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Instituto Moreira Salles: Um centro cultural de múltiplas vocações

Foto: Robert Frank

Com a inauguração de sua nova sede paulistana, no dia 20/9, o Instituto Moreira Salles (IMS) inicia uma nova fase. Serão mais de mil metros quadrados de espaço expositivo, dividido em três grandes galerias com pé direito duplo. O prédio, projetado pelo escritório Andrade Morettin Arquitetos, ainda conta com amplos espaços para uma biblioteca especializada em fotografia, com capacidade para até 30 mil publicações (no momento conta com 7 mil livros), salas para realização de cursos, oficinas, espetáculos de música, sessões de cinema, restaurante e livraria. Situado na Avenida Paulista, bem próximo à Av. Consolação e servido por duas estações de metrô, o espaço deve promover um crescimento exponencial do público alcançado pelo Instituto, lançando à organização o desafio de conciliar um trabalho para um público de massas sem perder de vista suas diretrizes básicas.

A instituição, que celebra este ano 25 anos de existência, tem eixos de ação muito definidos, sendo a fotografia sua principal área de atuação, seguida das áreas de música e literatura. A história do IMS está, desde seu nascimento em 1992, intimamente vinculada à ideia de preservação da cultura brasileira e a uma estratégia de aquisição, preservação, restauro e divulgação de importantes acervos, de nomes importantes como Marc Ferrez e Marcel Gautherot (fotografia), Album Highcliffe (iconografia), Chiquinha Gonzaga, Ernesto Nazareth e Pixinguinha (música), além de cuidar dos arquivos pessoais de 29 escritores brasileiros. Para se ter uma noção da dimensão da coleção, basta lembrar que apenas o acervo de fotografia reúne mais de dois milhões de imagens e não para de crescer. Tem também buscado, nos últimos anos, ampliar seu olhar para a produção contemporânea.

“Nossa ideia é oferecer uma programação que talvez o público não espere”

Outro aspecto importante na trajetória do Instituto, e que deve ganhar um enorme peso com o novo espaço, é o que Flavio Pinheiro, à frente do IMS desde 2008, define por uma “ambição curatorial crescente”. É verdade que anteriormente o Instituto possuía um espaço na Praça Buenos Aires, mas era uma sala acanhada, tímida, que não tinha condições de receber boa parte das exposições organizadas internamente. As exposições maiores realizadas nos últimos anos, com o material dos arquivos ou em parceria com importantes instituições nacionais e internacionais (como as de William Kentridge, Richard Serra, Anri Sala), quando vinham a São Paulo, eram mostradas em espaços parceiros, como a Pinacoteca, por exemplo. A sede carioca, que ocupa a antiga residência da família Moreira Salles no bairro da Gávea, é extremamente charmosa porém mais distante do público. Tem um público cativo, mas restrito. O terreno é amplo (11 mil metros quadrados, o que permitiu que todo o acervo passasse a ser guardado ali), mas seu espaço expositivo é relativamente pequeno. Apenas uma das três galerias de São Paulo já a supera em tamanho. E a sede de Poços de Caldas (cuja inauguração, em 1992, marca o nascimento do IMS) tem alcance apenas regional.

“Esse é o grande desafio. O Instituto tem muito prestígio, mas nunca teve de fato esse público, essa visitação mais rápida, mais variada. O objetivo é manter nosso padrão de qualidade. A gente não quer perder esse rigor”, ressalta Lorenzo Mammì, curador geral de programações e eventos do IMS.

A agenda preparada para a inauguração do prédio já sinaliza o caráter plural que a instituição pretende adotar. A antológica série The Americans, feita em 1955 por Robert Frank (além da exposição de fotografias, haverá também um curso sobre a geração beatnik e uma mostra de cinema), ocupará uma das galerias. O segundo espaço abrigará Corpo a Corpo, uma exposição coletiva de fotografia contemporânea brasileira, que reúne trabalhos de Bárbara Wagner, Jonathas de Andrade, Sofia Borges, Letícia Ramos, Garapa e Mídia Ninja. São imagens recentes, posteriores aos protestos de 2013, que parecem ter inaugurado um novo momento político e social no país, e que lidam com a corporificação da violência, do confronto, das tensões de classe e de poder. A Galeria 1 receberá a videoinstalação The Clock, de Christian Marclay – agraciada com o Leão de Ouro da Bienal de Veneza de 2011.

Exibição de The Clock, de Christian Marclay (Foto: Divulgação)
Exibição de The Clock, de Christian Marclay (Foto: Divulgação)

A tendência – como se pode notar –  é privilegiar as imagens técnicas, produzidas com aparelhos. “A foto renova-se em sua banalidade digital. Ela não acabou, o que torna ainda mais exigente o nosso papel de mediador”, explica Pinheiro. O cinema também terá seu lugar de destaque, ocupando, com uma intensa programação, o auditório multimídia com 150 lugares (que tem condições de projetar tanto filmes analógicos como digitais, bem como preparo acústico para eventos musicais). O objetivo é trabalhar o caráter diverso da produção audiovisual, complementando a já vasta programação cinematográfica existente na Paulista e combinando o novo e o antigo, uma seleção de produções recentes de acesso mais restrito com a divulgação de um vasto e mais desconhecido material de arquivo, de caráter mais histórico. “Nossa ideia é oferecer uma programação que talvez o público não espere”, afirma o cineasta Kleber Mendonça Filho, consultor responsável por essa programação.

A presença de The Clock, que sincroniza em tempo real diferentes imagens de relógios capturadas no cinema, serve de gancho para uma ação ousada: a decisão de manter, um dia por semana, o instituto aberto 24 horas. Mais do que permitir que o trabalho seja apreciado na íntegra e transgredir os limites rígidos de funcionamento, esse horário alternativo tem por objetivo reafirmar o vínculo entre o novo espaço e seu público, dando corpo a um centro de cultura plenamente integrado com a cena urbana, em suas mais diferentes feições, do período comercial à madrugada.

Esse entrecruzamento com a cena urbana e seus habitantes se reflete em outros aspectos do IMS paulistano, com efeitos tanto na programação de longo prazo quanto na própria arquitetura do espaço. O projeto do escritório Andrade Morettin se impõe, com sua roupagem leve, de vidro, na paisagem da Avenida, como é possível constatar nas fotos feitas ao longo de todo o período de construção por Michael Wesely, que também estarão em exibição. E busca integrar-se a este espaço recriando, no quarto andar do novo prédio, um espaço de convivência que funcionará como uma espécie de praça, com a dupla função de acesso e espaço de convívio, enquanto o andar térreo é pensado como uma continuidade da rua, dialogando também com outros dois prédios icônicos da Paulista: o Masp e o Conjunto Nacional.

Essa integração também se encontra na escolha do tema para a primeira de uma série de mostras de longo prazo (um ano de duração), aos cuidados de curadores convidados, que ocupará o último andar do edifício, num sistema de projeção imersiva de imagens. A seleção inaugural, a cargo de Guilherme Wisnik, se debruça exatamente sobre a iconografia da cidade de São Paulo. São três séries, construídas basicamente a partir de imagens pertencentes a coleção do IMS, intituladas Construção/Demolição, Letreiros e Personagens. Com cerca de 8 minutos, cada série propõe um passeio ao mesmo tempo histórico e poético por aspectos importantes do caráter urbano de São Paulo, traduzindo na prática essa “ideia da natureza de São Paulo como lugar de transformação permanente, de lugar de construção e também de destruição”, explica Wisnik.

A sexualidade é sempre difícil de abordar

Imagem da capa do Livro Nudez de Giorgio Agambem

Em cartaz no Masp, a exposição “Histórias da Sexualidade” busca investigar por meio de quase 300 obras um dos temas mais candentes da humanidade. Como sintetiza Lilia Schwartz, uma das curadoras responsáveis pela mostra, a mostra procura entender como “sexo, gênero e desejo” são aspectos “fundamentais em nossas representações sociais, formulações ideológicas, percepções cotidianas e experiências visuais”. Após dois anos de investigações e discussões, a mostra traz um conjunto significativo de obras, que ganham destaque a partir de uma constante estratégia de confronto que, ora explorando sintonias, ora reforçando diferenças, sublinham diferentes formas expressão em torno do sexo.

Por outro lado, a exposição parece pecar pelo excesso de critérios internos, que acabam por conduzir de maneira um tanto forçosa a apresentação e a leitura dos trabalhos. O que foi pensado como uma mostra libertária acaba, em função da sua própria estrutura –  a segmentação em nove conjuntos “temáticos” sem grande coerência interna, a não ser o fato de terem íntima relação com o tema da sexualidade ou expressarem questões muito candentes da atualidade –, adquirindo um caráter engessado. Em outras palavras, se em alguns momentos esse recorte excessivo ajuda a organizar as ideias e dá ao visitante uma série de palavras-chave por meio das qual ele pode “ler” a maioria dos trabalhos, por outro o mesmo esforço ordenador acaba por conduzir demasiadamente a fruição, subjugando a poética a categorias de interpretação externas à obra de arte.

Ana Mendieta, Guanaroca, (Esculturas Rupestres), 1969
Ana Mendieta, Guanaroca, (Esculturas Rupestres), 1969

É difícil saber quais foram os critérios adotados para a adoção dos nove grupos eleitos, que vão do núcleo inicial, intitulado “Corpos nus” (com uma bela seleção de pinturas do gênero), ao bloco final dedicado às “Políticas do corpo e ativismos” – abrigado no subsolo do museu –, passando por capítulos como “Voyeurismos” e “Religiosidades”, mas provavelmente correspondem a temas com presença significativa no acervo do museu.

Em alguns casos a significância e potência dos trabalhos supera as segmentações. É o caso por exemplo de “Lado Feminino/Lado Masculino”, de Chico Tabibuia, e “Sapho”, de Francisco Leopoldo e Silva estão entre as obras que não se restringem à uma categoria específica e abrem simbolicamente a mostra, que pode ser vista  até 14 de fevereiro. A escolha das duas obras revela muito sobre os partidos tomados e as questões que a curadoria procurou iluminar. Em primeiro lugar, há um evidente choque entre as duas esculturas. De um lado temos uma obra clássica, com toda a nobreza do mármore, que se insere no respeito aos preceitos acadêmicos da representação do nu feminino. De outro, um belo exemplo de arte popular, confeccionado por um artista claramente excluído do circuito oficial da arte, cuja representação rudimentar de um homem e uma mulher nus num único tronco de madeira ilustra um dos temas mais significativos nesse mergulho na representação artística da sexualidade: a noção de identidade sexual e o tema da indefinição de gênero.

Talvez seja essa a questão mais destacada ao longo da exposição, presente em quase todos os subnúcleos, com um bloco inteiramente dedicado a ela (“Performatividades de Gênero”) e simbolicamente elaborada no caso exemplar de Gauguin. Tomando como ponto de partida a tela “Autorretrato (perto de Gólgota), pintada por ele em 1896, faz-se toda uma digressão sobre a importância da androginia na obra do artista, num aprofundamento de caráter mais psicológico do que plástico, que destoa um pouco da linha condutora da mostra que, mesmo alinhada com uma perspectiva multidisciplinar, busca a maioria de suas referências na análise dos vínculos entre a sociedade, seus problemas contemporâneos e a cultura visual. Tal abordagem está na base da estratégia curatorial do museu, que há algum tempo vem procurando investigar a relação entre a arte e alguns temas que ganham relevância na atualidade. A mostra dedicada ao sexo é a quarta de uma série de investigações, que no passado se dedicaram aos temas da infância, da loucura e do feminismo, e no futuro abordarão as histórias afro-atlânticas e indígenas.

José Antonio da Silva, untitled, 1971. Collection Vilma Eid, São Paulo, Brasil.
José Antonio da Silva, untitled, 1971. Collection Vilma Eid, São Paulo, Brasil.
A curadoria buscou ativamente implementar ações corretivas de desigualdades, abrindo espaço para trabalhos de origem popular, dando visibilidade a grupos ativistas e buscando um equilíbrio mais justo entre artistas homens e mulheres no conjunto. Quando corporificada na própria obra, a defesa das minorias alcança resultados de grande impacto e adquirem uma potência reveladora de opressões e uso da linguagem como forma de domesticação do outro. É o caso por exemplo da aproximação entre a tela “Moema”, pintada em 1866 por Victor Meirelles e um dos grandes exemplos do indianismo romântico (que se apropria da imagem do índio, mas também anula sua força, mostrando uma Moema impotente, dominada, que morre de amor pelo conquistador branco), e uma fotografia extremamente delicada de Claudia Andujar, na qual se vê um índio real, em seu contexto específico (uma aldeia Yanomami), flagrado em repouso.

Outros diálogos, espalhados ao longo da exposição, merecem atenção, como a contraposição entre a imagem de mulher primitiva criada por Ana Mendieta e a fotografia “O Escultor e a Deusa”, de Ernesto Neto. A sensualidade da imagem da boca do artista “emoldurando” uma pequena divindade feminina não é algo comum na exposição. Evidentemente o erotismo e a representação visual do desejo – tema importante na história da arte – tem seu lugar na exposição, mas se encontra diluído em meio a outras tantas questões mais presentes como a incomunicabilidade, a indiferenciação, o uso do sexo como poder ou como arma política.

Egon Schiele , Autorretrato Nu, 1910
Egon Schiele , Autorretrato Nu, 1910

Há uma série de exemplos de denúncia enfática, como as telas de Descartes Gadelha, que retrata o caráter grotesco do turismo sexual e pedofília na praia de Iracema, em Fortaleza, ou a série “Para Hereges”, de Leon Ferrari, na qual desenhos eróticos são sobrepostos a gravuras de passagens bíblicas de Dürer, explicitando os vínculos entre religião, opressão e perversão. Parecem menos relevantes os trabalhos em que o erotismo e a sensualidade predominam, como no caso de Alair Gomes e Tracey Moffat (outro dos grandes encontros da exposição). Quem for à “Histórias da Sexualidade” em busca de cenas tórridas ou imagens que se aproximam da pornografia, ficará frustrado.

Ao final do percurso, resta ao visitante a sensação de um certo mal-estar contemporâneo diante de uma repressão sexual permanente, que agora renasce com força, e contra a qual os artistas se batem de forma um tanto desesperançada, mas intensa. Ilustra essa sensação a obra de Sergio Zevallos Santa Rosa, associada ao contexto de perseguição aos homossexuais no Peru, na qual se vê um homem de cócoras, atado por cordas reais amarradas diante de sua imagem, cujo título é “Esperar la hora que cambiará nuestra costumbre no és fácil”.

Pode haver Facebook sem ódio?

"A vontade de castigar vai além do ativismo judicial, que está invadindo o espaço da decisão democrática", diz Janine. (foto: Pixbay)

Por que o Facebook virou uma arena que não vive sem o ódio? me pergunto. Não passam dois ou três dias sem que surja uma nova polêmica, mas sempre carregada das piores paixões. O “Tribunal do Feicebuqui”, como disse o compositor Tom Zé, em 2013, depois de ser duramente atacado por uma gravação com a Coca-Cola, conseguiu ficar ainda mais impiedoso.

Faço esta pergunta, e logo me questiono. Como cada facebooker vê um Face totalmente diferente, conforme os amigos que tem, o que ele curte e posta, não sei se minha pergunta vale para toda a rede social. Sei que em Portugal o Face é pouco utilizado para a política. Aqui no Brasil, imagino que as pessoas que postam coelhinhos, flores e sol radiante convivam só com outras pessoas que também postam coelhinhos, flores e sol radiante (mas não sei, não – no meio dessas fofices volta e meia crepita muito ódio). E acredito que, assim como meus amigosFB, que são na maior parte de esquerda, destilam ódio, também os facebookers de direita não percam ocasião de manifestar ódio e raiva. Imagino isso.

Gostarei muito se pessoas com outras experiências do FB, sobretudo no exterior, contarem como é essa rede social em cada país.

Mas volto à pergunta. O que vejo é que cada semana há pelo menos dois assuntos que pegam fogo na minha linha do tempo e geram reações condenatórias. E o mais grave: embora nem todos os meus amigos de esquerda concordem com a condenação, logo surge uma posição hegemônica, que condena todas as outras. Não é uma briga de direita com esquerda. É uma briga de ortodoxia com heresias.

A ortodoxia bem pode ser de oposição ao governo atual, ao machismo, ao racismo. Mas o fato é que ela se torna uma ortodoxia, e contestá-la leva a ataques e a ofensas. E repito, duas vezes por semana ou mais há um assunto a ser tratado, sempre com esse sentido punitivo, e gente a ser condenada e por vezes expurgada dos meios dominantes.

Insisto: quando falo em meios dominantes, quero dizer dominantes nessa mídia, o Facebook. Eles podem ser dominados em outras situações. (Mas sei não. Mesmo oposicionistas radicais ao governo atual, ao machismo e ao racismo podem ser, como eu, professores universitários, com a vida estável, não correndo grandes riscos). O fato é que, em meio aos heterodoxos, porque discordam do neoliberalismo, do preconceito e tudo o mais, surgiu e hoje predomina uma ortodoxia. Por ser ortodoxia, ela se torna tão preconceituosa quanto seus adversários ou inimigos.

E esse se torna um problema grande, que agrava nossa falência em tornar as redes sociais ou a própria Internet um espaço democrático de discussão.

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Antes de mais nada, o que bloqueia o diálogo na Internet, em especial no Facebook – que poderia ser uma ágora, um admirável espaço de debate político e de esclarecimento intelectual – é uma decisão comercial do Facebook, do Google e não sei quem mais: eles estabelecem uma bizarra homeopatia, em que semelhantes procuram os semelhantes. Começa pelos anúncios que nos mostram, baseados em buscas que fizemos antes, mas se estende às escolhas básicas de cada um na vida. Fãs de rock veem fãs de rock e, se o FB for politizado como no Brasil, coxinhas frequentam coxinhas e mortadelas veem mortadelas. Esse é o famoso “algoritmo do Facebook” – em linguagem comum, o procedimento pelo qual só verei quem for parecido comigo.

Mas o problema que aponto vai além de uma escolha comercial das empresas da Internet. É uma escolha “nossa”, ou de muitos frequentadores do FB, ou sobretudo dos seus militantes. Volto à excomunhão e tomo um exemplo destes dias, a polêmica carta assinada por Catherine Deneuve e mais cem francesas contra o que consideram exageros no combate ao assédio sexual.

A carta demorou a ser traduzida ao português. Saiu na França em 9 de janeiro. Nos dois primeiros dias, não a encontrei na íntegra em nenhum jornal. A primeira tradução que vi, e que reproduzi, feita por uma facebooker, estranhamente omitia as duas frases iniciais. Mesmo em francês, era difícil encontra-la fora do jornal Le Monde, que tem um paywall praticamente sem exceções. Sua primeira tradução integral em nossa mídia saiu no El País, diz 12, às 22 horas. Demorou.

É um texto curto mas complexo, com várias ideias-chave. Os jornais brasileiros o resumiram cada um a seu modo – por vezes, em versões conflitantes entre si.

E no entanto, mesmo sem terem lido o texto, muitos começaram a opinar a respeito, oops, a condená-lo. Danuza Leão, num texto de extrema infelicidade, comentou que o assédio é bem-vindo – o que em nenhum momento as francesas afirmaram. Mas vi muita gente dizendo que Danuza tinha dito a mesma coisa que as francesas.

Por outro lado, mesmo Oprah, que tinha feito o discurso politicamente correto contra o assédio, também foi condenada. E estou falando de condenações emitidas por mulheres. Nem entro no que homens pensaram ou disseram a respeito. Aliás, este é apenas um exemplo; cada semana temos pelo menos dois.

O que é tudo isso, se não tornar o Facebook um verdadeiro tribunal? Mesmo pessoas que criticam a forma como nossos tribunais de justiça estão se portando, invadindo o espaço político, se conduzem no FB distribuindo sentenças. O caso Deneuve-Oprah é apenas um; a vontade de julgar vai muito além.

A vontade de castigar vai além do ativismo judicial, que está invadindo o espaço da decisão democrática. Ela também está entre nós, está em nós. Não há defesa, não há debate, há apenas condenação.

E fica a pergunta: isso nos leva a algum lugar?

O capitalismo brasileiro está sob ataque?

Plataforma de exploração de petróleo nos campos do Pré Sal.
Plataforma de exploração de petróleo nos campos do Pré Sal. Foto: Hélio Campos Mello

Grandes corporações nacionais, públicas e privadas, vem enfrentando o que parece ser um cerco jurídico nacional e internacional, com óbvias implicações para a economia brasileira como um todo. A Petrobras, que vive sob um ataque interno e externo desde sua fundação, mas tinha conseguido se firmar como grande empresa em meio a esta adversidade, foi um dos primeiros alvos desta nova onda de investigações, e continua na berlinda. As grandes corporações privadas da engenharia brasileira, desde os anos 1980 players internacionais na área, viraram as vilãs da corrupção mundial.

O programa nuclear brasileiro, bem como seus projetos derivados, também foi arrochado em operações internacionais de espionagem e operações internas contra a corrupção, causando a prisão de um dos seus mais renomados cientistas-empreendedores, o almirante Othon Luiz Pinheiro da Silva. Recentemente, a indústria da carne esteve no centro de um escândalo internacional, desencadeado por outra operação anticorrupção da Polícia Federal. Até a mídia tupiniquim, que gosta de operações policiais escandalosas e vazamentos seletivos, desta vez ficou do lado do agronegócio, menina-dos-olhos dos nossos arautos liberais.

Ao que parece, a sanha moralista de juízes e policiais federais, com majoritário apoio da opinião pública, na sua luta contra a corrupção sistêmica (da esquerda) e seus aliados fisiológicos, provocou um resultado colateral: aumentou a crise do PIB e fez com que a economia brasileira perdesse espaço no mundo.

Pululam nas redes várias “teorias da conspiração”, algumas delirantes, outras mais bem fundamentadas e comprovadas via wikileaks. Os juízes e procuradores seriam agentes da CIA infiltrados no Estado brasileiro? Dilma Rousseff caiu porque o Brasil iria se tornar uma potência mundial em aliança com os BRICS? Os Estados Unidos querem destruir as grandes corporações brasileiras para abrir o nosso mercado aos “seus” capitalistas?

Delírios à parte, não vejo uma manipulação centralizada de malignos gênios do mal em todo este imbróglio político e geopolítico em que nos metemos e fomos metidos.  Mas é inegável que o cerco às empresas brasileiras está servindo a muitos interesses internos e externos, para além da épica e sempre bem vinda luta contra a corrupção. Trata-se, digamos, de uma janela de oportunidades para os tubarões do capitalismo agirem, aproveitando-se da política de condomínio-treme-treme que tomou conta do Brasil.

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Além das questões conjunturais deste tumultuado início de século XXI, o conflito entre o projeto desenvolvimentista brasileiro e o capitalismo internacional tem uma história longa, complexa e cheia de nuances, para além do simples embate maniqueísta entre “nacionalistas” e “entreguistas”. Penso que a origem desta querela está no final da década de 1930, quando se delineou um projeto de industrialização e afirmação econômica nacional capitaneado pelo Estado e por alguns atores políticos e econômicos internos, como o Exército e a burocracia federal varguista.

Antes disso, o Brasil era um grande fazendão de café, um parque agro-exportador, com indústrias leves aqui e a acolá. Claro, ninguém, a rigor, era contra a industrialização, só não havia uma política nacional coordenada, nem estratégias claras para que ela acontecesse em condições de atraso e subdesenvolvimento. Os termos de troca comerciais com os países industrializados eram desiguais e a política alfandegária pouco estimulava a indústria brasileira. A vocação agrícola do País era cantada e decantada pelos políticos empertigados da Primeira República, quase todos ligados organicamente ao fazendão. Já os coronéis dos grotões, também proprietários de terra e de gente, pouco se importavam com a economia nacional, desde que pudessem continuar mandando no município, indicando seus agregados para os cargos públicos e nomeando juízes e delegados para controlar a malta.

A moderna política externa brasileira, construída no início da República e consolidada pelo Barão do Rio Branco, se adaptou a esta realidade. Em meio à corrida imperialista do final do século XIX e início do XX, o Brasil confirmava sua vocação como exportador de matérias primas, “potência” regional sem maiores aspirações, subordinada à grande potência mundial em ascensão, os Estados Unidos. Obviamente, não se trata de uma historinha de vítimas e vilões, mas de negociações tanto complexas, quanto assimétricas, que não cabem neste artigo.

Mas no meio desta Casa Grande feliz com a parte que lhe cabia no latifúndio mundial, por volta dos anos 1920, começaram a surgir vozes que defendiam a industrialização planejada e tutelada pelo Estado. Entre estas vozes, um punhado de líderes políticos de corte autoritário, como Getúlio Vargas, e militares que se sentiam os últimos defensores da pátria violada. Depois da chamada “Revolução de 1930”, este grupo tomou o poder, com ajuda de elites agrárias dissidentes, cansadas de sustentar o café paulista. Logo percebeu-se que não era tão simples modernizar a economia, sem modificar a estrutura da sociedade. E, neste sentido, os “revolucionários” de 1930 eram pouco revolucionários. Entre trancos e barrancos, o projeto industrializante começou a ser delineado ao melhor estilo varguista, ou seja, tentando agradar “gregos e troianos”, fazendeiros e industriais, operários e patrões, Alemanha Nazista e Estados Unidos, novas e velhas elites.

Este projeto de desenvolvimento industrial ganhou o debate nacional e se tornou política de Estado entre fins dos anos 1930 e meados dos anos 1950, opondo duas grandes forças na sociedade:  os grandes comerciantes importadores-exportadores e setores da burocracia federal –  civil e militar – capitaneada pelo varguismo, com apoio de alguns grandes industriais. Os dois grupos tinham concepções diferenciadas sobre o processo de industrialização e o papel do Estado na economia. Para os grandes grupos comerciantes e agro-exportadores, encastelados no discurso liberal, a industrialização deveria ocorrer “naturalmente”, sem estímulos cambiais e fechamento de mercado. Para os desenvolvimentistas, era necessário estímulo do Estado, planejamento e alguma intervenção na economia. Este debate sobre a melhor política econômica para o Brasil acabou se conectando a um outro grande debate nacional: qual era, afinal, o lugar do Brasil no mundo?

Os militares, a partir de meados dos anos 1940, tinham uma posição paradoxal. Eram grandes inimigos da política de massas varguista, que julgavam uma porta aberta para a subversão da ordem social, mas, no geral, apoiavam o projeto industrializante conduzido pelo Estado. Dada a posição do Brasil na Segunda Guerra Mundial ao lado dos Aliados, os militares brasileiros esperavam o apoio norte-americano para um projeto industrializante de larga escala, pela simples razão de que sem indústria pesada não haveria Exército nacional forte. Terminada a Guerra, porém, a América do Sul saiu do radar e dos interesses do Tio Sam. A lógica da agenda externa norte-americana voltou a repetir o eterno mantra da abertura de mercados e importação de capitais privados. A industrialização, se viesse, deveria ser a consequência deste processo, e não do fechamento autárquico do mercado nacional às importações.

A política econômica do segundo governo de Getúlio Vargas (1951-1954) sinalizou um papel do Estado mais ativo no projeto de industrialização de base, criando as condições para a ampliação de uma indústria pesada nacional. A criação da Petrobras, particularmente, enfrentou fortes resistências externas e internas, ainda que a estatal não monopolizasse o comércio de combustível, a parte mais lucrativa do negócio.

O suicídio de Vargas fez com que, momentaneamente, a política nacional-desenvolvimentista se visse ameaçada. Mas as forças sociais e políticas que defendiam a industrialização se articularam em torno de Juscelino Kubitschek. Habilmente, JK conseguiu fazer convergir os três atores econômicos que estavam em tensão: o Estado, os capitalistas nacionais e as corporações multinacionais, contando com o apetite do capitalismo europeu em ascensão para contrabalançar excessiva presença norte-americana no mercado de bens duráveis. O modelo desenvolvimentista de JK optou por estimular a indústria de bens de consumo e as grandes obras públicas de infraestrutura a cargo do Estado.

A retórica da era JK era nacionalista, mas a realidade econômica que dela resultou foi um capitalismo “associado e dependente” de recursos financeiros, plantas industriais e tecnologia importada. Isto parecia ser o único caminho possível de industrialização de um país atrasado dentro do sistema capitalista, uma escolha possível diante da realidade geopolítica e econômica do Brasil. O pacto social entre trabalhadores, capitalistas, latifundiários e classes médias garantiu alguns anos de paz e prosperidade, entre um e outro chilique da direita udenista. O capital internacional também ficou feliz.

Além de consolidar um novo modelo econômico interno, no qual a indústria tinha lugar privilegiado, JK lançou, ainda que timidamente, as bases de uma nova política externa. O raciocínio do Presidente era mais ou menos o seguinte: um processo vigoroso de industrialização no Brasil e na América Latina só reforçaria o capitalismo no continente, criando uma sociedade mais rica, diluindo os bolsões de pobreza e subdesenvolvimento e, por consequência, o fantasma do comunismo. Por tudo isso deveria ser apoiada ativamente pelos norte-americanos. Mas até a Revolução Cubana, os comunistas pareciam estar longe demais das Américas para preocupar os Estados Unidos que fizeram ouvidos moucos à Operação Pan-Americana, como se chamou a proposta por JK.

Esta política foi consolidada, paradoxalmente, sob o enigmático e contraditório Jânio Quadros, arqui-inimigo de JK em política interna. Passou a se chamar “Política Externa Independente” e foi ampliada por João Goulart, que estava à esquerda dos dois presidentes que lhe antecederam. Suas reformas prometiam mais desenvolvimento, um capitalismo mais autônomo, distribuição de renda e mais democracia. Se tudo isto era viável ou não, demagogia barata ou reformismo sério, o fato é que a partir de 1962 reacendeu a preocupação norte-americana com uma possível ruptura da aliança histórica entre Brasil e EUA. A queda de Goulart após o golpe de 1964, uma das batalhas da Guerra Fria na América Latina, parecia cortar as asas do nacionalismo econômico brasileiro.

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O alinhamento inicial dos militares com os Estados Unidos, grandes apoiadores do golpe, parecia confirmar as suspeitas de que os “entreguistas” conquistaram o poder para lesar a economia brasileira e recolocá-la na vocação agroexportadora, livrecambista e subordinada ao “imperialismo norte-americano”. Entretanto, passada a lua-de-mel, logo se percebeu que o Exército no poder não tinha um pensamento econômico e geopolítico homogêneo. Se o anticomunismo unia os militares a Washington, o projeto do Brasil Grande que começou a se esboçar em 1968, causava certa tensão com o Departamento de Estado e a Casa Branca. A recusa do Brasil em assinar o Tratado de Não-Proliferação Nuclear naquele ano foi um dos primeiros sintomas deste estranhamento.

A relação entre os dois países passou a ser um namoro de interesses na era Médici, quando o Brasil se tornou uma peça importante na luta contra as guerrilhas e governos de esquerda da América do Sul e sua economia pujante sugava todos os dólares à disposição. Grande importador de capitais e com uma industrialização voltada para o mercado de consumo interno, a economia do “milagre” não chegava a ameaçar o jogo geopolítico e os mercados internacionais. O sistema estava feliz. A classe média consumia, os operários não reclamavam (até porque não podiam), os comunistas estavam mortos, presos ou exilados.

A relação complicou-se de vez no governo Geisel. A reorientação de investimentos para a indústria de base, a nova onda de estatização da economia, o protecionismo econômico e a projeção do Brasil para mercados nunca antes ocupados, causaram uma das conjunturas de maior tensão com Washington e seus office-boys neoliberais. Para piorar, os americanos passaram a ter certeza de que o Brasil queria entrar no clube atômico ao estabelecer um acordo nuclear com a Alemanha Ocidental em 1974. Além de pressionar por todos os meios diplomáticos o projeto nucelar brasileiro, os Estados Unidos souberam utilizar a sua política internacional de Direitos Humanos contra a ditadura que, por sinal, fornecia todas as razões para ser condenada nesta área. O ponto máximo de tensão foi o rompimento do acordo militar com os Estados Unidos em 1977, mais simbólico do que efetivo naquela conjuntura. Mas ainda assim, eloquente.

O Brasil sob Geisel queria ter um protagonismo econômico e político para além da condição de sócio menor dos norte-americanos. O País se projetava para a África, cuja bandeira foi fincada com o pronto reconhecimento de Angola, independente de Portugal e governada por comunistas, pela nossa ditadura de direita. O País se projetava para o Oriente Médio, passando a vender armas, frangos e expertise em construção civil para ditaduras pró-soviéticas, em troca de petróleo.

Apostando nas Estatais e no fechamento do mercado interno, a era Geisel quis vitaminar o capitalismo brasileiro, não para romper com o capitalismo internacional, do qual o Brasil era, como sempre fora, dependente, mas para alçar o País a um novo patamar no jogo político e econômico internacional. O País ganhou mais autonomia energética, criou novas matrizes, completou a segunda revolução industrial, quando o mundo capitalista já iniciava a terceira. Os militares brasileiros, no apagar das luzes do regime militar, até tentaram pegar carona neste processo, estimulando por decreto a indústria nacional de informática.

O Brasil não explodiu a Bomba Atômica, as usinas nucleares consumiram uma fortuna e demoraram muito para sair do papel, as indústrias de informática nacionais não conseguiram competir com os Gates e Jobs da vida. A crise econômica dos anos 1980 e a dívida externa implodiram o sonho do Brasil desenvolvido dos anos JK e do Brasil Grande dos militares. Nos anos 1990, o Brasil iniciou seu longo caminho de volta para ser uma economia exportadora e primária, campeão das commodities. Hoje, com 100 toneladas exportadas de soja, conseguimos pagar 1 chip de celular.

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A era Lula, mesmo sem ameaçar seriamente esta realidade, tentou conciliá-la com uma nova política social e uma nova geopolítica. Sem a sombra da Guerra Fria, acreditava-se que o Brasil poderia se afirmar como player mundial sem ser considerado uma ameaça ao “Ocidente”. Mas parece que esquecemos de “combinar com os russos”, ou melhor, com os americanos.

A descoberta das reservas do pré-sal pela Petrobras, o programa espacial brasileiro, o programa de reequipamento militar e o submarino nuclear voltaram a preocupar Washington. Além disso, as conversas de Lula com os BRICS, com os hermanos bolivarianos e a ousadia em se arvorar como mediador, ao lado da Turquia, na pacificação do Oriente Médio e na reinserção do Irã na comunidade das nações, foram demais para os brothers. A política dos “campeões nacionais”, simbolizada por Eike Batista em seus tempos pré-Bangu, de glória e glamour, era o caminho para a afirmação do novo Brasil Potência. Dilma Rousseff e sua nova matriz econômica prometiam ir além.

A partir de 2013, o portal da história novamente se fechou. O capital financeiro internacional começou a denunciar a gastança do Estado brasileiro e a ameaça ao sagrado superávit primário. O pacto social lulista, já criticado no andar de cima havia algum tempo, acabara. A classe média branca não quis mais dividir aeroportos com pobres e faculdades públicas com os negros. Os “campeões nacionais” se revelaram apenas o que sempre foram, capitalistas apostadores de cassino, pegando dinheiro barato do BNDES e aplicando no mercado financeiro. Como se houvesse alguma surpresa nisso.

Os casos de corrupção sistêmica facilitaram o cerco ao projeto político petista e à política econômica nacional-desenvolvimentista, que já se revelava insustentável sem uma efetiva reforma política, fiscal e tributária, que aliás nunca esteve seriamente na agenda da esquerda no poder.  Mais do que isso, mostraram o caminho para implodir o símbolo máximo da luta pela industrialização no Brasil, a Petrobras.  A Operação Lava-Jato escancarou as relações perigosas entre a estatal, empreiteiras e partidos políticos. O modelo de financiamento de campanhas eleitorais, construído ainda nos anos 1950, ampliado ao longo dos anos 1990, foi colocado em xeque e foi a tática para varrer a esquerda do comando do Estado. O resto é história.

Ao que parece, o sistema jurídico-político do Brasil e sua sociedade civil enfrentam o dilema de como conciliar a luta contra a corrupção – imperativo que poderia unir várias correntes ideológicas se envolvesse uma reforma política profunda e não fosse escandalosamente seletiva – e a defesa estratégica dos interesses econômicos nacionais, malgrado gostarmos ou não das leis de ferro do capitalismo mundial.

Sob aplauso de uma parte da opinião pública, os nervos podres dos nossos capitalistas e empresas globais são expostos nos autos de fé pela moralidade pública, esta súbita obsessão dos brasileiros, mesmo aqueles que sonegam impostos, subornam guardas de trânsito e apostam no velho jogo do bicho. Os novos empreendedores, adoradores dos deuses de mercado, querem limpar nosso capitalismo a fórceps. Como se o mercado não fosse o grande corruptor da política, como se existisse o “nosso” capitalismo, e como se ele fosse mais sujo do que o dos outros.

Endividamento da Petrobras: mitos e verdades

Detalhe da fachada da sede da Petrobras no Rio de Janeiro. Foto: EBC / reprodução

Pedro Parente, presidente da Petrobras, em entrevista ao Correio Brazilienseem 04.12.2016, afirmou que: “a corrupção destruiu a Petrobras. Faz seis meses que estou na empresa. Acabou a bandalheira”. Aproveitando-se da perplexidade da população a respeito da corrupção na empresa, seu atual presidente construiu e reforçou essa narrativa, criando o seguinte mito: a corrupção teria gerado uma crise financeira estrutural que somente poderia ser resolvida com a venda de ativos (redução do tamanho da empresa).

Esse mito foi utilizado para legitimar a estratégia gerencial da atual presidência (expressa no Plano de Negócios e Gestão – PNG – 2017-2021) que tem como eixos: 1) concentrar suas atividades em Exploração & Produção de petróleo e gás, diminuindo sua participação em outras áreas tornando a empresa “enxuta” (com redução do número de empregados e investimentos); e 2) reduzir de forma acelerada o seu nível de endividamento/alavancagem financeira. Isso está ancorado na estratégia de desinvestimento (venda de ativos, sobretudo para capitais estrangeiros, e redução de investimentos).

As principais metas estabelecidas no PNG (2017-2021) foram: reduzir a relação dívida líquida/LTM EBITDA ajustado de 5,3 em 2015 para 2,5 em 2018; cortar 25% dos investimentos; vender ativos no valor de U$ 21 bilhões em 2017 e 2018; e reduzir em 18% os gastos operacionais.

Será que realmente a Petrobras enfrenta ou enfrentou uma crise financeira estrutural? O que significa estabelecer uma meta de 2,5 a relação dívida líquida/LTM EBITDA para 2018?

Diante disso, pretende-se aqui responder essas questões, buscando apresentar a evolução do endividamento da
Petrobras evidenciando que a empresa enfrenta sim um desafio financeiro de curto prazo que requer estratégias específicas (redução da alavancagem e o alongamento de suas dívidas) sem que isso implique necessariamente a venda de ativos que reduz a geração futura de caixa, desperdiçando potenciais produtivos.

Gestão da Dívida da Petrobras: desafios financeiros de curto prazo
Não há dúvida que a Petrobras vem enfrentando, nos últimos anos, desafios financeiros de curto prazo com aceleração da alavancagem (relação dívida líquida/LTM EBITDA – que cresceu de 2,5 no 2º trimestre de 2012 para 5,3 no 4º trimestre de 2015) em virtude do crescimento da dívida líquida e da relativa estabilidade do LTM EBITDA ajustado (geração de caixa operacional).

DEPUTADOS DA CPI DA PETROBRAS FAZEM VISITA TÉCNICA À SEDE
Os deputados federais da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investiga irregularidades na Petrobras fazem uma visita técnica à sede da empresa no Rio (Tânia Rêgo/Agência Brasil)
Relação Dívida Líquida: EBITDA – 2º tri.:2012 - 1ºtri.:2017
Relação Dívida Líquida/ EBITDA – 2º tri./2012 – 1ºtri./2017

Em nada esse aumento da dívida da Petrobras vincula-se a questão de corrupção da Petrobras. Parte do aumento do endividamento foi fortemente influenciado pela desvalorização cambial (de 1,56 US$/R$ no 1º trimestre de 2011 para 3,97 US$/R$ no 3º trimestre de 2015), uma vez que cerca de 80% de sua dívida está denominada em moedas estrangeira, sobretudo em dólar. Não é para menos que a partir do no 3º trimestre de 2015 (quando a taxa de câmbio passa a se valorizar – cerca de 40% na comparação com trimestre de 2017) a dívida líquida passou a cair de forma acelerada.

É preciso observar que a outra parte do endividamento ocorreu com o aumento dos investimentos após a descoberta do pré-sal e para ampliar o setor de refino. Naquele momento a geração de caixa da Petrobras não era suficiente para atender ao crescimento dos investimentos necessários que tornaram o pré-sal viáveis e responsável por 50% da produção atual.

Pelo lado do LTM EBITDA verificou-se uma queda até o 3º trimestre de 2014 e a sua recuperação pode ser explicado por três fatores. O primeiro que foi a expressiva redução do preço do petróleo que alcançou US$113,46 em 2011, ao passo que o preço do barril brent caiu para US$ 33,8 no 1º trimestre de 2016 e passou a se recuperar mais recentemente (US$ 53,78 no 1º trimestre de 2017). O segundo foi a política de repressão de preços dos combustíveis entre 2011 e 2015, que impactaram negativamente a geração de caixa. O terceiro decorreu do aumento da demanda de derivados no Brasil entre 2010 e 2014, obrigando a Petrobrás a importar derivados para atender mercado interno, criando a necessidade de investimentos em novas refinarias. Esses dois elementos (importações e refinarias novas) provocaram redução no caixa da empresa.

Apesar desses desafios financeiros de curto prazo (que já estão sendo revertidos em decorrência das mudanças recentes do preço do petróleo e da taxa de câmbio), a Petrobras possui uma situação positiva, em termos de médio e longo prazo, em relação às grandes empresas petroleiras do mundo, uma vez que detém novas áreas produtoras competitivas que poderão gerar fluxos de caixa futuros. Tal situação decorre do Pré-Sal (i) possuir um custo de extração em queda (que alcançou o valor de 8,0 US$/boe) e de (ii) torna-se uma das principais fronteiras de exploração de petróleo no mundo (cerca de 100 bilhões de barris de óleo recuperáveis em reservas ainda não provadas), aumentando as reservas de petróleo no Brasil colocando-o ao lado da Venezuela e da Arábia Saudita.

Portanto, a Petrobras, apesar de possuir sim um desafio financeiro de curto prazo – sem uma crise financeira profunda em decorrência de seu potencial de geração de caixa no médio e longo prazo – propõe uma redução draconiana (em termos de temporalidade) da relação dívida líquida/EBITDA para 2,5 em 2018 que necessariamente força a venda de ativos operacionais.

É preciso ressaltar que essa meta foi escolhida de forma discricionária pelo atual presidente da Petrobras, que afirmou em entrevista à revista Executivos Valor(maio de 2017): “antecipar a meta de desalavancagem […] de 2,5 vezes de 2020 para 2018, foi uma coisa [decisão] minha”. Ou seja, a estratégia de vender ativos foi imposta pela decisão pessoal do atual presidente da Petrobras.

No cenário atual (queda dos preços do petróleo, situação do mercado mundial de petróleo e gás, et.), vender ativos agora implica em perda expressiva de valor desses ativos num momento de discrepância entre vendedores e compradores no mercado de petróleo.

Além dessa possível perda financeira na venda de ativos, estudo recente mostra que caso a meta da relação dívida líquida/EBITDA fosse mudada para 3,1 em 2018, indicador razoável, não seria necessário vender ativos rentáveis para fazer caixa no curto prazo; e que a empresa alcançaria a meta estabelecida de alavancagem de 2,5 em 2021 com os atuais parâmetros públicos (fundamentos) da Petrobras.

O argumento da atual diretoria da Petrobras é que o número mágico de alavancagem de 2,5 em 2018 permitiria, por meio da venda de ativos, uma menor custos de capitação (taxas de juros menores) de novos financiamentos. Isso pode acontecer, significando um ganho em termos do pagamento de juros, no entanto, a empresa não está levando em conta os efeitos das perdas de caixa no médio e longo prazo com a venda de ativos operacionais lucrativos e da sua redução na participação da exploração do Pré-Sal, a nova fronteira de exploração mundial.

Em linhas gerais, a atual meta financeira de 2,5 de alavancagem em 2018 do PNG (2017-2011) esconde uma estratégia deliberada de venda de ativos, independente dos seus efeitos de médio prazo para a firma e para o Brasil. Vender ativos virou uma questão de fé!

Há sim alternativas para a gestão da dívida da Petrobras sem que seja necessário vender ativos e reduzir sua participação no pré-sal. Em primeiro lugar, a meta de financeira de 2,5 de alavancagem poderia ser estabelecida para 2021. Além disso, há outras opções de financiamento com e sem apoio do governo federal. Dentre as quais pode-se destacar: i) a utilização de parte das reservas cambiais para reestruturar a dívida da Petrobras; ii) empréstimo do Tesouro à Petrobras por meio do BNDES, cuja garantia seria a emissão de debentures da estatal brasileira; iii) criação de um instrumento híbrido de capital e dívida, no qual o governo federal faria a captação de recursos; e iv) a capitalização no mercado internacional por meio da emissão de títulos da dívida (entre outros instrumentos financeiros). Recentemente a Petrobras captou cerca de US$ 4 bilhões no mercado internacional.

Eduardo Costa Pinto é professor do Instituto de Economia da UFRJ e Integrante do Grupo de Estudos Estratégicos e Propostas da Federação Única dos Petroleiros GEEP-FUP

Flávio Pacheco – O guardião dos brinquedos

Flávio Pacheco é um misto de colecionador, ufólogo e arqueólogo. Gaúcho, criado em uma fazenda, desde pequeno teve o gosto peculiar pela multiplicidade de objetos. No final dos anos 1970, mudou-se para São Paulo e começou sua coleção de brinquedos. Vendeu grande parte do 1º acervo para um museu belga, ganhou um bom dinheiro e comprou uma terra em São Tomé das Letras (MG), onde montou um hotel fazenda, seu retiro espiritual. Divide seu tempo entre as viagens em busca de raridades, a natureza, as cachoeiras e os animais da fazenda, e o seu mundo de ilusão que construiu em SP. Na fantástica casa dos brinquedos, Flávio passa noites e noites consertando e colocando para funcionar seus quase 10 mil brinquedos, que além de decorarem sua casa fazem parte de um Museu Itinerante de Brinquedos, criado por ele há mais de 20 anos. Algumas peças repetidas ele vende na feira de antiguidade, aos domingos, no vão livre do MASP.

A filosofia selvagem permanece viva!

A cada doze dias e uma carta, Tunga
A gravura 'A cada doze dias e uma carta', de Tunga. Foto: Divulgação

Na sexta feira 15 de dezembro, o Masp abriu ao público a visitação da mostra Tunga: O Corpo em Obras, individual que encerra o programa de 2017 do museu e que também dialoga com Histórias da Sexualidade, a polêmica coletiva em cartaz no museu paulistano. Tunga: O Corpo em Obras (saiba mais) tem curadoria de Isabella Rjeille e expografia da Metro Arquitetos Associados.

Em 2009, a trajetória do artista pernambucano foi tema da matéria de capa da primeira edição da revista ARTE!Brasileiros. Com sua partida, em junho de 2016, a editora Leonor Amarante fez novas reverências a Tunga na reportagem A Filosofia Selvagem Permanece Viva (leia abaixo). 

Tunga transformou-se em marca registrada na história da arte brasileira. Sua obra é um rio sem margens, levada pela vida “selvagem” e intensa experimentada por ele em diferentes territórios. Nasceu em Palmares, Pernambuco, viveu no Rio de Janeiro, em Valparaíso, no Chile, durante um período da ditadura, e morou em Paris por uma “evidência intelectual e não um refúgio romântico”, como se insinuava no Brasil. Redefiniu e recompôs sua obra, em vários períodos, movido pela curiosidade por outras formas de expressão. Suas incursões pela dança, música, cinema reforçaram a preocupação de descolonizar espaços e atuar como mediador de transdisciplinas com grupos de outras “galáxias”. Seu imaginário ficcional é paradigma dos insights afetivos na construção de mitologias individuais apoiadas na ciência, arqueologia, zoologia e, sobretudo, literatura. Tunga é filho de Léa de Barros, uma das gêmeas da famosa tela de Guignard, e do jornalista e poeta Gerardo Mello Mourão. Conviveu com intelectuais brasileiros e franceses que frequentavam a casa de seus pais no Rio de Janeiro e, sob essa influência, tornou-se leitor voraz. Não por acaso, sua obra está impregnada do realismo fantástico latino-americano, presente em textos curtos que acompanham algumas performances, como Semeando Sereias (1983), em que surge um Tunga dramático e alegórico que “dialoga” com sua própria cabeça decepada, com cabelos exageradamente crescidos, arremessada ao mar por ele mesmo. Com “seu” crânio em jogo, Tunga aprofunda as reflexões sobre a artificialidade das formas, incitando o espectador a não se intimidar diante delas. Afinal, conscientemente, ele trata a “escultura” como figura enigmática e estranha que pode causar mal-estar.

Tunga, performance ‘Inside Out Upside Down’, 1997

Na Bienal de São Paulo de 1987, assume um protagonismo tão espetacular quanto a sua obra, Enquanto Flora a Borda (1987), estrutura flutuante de finíssimos fios de aço que pendem do teto e chegam ao chão desestabilizando o espectador. Na década seguinte, passa a trabalhar com material oposto: manipula formas leves e delicadas executadas com vidros, ora repletos de líquido viscoso, colocando em evidência a estrutura material, ora simplesmente vazios. True Rouge (1994) é o ápice dessa fase, uma instalação composta por centenas de frascos de vidro de formato e tamanhos diferentes. Tudo trazido diretamente do MoMA de Nova York para a II Bienal do Mercosul de Porto Alegre, em 1999, da qual fui curadora adjunta com Fábio Magalhães. Os dois locais eram diametralmente opostos: o MoMA com sua arquitetura e limpeza formal e o armazém de madeira, de 1922, já desgastado, inserido numa paisagem bucólica, às margens do rio Guaíba. Harald Szeeman, crítico e curador da 48ª Bienal de Veneza, em 1999, conferiu a instalação em Nova York e ao encontrá-la na Bienal do Mercosul comenta: “Essa obra tem o seu hermetismo, e aqui, em contraste com o entorno, abre um campo de significações provisórias, mas perturbadoras”. Em qualquer local em que True Rouge seja “instalada”, a montagem se revela a alma da obra e não o que se sucede depois. Nesse sentido, Tunga defendia a arte como evolução de rupturas e não de continuidade. Na X Documenta de Kassel, em 1997, com a performance Inside Out Upside Down, na antiga estação de trem da cidade alemã, ele aponta uma nova fase para as artes corporais, não mais relacionadas só com a performance, que já fora sua gestadora. Agora ele reforça a presença da psicanálise com pequenas narrativas como agente de um exercício da transitoriedade.

tunga semeando sereias
Tunga, ‘Performance Semeando Sereais’, 1983.

Desde cedo Tunga cria estratégias para desestruturar a normalidade do circuito de arte, talvez por influência de Pasolini, Rimbaud, Foucault, Lacan, que ele lia desde sempre. Eu o conheci muito jovem, com 22 anos, apresentado pelo crítico carioca Roberto Pontual como “um artista a ser seguido”. Tunga acabara de inaugurar sua primeira mostra no MAM do Rio de Janeiro, já causando polêmica. Seus desenhos, com insinuação de masturbação infantil, chegam ao público para provocá-lo a tomar posição sobre aspectos da nossa cultura conservadora, mesmo que fosse entendido como autor de imaginário libertino. A sensualidade converte-se em fonte primária de investigação e sua trajetória passa a ser marcada pelas representações corporais e seus fluidos. Tunga sempre defendeu o status do corpo, sua bandeira de vida até a morte. O atrevimento e a postura daquele jovem diante da crítica me fisgaram, e passei a segui-lo.

tunga Xifópagas Capilares
Tunga, performance ‘Xifópagas Capilares’, 1998.

No vídeo Ão, de 1980, filmado em 16 mm, em looping, ele manipula a emoção ao projetar a curva de um túnel sem fim: sem entrada nem saída. A convite do curador e crítico Walter Zanini, o vídeo é exibido na Bienal de São Paulo, de 1981, em um vetor dedicado à arte eletrônica.

Tunga volta a expor na mostra paulista, agora com obras de grande escala em 1987, 1994, 1998 e 2013. Já conhecido internacionalmente, participa da Bienal de Veneza, Bienal de Havana e da Documenta de Kassel. Na França, expõe no Museu de Arte Moderna de Paris, no Jeu de Paume, no Museu do Louvre, no Palais de Tokyo, todos na capital francesa, e na Bienal de Lyon. Também mostra seus trabalhos, entre outros museus, no Museu Ludwig de Colônia.

tunga Morfológicas
Obras Sem Título, da série ‘Morfológicas’, iniciada em 2014, e em andamento no momento do falecimento de Tunga.

No cinema, une-se ao diretor Eryk Rocha, filho de Glauber Rocha, na trilogia audiovisual: Medula e Quimera (2004), exibida nos festivais de Cannes e Sundance, e recebe o título de sonhometragem pela dupla. Essa parceria gera ainda  Laminadas Almas (2006), filmada durante a performance no Jardim Botânico do Rio de Janeiro com 600 rãs, 40 mil moscas, girinos, larvas… Esses eventos complexos foram agenciados por analogias sensíveis com alusão às religiões, à biologia e à transmutação dos elementos.

Nos últimos anos Tunga manipula terracota, gesso, cristais, presentes na obra From la Voie Humide em que tripés e partes de corpos ligam seu mundo à alquimia. Mesmo sem a apresentação física, sua obra traz resultados como objetos mentais, como atesta a série realizada em parceria com o compositor e cantor Arnaldo Antunes.

Além da presença em acervos de museus pelo mundo, a obra de Tunga está exposta em Inhotim, localizado em Brumadinho, Minas Gerais, no maior centro de arte contemporânea do Brasil. Responsável também pela concepção desse complexo, inaugurado em 2012, o artista tem neste espaço a Galeria Psicoativa Tunga, onde estão Lézart (lagarto em francês) de 1998, composto de tranças, tacapes e pentes conectados por ímãs, e a ficção Xifópagas Capilares, performance de 1984, em que a sedução pela anormalidade ganha corpo e onde ele celebra, radicalmente, a proximidade do homem com ele mesmo. Em outro pavilhão, inaugurado em 2006, brilha solitária True Rouge, uma ode ao artista desaparecido.

Bienal, pero no mucho

Cabrita Reis
Frente à Faculdade de Direito de Buenos Aires, instalação do português Pedro Cabrita Reis

Há muito que o formato bienal deixou de ter um único padrão e, mesmo que em geral contenha uma presença multinacional, muitas experiências costumam ser feitas. Há bienais criadas para abordar apenas uma região, como foi a do Mercosul, em Porto Alegre, ou a Europa, como a Manifesta. A iniciativa mais recente delas é a Bienalsur – Bienal Internacional de Arte Contemporânea da América do Sul.

“Usamos o termo bienal como um cavalo de Tróia”, ironiza Diana Wechsler, diretora artístico-acadêmica da Bienalsur. Para ela, esta era uma forma de conquistar apoio e interesse de interlocutores na Argentina e no exterior. A metáfora faz sentido, afinal tudo o que abarca esta recente bienal com sede em Buenos Aires vai muito além do que qualquer outra mostra do gênero já alcançou.

BIENALSUR
O artista africano Romuald Hazoumé da República de Benin, Diana Wechsler, diretora artístico-acadêmica da Bienal sur, a artista Carolina Wolmer, Anibal Jozami, diretor da Bienal SUR, a artista voluspa jarpa, Bertrand Ivanoff, a jornalista Marlise Ilhesca, organizadora da Bienal, e o brasileiro Eduardo Srur FOTO: Patricia Rousseaux

Primeiro, ela é organizada a partir de uma universidade pública, a UNTREF (Universidad Nacional de Tres de Febrero), o que lhe dá um caráter mais voltado à pesquisa e menos preocupado com turismo ou mercado de arte, apesar de seu reitor e diretor geral do evento, Anibal Jozami, e sua mulher, a jornalista brasileira Marlise Ilhesca, serem um prestigiado casal de colecionadores de arte contemporânea.

Além de Wechsler, contudo, que dirige os cursos de mestrado e doutorado em artes visuais na UNTREF, um comitê acadêmico com 30 universidades de todo o planeta, do Japão ao Brasil, reforçam o lado de pesquisa da bienal.

A UNTREF, vale lembrar, possui um espaço expositivo importante em Buenos Aires, o Centro de Arte Contemporânea e Museu da Imigração, onde já passaram excelente mostras, como “Levantes”, em cartaz no Sesc Pinheiros, em São Paulo, do francês Georges Didi-Huberman, que possui uma cátedra na universidade portenha, e “Perder a forma humana”, organizada junto com o museu Reina Sofia.

Portanto, sem dúvida, não é forçado dizer que surja dela uma bienal. Estranho, em se falando desse circuito, é que ela ocorre simultaneamente em 84 espaços de 32 cidades de 16 países, a maioria na América Latina, mas também na Austrália, França e Japão. Com isso, é praticamente impossível uma avaliação precisa dessa iniciativa.

BIENALSUR
Alice Creischer (1960), Andreas Siekmann (1961), As trabalhadoras de Brukman, Instalação composta por dez trajes costurados e desenhos digitais em papel FOTO: PR

Apesar de conter explicitamente no título que é da América do Sul, o conceito de sul está mais próximo ao que o Festival Sesc Videobrasil vem apresentando, isso é, de exibir práticas contra-hegêmonicas, que ocorrem não apenas no sul formalmente. Na documenta 14, aliás, que também tratou dessa questão, isso ocorria com a apropriação da revista grega “South as a State of Mind” (Sul como um Estado Mental), que na Europa representa um modo de pensamento menos duro e racionalista como o que ocorre nos países do norte.

Com essa ampliação do conceito de sul, a bienal argentina também se ocupa de um posicionamento político.  Para Jozami, que além de reitor é também empresário, investir em um evento tão complexo faz parte da função da universidade. “Arte e cultura costumam ser vistos como paliativo para quem sofre desigualdades sociais, mas um de nossos eixos é justamente apoiar projetos sociais que dão visibilidade a grupos marginalizados”, afirmou à ARTE!Brasileiros, no amplo gabinete com móveis de madeira da sala da reitoria, no bairro da Recoleta. Lá ele responde a tudo com detalhes, menos quando a pergunta é sobre valores. Na Argentina, não há leis de incentivo à cultura, o que torna o patrocínio direto, seja do Estado seja da iniciativa privada, e o reitor diz apenas que “a mostra custa menos do que aparenta”.

Marion Baruch, Rumania, 1929, Retrato 4, 2013, Seda, 19cm x 140cm, Coleção Mamco, faz contraponto na coleção do Museu de Belas Artes de Buenos Aires FOTO: PR

Finalmente a seleção de artistas pende entre uma democrática chamada de projetos por edital – de 2500 recebidos, cerca de 300 foram aprovados – para convites a mostras que já circulam em instituições de arte, como “Take me (I´m yours). Concebida originalmente por Julia Peyton-Jones, Andrea Schlieker  e Hans Ulrich Obrist, em 1995, seguindo a moda das reencenações, ela ressurgiu em 2015, na França, com ajuda de Christian Boltanski, e desde então vem circulando pelo mundo, de Nova York a Milão, onde também se encontra agora. O conceito é simples: constitui-se de múltiplos de artistas, como cartões-postais, camisas, posters e bottons, que podem ser levados pelos visitantes gratuitamente.

“Nós trouxemos essa mostra porque essa ideia tem a ver com o conceito da bienal. Aqui, por ocorrer em um local gratuito, tivemos que repor tudo muito mais rapidamente do que nas outras cidades”, conta Jozami.

Aqui se explicita uma das contradições da Bienalsur que, se por um lado busca um lastro acadêmico, por outro não se furta a apelar a Obrist, o mais estelar dos curadores do circuito contemporâneo, que se utiliza de sua celebridade para estar em toda parte, mesmo que com a mesma mostra.  Tal estratégia lembra a recorrente necessidade de validação dos países latino-americanos pelos países do norte. Desnecessário.

Mesmo assim, dentro de um espectro tão amplo, Obrist dilui-se em Buenos Aires, onde outros 26 espaços sediam mostras e projetos ligados à Bienalsur, congregando museus, como o Malba e o de Belas Artes, a centros culturais, como o recém-inaugurado CCK (Centro Cultural Kirchner).

Há de tudo, e dessa diversidade parece nascer a força desse evento: de um desfile-manifesto de Ronaldo Fraga, utilizando temas latinos em modelos não convencionais, às gigantes garrafas Pet de Eduardo Srur, que se assemelham às denuncias de movimentos ecológicos como o Greenpeace.

Ivan Grilo, Nadie ha dejado de existir, 2017, duas placa de 100 cm x 25 cm, bronze FOTO: PR

Entre esses dois exemplos, há mostras sobre colecionismo – dos cinco eixos da bienal, um se chama Coleção de Coleção -, como “Arte para pensar a nova razão do mundo”, com aquisições recentes do museu espanhol Reina Sofia, em geral com alta voltagem política. Os outros eixos da Bienal são: Arte no Espaço Urbano; Arte nas Fronteiras; Arte e Ação Social, e Curadorias Bienalsur.

O título que o escritor espanhol Enrique Vila-Matas dedicou a seu livro sobre a (d)OCUMENTA 13 cairia bem para descrever a Bienalsur: “não há lugar para a lógica em Buenos Aires”. É certo, contudo, que uma ação de arte contemporânea tão ampla e inclusiva, presente desde museus históricos a zonas fronteiriças e carregada de polêmica, é essencial para oxigenar os tristes tempos do avanço conservador no planeta. E Jozami garante: vem mais em 2019.

 

Foco na produção local

mamba
No Mamba, numa sala de quase 200 m2, sete mil aranhas, teceram durante seis meses mais de 40 mil fios FOTO: Patricia Rousseaux

Exposições vibrantes movimentam a cena de Buenos Aires para além da Bienalsur que surgiu em 2017 na Argentina. O Museu de Arte Latinoamericano de Buenos Aires, MALBA, além de apresentar a reorganização de seu acervo permanente, com Verboamerica, um excelente conjunto de narrativas sobre a produção latina por meio de destaques de sua coleção, exibe “México Moderno, Vanguarda e Revolução”, até fevereiro de 2018.

Uma das últimas mostras da gestão de Agustin Perez Rúbio a frente da instituição, a mostra, com curadoria de Victoria Giraudo, Sharon Jazzan e Ariadna Patiño Guadarrama reúne 170 obras de 60 artistas, que atestam como a arte mexicana vai além de Frida Kahlo e dos muralistas Diego Rivera e David Siqueiros.

Já a Fundação Proa exibia “Manifesto”, de Julian Rosefeldt, uma videoinstalação com  13 projeções de interpretação de Cate Blanchett em distintos papéis, misturando trechos de 50 manifestos artísticos. A Mostra de São Paulo apresentou uma versão para a sala de cinema, sem, obviamente, o poder imersivo que 13 telas possibilitam, como se viu na Proa.

O Museu de Arte Moderna de Buenos Aires (Mamba) apresentou três mostras individuais dedicadas a artistas argentinos, em um conjunto realmente impressionante, a começar por “Tomás Saraceno: como prender o universo em uma teia ”.

A primeira impressão de quem entra na única, ampla e escurecida sala da mostra é que Saraceno se apropriou da “TTéia”, a icônica obra de Lygia Pape composta por fios dourados. No entanto, trata-se de uma instalação construída de fato por sete mil aranhas, durante seis meses, alcançando um total de 40 mil fios. Com uma iluminação dramática, semelhante à de Pape, a obra permite uma experiência tão intensa como a brasileira. A instalação de Saraceno, no entanto, por seu tamanho e natureza, assemelha-se a uma constelação repleta de universos, um desses trabalhos quando a palavra sublime não dá conta de expressar tudo o que ele representa.

As outras duas mostras do MAMBA apresentam artistas que tiveram suas carreiras interrompidas de forma precoce, Liliana Maresca (1951 – 1994), vítima de Aids, aos 43 anos, e Sergio Avello (1964 – 2010), aos 36 anos, por conta de um câncer.

Apesar das exposições terem curadorias e mesmos salas distintas, ambas são essencialmente expressões de artistas sintonizados com seu tempo.

Maresca, com uma larga produção nos anos 80 e 90, abordou questões de gênero, em fotos performativas, assim como temas do mundo da arte e das políticas neoliberais que a Argentina atravessou após o fim da ditadura.

Ela participou agora em 2017 da Bienal de Istambul, justamente com “Recoleta” (1990), peça que também faz parte da exposição em Buenos Aires. Composta por uma dessas carroças de carregar papéis velhos, ela é uma crítica ao regime do presidente Carlos Menen (1989 – 1990), ao abordar o empobrecimento da Argentina, naquele período.

Já Avello, com uma produção mais centrada no início do século 21, também aborda questões argentinas, como o nacionalismo, só que usa materiais mais pop, como lâmpadas de neon, que constroem “Bandera”, exibida na Bienal do Mercosul, em 2003, e reconstruída na retrospectiva do Mamba.

Sua obra abrange também trabalhos sonoros, desenhos, pinturas, instalações, refletindo um artista que transitava por várias mídias, como é grande parte da produção da atual geração, em diálogo com a produção minimalista norte-americana, que Avello ironizava.

Por meio desses três artistas, o Mamba consegue, com mostras de fôlego, apresentar as últimas décadas da produção argentina, em uma seleção complementar, mas respeitando individualidades. Programação exemplar desenvolvida por sua diretora, Victoria Noorthoorn.

Lenora de Barros enfrenta o medo

Letras em argila cobriram o chão do Anexo Millan

Alguns meses de pesquisa em Nova York  colaboraram para a entrada de Lenora de Barros num trabalho mais manual, mais artesanal, mexendo com cerâmica.

Na instalação que cubre o chão do Anexo Millan, o visitante é convidado a pisar num chão de letras de argila que compõem a palavra Paúra, sinônimo de medo ou pavor.

Na sala ao lado, espécies de luvas se assemelham a Máscaras de Mão, nome da obra. Todo isto forma parte de um desafio para a artista que comenta que, “no inicio tinha medo de processar,  de criar a forma”. Hoje essa relação assume um caráter mais sensitivo.

Por último, mas também ligado à  importância e ao valor da palavra na sua obra, a artista produziu um trabalho extremamente impactante, Alvos,  onde varias máscaras foram alvejadas à tiro, específicamente nas suas bocas, como se fossem especialmente atingidas no seu lugar de fala.

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A escrita como pintura de parede, Pisa na Paúra, argila e papel

Uma enorme carga de violência parece ecoar segundo a artista nos momentos de hoje. Seu trabalho reflete “como se tivesse sido levada a isso” a necessidade de uma resposta. Parte desse trabalho foi motivado pelo impacto que as declarações que a jornalista russa Masha Gessen deu em entrevista ao jornalista Jorge Pontual, no programa Milênio.

Gessen que é é lésbica, casada e tem dois filhos com sua companheira – ,  se exilou por anos nos EUA e resolveu voltar a Russia para lutar pela liberdade de gênero. Uma das coisas que mais a impressionaram foi a dificuldade de voltar a se expressar na língua russa. Segundo ela é como se com o tempo de censura e violação de direitos individuais, a linguagem tivesse sido “pilhada, estuprada, violada”.  A palavra cria um significado que ao não se comprovar no real vai perdendo seu sentido.

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“Alvos”, video e instalação, 2017

O futuro não se comprova então, as palavras perdem seu valor. “Liberdade às vezes significa “prisão”, “eleição” significa “ritual vazio”, “democracia”  se tornou um termo depreciativo”  disse Gessen.

Lenora não está equivocada, no lugar de ficarmos impávidos temos que pisar na paúra.