situação.
Tudo começou com uma pesquisa a partir do doutorado em Saúde Pública de José Eduardo. Seu orientador, Gey Espinheira (1946-2009), o estimulou a estudar a beleza do Subúrbio Ferroviário. “Junto com Vilma e o fotógrafo Marco Illuminati começamos a fotografar o território, em 2010. Vilma e eu, diante da morte de cinco diferentes artistas do território, começamos a procurar pela cidade em brechós e mercados as obras desses artistas para que as pessoas do Subúrbio as conhecessem”, conta ele.
Das cinco mostras citadas, quatro são coletivas, que apresentam o Acervo da Laje em meio a outras coleções e territórios, apontando para seu caráter como um lugar fora do eixo que se coloca como um espaço que dá visibilidade a uma série de artistas/artesãos – a categoria aqui não é o que mais importa –
que não são conhecidos. Já a mostra do MAR é uma espécie de passo a diante, pois, ao se dedicar a um dos artistas no Acervo, César Bahia, com mais de 200 obras produzidas entre 2010 e 2023, passa a dar visibilidade e inserir seu nome de maneira institucional.
Pelos seis locais onde o Acervo da Laje é exposto, já que uma das mostras se divide em dois espaços, pode-se perceber como o circuito percebe a relevância e a originalidade desta iniciativa. Ele é apresentado em seu site como “um espaço de memória artística, cultural e de pesquisa sobre o Subúrbio Ferroviário de Salvador”. Nesta região vive cerca de 10% da população da capital baiana.
Entre os curadores que passaram pelo Acervo, estão ao menos duas que cuidaram da Documenta de Kassel, como Ruth Noak e Marina Fokidis, e três envolvidos em edições passadas da Bienal de São Paulo, como Lisette Lagnado, Pablo Lafuente e Paulo Miyada.
Atualmente, 611 obras de 30 artistas estão acessíveis no site, além de outras categorias gerais como Azulejaria, Coleção Inicial, Brinquedos ou A Beleza do Subúrbios, entre outras. Esta última sessão, por exemplo, reúne fotografias digitais que participaram da exposição A Beleza do Subúrbio realizada com alunos de São João do Cabrito e Itacaranha que participaram de uma mostra em dezembro de 2013, no bairro do São João do Cabrito.
José Eduardo, que estava na abertura de Dos Brasis, em agosto passado, mandou um depoimento por e-mail sobre o projeto, a partir de uma pergunta bem ampla, que dizia respeito a como o Acervo foi criado e se obras que pertencem a ele são vendidas. Para ajudar na leitura, fizemos algumas divisões temáticas na reposta:
José Eduardo – Nós começamos o Acervo em 2010 a partir de uma pesquisa sobre a arte invisível dos trabalhadores da beleza nas periferias de Salvador, pois, quando terminei o doutorado em Saúde Pública, estudando as repercussões do homicídio entre jovens da periferia, o professor Gey Espinheira me pediu para que eu estudasse a beleza do Subúrbio Ferroviário de Salvador e aí junto com Vilma e o fotógrafo Marco Illuminati começamos a fotografar o território, em 2010. Vilma e eu, diante da morte de cinco diferentes artistas do território, começamos a procurar pela cidade em brechós e mercados as obras desses artistas para que as pessoas do território as conhecessem. Como morávamos numa casa na laje surgiu o Acervo da Laje em 2010, e tivemos que nos mudar depois para uma casa alugada até construir a nossa casa, em 2015, que também faz parte do Acervo da Laje.
José Eduardo – As obras foram e são compradas, encontradas em descartes ou recebidas em doação por artistas, moradores e amigos/as. Na época inicial eu fazia um pós-doutorado pelo PNPD, e isso nos ajudou muito na pesquisa, identificação de artistas e depois começamos a fazer dois projetos para tornar visíveis esses artistas e as obras. São 13 anos de trabalho, e não sabíamos o que tínhamos nas duas casas. Durante a pandemia conseguimos um edital para catalogar as obras iniciais no site, assim como a criação da hemeroteca, tudo isso com a participação de muitas pessoas do território, particularmente jovens e moradores que participavam das ações com profissionais das áreas de museologia, arquivo, design e outros.
Mensalmente tirávamos uma parte dos nossos parcos ganhos para comprar as obras para gerar e difundir a criação artística do território. Vilma dava “banca” [aulas de reforço escolar] aqui no Acervo, e eu era professor universitário, mas durante a pandemia adoeci e pedi demissão da universidade, pois cheguei a receber R$ 250 como salário. Aí paramos de comprar as obras com mais regularidade. Mas, antes disso, as coleções já estavam formadas nas duas casas e se constituem como parte do Acervo da Laje.
Nós não vendemos as obras, pois elas fazem parte do Acervo da Laje, que é o único museu-casa-escola do Subúrbio Ferroviário de Salvador, e também há muitos materiais e obras que encontramos descartadas como placas, tijolos de antigas olarias, esculturas e tudo isso também faz parte do Acervo. Quando conseguimos aprovar um projeto também reservamos um pequeno recurso para comprar as obras, pois consideramos que isso é importante para o território e seus/suas artistas.
José Eduardo – Somos cuidados por uma grande quantidade de pessoas que nos ajudam a desenvolver as ações como oficinas, bate-papos na laje, visitas guiadas e depois do site surgiram os convites para exposições no MAM Rio, MAM-BA, Sesc Pompeia, e agora no Solar Ferrão com Brasil futuro: as formas da democracia, no MAR Rio e no SESC Belenzinho. Talvez a ideia do Acervo seja a de mostrar o invisível e quebrar os cânones hegemônicos das artes brasileiras, e por isso sempre dialogamos com muitos curadores como Keyna Eleison, Pablo de La Fuente, Marcelo Campos, Clarissa Diniz, Igor Simões, Lisette Lagnado, André Pitol, Yudi Rafael, João Angelino, Ayrson Heráclito, Marina Fokidis, Ruth Noack, Luiza Proença, os curadores da 31ª Bienal de São Paulo, na qual fomos convidados para falar.
Participamos da terceira Bienal da Bahia e antes disso fizemos muitas exposições aqui nas lajes das periferias de Salvador com o projeto #Ocupa Lajes em duas edições (2016 e 2018), movimentando a cidade inteira. Ou seja, desde o surgimento o Acervo da Laje sempre buscou um não nivelamento por baixo do que é ser um espaço de arte e memória na periferia, sempre dialogamos com todas as pessoas que nos visitam, desde crianças, jovens e adultos e pessoas do mundo inteiro, pois as artes brasileiras precisam conhecer as produções de artistas das periferias, e eles e elas devem ter seus nomes na história, e não mais ser considerados fazedores de uma arte menor.
José Eduardo – Do mesmo jeito que a memória das periferias precisa ser contada por nós, assim precisa ocorrer com a democratização das curadorias, sempre em diálogo. E quando uma pessoa se interessa por um artista nós indicamos os próprios para não sermos nós os novos colonizadores, rs. É isso. O Acervo da Laje nasce de um casal, se multiplica na coletividade do Subúrbio Ferroviário de Salvador, está ligado às novas gerações que começam a trabalhar com cultura e arte, e nas exposições que fazemos fora daqui tentamos levar o máximo possível de pessoas para irem conosco e ter um outro horizonte, não mais aquele que era relegado à nos, a invisibilidade e a exclusão. Enfim, trabalhamos sem dinheiro, mas com muita curadoria e diálogo, e quando a coisa aperta fazemos campanha, pedimos apoio, mas nenhum apoio formal até hoje nos foi concedido. Tudo é sempre – e sempre será – com muita luta, pois viver de arte e memória no Brasil é um desafio. Mas nós gostamos de desafio. E, como sempre, temos sido muto bem cuidados fora da Bahia, rs.
Nova exposição do MAM São Paulo apresenta o projeto de reforma realizada no início dos anos 1980 pela arquiteta ítalo-brasileira Lina Bo Bardi.
Com curadoria de Gabriela Gotoda e Pedro Nery, a exposição fica em cartaz até 28 de janeiro de 2024 com documentos e desenhos do projeto de Lina.
No vídeo, você confere a conversa com os curadores:
A galeria A Gentil Carioca desembarcou em São Paulo há um ano e meio e instalou seu espaço expandido numa charmosa travessa sem saída, em Higienópolis. Denilson Baniwa expõe atualmente um conjunto de obras com o humorado título Moqueca de maridos, reunindo trabalhos que abordam conceitos defendidos por ele, como o impacto do sistema colonial de catequese sobre os indígenas e a preservação da cultura de todas as etnias. Denilson é ativista e atua também na publicidade, cultura digital e no hackeamento, construindo uma imagética indígena que circula em revistas, filmes e séries de TV.
Visito a mostra com ele. Todas as obras expostas têm a ver com sua pesquisa sobre o contato do mundo ocidental com os indígenas. Denilson fala dos estragos provocados pelas construções de internatos indígenas que funcionavam em internatos católicos, edificados em territórios indígenas. “Na minha região, interior do Amazonas, havia algumas dessas instituições que obrigavam as crianças a irem para lá e esquecer seu idioma e sua identidade. Meus pais e avós foram internados também e ficaram com traumas. A presença de estrangeiros na catequese contribuiu para o desaparecimento do idioma de indígenas de várias etnias por todo o Brasil”.
Arbitrariedades e ameaças ainda hoje se alastram por várias localidades e causam terror, por isso muitos indígenas se tornam católicos, e os que resistem são demonizados. O nome da exposição é o retirado do livro Moqueca de Marido: Mitos eróticos indígenas, de Beth Mindlin. “A publicação reúne vários contos sensuais, eróticos escatológicos, que eu trouxe para dentro da pesquisa. A catequização criou o tabu do pecado, com toda forma de punição, inclusive reprimindo a liberdade sexual, por exemplo, e isso traz traumas. O abuso é histórico, mas agora temos a possibilidade de reestruturar a sociedade indígena. É claro que sabendo o que ocorreu no passado e ainda acontece, é preciso que se faça a reconstrução, e que seja a partir de hoje”.
Denilson aponta o excesso de outros mitos vindos de fora, seja por conta da religião ou da cultura de massa. “Nesta exposição há trabalhos que falam de mitologias ainda ancestrais, um deles reconstrói a fala sobre a possibilidade de se encontrar o céu, um céu que a gente sabe que existe, mas não conhece, e que todo mundo fala que é bom”. Denilson comenta duas mitologias contidas nessa lenda. A primeira fala de uma festa no céu, onde só quem voasse poderia entrar. Um jabuti ouviu que o céu é divertido e quis ir, então se meteu na bolsa de um pássaro. Quando ele chegou lá não gostou do que viu, quis voltar, mas como não voa ficou por lá, escorregou e caiu na terra, por isso carcaça deles é achatada. “Quando a igreja católica chega e promete a nós a redenção no céu, ninguém entende que céu é esse, então a gente perde a força do nosso corpo e do pensamento que ficam à disposição desse tal céu. Esse trabalho fala desses possíveis céus que te escravizam”.
O antropólogo e cineasta Carlos Fausto, que assina a curadoria dessa mostra escreve em seu texto: “Denilson põe em cena as formas do comer, sexual e canibal, em que gente e bicho se misturam, a freira iluminada recebe um vibrador, a anta com seu enorme pênis dança colada à moça, um casal suga um espaguete de tripas e uma mulher devora delicada e sensualmente o braço do marido, deitada em sua rede-canoa estendida no infinito. Eu quero é moqueca!” Quando acabei de ler pensei, ufa! ainda bem que não me confundi com esse texto que tem a alma da exposição Forrobodó, cuja festa/vernissage aconteceu na matriz da A Gentil Carioca, em pleno centrão do Rio, com performances endiabradas com cara de carnaval antecipado.
Gostaria de agradecer em meu nome e das equipes de arte!brasileiros que passaram por aqui durante estes 12 anos pelo Prêmio Antônio Bento, outorgado pela Academia Brasileira de Críticos de Arte (ABCA), no ano de 2019, aos Seminários –Arte!Brasileiros e que será entregue na terça-feira, 3 de outubro de 2023, no Sesc Vila Mariana.
Os Seminários surgiram em 2010, como uma iniciativa junto à revista arte!brasileiros, àquela época só impressa, bilíngue, e que era distribuída no Brasil e em dez importantes cidades no mundo, por meio da mala direta do Itamaraty, numa parceria com o Ministério das Relações Exteriores.
Duas certezas norteiam o esforço de realizar esses encontros. Primeiro, criar pontes. Entendendo a importância de trazer para o Brasil profissionais-chave do circuito da arte e da cultura contemporânea, desconhecidos por aqui, e também capazes de entrar em contato, mais diretamente, com uma produção nacional impactante, distante do que até pouco tempo ainda era entendido – tirando ícones como Tarsila do Amaral, Maria Martins, Lygia Clark, Hélio Oiticica, Cildo Meireles, Tunga, Amílcar de Castro –, como a cultura dos exóticos. Movimentos anti-hegemônicos e decoloniais efetivos datam de não mais de dez anos atrás. Só hoje Rubens Valentins ou Lorenzatos ganham espaço internacional.
A segunda é acreditar que na arte se concentra o conhecimento de sujeitos do seu tempo. Ela é uma espécie de ponta de iceberg, onde cada obra e cada exposição permite criar significados que falam de filosofia, de memória, do esquecimento, de pertencimento e, assim, criam cultura. Sem arte, sem literatura, a humanidade não se reconhece.
Nossos Seminários sobre o papel dos museus, sobre Gestão Cultural, sobre os Atravessamentos da arte, em Defesa da Cultura e da Natureza, em defesa da Democracia, dos Relatos, da Memória, da Reparação, sobre Colecionismo, trouxeram debates riquíssimos e antecipatórios, nas vozes de artistas internacionais como Alfredo Jaar ou Voluspa Jarpa, Paulo Tavares, da Forensic Arquitecture, ganhador da Bienal de Arquitetura de Veneza neste ano, ou Denilson Baniwa. Curadores como João Fernandes, do Reina Sofía, ou Jochen Voltz, muitos anos antes de se tornarem diretores do IMS e da Pinacoteca de SP, respectivamente, ou os curadores da Bienal de Berlim, Lisette Lagnado e Agustín Perez Rúbio, Moacir dos Anjos, curador e diretor da Fundação Joaquim Nabuco de Recife, Claudinei da Silva, hoje no Conselho do MAM e do MAC e Diretor do Museu Afro Brasileiros, Sandra Benítes, uma das curadoras da Bienal das Amazônias. Pensadores brasileiros como Peter Pelbart, Christian Dunker, Tania Rivera, Elisabeth Telsnig, da Suíça, o italiano Franco Berardi, Bifo. Dirigentes de instituições como a Garage da Rússia, o Guggenhein de Liverpool, o Vídeobrasil, Inhotim, a Bienal de São Paulo, o Masp, o Itaú Cultural, o Sesc.
E muitíssimos outros, que tornaram os encontros abertos e gravados – inclusive durante toda a pandemia, quando passaram a ser inteiramente virtuais – em verdadeiros espaços de troca e construção de conteúdos
O mais recente, o I Seminário Latino-americano, realizado em Buenos Aires, Argentina, em parceria com a BIENALSUR e a universidade UNTREF, cumpriu com mais um desejo: o de diluir fronteiras.
Agradeço especialmente a colaboradores como o jornalista e crítico de arte Fabio Cypriano, cuja interlocução foi fundamental ao discutir ideias, temas, convidados e estratégias, e a Eliane Massae, sem cuja competência e garra administrativa seria impossível viabilizar esses encontros.
Vamos, fortalecidos para os próximos. ✱
C
om 134 artistas e coletivos até o momento (preveem-se ainda novos alistamentos ao longo de sua duração, até 28 de janeiro de 2024), a mostra ReFundação, que reinaugurou no dia 2 de setembro, a Galeria ReOcupa, na Ocupação 9 de Julho (Rua Álvaro de Carvalho, 427), apresenta uma oportunidade inédita de se presenciar o resultado de uma exposição de artes visuais cujo impulso originador é totalmente democrático, inteiramente coletivista e de visões abertas. Para se ter uma ideia: com apoios privados, governamentais e de leis de incentivo, a 35ª Bienal de São Paulo tem 121 artistas convidados. A exposição da Ocupação 9 de Julho, organizada pela galeria com apoio do Movimento Sem Teto do Centro (MSTC) tem 134 participantes até o momento somente com o esforço coletivo de organização e montagem.
Não é por acaso que a Ocupação 9 de Julho tenha se tornado objeto de um foco extraordinário do sonar da arte nesse momento: a experiência de gastronomia popular da sua cozinha comunitária vem sendo uma das vedetes da recém-aberta 35ª Bienal de São Paulo – Coreografias do impossível, megamostra em curso no Pavilhão da Bienal do Parque do Ibirapuera. Montada também no esforço do voluntariado (a cozinha possui, por exemplo, um forno recolhido pelo artista Ding Musa de uma brasileira que fabricava bolos e, após casar-se com um alemão, foi viver na Europa e doou a peça), a cozinha foi aberta em 2017 e consolidou sua ação durante a pandemia de Covid-19, servindo hoje cerca de mil refeições diárias (metade delas para pessoas em situação de rua) e utilizando produtos orgânicos oriundos da agricultura familiar e de sua própria horta.
Instalada de forma simbiótica no edifício da Ocupação, na galeria do térreo e nos 1º, 2º e 3º andares, entre os apartamentos e a rotina das cerca de 400 pessoas que moram ali, tendo moradores como monitores de visitação, a mostra ReFundação se insere numa perspectiva utópica da mobilidade social da arte que teve início com o desenhista, escultor e professor carioca Nelson Felix há exatos cinco anos. Em 2018, durante a 33ª Bienal de São Paulo, Felix, comissionado pela fundação para fazer uma obra, escolheu realizar seu trabalho fora do Ibirapuera, na Ocupação. Aquela obra, intitulada Esquizofrenia da forma e do êxtase, cuja duração seria de 24 horas e abrangeria o equinócio de primavera (que, em 2018, ocorreu às 22h54 de 22 de setembro), consistia em uma escultura composta de ferro, cabo de aço e dois mandacarus de sete metros cada nas empenas do edifício (continuidade da série de esculturas que Felix montara no 2º andar do Pavilhão da Bienal). Após a instalação das peças, o artista utilizou a parede dos banheiros da galeria da ocupação para esquematizar seu trabalho (e princípios) em desenhos in situ, à maneira dos pintores de natureza morta. Essa intervenção ainda está ali, como se passasse o bastão para a nova exposição em curso.
Na escada interna do prédio que dá acesso aos três andares há um painel em tecido fosco com um desenho inédito de 7 metros de comprimento de Lia Chaia, a Ossilda (2023, com a figura de um esqueleto humano sobreposto à fotografia da fachada do edifício), que acompanha o visitante no percurso. Não há hierarquização de espaços entre artistas consagrados, como Rivane Neuenschwander, Ernesto Neto e Leda Catunda, e os próprios coletivos de artistas locais, como as Bordadeiras Ocupa (o grupo Borda & Ocupa MSTC), formado por 13 pessoas, especialmente mulheres da ocupação.
“A exposição propõe a revisão das marcas e rachaduras políticas existentes em nossa narrativa histórica, ao mesmo tempo que reflete a necessidade de criar outras formas de pensar, relacionar-se e praticar arte no mundo”, disse a artista Preta Ferreira, artista e ativista que ficou mais de 100 dias presa por sua atuação no Movimento Sem Teto do Centro e na Frente de Luta por Moradia da cidade de São Paulo. A definição de Preta Ferreira circunscreve as motivações que propiciaram a aglutinação de artistas presentes na ReFundação: a preocupação social, a militância pelos direitos fundamentais do ser humano, o comprometimento e a proximidade com os movimentos sociais e as temáticas afirmativas.
O artista Guilherme Bretas, por exemplo, foi buscar no passado pioneiro o material para seu acionamento estético entre memória, política, tecnologia e História. Ele montou, em um monitor antigo, uma animação que se utiliza de fotos do século XIX de pessoas negras encontradas no acervo do pioneiro fotógrafo Militão Augusto de Azevedo (1837-1905). Com o uso de Inteligência Artificial, Bretas criou uma animação das fotografias anônimas, exibidas em preto & branco com uma nova “vida”, segundo explicou. “Ao mergulhar no acervo do Militão, eu encontrei fotografias de pessoas negras de todo tipo, como por exemplo engenheiros, arquitetos. Isso foi algo que mexeu comigo, com a visão que nos passaram. A gente sempre tem essa ideia de que os negros estavam limitados ao trabalho escravo no período”, disse.
André Komatsu faz duplo papel na ReFundação: integra um comitê de organização curatorial e expõe ali, ao mesmo tempo, seus trabalhos. Na galeria grande, Komatsu expõe Crónica, um trabalho da série Contrato Social que ele iniciou em 2018, origami de folha de chumbo com a qual ele cobre parte do corpo de um exemplar de um determinado veículo de imprensa (deixando de fora apenas o nome da empresa jornalística). O objeto forma uma espécie de escudo. “Pensando no material, tanto no jornal quanto no chumbo, vejo essa dupla função, tanto de proteção quando de envenenamento”, ponderou o artista. “O chumbo, ele é tóxico; o jornal, a tinta utilizada, também é tóxica. E vendo essa relação de veiculação de informação como uma das bases fundadoras e construtoras da realidade, (constato) que é uma informação que é coordenada, manipulada e direcionada de acordo com interesses privados. Por isso, nessa série, eu proponho várias reformulações geométricas e deixando só o nome do veículo”. Crónica é o nome de um jornal mexicano.
Komatsu, assim como Ding Musa e outros integrantes da mostra, integram o corpo de decisões coletivas que articulou a exposição. Como é uma ação coletiva, a resposta também para as questões de arte!brasileiros sobre o processo de escolhas também foi elaborada coletivamente e enviada após pequeno debate. “A desierarquização de artistas, evidente e intencional na mostra, é manifesta não somente como proposta organizacional, mas sobretudo como apontamento para os modos diversos e legítimos de existir, em sociedade e na arte”, afirmam os organizadores na resposta. “Esse modo não-vertical de operar está presente na mostra e na forma de organizarmos a Galeria ReOcupa. Desde o início, todas as decisões tomadas partiram de uma discussão coletiva e horizontal”.
Dessa forma, o artista já está integrado a uma ideia, a um propósito, contido no tema da ReFundação. “Ao longo de sete meses de organização da mostra, cada membro do coletivo indicava artistas que eram votados pelo grupo. Depois disso, as listas eram analisadas para que houvesse paridade entre os artistas. Houve um processo longo e democrático para a garantia do equilíbrio de presenças. Desse modo, a desierarquização não apareceu espontaneamente no resultado. Ela foi fruto de um trabalho consciente, democrático e criterioso de conversas e ajustes”, explicaram os articuladores da mostra.
A afinidade pode então ser demonstrada pela própria proximidade, como é o caso dos artistas que já vivem ali, caso de André Chiarati, morador do 13º andar, ou pela longa colaboração, caso do coletivo JAMAC (sigla para Jardim Miriam Arte Clube, um espaço cultural da zona sul de São Paulo, criado pela artista Mônica Nador em 2004, com ação e gestão coletiva).
Isso poderia dar margem à conclusão de que predomina o discurso, a abordagem panfletária. Não há uma satanização do panfleto, pelo contrário: do tríptico da consagrada Cinthia Marcelle (desenho no qual uma arara de camisetas e a primeira traz a inscrição “A propriedade privada criou o crime”) às placas do Arquivo Mangue (Camila Mota e Cafira Zoé), com frases como “Tudo que é vivo corrói”, a política permeia as intervenções. Essa política é, entretanto, a admissão de que é preciso atuar continuamente no tecido social para afirmar as vontades comuns, os direitos, as percepções, e isso vai da Cozinha Ocupação 9 de Julho (“Cozinhar é revolucionário”) às fotografias dos Retratistas do Morro – um trabalho de recuperação da experiência de fotógrafos que viveram e trabalharam nas favelas registrando cotidianamente os modos de vida de suas comunidades ao longo dos últimos 50 anos.
Os temas caros à Ocupação, como moradia, alimentação, protagonismo social e emancipação predominam, mas há também obras que evocam embates muito recentes e novos. São os casos, por exemplo, dos trabalhos da Fumaça Antifascista e da obra Processo de Tombamento. Nesta última, Elton Hipólito apresenta o seguinte material de trabalho: “Tinta acrílica sobre tecido e escora de madeira sobre a Constituição Federal de 1988”. É uma reconstituição da invasão golpista às sedes dos Três Poderes brasileiros em 8 de janeiro deste ano, uma pintura dos golpistas com camisetas da seleção de futebol encarapitados na estátua simbólica da Justiça – toda a obra está escorada por um caibro de madeira, comentário do artista sobre a fragilidade da democracia. A ReFundação se realiza no terreno ainda quente da investidas fascistas recentes, mas seu testemunho é o da resistência e da força das estratégias de sobrevivência para adiante das circunstâncias.
“A partilha do espaço expográfico entre artistas já estabelecidos (em instituições e no mercado), de diferentes gerações, em início de carreira, eventualmente desinteressantes aos modelos de mercado, e artistas com menor visibilidade, são apontamentos para o desejo de uma sociedade em que todes possam usufruir de benefícios, de reconhecimento e das oportunidades geradas por suas produções”, afirmam os organizadores, que pretendem dar itinerância à mostra, levando-a por outros espaços culturais do país. Um dos indícios da ideia de se contrapor à lógica do mercado é que, da venda das obras, parte dos recursos será direcionado diretamente para necessidades do MSTC e parte será revertida, de forma equânime, em benefícios para todos os artistas participantes da mostra. A Galeria não visa lucro nem paga remuneração alguma aos membros organizadores, exceto aos dois educadores contratados e aos montadores da mostra.
O comitê de organização da exposição ReFundação teve como integrantes os seguintes artistas (e curadores): Andre Komatsu, Alan Oju, Alexandre Baltazar, Ana Avelar, Carla Cruz, Débora Bolzoni, Diana Vaz, Ding Musa, Georgea Miessa, Lourival Cuquinha, Lucas Bambozzi, Marcelo Zocchio, Marcius Galan e Tomaz Klotzel.
Uma instalação de Amelia Toledo, recém integrada ao acervo, e obras temporárias de Alexandre Brandão, DetanicoLain, Frida Baranek e Raphael Escobar são as novas obras do Jardim de Esculturas do Museu de Arte Moderna de São Paulo.
Conversamos com o museólogo Pedro Nery, com os artistas Raphael Escobar e Alexandre Brandão e com o curador Cauê Alves para saber mais sobre o novo conjunto de obras.
Esta edição traz uma apurada crítica à 35ª Bienal de São Paulo, que resultou numa agradável surpresa, tanto na sua impecável proposta expositiva, como na escolha dos diferentes representantes da cultura contemporânea, muitos deles completamente desconhecidos para o grande público.
Podemos comemorar! Estamos presenciando um movimento efetivo, e não apenas teórico, por parte das instituições culturais e educacionais, sobre a importância de reconhecer a cultura nacional e internacional como resultado das suas histórias, das suas memórias, da sua cor. Para quem deseja aprofundar academicamente essas reflexões, vale a pena considerar a opção de seminararbeit schreiben lassen sobre temas como arte, memória e reparação histórica.
Antes da Pandemia, já se vislumbrava uma busca de verdadeira independência dos cânones, em mostras como AI-5 50 Anos – Ainda não terminou de acabar, no Intituto Tomie Ohtake; Mulheres Radicais, na Pinacoteca; Histórias Afro-Atlânticas, no MASP e no TO, a 32a Bienal de São Paulo de 2016, Incerteza Viva. Pouco tempo depois, todo e qualquer avanço sofreu um retrocesso que nos submergiu, perplexos no retrocesso, durante os últimos cinco anos.
Muita coisa se perdeu, mas podemos comemorar que o poder das manifestações de coletivos e lideranças sociais junto à arte e sua força transformadora foram capazes de se impor a manobras de apagamento.
Repito aqui as palavras com que abri o I Seminário Latino-americano: Relatos, Memória e Reparação, realizado no começo de agosto deste ano, na cidade de Buenos Aires, em colaboração com a BIENALSUR. Parafraseando Markus Gabriel, um jovem filósofo alemão, em El Poder del arte, “a arte é aquilo que está na origem da nossa humanidade, da nossa concepção como animais diferenciados. A arte tem uma essência e esta essência está em permanente conflito com outras forças”.
Com as de instituições estagnadas, do elitismo ignorante. As do poder do fascismo, que os homens (nem todos, nem todes) teimam em exercer. Das tendências globais de controle econômico e das forças do mercado especulativo da arte, por exemplo.
Assim, sua essência irrompe, não importa a época, reinventa-se e, com sua liberdade e autonomia por natureza, de forma oblíqua, controla o poder.
Usando diferentes suportes: madeira, tijolo, argila, terra, água, sementes, panos, o corpo e até tinta, artistas desenvolveram um forte movimento contra teorias hegemônicas, que durante séculos tentam apagar corpos negros, o lugar e a força da mulher, a liberdade na identidade de gênero. A destruição da natureza.
Nesta 35ª Bienal, a escolha por diferentes sujeitos do seu tempo construiu um jogo atemporal, um trabalho de reflexão sobre o já dito e o que se diz. A presença da obra de Sidney Amaral, O estrangeiro, de 2011, nesta Bienal e na nossa capa, não é aleatória. Ela mostra um alerta anterior, que hoje se completa com a apresentação da imperdível instalação de Ayrson Heráclito e Tiganá Santana, Floresta de Infinitos, com a mostra do coletivo Zumví – Arquivo Aro Fotográfico, criado nos anos 1990 por jovens negros das periferias de Salvador, e que tem hoje seu trabalho reconhecido com eloquência, na mostra. Ou os panos do Bispo do Rosário em diálogo com Rosana Paulino.
Na edição ainda, várias das exposições importantíssimas que conversam com o espírito da Bienal durante este período, assim como a entrevista com a historiadora francesa, Anne Lafont, dedicada a estudar o lugar do negro na história da arte francesa.
Enquanto sejamos capazes de falar, de escrever e produzir obras de arte e nos encontrar com elas, seremos livres. Tal sua autonomia radical. ✱