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Leonardo Cohen: entre a Bíblia e o Kamasutra

Cohen tenta finalizar uma letra em sua casa em Los Angeles. A foto, de 1982, é de Dominique Isserman.

Havana, 17 de março de 1961. Da janela de seu hotel, o jovem autor de dois elogiados livros de poesia vê tropas correndo pelas ruas e ouve a artilharia antiaérea. Deixara a barba crescer ao estilo de Che Guevara e vestia-se como um legítimo guerrilheiro. Como diz a biógrafa Sylvie Simmons, no livro I’m Your Man (editora BestSeller), ele se sentia atraído pelas ideias comunistas da mesma forma que se sentia atraído “pelas ideias messiânicas da Bíblia”. A experiência algo bizarra na invasão da Baía dos Porcos, e nas noites em que vagou pelas vielas e becos da capital cubana “com um caderno numa das mãos e uma faca de caça na outra”, rendeu alguns poemas, ao menos uma canção, Field  Commander Cohen ( Nosso espião mais importante/Ferido na linha de batalha/Jogando ácido de paraquedas em festas diplomáticas”) e a tentativa de um romance, The Famous Havana Diary. Mas principalmente mostra como Leonard Cohen, talvez o mais original sedutor da canção, sempre esteve em busca de algo que aplacasse sua inquietação e angústia.

“Pode ser qualquer coisa que funcione, vinho, catolicismo, budismo, LSD”, disse certa vez, sem mencionar o amor das mulheres, quase sempre correspondido (que o digam Joni ­Mitchell, Nico, Janis Joplin e, entre tantas outras, a atriz Rebecca De Mornay). Aos 13 anos aprendeu hipnotismo num livro e experimentou seus novos conhecimentos com a bela governanta que trabalhava em sua casa. O truque funcionou e ela docilmente tirou as roupas.  A revelação mágica daquele corpo teve efeito tão grande sobre o aspirante a escritor quanto os ensinamentos do avô, rabino importante em Montréal, onde Cohen nasceu. Diria-se que a hipnose voltou-se contra o hipnotizador. A cena depois foi descrita em seu primeiro romance, A Brincadeira Favorita , de 1963, publicado no Brasil pela Cosac Naify. Como se fechasse um ciclo, na música Because of, uma das melhores de Dear Heather, disco lançado quando já tinha 70 anos, ele entoa os versos (em tradução livre): “Por causa de algumas canções/ Em que falei de seus mistérios/As mulheres têm sido/Excepcionalmente gentis/com minha velhice./Elas arrumam um lugar secreto/Em suas vidas ocupadas/E me levam até lá./Então ficam nuas/Cada qual à sua maneira/e dizem,/Olhe para mim, Leonard/Olhe para mim pela última vez./E inclinando-se sobre a cama/Me cobrem/Como se eu fosse um bebê com frio”.

A hipnose também funcionava muito nos espetáculos ao vivo, em que a plateia entrava num estado de comunhão e adoração, cantando cada verso de So Long Marianne ou Hallelujah, duas de suas mais famosas canções, com os olhos fechados ou fixos naquela figura elegante que se movia lentamente no palco e parecia se dirigir a cada um com atenção especial. Depois que a manager Kelly Lynch sumiu com todo seu dinheiro (cerca de US$ 5 milhões), aproveitando-se dos seis anos em que ele ficou meditando num mosteiro budista, iniciou uma série de turnês mundiais, que duraram de 2008 a 2013. Mesmo nesse último ano, já visivelmente cansado e talvez doente, emagrecido em seu terno de listras e sob o indefectível chapéu Fedora, o Captain Mandrax de outros tempos, quando entornava três garrafas de Chatêau Latour no camarim, se entregava de corpo e alma ao público, em shows que duravam três horas e meia. Chegava a ajoelhar-se no chão, com o punho fechado, num gesto de intensidade que poderia parecer teatral não fosse a verdade em sua voz. Vinte anos antes, em Paris, voltou seis vezes para o bis. O público francês espelhava sua rara disposição e não se cansava de aplaudir, de pé, como se o tempo tivesse deixado de existir. Não à toa, dizia-se, meio brincando, “que se uma francesa tivesse apenas um disco, seria um do Leonard Cohen”.

leonard cohen
Cohen se apresenta no festival da Ilha de Wight para 600 mil pessoas. Era 1970, ele tinha lançado dois discos apenas, mas já era adorado na Inglaterra. Sua banda,The Army, foi assim batizada porque a turnê às vezes parecia uma batalha: na Alemanha alguém da plateia apontou uma arma para o cantor. O fato de ele ter recebido a multidão com a saudação nazista não deve ter ajudado. Foto: Reprodução do encarte de Leonard Cohen: Live at the Isle of Wight 1970.

A primeira vez

Curiosamente, sua primeira aparição em um show como artista solo quase durou alguns segundos apenas. Convidado pela cantora folk Judy Collins, que havia gravado Suzanne com sucesso, ele tremia tanto, “como uma vara”, que pediu desculpas e abandonou o palco, só voltando depois de encorajado pela linda amiga. Para a biógrafa Simmons ele revelou, com o humor fino e autoderrisório que lhe era peculiar: “De alguma forma consegui terminar e achei que ia cometer suicídio. Ninguém sabia o que fazer ou dizer. Acho que alguém pegou a minha mão e me tirou do palco. Todos nos bastidores sentiram muita pena de mim e não conseguiram acreditar em como eu estava feliz, no quanto estava aliviado por ter dado errado. Eu nunca tinha sido tão livre”.

A música surgiu bem cedo em sua vida. Seu pai era o bem-sucedido dono de uma confecção de roupas finas (“já nasci num terno”, diria mais tarde) e sua mãe “uma judia russa, de generoso espírito tchekcoviano ”. Teve aulas de piano quando criança e, já adolescente, tocou clarinete na escola e em casas noturnas, onde “vivia cantando e bebendo”. Na mesma época se encantou com a poesia de Yeats e Garcia Lorca – este, seu grande ídolo, ao lado de Ray Charles e Hank Williams -, e começou a escrever seus primeiros versos. Comprou também um violão, com o qual aprendeu a tocar canções socialistas (“os socialistas eram os únicos que tocavam violão naquela época”), baladas escocesas, flamenco, o folk de Woody Guthrie e o folk-blues de Leadbelly.  No segundo ano da faculdade, fundou com dois amigos a banda de covers Buckskin Boys. Tocavam basicamente um country bem-comportado, em igrejas e escolas. Até que descobriram o calipso no pequeno bairro negro de Montréal e Cohen começou a improvisar naquele ritmo, cantando sobre as pessoas que passavam na rua.

Porém, a música só se tornou sua atividade principal quando tinha 32 anos e gravou, entre 1967 e 1968, o primeiro disco, Songs of Leonard Cohen. Quatro meses mais velho que Elvis, era um ancião no meio. Antes, publicou seis livros, quatro de poesia e dois romances, pelos quais recebeu críticas em geral bem favoráveis. No Canadá era já bem conhecido, pois fazia leituras em turnês com outros poetas, dentre eles o amigo e grande mentor Irving Layton. Também se apresentava com uma banda de jazz de até 12 instrumentistas, que era o que mais gostava. Seu jeito meio tímido, com que falava seriamente coisas às vezes surreais ou irônicas, desconcertava e seduzia quem o via. Como em suas canções, os poemas e histórias têm muitas nuances e ambiguidades, são a um só tempo tristes e engraçados, metafísicos e eróticos, engajados e hedonistas. Basta ver os títulos de alguns de seus livros para se ter uma ideia: Flowers for HitlerThe Energy of SlavesBeautiful Losers. Cohen gostava de brincar com os contrastes e de inverter expectativas. Beautiful Losers, seu segundo romance (em fase de tradução para o português), de 1966, foi o que fez mais barulho. Em linhas gerais, conta a história de um triângulo amoroso entre um antropólogo, um separatista por Québec e uma descendente dos índios iroqueses. Um dos três se mata, outro, com sífilis, enlouquece. O estilo é caleidoscópico, vai do surrealismo à pornografia, sem, no entanto, perder o fio da meada. Um crítico disse que era “uma mistura de James Joyce com Henry Miller”. Mas é uma obra única, como quase tudo que Cohen fazia.

Entre os fãs do livro, estava um certo Lou Reed, que Leonard conheceu quando decidiu se mudar para Nova York, justamente para tentar se tornar músico, já que a literatura lhe rendia muitos elogios mas pouco dinheiro. Instalado no mítico Chelsea Hotel, que intitula outra de suas canções mais conhecidas, Chelsea Hotel nº2 – estão nela as famosas linhas contando o caso com Janis (cantadas com candura e afeto, apesar da crueza da descrição): “Você me chupava na cama desfeita/enquanto a limousine te esperava na esquina” –, passou a frequentar a Factory de Andy Warhol e trocar ideias com Patti Smith, a quem considerava, com entusiasmo (e razão), “um gênio, absolutamente brilhante, vai se tornar uma grande potência!”. Numa das noitadas, fez uma jam com Jimi Hendrix. Tocaram Suzanne, uma das favoritas do guitarrista: “Ele era uma figura gloriosa, e foi muito gentil comigo, tocando sem distorções para que minha voz aparecesse”. O encontro mais importante, no entanto, foi com o produtor John Hammond, que havia descoberto Bob Dylan e Billie Holiday para a Columbia Records. Alertado pelos rumores, foi ao pequeno aposento de Leonard no quarto andar do Chelsea e, olhando a estranha combinação de livros no criado-mudo, em que conviviam, lado a lado, Myra Breckinridge, de Gore Vidal, romance satírico sobre uma transsexual, e um tomo do filósofo Martin Buber sobre a iluminação judaica, sentou-se na beira da cama e pediu para ouvir algumas composições. Depois de três músicas – entre elas, claro, Suzanne –, Hammond foi categórico: “Vamos assinar um contrato agora. Bob Dylan que se cuide!”

De 2008 a 2013, Cohen fez incontáveis shows no mundo inteiro para cobrir o roubo de sua manager. Acabou sendo um prazer para todos.

O falso rival

Dylan, obviamente, nunca teve que “se cuidar”. Mas ambos sempre foram muito comparados. O perfil básico é o mesmo: judeus, literatos, obcecados por metáforas bíblicas, tendo partido os dois do folk mais engajado para depois seguir caminhos próprios. As diferenças, porém, também são grandes, e há até quem defenda que Cohen é quem merecia o Nobel de literatura. A verdade é que Dylan sempre esteve mais próximo da poesia beat de Allen Ginsberg e proto-beat de Walt Whitman, com versos enormes, muitas imagens espalhadas, numa tendência para a entropia vertiginosa, utilizando-se de formas mais improvisadas ou aparentemente desalinhadas, ao passo que seu amigo canadense, a quem admirava muito, buscava a carpintaria exata, a concisão, formas mais tradicionais da canção, inspirado não apenas pelo blues, country e folk, mas também pelas baladas europeias de contadores de histórias como Jacques Brel e Edith Piaf, sem mencionar o decisivo flamenco, que aprendeu brevemente de um espanhol suicida, e moldou seu dedilhar pouco ortodoxo. Mais próximo do rock, Dylan sempre fez mais sucesso, principalmente nos EUA, onde Cohen nunca foi muito bem compreendido (o que diz muito sobre os americanos). Houve até um produtor que, ao ouvir Various Positions, o disco de 1984, em que se encontra não apenas Hallelujah como Dance me to the End of Love, disse: “Olha, Leonard, eu sei que você é genial, só não sei se é bom o suficiente”, e não lançou o disco na terra de Trump, deixando para os europeus, que sempre foram muito mais fiéis a Cohen, o prazer de comprá-lo e ouvi-lo em suas casas. Um tempo depois, ao receber um dos muitos prêmios em sua vida (que inclui também um literário, o Príncipe de Astúrias), Cohen falou em seu discurso: “Fico sempre muito comovido com a modéstia do interesse da gravadora pelos meus discos”.

Certa vez, quando se encontraram num café em Paris, nos anos 1980, tiveram uma conversa reveladora do jeito como cada um encarava o ofício. Dylan adorava Hallelujah, a qual considerava “linda como uma oração”, e perguntou a Cohen quanto tempo ele tinha demorado para compô-la. Envergonhado de admitir que tinha sido mais de cinco anos, baixou para dois. E perguntou por sua vez, em quanto tempo Dylan tinha feito I and I. “Quinze minutos”, foi a resposta já tradicionalmente imodesta do gênio de Duluth. Numa outra conversa entre os dois, recontada deliciosamente por David Remnick na última entrevista que Cohen deu pouco antes de morrer, para a New Yorker, Dylan teria dito, enquanto dirigia o carro  para mostrar uma fazenda que comprara: “Para mim, você é o número 1. Eu sou o número zero”. Com sua gentileza lendária e cavalheirismo, Cohen concordou prontamente.

Na mesma matéria, Dylan mostra grande conhecimento da obra do falso rival, e faz uma avaliação generosa: “Quando as pessoas falam de Leonard esquecem de mencionar suas melodias, que, para mim, são tão geniais quanto suas letras. Mesmo as linhas de contraponto dão um aspecto celestial para as canções. Acho que ninguém chega perto disso na música moderna”. E faz uma análise detalhada de Sisters of Mercy, do primeiro álbum, além de elogiar músicas bem mais recentes, como Going Home e Show me the Place. “Suas canções são profundas e verdadeiras, sempre multidimensionais, que fazem você sentir mas também pensar”, diz. Compara Cohen a Irving Berlin: “Ambos ouvem melodias que a maioria de nós mal consegue ouvir. Ele é um músico ex­tremamente sofisticado”. ­Remnick também conversou com Suzanne Ve­ga, que se  saiu com uma boa definição a respeito do segredo nas músicas de Leonard, não muito distante do que disse o cantor roufenho de Like a Rolling Stone: “São uma combinação de detalhes bem realistas e um senso de mistério”. O próprio Cohen, que sempre declarou a dificuldade de escrever as letras, dizendo que chegava a levar anos, e que já se pegou batendo a cabeça no chão para fechar um verso,  mencionou a importância dos detalhes nos seus escritos. (Há mil outros “segredos”, claro, como a combinação de vozes femininas e angelicais no coro, e sua voz cavernosa, resultado de milhões de cigarros fumados. Ou o uso surpreendente de um sintetizador barato, em contraste com a sutileza e lirismo das letras.)

Paraísos artificiais e reais

Esse mistério vem muito de sua “conexão com as esferas”, uma espiritualidade que, mesclada à curiosidade sensual, desembocou num híbrido perfeito de romantismo e ironia, humor e desespero, a carnalidade mais terrena e a busca religiosa. Muito desse mistério se forjou na ilha de Hydra, para onde foi no final dos anos 1960, fugindo da chuva depressiva de Londres, carregando basicamente sua Olivetti e o famoso casaco de chuva azul. O sol dispensou o casaco, mas a Olivetti permaneceu firme na mesinha de madeira colocada na varanda da casa caiada de branco que comprou com a herança de uma tia-avó. Sua vida era frugal como a de um monge hedonista. Tinha ainda duas cadeiras, “como as pintadas por Van Gogh”, uma cama, alguns livros, velas, garrafas de vinho, um violão e uma vitrola, em que discos de Bessie Smith, Robert Johnson e Nina Simone giravam até derreter. Ele também derretia sob o efeito de ácidos, haxixe ou anfetamina, e literalmente conversava com as margaridas enquanto tentava escrever, debruçado sobre a máquina. “Era uma viagem atrás da outra tentando enxergar Deus. Geralmente tudo acabava numa ressaca horrível.” A modelo norueguesa Marianne Ihlen, sua primeira e mais conhecida musa, é quem cuidava da casa. Com algo de mítico e primitivo, como notou Remnick, a  ilha, em que os carros eram proibidos e a eletricidade uma dúvida constante, lembrada por Henry Miller em sua “beleza nua e selvagem”, reunia boêmios e artistas, “amantes em todos os graus de paixão e angústia, e platônicos frustrados”, bem ao gosto do jovem bardo, que se sentia verdadeiramente à vontade no berço de nossa confusão mitológica

Impossível não pensar nos fulgores ensolarados de Hydra quando se depara com o disco que ele gravou bem próximo da morte, na sala de sua casa, com produção do filho Adam (ele deixou também a filha Lorca, ambos frutos do casamento com Suzanne Elrod. Há ainda uma neta, filha do cantor Rufus Wainwright). O contraste é muito forte. Intitulado You Want it Darker, algo como “você quer mais escuro”, é uma prestação de contas com a vida e uma aceitação serena do fim – certamente conquistada na severa disciplina do mosteiro em Monte Baldy, Los Angeles, sob a batuta de Roshi, o minúsculo mestre zen que foi seu amigo e guia espiritual por 40 anos -, não sem alguma dose de humor e até sarcasmo. Deus, ou Jesus, aparece tanto como um jogador quanto como um traficante ou um curandeiro. A esperança, que já existiu, mesmo numa canção tão ácida como The Future (“Há uma rachadura em tudo/É assim que entra a luz”), é nula: “Um milhão de velas queimam pelo amor que nunca vem”. O coro brada “Hineni”, palavra em hebreu usada por Abraão quando aceitou o sacrifício de seu filho (tão bem descrito pelo próprio Cohen na canção The Story of Isaac), para na sequência, de modo determinado, ele afirmar: “Estou pronto, Senhor”. Só quem tem coração de gelo não se arrepia. Faz lembrar também uma música anterior, do excelente Old Ideas, de 2012, The Darkness, em que diz: “‘Peguei’ a escuridão/Bebendo da sua taça/Não tenho futuro/Me restam poucos dias/O presente já não é prazeroso/Tenho coisas demais para fazer”.

A morte já vinha mostrando seu capuz e sua foice. Pressentindo-a, o cantor e compositor falou para Remnick que não tem medo dela: “só espero que não seja muito desconfortável”. No final de julho deste ano, Cohen recebeu um e-mail em que um amigo próximo de Marianne contava que ela estava muito mal (ela viria a morrer pouco depois). Sua comovente resposta viralizou na internet: “Bem, Marianne, chegou o momento em que estamos tão velhos que nossos corpos já estão se desfazendo. Acho que em breve seguirei seu caminho. Saiba que estou tão perto de você que se estender a mão talvez consiga tocar a minha. E eu sempre te amei pela sua beleza e sabedoria, mas não preciso repetir isso, pois é algo que você sabe muito bem. Só quero te desejar uma muito boa viagem. Adeus, minha querida amiga. Com amor infinito, te vejo na estrada”.

Desse jeito, a tão temida estrada parece realmente bonita.

MAIS

Assista a três vídeos sobre Leonard Cohen selecionados por Daniel de Mesquita Benevides:

Leonard recita algumas poesias no documentário Ladies and Gentlemen, Mr. Leonard Cohen

Cohen canta Suzanne e explica o motivo de ter perdido os direitos sobre a música

Uma performance da música Hallelujah na turnê de 2013

A ira de Vigna

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"São todos iguais. Falam sempre de morte, vazio e solidão. Mas são muito engraçados", comenta Elvira sobre seus livros. Foto: Diego Rousseaux

Escritora, jornalista e ilustradora brasileira, Elvira Vigna foi diagnosticada com um câncer agressivo em 2012 e acabou falecendo em julho de 2017. Deixou, porém, inéditos a serem publicados, entre texto e artes. Agora, a editora todavia lança o livro de contos Kafkianas, com apresentação de Carolina Vigna Prado e posfácio de André Conti.

Leia uma das últimas entrevistas dadas por Elvira, concedida a Daniel de Mesquita Benevides e publicada na edição 9 da CULTURA!Brasileiros, em março de 2017:

Há muitos e muitos anos, Bob Dylan concedeu uma entrevista a um repórter brasileiro. Com uma condição: que fossem feitas cinco perguntas apenas. O pobre jornalista, que conhecia a fundo a obra do bardo, caprichou. Ao se ver diante do hoje Prêmio Nobel de Literatura, o que ouviu como respostas foram apenas dois no, dois yes e um perhaps. Elvira Vigna não é Bob Dylan, evidentemente. Mas o humor talvez se assemelhe. Sua exigência para dar entrevista é que ela fosse feita por e-mail. Explicou que não gosta muito de falar. Justo. Mandadas as perguntas, suas respostas foram gentilmente imediatas. Mas capciosa­mente curtas. Este jornalista viu-se, então, de calças não menos curtas. Sorte es­tar­mos no verão.

É fato que a fama de mal-humorada a persegue. Mas quem a conhece melhor diz que Elvira no fundo é doce. E realmente arredia, por timidez ou por não lidar bem com protocolos, diplomacias e que tais. “Acho que ela é única em vários sentidos. Como pessoa, ela não transige, não faz concessões, é muito coerente com o que acredita, é muito feminista, muito de esquerda, é firme na ideia de uma literatura literária, não feita para venda, mas para transformar. E ela age assim. Não aceita convites para eventos em que não acredita. As pessoas têm de se adaptar a ela, ela não se adapta às pessoas. Como escritora é a mesma coisa. O texto dela tem uma potência, diz exatamente aquilo que pensa”, afirma a escritora e crítica Noemi Jaffe.

Um prólogo faz-se necessário. Vigna é uma das vozes mais interessantes da nossa literatura. Seus livros, como ela mesma diz, “são todos iguais. Falam sempre de morte, vazio e solidão. Mas são muito engraçados.” É dis­cutível, porém, se são mes­mo todos iguais. Há sempre uma nova experiência com o narrador ou narradores. A questão de como contar uma história é central em sua obra e surge das maneiras mais diversas. Mudam cenários, cenas e motivações. Já a graça a que ela se refere existe, de fato, mas é muito peculiar, não para todos os gostos. O leitor precisa entrar na dela, sintonizar em seu canal, seguir o fluxo no mesmo diapasão. Vale o esforço.

Sua trajetória é também peculiar. Foi tarifeira da Air France em Paris, tem diploma da Universidade de Nancy em Literatura, curso feito num convênio com a UFRJ, e trabalhou em todos os principais jornais brasileiros, Correio da ManhãJornal do BrasilO GloboFolha de S.PauloO Estado de S.Paulo. Ilustrou e escreveu vários livros infantis, pelos quais ganhou alguns prêmios, incluindo um Jabuti e um APCA (Associação Paulista dos Críticos de Arte). Fez duas exposições com suas gravuras. Teve algumas editoras, todas falidas. Por uma delas publicou, entre 1970 e 1972, uma pérola do desbunde jornalístico, A Pomba, algo como uma versão mais erotizada de O Pasquim. Tem também uma novela em quadrinhos, algumas peças não encenadas, roteiros não filmados e crônicas (na falta de uma palavra melhor). De 1988 para cá, escreveu dez romances adultos, todos bastante elogiados pela crítica. Nada a Dizer, de 2010, ganhou o prêmio da Academia Brasileira de Letras; Por Escrito, de 2014, foi segundo lugar no Oceanos (antigo Portugal Telecom); e o mais recente, Como se Estivéssemos em Palimpsesto de Putas, venceu o prêmio da APCA.

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As capas do primeiro ano da revista A Pomba, editada por Elvira entre 1970 e 1972. Foto: Divulgação

Putas, apelido já aceito, é, talvez, o livro mais acessível que já escreveu. Não que sua escrita seja exatamente difícil. É… idiossincrática. Num dos textos da série Morrendo de Rir, publicados pela revista Pessoa, que podem ser lidos em seu site, vigna.com.br, Elvira conta o seguinte episódio, que explica, em parte, e de forma muito direta, o que foi dito até agora: “Minha agente, a Anja, um amor de alemoa, é categórica: Não faço mais sucesso porque: 1) sou mulher, feminista e velha; 2) escrevo esquisito; 3) não sorrio pras pessoas pra quem devia sorrir. Sendo que, acrescenta, desiludida, se eu sorrisse, os dois primeiros itens não teriam tanta importância”.

Uma das chaves para a compreensão do livro está no título: o formato lembra, realmente, um palimpsesto. Personagens e histórias se acumulam em camadas que parecem se repetir, mas a cada órbita narrativa ganham novos significados e, antes de serem cobertos por outros fatos e palavras, deixam vestígios de sua passagem. O enredo é simples (suas implicações é que são complexas): João, sujeito razoavelmente rico, egoísta, casado com Lola, gosta de sair com putas. Talvez seja um vício, que se retroalimenta porque sempre insatisfatório. Ficamos sabendo de suas desventuras sexuais através da narradora. É para ela que ele conta, com seu jeito meio autista, de sua prospecção pela rua Augusta, o que inclui o velho castelinho kitsch da boate Kilt, e das explorações por inferninhos em Brasília ou Rio. As conversas de mão única se dão numa editora prestes a falir. Ambos tomam uísque caubói em copinhos de plástico, ela no sofá, ele em sua mesa. Xerazade invertida, João parece querer evitar algum destino ruim ao relatar suas dezenas e uma noites. Ouvinte calada, ela talvez tente seduzi-lo com seu silêncio. É, reiterando o vaticínio da autora, um encontro de solidões, numa situação de vacuidade, com a morte rondando. Dito assim, parece leitura para cortar os pulsos, mas Elvira tem razão: é muito engraçado também. A ideia de palimpsesto ainda está em sua gênese: ela jogou fora toda uma versão anterior do livro, insatisfeita com o tom.

“João e a moça no sofá (eu) eram reais, e são mais reais agora.” Tudo o que escreve é baseado em coisas “vividas, vistas ou ouvidas.” No site Estudos Lusófonos, do professor Leonardo Tonus, há um ótimo depoimento seu: “Tenho muita clareza sobre o motivo de eu fazer literatura. Pretendo, com ela, tornar minhas as histórias que fui obrigada a viver. Só tem um jeito de elas se tornarem minhas: é passarem pelos outros. Essa tentativa se dá no ‘mundo comum’, um termo da Hanna Arendt que designa o espaço das diferenças que me separam e me aproximam desse outro. É, portanto, um espaço da intersubjetividade, esse, onde minha literatura existe. Ou seja, para que ela se dê, é preciso que haja um outro, uma outra maneira, que não a minha, de viver a vida. Aí reconheço a minha como sendo minha. (…) A má notícia é que essa literatura – minha e de outros colegas do contemporâneo – é árdua. Não só para nós, os escritores que a propomos, mas também para esse outro, o leitor, que é convidado a participar daquilo que ainda não está pronto, que nunca fica pronto, daquilo que não só não tem um significado a oferecer como, pelo contrário, se declara falho, necessitado de sócios para sua ressignificação contínua. Esse compartilhar, esse admitir insuficiências e necessidades, a admissão de que precisamos da alteridade para viver, isso exige esforço. Alteridade vem de alterar. E alterar, principalmente alterar a si mesmo, dá um enorme trabalho”.

A dívida com o jornalismo e as madeleines da vida é evidente. O famoso gatilho de Proust também dispara suas narrativas no aspecto mais fugidio, subjetivo. Mas não se pense em autoficção. À minha pergunta, “Narradora e autora… qual a distância?”, sua resposta é caracteristicamente ambígua e concreta: “Bem medida ou, pelo menos, bem procurada. O narrador nunca é eu, nem foi. É alguém que tem uma distância precisa de mim hoje, de mim em qualquer outra época. Uma proximidade afetiva: sabe de mim, gosta de mim. Mas consegue me ver. O narrador é um lugar de onde aquilo que quero compartilhar pode existir. É muito difícil de achar, pelo menos por esta que vos fala”. Continuo: “Achei especialmente interessante o que escreveu sobre as imagens serem mais incompletas, porém mais polissêmicas. As palavras e mesmo a memória parecem insuficientes também. A literatura seria uma tentativa de dar algum sentido a tudo isso?”. A resposta surge na tela como névoa passageira. E estranhamente precisa: “É, exatamente. Mundos incomple­tos, polissêmicos. A insuficiência co­­mo medida de con­vivência”. Em outra situação, pontuou, como se temesse ser mal compreendida e sentisse a ne­cessidade de deixar mais clara essa “insuficiência” de que fala: “A literatura serve para te desestabilizar, para te botar mal, com dúvida”.

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Autorretrato. Ilustradora premiada, Elvira estudou gravura na Escola de Belas Artes, no Rio

Para Cristhiano Aguiar, jornalista, editor, crítico literário e professor do Centro de Comunicação e Letras do Mackenzie, “ela tenta escrever contra a literatura”. E acrescenta, concordando com Noemi: “Acho que ela também questiona uma posição social ‘careta’ – tradicional e formal – do escritor. Ela retira a formalidade, retira a idealização. Acho que ela tam­bém quer retirar, na escrita e na postura dela, uma aura de intensa legitimidade. Ela quer ‘desgourmetizar’ a literatura, eu acho”. Já o crítico Manuel da Costa Pinto tem opinião semelhante, mas num sentido menos positivo: “Ela tem o pessimismo de um Graciliano Ramos, de um Dalton Trevisan, embora seja mais urbana. Sua obsessão feminista com a questão das diferenças de gênero, com a brutalidade das relações sociais, beira às vezes o caricatural. É mais uma postura do que algo com autenticidade. Ela quer épater le bourgeois, só que o burguês não se choca mais”. Às aproximações de Ma­nuel, que, não obstante, vê grandes méritos nos livros de Vigna, se poderia acrescentar o nome de Raduan Nassar, em especial aquele de Um Copo de Cólera, cuja virulência, ora seca, ora lírica, com­bina com os descaminhos amorosos e sexuais nas tramas vignianas.

A publicação A Pomba pode ter feito, em menor escala, esse papel de épater os burgueses. Momento único da chamada imprensa nanica, era bastante subversiva para a época, ainda que os censores, pouco espertos, não percebessem. Numa entrevista para o blog português Som À Letra, ela conta: “A censura liberava as edições para a gráfica sem notar que quando falávamos do nazifascismo alemão estávamos falando deles”. A redação ficava em seu apartamento, no Rio. Elvira, à época com 20 e poucos anos, cuidava mais da produção, e seu então companheiro, Eduardo Prado, da edição. O ambiente era de descontração total, com muita risada e jogatinas de pôquer rolando soltas: “Ninguém fechava a porta. O edifício estava em construção e, na verdade, ainda não tínhamos licença da prefeitura para habitar o apartamento em obras. Então era um movimento constante o dia inteiro, e não só de jornalistas, mas também de pedreiros e operários. Não tinha nada que pudesse ser chamado de rotina”. O cartunista Quino uma vez passou por lá. Joel Silveira, Domingos Oliveira e Ziraldo eram alguns dos colaboradores. As capas sempre traziam nus, que também ocupavam as páginas internas. Era uma provocação aos tempos conservadores da ditadura e também à revista masculina Fairplay, que tinha demitido o casal. Nada convencional, claro. Havia também nus masculinos, “o que era um escândalo”, e os modelos eram muitas vezes negros ou pessoas comuns, bem distantes do padrão das revistas comerciais. Os textos falavam de psicanálise a literatura, entre mil temas, sempre com humor e inteligência.

Começou a escrever por causa de uma de suas editoras, a Bonde, que cometia a “imprudência” de só publicar autores novos. Escolheu de início a literatura infantil, porque queria se comunicar com os dois filhos, a quem “não entendia”. No fim das contas, eles a entenderam tanto que hoje também encararam o sonho das pequenas editoras: David Nicolau fundou a Estado da Arte e Carolina acaba de abrir a Uva e Limão. Quando cresceram, abandonou seu monstrinho Adrúbal (personagem criado por ela) e, em 1988, lançou um primeiro livro de temática adulta. Sete Anos e um Dia, disponível na íntegra em seu site, trata de quatro amigos no período pós-abertura. Um entrevero com a editora, José Olympio, fez com que abandonasse a literatura pelo jornalismo por quase uma década. A volta se deu pela Companhia das Letras, onde está até hoje. Ela mandou vários originais pelo correio e Maria Emília Bender, que viria a editar todos os seus livros a partir dali, se interessou: “Seus livros não são exatamente fáceis. Ela sempre encobre as coisas, tem sempre um mistério, um segredo, e um segredo que às vezes é tão secreto que fica quase criptografado. É uma voz muito particular, diferente de tudo o que eu já tinha lido. Tem zero pieguice. Muitas vezes ela é cruel, o que eu acho bem interessante. É uma literatura áspera, que morde. E ela não é nada óbvia. Sua opção preferencial é pelas mulheres e pelos losers urbanos, ex-strippers, transexuais de subúrbio, jornalistas do terceiro escalão. Há uma indefinição nas coisas, pode ter acontecido algo criminoso ou não. É cerebral e visceral ao mesmo tempo, e esse é o ouro dela”, diz Bender.

Grande parte da crítica considera o Putas seu melhor livro. Noemi Jaffe, que ainda não o leu, fica por ora com Por Escrito: “Gosto muito da polifonia no Por Escrito. Cada personagem tem uma voz muito própria. É difícil ser polifônico e manter a individualidade dos personagens. Ela é fera. É impressionante como ela vai passando de uma situação para outra sem que a gente perceba as passagens”. Já a própria escritora – e também Costa Pinto – prefere uma cria menos beneficiada pelos pequenos holofotes da mídia. Como declarou em conversa pública com Manuel: “A um Passoé um livro único, e é o melhor que eu fiz. É um comentário sobre a peça A Tempestade, de Shakespeare, em que a ficção se desmancha em pleno palco. Um personagem conta a história do outro, mentindo. Quero reeditar no ano que vem, não sei se vou conseguir, é um livro de não venda, acadêmico, para estudioso de literatura.” Ao contrário, parece promissor.

Diálogos com Rosane Borges: gênero, raça, visibilidade e poder

Rosane Borges tem 43 anos e nasceu em São Luís, Maranhão. Desde a adolescência esteve envolvida em atividades de movimentos negros e discussões políticas, lutou e ainda luta para mitigar e obstruir os efeitos do machismo e do racismo estrutural e institucional nos âmbitos privado e individual.

Na academia, entre o jornalismo e a comunicação enquanto ciência, a hoje doutora e mestre em Ciências da Comunicação pela USP, passou a refletir sobre o que é ser uma comunicadora negra.

Ao PáginaB!, explicou que a sua formação política data da participação em diretório e centro acadêmico universitário.

Atualmente, Borges integra o grupo de pesquisa Midiato, da ECA (Escola de Comunicação e Artes) da USP. Em seu currículo, ainda, consta a coordenação do Centro Nacional de Informação e Referência da Cultura Negra da Fundação Palmares, um dos órgãos do Ministério da Cultura.

Em Diálogos, Rosane Borges discute gênero, raça, visibilidade e poder sob a luz dos movimentos de minorias e da disputa de narrativas dentro e fora da Academia e nas redes sociais.

Pombagiras e a Multidão de Mulheres

'Lua Com Ovo II', (1992), de Mario Cravo Neto.

*Por Maria Gabriela Saldanha

Neste 8 de março, com o avanço conservador que propaga o ódio a minorias, respondendo pelo acirramento da perseguição às religiões de matriz africana e pela extinção de direitos conquistados pelas mulheres ao longo dos anos, teríamos muito a aprender com as sacerdotisas destas religiões a respeito de mulheridade e resistência, se nos abríssemos às suas vivências e à riqueza simbólica de sua ancestralidade.

Algumas referências muito interessantes para repensarmos a autonomia das mulheres no mundo estão presentes no conjunto de saberes arquivados sob o imaginário de Pombajira (“Pombagira”, em grafia popular). Muitas vezes, bem antes que qualquer discurso feminista pudesse alcançar essas mulheres, os saberes transmitidos oralmente no âmbito de seu cotidiano religioso e comunitário foram as únicas ferramentas de sobrevivência.

Conforme definição de Luiz Antonio Simas, historiador e pesquisador de manifestações populares: “Do ponto de vista da etimologia, a palavra Pombajira certamente deriva dos cultos angolo-congoleses aos inquices. Uma das manifestações do poder das ruas nas culturas centro-africanas é o inquice Bombojiro, ou Bombojira, que para muitos estudiosos dos cultos bantos é o lado feminino de Aluvaiá, Mavambo, o dono das encruzilhadas, similar ao Exu iorubá e ao vodum Elegbara dos fons. Em quimbundo, pambu-a-njila é a expressão que designa o cruzamento dos caminhos, as encruzilhadas. Mbombo, no quicongo, é portão. Os portões são controlados por Exu”.

Então temos uma forma de mulheridade disponível no inconsciente coletivo de diversos povos que é dona dos caminhos. Isso é suficiente para manter viva a memória e o desejo de um modo de ser mulher que rompa com o confinamento patriarcal na dimensão privada e no estereótipo de feminilidade, percebendo-se livre física, emocional, social e espiritualmente para ir a toda parte. Por essa perspectiva, quando entendemos que Pombagiras regem as estradas, talvez estejamos falando simbolicamente sobre mulheres ocupando todos os espaços; se elas podem também bloquear passagens, o seu “não” é definitivo, de modo que qualquer perturbação a ele obstruirá o fluxo da vida e dos interesses coletivos; quando falamos sobre encruzilhadas (cruzamentos, opções) evocamos um sistema de escolhas que contemple as mulheres; quando nós relacionamos tais entidades ao cemitério (mundo dos mortos), que têm suas próprias ruas e esquinas, estamos destacando o trânsito nas próprias sombras, ou seja, sabendo caminhar em nós mesmas, em nossos labirintos psíquicos, atentas às marcas das diversas formas de violência para que não condicionem o nosso caminhar.

Por outro lado, a força vital simbolizada nas Pombagiras é a da plena consciência do corpo e da sexualidade não referenciada no pecado ou na cultura de objetificação/abuso, mas na qualidade de potência. O que vai na contramão de toda a socialização feminina, já que misoginia é uma forma de opressão estrutural construída especificamente sobre o corpo do ser humano nascido mulher, que é castrado de muitas maneiras ao longo da vida para corresponder ao projeto de submissão para ele previsto em muitos níveis. Isso implica dizer que Pombagira nos restitui a noção – inegociável – de que o corpo da mulher somente a ela deveria pertencer e que essa é a condição fundamental para que os caminhos existam. Os caminhos para a evolução de todos nós, uma vez que a libertação das mulheres alavanca toda a coletividade e garante o pleno desenvolvimento das próximas gerações.

 

*Maria Gabriela Saldanha é escritora e ativista feminista.

Laura Ferrari – A “parteira” zen

A yoga transformou a vida dessa paulistana quando ela menos esperava. Executiva, professora de inglês, Laura da Silva Prado Ferrari vivia o cotidiano a mil por hora da cidade de São Paulo: estresse, correria e muitas dores no corpo. Laura lembrou de como as aulas de yoga faziam bem e resolveu voltar à prática. O que era um escape e um exercício para segurar a barra do dia-a-dia virou profissão. Fez faculdade, especializou-se no assunto e começou a dar aulas para idosos. Depois, gestantes. Hoje, seu universo lida com preparar uma vida para chegar ao mundo. Bem diferente do ambiente de livros e dicionários de antigamente. Laura mergulhou no mundo da cultura oriental e percebeu que existe vida em equilíbrio. Acredita que a yoga deveria ser disciplina escolar, como matemática e português, e também critica a forma dos hospitais lidarem com a maternidade no mundo moderno. Por isso, ajuda mães a darem à luz da forma mais natural possível. Sem cortes, sem invasões.

Laura Finocchiaro – A fiel do underground

Conversar com a cantora e compositora gaúcha Laura Finocchiaro é dar um mergulho nos anos 1980 e começo dos 1990. É lembrar-se, mais especificamente, de uma época em que a noite de São Paulo pululava com dezenas de casas noturnas alternativas. É também se aproximar do mundo pop e conhecer uma figura que está nos bastidores de vários programas de TV. Laura impressionou Cazuza, que chegou a gravar uma música sua; chamou a atenção da cena underground e tocou no Rock in Rio, no mesmo palco em que mitos, do calibre de Prince, passaram. Um começo de carreira meteórico desaguou na produção de trilhas sonoras para televisão e, mais recentemente, em experiências com a música eletrônica. De volta aos palcos, Laura apresentou seu show Avoar, no mítico Madame Satã, onde ela deu seus primeiros passos no mundo da música. A Brasileiros acompanhou tudo.

Fusae Uramoto – Vovó do surfe

Dona Fusae é um exemplo de que a idade não é empecilho para nada. Vinda do Japão aos 3 anos de idade, Fusae só fala sua língua natal em casa e não é totalmente fluente no português, mas aprendeu a aproveitar a vida como uma legítima brasileira: curtindo a praia. A nipo-brasileira, que mora em Santos desde os anos 1970, resolveu, há pouco mais de sete anos, frequentar as aulas de surfe na escolinha de Cisco Araña, uma lenda viva do esporte na Baixada Santista. E não para por aí. Quando completou 77 anos, Fusae resolveu comemorar em grande estilo e saltou de paraglide. Além dos esportes radicais, também já praticou inúmeras artes marciais japonesas. Quando não está se aventurando, Dona Fusae cuida de sua casa e já planeja uma nova empreitada, dessa vez, um pouco mais tranquila: aprender a tocar gaita.

Maria Lúcia Molfi – A leiloeira

Nascida em Mococa, criada em São José do Rio Pardo, cidades do interior de São Paulo, Maria Lúcia virou Milu antes mesmo de nascer. O apelido foi dado pela parteira, que participou dos quatro nascimentos da família. Milu é a terceira da casa. Uma paixão e um casamento levaram-na para o mundo das artes, das antiguidades e, principalmente, dos leilões. O término do relacionamento afastou Milu dos leilões, mas paixão é paixão. Ela ama o que faz e isso é percebido em poucos minutos de uma noite de leilão que promove em São Paulo. Experiente, não faz pregão em noite de jogo de futebol, muito menos quando tem capítulo final de novela. Seu interesse por artes aumenta a cada dia. Da família, o único que tem interesse pelo assunto é o irmão, Márcio, um expert com quem Milu se consulta diariamente para montar seus leilões.

Adriana Peliano – No mundo de Alice

Ela não sai do país das maravilhas de Alice. Há mais de 10 anos, o livro do escritor britânico Lewis Carroll é a sua rotina. Desenhos, colagens, vídeos, exposições, oficinas, palestras, workshops, novas ideias todos os dias. A obra de quase 150 anos faz Adriana transitar nas mais diversas áreas além da literatura. A psicanálise, a história, o design e até o cinema, com o recente filme de Tim Burton, exploraram o tema do livro de Carroll, o que deixa Adriana mais interessada e instigada. Em 1998, no centenário da morte de Lewis Carroll, ela foi para Oxford e conheceu o ambiente no qual o autor vivia na época em que escreveu o livro. Adriana também entrou em contato com a Sociedade Lewis Carroll da Inglaterra, que desde a década de 1960 estuda a obra do escritor. Ficou tão fascinada com colecionadores, fãs e pessoas que tinham no universo de Alice uma realidade quase paralela que fundou a Sociedade Lewis Carroll do Brasil, em 2009, para reunir pessoas de todo o mundo em torno do livro. Para saber mais sobre Adriana e seu país das maravilhas, acesse http://adrianapeliano.blogspot.com/

Clarice Berto – Presidente da AAMAM

A vaidosa e espalhafatosa Clarice era frequentadora da Associação dos Amigos do Museu de Arte Moderna desde os seus 22 anos foi eleita como presidente em 2001. Está à frente da associação sozinha. Sem mais os assíduos sócios de outrora, não há verbas nem mesmo para bancar um garçom para o bar do museu. Em 1949, Assis Chateubriand cedeu duas salas na R. 7 de Abril, para abrigar o MAM de São Paulo e a sua associação. Em 1958 o museu foi para o Ibirapuera, onde está até hoje. Aos poucos a AAMAM foi se dissociando do museu até se tornar completamente independente. Em um edifício na Av.Ipiranga, 324, ao lado do Copan, desde 1978, enfrenta dificuldades e percalços no caminho. Hoje, o bar sofre restrições de horários impostas pelo condomínio comercial em que se encontra. Clarice, com seus colares e jóias douradas, mora a duas quadras dali, é aposentada e dedica suas noites a este patrimônio e a incentivar jovens artistas, tentando manter vivo esse lugar que faz parte da história de São Paulo.