Grande Hotel, Neón. Saguão de entrada Sesc 24 de Maio, São Paulo
Em plena ditadura militar, na Bienal de São Paulo de 1968, a artista Carmela Gross apresentou três obras, entre elas “Barril”, uma referência ao instrumento de tortura usado na época pela polícia para provocar uma situação de afogamento nos presos.
A obra foi apresentada justamente na Bienal do Boicote, assim chamada porque muitos artistas deixaram de participar da mostra em sinal de protesto contra a situação vivida pelo país. “Como instrumento de tortura, ele [o barril] já era, por sua vez, resíduo da indústria norte-americana do petróleo. Metáfora reduzida ao mínimo, quase uma não metáfora, mas que implicava a dominação estrangeira e a dependência brasileira, inclusive, nas práticas clandestinas da ditadura”. O depoimento atual, que após 50 anos apresenta um Brasil ainda submisso aos EUA e com a democracia ameaçada, é da própria artista no livro “Carmela Gross”.
A nova publicação traça um panorama da obra de Gross desde 1967 até 2017, portanto uma visão ampla de 50 anos de carreira, apresentando 76 obras de forma detalhada, muitas delas com relatos da artista, como é o caso de “Barril”.
Gross tem sido uma artista com forte presença na cidade de São Paulo, seja em mostras temporárias como a Bienal de São Paulo (1968, 1989 e 2002), seja em obras de caráter permanente, caso de “Grande Hotel”, a mais recente apresentada no livro. Ela se encontra no Sesc 24 de Maio, projetado por Paulo Mendes da Rocha, inaugurado no ano passado no centro da cidade. “O letreiro luminoso GRANDE HOTEL, instalado na praça de entrada do edifício, combina a descoberta de um sítio perdido com a evocação de uma promessa – a da cidade como o lugar maior de seus habitantes”, descreve a artista na publicação.
Luminosos criados a partir de luzes neon ocupam muito da obra de Gross, uma maneira de estabelecer vínculos com as formas de comunicação da própria cidade, subvertidos, contudo, conforme seu desejo. Ela escreveu Hotel sobre a Bienal de São Paulo, em 2002, uma forma que pode apontar tanto para o caráter temporário e passageiro da mostra, como para o caráter limitante e de privilégios que ela encerra.
Esse é um bom exemplo, aliás, dessa relação muito estreita entre a poética da artista e os códigos urbanos, uma linha dominante na publicação, que também ocorre com a apropriação das placas metálicas que em geral denominam nomes de rua, mas na obra de Gross se transformam em estratégias para nomear os que nem sempre possuem visibilidade.
Figurantes, 25 placas de ferro esmaltado
“Figurantes” (2015) retrata bem essa possibilidade, já que: “Alude a um cortejo insólito de dúbias figuras. São aquelas listadas por Marx em O 18 Brumário de Luis Bonaparte (1852), como membros da Sociedade 10 de Dezembro, constituída de biscateiros, herdeiros arruinados, vagabundos e desocupados de toda ordem”, segundo relato de Gross no livro.
É bastante generosa essa maneira de abordar a carreira de Gross, usando junto às imagens das obras seus próprios depoimentos em primeira pessoa para se conhecer o processo de criação da artista, suas inspirações e objetivos. Afinal, a arte contemporânea nem sempre é de fácil comunicação, mas os textos claros e precisos da artista são uma maneira de dar algumas pistas além da própria visibilidade de cada trabalho.
Essa preocupação reflexiva se expande ainda mais na segunda parte do livro organizado pelo curador Douglas de Freitas. “Carmela Gross” reúne ainda uma entrevista da artista conduzida por ele e três ensaios escritos pelos curadores Paulo Miyada, Luisa Duarte e Clarissa Diniz.
Referência no sofisticado mundo da moda brasileira, o fotógrafo apresenta sua retrospectiva, Bob Wolfenson: Retratos, no Espaço Cultural Porto Seguro, com mais de 200 fotos, feitas em 45 anos de trabalho. A exposição abre no dia 23 de agosto e permanece em cartaz até 9 de dezembro de 2018.
Bob nasceu no bairro do Bom Retiro, em São Paulo, e começou sua carreira aos 16 anos como uma espécie de office boy na então pujante Editora Abril, no Estúdio Abril, que foi, comandado por Chico Albuquerque, a meca da fotografia de moda.
Entrou como office boy e saiu fotógrafo. Aos 20 anos, abriu seu próprio estúdio com dois amigos, Dudu Tresca e Leonardo Costa. Anos depois, deixou o Brasil e foi trabalhar em Nova York, no estúdio de Bill King, incensado fotógrafo que, entre outras mega celebridades, colocou Twiggy e Cindy Crawford na capa da Vogue americana.
Ficou um tempo por lá e trouxe a experiência americana na bagagem, o que facilitou bastante sua vida por aqui. Tanto que, recém chegado, já foi chamado para fotografar para a Vogue brasileira. A partir de então, seu sucesso foi crescente.
Se Nova York fez bem a sua carreira, o Bom Retiro fez bem ao seu caráter.
Hoje com uma composição étnica mais variada, com predominância coreana e boliviana, quando Bob ganhou sua primeira câmera de seu pai, era o bairro dos judeus. De familia progressista, dona de malharia, ele cursou o Colégio de Aplicação, da Faculdade de Filosofia da USP, e depois fez Ciências Sociais, curso que interrompeu quando a fotografia tomou as rédeas de seu tempo.
Mas a formação humanista fez bem.
Em um ramo onde os egos costumam padecer de gigantismo, Bob cuida bem do seu. Isso fica evidente no contato pessoal e é verbalizado no livro que escreveu em 2009 para a Editora Campus, Cartas a um jovem fotógrafo.
Na publicação de pouco mais de 200 páginas, ele diz na introdução: “… só posso e quero falar daquele que sou – sem nenhuma afetação narcísica, assim espero”.E mais adiante ressalta que escreve “para contar um pouco dessa profissão, do ambiente que a cerca e das armadilhas, do ego e do mercado…”.
O senso crítico e o bom humor aparecem quando se refere à fase pós experiência novaiorquina:
“Não me lembro direito de tudo o que fiz nesse período, mas algumas destas fotos eram muito ruins.”
Com o mesmo espírito relata os bastidores da foto de Oscar Niemeyer, exposta na retrospectiva. No escritório do arquiteto, no Rio, ele pediu para Niemeyer deitar em uma poltrona, projeto de sua autoria. A resposta veio torta: ”Isso eu não faço. Não deito”.Aí Bob sugeriu que ele, então, sentasse na tal poltrona. A resposta, mais torta ainda: “Não sento”. Para acabar logo com o sofrimento, Bob conta que ,enquanto se virava para colocar um fundo branco atrás de Niemeyer, o arquiteto provocava: “Por que você fotografa homens? Se eu fosse você, só fotografava mulher”.
“Mas é o que eu mais faço”, respondeu.
Apesar de tudo, o fotógrafo gostou do resultado.
Bem humorado, Bob já disse que deixou o Bom Retiro mas o Bom Retiro não o deixou.
E, como uma imprevista comprovação disso, agora, passados alguns anos, a retrospectiva de sua carreira está a poucas quadras de onde ele nasceu e viveu sua infância e juventude.
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Jô Soares, 2015, São Paulo
Laerte, 2013, São Paulo
Rita Lee, 1976, São Paulo
Oscar Niemeyer, 1990, Rio de Janeiro
As mais de 200 fotos que compõem a exposição têm Rodrigo Villela como curador e estão no Espaço Cultural Porto Seguro, destino obrigatório no roteiro cultural de São Paulo, que fica na Alameda Barão de Piracicaba, na fronteira entre os bairros dos Campos Elísios e do Bom Retiro, e a pouco mais de dez quarteirões de distância da rua Afonso Pena com rua Guarani, onde o fotógrafo passou a infância. Para Rodrigo Villela, o trabalho de curadoria foi árduo mas prazeroso. Para chegar nas fotos escolhidas, mais de mil foram vistas. A mais antiga é de José Celso Martinez Corrêa, de 1973, e a de Sebastião Salgado foi feita há alguns meses.
“Com um arco temporal tão extenso, podemos observar no trabalho de Bob também uma crônica de costumes, um viés possível inclusive para uma apreciação histórica”, destaca o curador.
E se é uma curiosa coincidência a mostra estar a poucas quadras de onde Bob nasceu é também interessante que haja outra importante retrospectiva na cidade com alguma relação com ele, mesmo que tênue. Em sua fase americana, para conseguir o emprego com Bill King,Wolfenson mandou cartas com o mesmo pedido para outros fotógrafos, como Richard Avedon, Arthur Elgort, Barry Lategan e Irving Penn. Só King respondeu.
Irving, um dos que não respondeu, tem também sua retrospectiva, Irving Penn: centenário, com mais de 200 fotos, em São Paulo, na Avenida Paulista, no IMS, Instituto Moreira Salles. Um pouco mais distante do Bom Retiro. Mas também imperdível.
FUSO: Anual de Video Arte Internacional de Lisboa, coletiva no Galpão VB, em 15/9.
Sempre no final do mês de agosto, com entrada gratuita, o FUSO saúda as noites do verão português com obras em vídeo que cruzam as artes plásticas, a performance, o cinema, a literatura e os meios digitais, propondo uma nova abertura à imagem em movimento do século 21.
No Galpão VB, serão exibidos dois programas derivados da mostra. O primeiro, curado por Marta Mestre, se concentra na produção portuguesa contemporânea e apresenta uma seleção de obras premiadas em suas diferentes edições. O segundo programa, curado por Isabel Alves, traz três obras históricas de Ernesto de Sousa, autor incontornável na produção audiovisual em Portugal.
Maíra Dietrich, ‘Miragem’, 2017
Maíra Dietrich: Visão Periférica, individual no Paço das Artes, abertura em 18/9.
Integrante da Temporada de Projetos do Paço das Artes, a exposição é constituída por três obras: a peça sonora que dá nome à mostra, composta por cinco falantes sincronizados; “papelzinho”, uma projeção de slides com imagens de processos de trabalho realizados de 2008 a 2018; e o trabalho “Ptit Poema”, que são anotações curtas realizadas diretamente sobre o espaço. Segundo a artista, “visão periférica é o nome dado a toda percepção visual que ocorre fora do foco ocular, a visão não-central, a habilidade de perceber o que está ao redor da mira, um exercício de compreender e se colocar em relação ao contexto que nos circunda”. Trata-se, também, de um termo adotado pela artista para definir sua metodologia de trabalho, que consiste em relacionar o que é visto e ouvido em diferentes
espaços de tempo.
Millôr Fernandesm Desenho para publicação em IstoÉ, 15.08.1990. IMAGEM: Acervo Millôr Fernandes / IMS
Millôr: Obra Gráfica, individual no IMS Paulista, abertura em 18/9.
A mostra divide em cinco grandes conjuntos a obra gráfica de Millôr, dos autorretratos à crítica implacável da vida brasileira, passando pelas relações humanas, o prazer de desenhar e a imensa e importante produção do “Pif-Paf”, seção que manteve na revista O Cruzeiro entre 1945 e 1963. O acervo de Millôr, que reúne mais de seis mil desenhos e seu arquivo pessoal, está sob a guarda do Instituto Moreira Salles desde 2013.
Leila Ao sul do futuro #1, 2018
Leila Danziger: Ao Sul do Futuro, individual no Museu Lasar Segall, abertura em 15/9.
O que Leila Danziger propõe em sua pesquisa como artista visual e poeta é um convite a um olhar cético, fruto dos traumas históricos que nos trazem ao agora. Para alcançarmos isso, é preciso termos um pé no aqui (presente) e o outro no lá (passado).
As narrativas acerca do processo de migração não apenas de sua família, mas de milhares de judeus-alemães que enxergavam o Brasil como território para um novo começo, são centrais nesta exposição.
Projeto de Paulo Mendes da Rocha exposto na ocupação. FOTO: Rovena Rosa/Ag. Brasil.
Ocupação Paulo Mendes da Rocha, Itaú Cultural de São Paulo, até 14/11
Com curadoria do arquiteto Guilherme Wisnik e do instituto, a mostra reúne croquis, fotografias, maquetes, textos críticos e depoimentos de Mendes da Rocha que expõem sua obra e suas perspectivas criativas. O tema que guia a exposição são as águas, elemento que atravessa o trabalho do urbanista e professor de várias formas: desde o imaginário dos rios e dos mares até a proposta de um sistema fluvial para a América Latina, passando pela piscina como ideal de espaço público.
C+P Arquitetura; Rodrigo Calvino e Diego Portas, Hostel Villa 25, vencedor do segundo lugar. FOTO: Federico Cairoli.
Prêmio de Arquitetura Instituto Tomie Ohtake AkzoNobel, coletiva no Instituto Tomie Ohtake, até 23 de setembro.
A seleção dos projetos foi feita por um júri formado pelos arquitetos Adriana Benguela, Fábio Mariz Gonçalves, José Lira, Marcos Boldarini e Priscyla Gomes. Os 13 projetos finalistas, selecionados entre os 244 inscritos, provenientes de 17 estados brasileiros e Distrito Federal, fazem parte da exposição.
Jaime Lauriano, ‘Combate #1’, 2017. FOTO: Filipe Berndt
Quem não luta tá morto, coletiva no Museu de Arte do Rio, abertura em 15/9.
Assinada por Moacir dos Anjos, um dos mais importantes curadores do país, com passagens pelas Bienais de São Paulo e Veneza, a mostra faz parte do programa de comemoração dos 5 anos da instituição.
Sem ter pretensão de apresentar um panorama conclusivo, exposição traz exemplos do pensamento utópico que marca a arte brasileira recente. Trabalhos artísticos realizados em momentos passados também estarão presentes, além de propostas e ações realizadas por grupos comunitários, associações e outras articulações da sociedade civil que visam a construção de estruturas de atuação política e social.
Raffaello Sanzio, Scuola di Atene, 1508-11
Rafael e a Definição da Beleza: Da Divina Proporção à Graça, coletiva no Centro Cultural FIESP, abertura em 18/9.
Com curadoria de Elisa Byington e produção da Base7 Projetos Culturais, a mostra se antecipa às celebrações que marcam os 500 anos de morte de Rafael, em 2020. A exposição traz obras de grandes mestres do Renascimento de diversas coleções italianas como a Galleria Nazionale da Umbria e de Modena, a Galleria Borghese e o Palazzo Barberini de Roma, a Santa Casa e o Museo del Tesoro de Loreto, e o Museo Nazionale di Capodimonti de Nápoles. Conta também com obras inéditas da coleção Yunes, de São Paulo, da Fundação Eva Klabin, do Rio de Janeiro, e um conjunto de mais de 50 gravuras produzidas no ateliê de Rafael e seus discípulos que hoje integra o acervo da Fundação Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
Lawrence Weiner, ‘Deep Blue Sky’, 2007.
Tarefasinfinitas, coletiva no Sesc Pompéia, até 30/09
A mostra já passou pela Europa e chegou ao Brasil em agosto, no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc e na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin. Exposição, Fórum de debates e visitas mediadas com convidados especiais compõem a programação.
O conceito da exposição Tarefas Infinitas “quando a arte e o livro se ilimitam”, originalmente realizado em Lisboa na Fundação Calouste Gulbenkian, norteia-se pela apresentação do livro enquanto laboratório de experiências estéticas, um meio que abre infinitas possibilidades à arte, além de questionar a definição e função do livro a priori.
Com o ar pesado demais pra respirar, coletiva na Galeria Athena, abertura em 20/09
Coletiva com curadoria de Lisette Lagnado reúne obras de André Griffo, Anna Bella Geiger, Antonio Dias, Antonio Manuel, Artur Barrio, Franz Weissmann, Igor Vidor, Iole de Freitas, Lais Myrrha, Laura Belém, Leonilson, Leticia Parente | Matheus Rocha Pitta, Rubens Gerchman.
Delson Uchôa, Fiacão, 2009
Delson Uchôa: Autofagia, Corrupio no Olhar, individual na Zipper Galeria, abertura em 20/9.
Nas obras reunidas nesta seleção, é possível identificar alguns pontos de partida do artista: padrões, formas geométricas e tonalidades recorrentes na produção de Delson nos anos 1980. A variedade de materiais também está presente – lona, lá, algodão, camurça, madeira, plástico e metal mesclam-se à pintura acrílica como testemunhos de um arquivo objetual reunido pelo artista.
Rubens Azevedo, Sem Título
Grandes nomes, pequenos formatos, coletiva na galeria MAPA, abertura em 18/9.
“O petit format é um clássico noutras culturas, ele é a maneira mais rápida e concisa de seduzir o espectador, com maestria e versatilidade. Esta exposição mostra como artistas de épocas diferentes, e que divulgamos, admiramos, e/ou perseguimos, trabalham essa questão específica.”, escreve o curador João Pedrosa.
Lourival Cuquinha | Apólice do Apocalipse, 2018
Lourival Cuquinha: Dos meus comunistas, cuido eu, individual na OMA Galeria, até 28/10.
trabalho de forte crítica política e social, Cuquinha discute em sua poética a liberdade do individuo frente ao meio social e capital, questionando assim até mesmo a prática do mercado de arte, tendo um trabalho transgressor o artista se posiciona de forma provocativa diante de um sistema movido pelo poder econômico.
EXTERNA
Regina Parra, simulação de exibição da obra É Preciso Continuar
8ª Mostra 3M de Arte, coletiva no Largo da Batata, abertura em 15/8.
A mostra ao ar livre busca a valorização artística do trabalho pertencente a um projeto consistente que é realizado há oito anos e já apresentou renomados artistas nacionais e internacionais: Guto Lacaz, Giselle Beiguelman, Paulo Bruscky, Nicola Constantino e Bill Viola.
Obra de Bruno Novaes na mostra
Aluga-se Triplex, no Edifício Maria Paula, Sé, até 27/10
Com curadoria de Márcio Harum, a mostra traz trabalhos que serão exibidos nos três andares do endereço, como esculturas, colagens, desenhos, instalação, fotografias, objetos e uma obra performático-cênica. A programação é aberta ao público e conta com oficinas artísticas e educativas voltadas à formação de jovens e adultos, falas, debates, visitas mediadas com especialistas do campo da arte, etc.
O projeto reúne membros do Grupo Aluga-se mais convidados num triplex no centro da cidade de São Paulo. Com curadoria de Márcio Harum, os trabalhos perpassam por questões de memória e política. Participam Yara Dewachter, Evandro Prado, Giba Gomes, José Rufino, Laerte Ramos, Zé Carlos Garcia e outros.
"O Ibram como autarquia federal era um consenso na área e sua extinção não foi feita após consulta ou estudos preliminares sérios". FOTO: Tânia Rêgo/Agência Brasil
Tudo leva a crer que a atual Medida Provisória no. 850 que extinguiu o Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), tornada pública na última segunda, dia 10 de setembro, não tenha sido concebida após a destruição criminosa do Museu Nacional do Rio de Janeiro, no dia 2, mas bem antes.
O site do Ministério da Cultura anunciou, em 31 de agosto, na sexta-feira véspera do incêndio que chocou o mundo todo, a saída do presidente do Ibram, Marcelo Mattos Araújo, com um desses elogios que certamente mascaram desavenças, como se pode perceber nas aspas de Sérgio Sá Leitão, o ministro da Cultura, para quem “o Ministério da Cultura perde muito com a saída de Araújo, que ‘demonstrou a mais absoluta competência na gestão da política pública museológica e dos museus federais brasileiros’”.
Seria um cala-boca? O silêncio do ex-diretor da Pinacoteca do Estado amplifica esse mistério.
Por ironia do destino, Araújo não teve a exoneração publicada antes do incêndio e precisou cuidar do trabalho em torno da catástrofe nos dias seguintes por uma questão formal. Até que no dia 10, extinto o Ibram, ficou livre para seguir fora do governo Temer, uma opção controversa na visão de muitos de seus amigos próximos.
Contudo, sua saída há poucos meses do fim do governo só pode ter uma razão de fato, a discordância com a extinção do Ibram, afinal, se fosse por discordar do governo, o melhor momento teria sido junto com Marcelo Calero, em novembro de 2016, quando corajosamente denunciou o então ministro da Secretaria de Governo, Geddel Vieira Lima, que também acabaria caindo uma semana depois.
“O Ibram como autarquia federal era um consenso na área e sua extinção não foi feita após consulta ou estudos preliminares sérios”. FOTO: Tânia Rêgo/Agência Brasil
A criação do Ibram foi um marco na história dos museus brasileiros, que nunca tinham tido um órgão independente para tratar desse tema. Até 2009, outro órgão federal, o Iphan, cuidava dos museus federais, mas sem uma política nacional, como passou a ocorrer com o Ibram. Desde então, estudos, encontros, editais tornaram-se frequentes no cenário dos museus brasileiros, propiciando iniciativas como as semanas dos museus, ou reflexões conjuntas inéditas entre as dezenas de museus do país.
Uma das importantes iniciativas do Ibram para a identificação da atividade museológica no país foi o Cadastro Nacional de Museus, que mapeou mais de 3.700 instituições de todo país e publicou, baseado nas informações coletadas, duas publicações relevantes: Museus em Números e Guia dos Museus Brasileiros.
Essa articulação toda é que foi extinta, e não é por acaso a resistência à criação da Abram, Agência Brasileira de Museus entre os profissionais da área. Nas redes sociais está claro como a perda chocou e pegou de forma inesperada os museus do país. O Ibram como autarquia federal era um consenso na área e sua extinção não foi feita após consulta ou estudos preliminares sérios.
O que está se propondo em seu lugar, a Agência Brasileira de Museus (Abram) será responsável apenas pelos 23 museus federais, deixando centenas de outros museus do país não mais contemplados com a nova medida.
A polêmica em torno dos fundos para essa agência, parte deles viria do Sebrae, já chegou inclusive ao Supremo Tribunal Federal (STF) com um mandado de segurança pedindo que seja suspensa a medida provisória que criou Abram, pois o Sebrae questiona a utilização de parte de seus recursos para a criação da agência.
Torna-se claro, portanto, que se trata de um ato precipitado, irresponsável, e que só pode ter sido motivado como mais um ato de desmonte do setor cultural. Não se pode esquecer que uma das primeiras medidas foi a tentativa de extinção do Ministério da Cultura. O fim do Ibram é, certamente, parte do ataque e da falta de respeito de um governo sem a menor intenção de valorizar de fato a cultura. O incêndio do Museu Nacional ficará como o melhor exemplo da política cultural do governo Temer.
Regina Silveira, videoinstalação Sumidouro, 2018
FOTO: Patricia Rousseaux
Vista de cima, a paisagem plana, feérica, que dá brilho ao centro do Mube – Museu Brasileiro da Escultura, é traduzida por linhas iluminadas com igual intensidade que desenham geometricamente um labirinto para onde o espectador é seduzido a experimentar a sensação do espaço no tempo e vice-versa. A contrassenha desse lugar é o estado de imersão, potencializado pelos óculos com projeção virtual, que permite ao visitante divagar, com ele mesmo, por instantes. Essa experiência, compõe a exposição Exit, um encontro poético/político entre arte e arquitetura, envolvendo 41 obras de Regina Silveira, entre instalações, vídeos, gravuras e objetos, produzidos entre 1970 e 2018, com curadoria de Cauê Alves.
O labirinto pode ressignificar elementos que compõem a realidade como a migração. “O espaço é desconfortável, quero que o público ao percorrê-lo seja estimulado a pensar”. A forma mítica do labirinto tem ressonâncias sobre o visitante e mexe com seus hábitos perceptivos e cognitivos, numa experiência lúdica e inquietante. Regina propõe um jogo interativo, em realidade aumentada, no qual o público ao andar pelo labirinto, com óculos com projeção, vê surgir muros que aparecem e desaparecem na superfície.Com entradas e saídas nos quatro lados, e desenho alternado de rotas, Exit leva o visitante a uma percepção temporal.No momento sócio-político atual em que vários países levantam muros, refugiados são barrados física e psicologicamente, esse trabalho pode ser metafórico dessa situação de barbárie que vivenciamos.
A ideia do labirinto é um tema recorrente no trabalho de Regina desde os anos 70, quando ainda morava em Porto Rico, e aparece em períodos e com obras de diversas épocas. “Os labirintos são ancestrais, mentais, interculturais, imemoriais e, muitas culturas têm os seus. Nesta exposição, eles são falsos porque todos têm saídas”. Anteriormente a artista criou um labirinto de compartimentações, quando usou, pela primeira vez, uma imagem apropriada. “ Na verdade, é uma imagem que serve de recheio para todas as compartimentações que realizei”. Regina levou os labirintos para o céu, para as cidades, aos executivos, para falarem sobre noção de poder.
“Essa exposição surgiu quando pensei em criar um discurso que juntasse as partes dessa recorrência de motivos. Metáforas das questões migratórias, dos muros interiores, de como as barreiras se fecham quando se coloca os óculos de projeção, de como o labirinto que tinha saída, agora é substituído por esses muros que fecham o espaço”. O escritor argentino Jorge Luis Borges se valeu dessa imagem, cercada de mistérios, para escrever O Labirinto. Borges via o mundo como um imenso labirinto, do qual é impossível fugir porque seus caminhos são desorientadores e ilusórios.
Planos geométricos iluminados compõem Exit, Um Labirinto com entradas e saídas para um outro universo. FOTO: Patricia Rousseaux
A paisagem exageradamente plana é ficcional. “Eu não quis fazer nos óculos uma modelagem do lugar, senão ficaria preso a aquele local. Por isso há uma imagem que sobe e desce. Nessa realidade virtual, você está em imersão total e não vê o que está em seu redor”. De qualquer forma, a realidade virtual pode enganar seu corpo e mente, fazendo você pensar que está em outro lugar, afinal é um universo de interfaces e atravessamentos com outras linguagens. “Esse trabalho é esperto porque é modular, construído com 196 placas iguais de madeira revestidas com tecido, que podem ser divididas, seccionadas, transportadas e adaptadas a outros espaços”.A obra não pertence mais a Regina, mas ao acervo do Itaú Cultural, que vai gerenciar e cuidar do futuro dela.
Apesar dos atrativos do labirinto, chama a atenção Sumidouro, um vídeo inédito que dialoga com a estrutura arquitetônica do museu. Este trabalho é um dos temas mais atuais da mostra, dentro do conceito de arte/arquitetura. Ele impõe que só haja imagem a pensar para além do princípio da visibilidade, da oposição entre o visível e oinvisível. Regina mais uma vez parte da geometria, agora em movimento contínuo, quase apagada, mimetizada no cinza do concreto, em oposição ao labirinto estático e iluminado. É um recorte de ritmo continuo em que a geometria constitui um espaço especial, com encenação que se desdobra para além da visibilidade. Nele, a artista distorce as vigas e grades do teto e prolonga as paredes do Mube.
Regina teve a ideia de fazer este trabalho quando foi pela primeira vez ao local estudar o espaço, pensando na exposição. “Olhei para a grade e soube exatamente o que ia fazer: colocar a arquitetura para devorar ela mesma”. A grade está espalhada por todo o museu projetado por Paulo Mendes de Almeida, a quem Regina chama de arquiteto modular. “Encomendei para o Rodrigo Barbosa o desenho da grade, a fotografia desde um ponto de vista certo, o meio da rampa”. Tudo foi construído para casar, em escala e em ponto de vista, com o que se vê do teto naquele lugar. “Ao olhar para cima, o espectador tem a sensação de profundidade virtual sem limite, uma animação em loops do espaço devorando a si mesmo e por isso eu o chamo de Sumidouro”. A artista queria que as bordas da projeção ficassem arredondadas como uma máscara, como uma fantasmagoria projetada sobre o concreto cinza e conseguiu. Regina tem razão, essa obra é sutil, um site specific. Pena que seja efêmera e tenha de sair de lá.
Quase invisíveis de tão delicadas, as intervenções de Marco Maggi no Museu Brasileiro de Escultura têm uma força visual e uma potência poética impressionantes. Na contramão do que ocorre com frequência nos tempos atuais, em que as obras parecem gritar para atrair o público, as pequenas construções de Maggi apenas sussurram e convidam gentilmente a nossa atenção.
O visitante desavisado, que se depara logo à entrada com dúzias de resmas de papel da mesma altura (sempre 500 folhas, tamanho A4), organizadamente dispostas no chão, vai ficar intrigado. Só aos poucos vai perceber a diferença que existe entre coisas aparentemente similares. As pilhas são idênticas e aparentemente banais. Mas para além da regularidade, elas servem de suporte – como se fossem pedestais – para paisagens crespas, vibrantes, formadas por pequenos cortes, dobraduras, delicadezas, como arcos extremamente finos que se soltaram do lugar de origem para se lançar-se no espaço.
THESIS, 2016
É preciso tempo para atender ao convite de uma observação atenta. A mesma desaceleração do ritmo e o mesmo movimento de recuo e aproximação é exigido nos outros trabalhos dessa pequena porém potente antologia. Todos eles lidam com o que o curador Cauê Alves definiu como “materialidade da ideia”. Questões como escala, profundidade, contraste entre luz e sombra fazem parte do repertório de Maggi. Dois aspectos, porém, chamam especial atenção nesta mostra: o instigante diálogo criado com a arquitetura, enfatizado por sua relação com o conciso do museu feito por Paulo Mendes da Rocha e, o jogo que ele propõe com escalas e invisibilidades.
A mão delicada, o olho atento e o gesto preciso do artista uruguaio fazem com que elementos banais como papéis em branco ou envelopes coloridos adquiram potência no espaço. Muitas das construções de Maggi se assemelham a maquetes. Parecem projetos utópicos de plantas urbanas vistas do alto. Diante de “Assunto pendente”, obra composta por dois rolos em cascata, com mais de mil etiquetas amarelas, que servem de suporte para intervenções com pequeninos pedaços de papel autocolante nas cores branco, cinza e negro, ficamos na dúvida se estamos diante de um jogo abstrato, de placas internas de um estranho computador ou de plantas aéreas de uma cidade fictícia. “Tese” também tem esse efeito perturbador. Ao colar sobre uma simples bolinha de ping-pong uma trama sugestiva de padrões regulares que apontam tanto para um futurismo utópico como para uma abstração arqueológica, Maggi contrapõe imaginários distintos e dá a esfera mínima uma potência planetária.
Logo à entrada dúzias de resmas de papel da mesma altura (Sempre 500 Folhas, Tamanho a4)
Mestre da contraposição – seja entre ideia e gesto, passado e futuro, o minúsculo e o imensamente grande –, Maggi realiza nessa exposição um contraste profundamente instigante entre duas formas de ver seu próprio trabalho. Em duas esquinas próximas, porém opostas, do espaço expositivo, foram dispostos dois trabalhos intimamente conectados. Na primeira delas o visitante é surpreendido com um vídeo, intitulado “Linguagem em Residência”, filmado por ocasião da participação do artista como representante do Uruguai no 56ª Bienal de Veneza. No trabalho, feito em parceria com Maria Ines Arrillaga, vemos uma sucessão de visitantes num espaço expositivo. Eles entram, olham, conversam, fazem registros, se aproximam e se afastam com uma fisionomia ora perplexa, ora encantada. Nada surpreendente não fosse o fato de nós, espectadores do vídeo, vermos apenas uma parede branca. A obra de Maggi simplesmente desaparece para o vídeo, tal é sua delicadeza e capacidade de se revelar apenas aos poucos, dentro de uma intimidade física, epidérmica.
Na esquina oposta o visitante descobre finalmente aquilo que o vídeo, ou melhor a distância da tomada, tiveram “a amabilidade de apagar”, como diz o artista. Milhares de papeizinhos recortados com vagar e cuidado repousam sobre a parede, compõem pequenos nichos, contaminam as superfícies com sua suavidade. Trata-se de um grande plano, formado por uma sucessão de pequenos jogos, metáforas e equilíbrios sedutores, como o pequeno gancho em papel que segura um finíssimo aro, que dança no espaço como um pequeno móbile de Calder, projetando sua sombra distorcida sobre a parede. Intitulada “Miopia Global (parágrafo no canto)”, a obra (que deriva da instalação feita para Veneza), funciona como uma caligrafia sutil, que exige entrega, que intriga e ao mesmo tempo seduz nosso olhar cada dia mais míope.
María Evelia Marmolejo, 11 de marzo - ritual a la menstruación, 1981. Performance com forte motivação feminista e política
Por Leonor Amarante e Patricia Rousseaux em entrevista com Cecília Fajardo-Hill e Andrea Giunta
Que intransigência une mais de cem artistas e ativistas na exposição Mulheres Radicais, na Pinacoteca do Estado? O esforço desafiador das curadoras Cecilia Fajardo-Hill, venezuelana radicada nos EUA e Andrea Giunta, argentina, resultou no resgate de vários sujeitos, que atuam em cenários diferentes, mas ligados a desejos de experiências feministas, lutas pessoais, políticas e libertárias comuns. A tensão entre território e subjetividade perpassa pelo corpo feminino que carrega várias camadas de lugares. As 125 artistas e coletivos, vindos de quinze países, se expressam por meio de performances, vídeos, pinturas, fotografias, esculturas, cerâmicas, desenhos. Segundo Cecilia Fajardo, muitas obras produzidas por mulheres têm sido marginalizadas por uma história da arte dominante, canônica e patriarcal.
No caso da América Latina, a relação entre corpo e violência é central. Andrea Giunta cita prisões ilegais,torturas, nascimentos em centros de detenção secretos, roubo de crianças, em muitos casos, nunca solucionados. “ Essas são algumas das circunstâncias que marcaram a situação do corpo, em geral, e do corpo feminino, em particular, sob as ditaduras latino-americanas”. Motivação ritualística, feminista e política movem os trabalhos de María Evelia Marmolejo, presente na abertura da mostra, cuja obra Cecília Fajardo conhece bem e, evoca em nossas conversas, uma das mais vicerais, a 11 de Marzo. Para ela, a performance é como um ritual, uma celebração do corpo feminino e papel central das mulheres na origem da vida. María Evelia apresentou na conversa com jornalistas, algumas das razões que construíram o trauma na sua obra. Ela, quando jovem, tinha uma menstruação caudalosa e sempre manchava, manchava a
roupa, os lugares onde sentava e isto era objeto de bullying, numa época em que o bullying não era reconhecido ou combatido. Sua história é uma história feminina não necessariamente feminista.
Em montagem correta, se estende em salas a Pinacoteca e funciona como um grande vídeowall fragmentado em nove capítulos: Autorretrato, Paisagem do Corpo, Mapeando o Corpo, Performance do Corpo, Resistência e Medo, O Poder das Palavras, Lugares Sociais, O Erótico, Feminismos que têm como fio condutor de uma pesquisa profunda da expressão de mulheres invisibilizadas na sua época. Muitas operam em seus trabalhos, não só em relação à misoginia, mas também em causas como a xenofobia, o racismo.
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Sophie Rivera, da série Rouge et Noir [vermelho e preto], 1977-1978
Gloria Camiruaga (chilena, 1941–2006), Popsicles, 1982–84. No vídeo, enquanto mulheres sorvem picolés com homenzinhos dentro, um coro reza a ave-maria
Teresinha Soares, Caixa de Fazer Amor, 1967
O diálogo entre opostos e a negociação das diferenças marcam a arte corporal que se impõe no conjunto da exposição e se abre para a reflexão sobre o lugar do corpo. Logo na entrada da mostra, o vídeo, de Victoria Eugenia Santa Cruz Gamarra, compositora, coreógrafa, expoente da arte afroperuana envolve o público num ritmo contagiante. Com coreografia pop, agente de ritos em tempos de massificação, potencializa manifesto antirracista, que pode ser resumido como: descobrir e assumir-se negra.
Nos anos furiosos da década de 1960 as artistas de performances tentavam desestabilizar o sistema, mas o comando ainda estava nas mãos dos homens. Marta Minujin é uma das raras artistas a furar o cerco ainda muito cedo. Com Rubén Santantonín realizou (A confusão), 1965, performance que envolve o público, parte alta da burguesia portenha, e o faz percorrer espaços labirínticos empoeirados até encarar um casal despido numa cama. A participação dos espectadores integra a poética dos anos 1960 e 1970 e também está presente em outros trabalhos da mostra como as terapias de Lygia Clark com objetos relacionais; na comida servida e devorada por Hirsch na performance (Formigueiro), de 1967; no convite de Margarita Azurdia em que propõe ao público tirar o sapato, relaxar e sentir a areia molhada. Essas artistas procuram evidenciar o que está dentro e fora da performance com outras contextualizações, significados e dimensões.
Márcia X. e Alex Hamburger, Celofane motel suíte / Não-roupas, 1985-1986. Uma das artistas chave de performance no Brasil sempre trabalhou temas que abordam sexualidade, erotismo, consumo.
As curadoras, em suas buscas, encontraram mapas de desejos, impulsos e zonas reprimidas. Foram surpreendidas com o diagnóstico de classificações médicas de histeria feminina, como trabalhou Feliza Bursztyn, além de referências irônicas à noção freudiana da inveja do pênis encontradas nos trabalhos de Maris Bustamante. Aqui em São Paulo não houve performance, mas no Museu Hammer, em Los Angeles, onde a mostra foi anteriormente exibida, um ritual de celebração marcou a presença de Regina Silveira. Os visitantes consumiram os famosos biscoitos em forma da palavra, que ela criou em 1976, cujo molde pertence ao acervo da galeria Luisa Strina.
No espaço dedicado a Mapeando o Corpo, destaca-se, inspirado no trabalho de Duchamp, 1919, em que Ana Mendieta cola em seu rosto a barba do amigo poeta e editor Morty Sklar, para captar a força e inspiração dele. A artista cubana foi levada para os Estados Unidos aos 10 anos, na famosa operação Peter Pan, com o objetivo de “salvar” crianças do regime local. No entanto, Mendieta nunca se adaptou ao novo país e demostrou isso escolhendo seu corpo desnudo e sangue na sua obra, elementos recorrentes até a sua trágica morte, não elucidada reúne histórias de uma revolução feminina ainda em curso e que atua como uma obra, com um material configurado numa cosmografia densa. A mostra traz o trabalho de Graciela Carnevale, ativista argentina que atuou no grupo á e optou por trancar os visitantes de sua exposição, na galeria, numa alusão à situação repressiva na Argentina durante a ditadura de 1966/1970. Em todos os segmentos da mostra temos chaves que dão acesso a segredos não contados em que o horror presente no território latino-americano revela a tentativa de sobrevivência. Colocar cada obra no espaço adequado desse mosaico, que em alguns aspectos invoca os demônios e em outros nos coloca diante de entregas comoventes, é uma progressiva imersão em uma América Latina sitiada. Em meio a tantas descobertas emergem o autorretrato e o retrato que trazem à tona questões, paradoxos formulados por sujeitos femininos que se ergueram contra representações canônicas do rosto feminino ao longo da história da arte.
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Anna Maria Maiolino, O Que Sobra, 1974, da série Fotopoemação, 1973-2017
Anna Maria Maiolino, O Que Sobra, 1974, da série Fotopoemação, 1973-2017
Anna Maria Maiolino, O Que Sobra, 1974, da série Fotopoemação, 1973-2017
Andrea Giunta frisa a idéia de que estas artistas rompem com o lugar do olhar o corpo e o lugar da mulher, que até o modernismo que estava de fora, agora muda para dentro. Da mulher para ela mesma e seus pares. Por meio do autorretrato, artistas como Anna Bella Geiger interrogam identidades em trânsito, como na série em que o cotidiano indígena aparece lado a lado a retratos de sua vida diária. O videoperformance de Lenora de Barros, 1984, é um divisor de águas literal da mostra: suspenso entre duas salas gera organicidade ao espaço. Com Lenora um texto escrito pode se transformar em vídeo, assim como uma performance desdobrar-se em videoperformance. Contrapondo-se ao discurso geral, Roser Bru, filha de militante catalão, reverencia a única escritora latino-americana a receber o Prêmio Nobel, a poeta chilena Gabriela Mistral. O que se produz entre o olhar e o espaço não passa despercebido entre as artistas mulheres e a violência é tema constante.
Anna Maria Maiolino se autorretrata com tesouras e lâminas postas entre sua língua, numa cena de tensão. O rosto vem à tona e se torna território de interrogações sutis na fricção entre desenho e fotografia, um território visitado desde sempre por uma das artistas chave da contemporaneidade, a argentina Liliana Porter. Quem se deu ao trabalho de folhear catálogos de bienais e exposições das duas décadas focadas pelas curadoras descobriu o apagamento da artista mulher. No entanto, a mostra descobriu e garimpou uma variedade delas, pouco conhecidas, trabalhando temas e estilos diferenciados, dentro de uma diversidade e resistência. Há ainda casos de apagamento por parte do sistema de arte como ocorreu com Carolee Schneemann que começou seu trabalho na década de 60 e só foi reconhecida internacionalmente anos depois. Foi premiada em 2017 com o Leão de Ouro na Bienal de Veneza. Andrea Giunta conta que nos sete anos em que levou para realizar a exposição alguns dados foram alterados na pesquisa. “Houve uma mudança na forma de abordar o feminismo. A figura do feminicídio e a violência com o corpo e a psique das mulheres foram se generalizando de forma impressionantes”. A “microfísica do poder”, como diz Michel Foucault é o poder que atua no cotidiano enquanto relação.
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Marta Minujin, "La Menesunda", 1965. Performance no Instituto Di Tella de Buenos Aires
Marta Minujin, "La Menesunda", 1965. Performance no Instituto Di Tella de Buenos Aires
Graciela Carnevale, "Acción Del Encierro" (Ação de confinamento), 1968
Para ele, o poder é produtor antes de repressor, produz maneiras de viver, produz realidades. Algumas das obras abordam o processo de mudança, a transformação do papel da mulher.
Muitas artistas as curadoras ainda não conheciam, foram descobertas durante a pesquisa e, para a mostra em São Paulo, foram inseridas mais quatro brasileiras. Quem comenta é Valéria Piccoli, curadora da Pinacoteca: “Além das artistas que já expuseram no Hammer Museum, em Los Angeles, e no Brooklin Museum, em Nova York, incluímos trabalhos de Wilma Martins, Yolanda Freyre, Maria do Carmo Secco e Nelly Gutmacher”.
A intenção das curadoras é levar a mostra para algumas capitais da América Latina e Cecilia Fajardo afirma que, em cinco anos, só a Pinacoteca de São Paulo, com a ajuda de seu diretor Jochen Volz, conseguiu viabilizar a itinerância, mesmo com a crise econômica do País. chega ao Brasil para colaborar com a reflexão sobre o lugar da mulher, e casualmente em um momento de indignação sobre o descaso do governo atual frente a episódios como a morte da vereadora e militante Marielle Franco, ainda não solucionada pela justiça após cinco meses de seu assassinato, e os casos cotidianos de feminicídio reportados no Brasil. ✱
Da direita para a esquerda: Patricia Rousseaux, João Fernandes, Voluspa Jarpa, Aníbal Jozami, Diana Wechsler, Fabio Cypriano e Mario Pfeifer. FOTO: Marina Malheiros
*Fotos: Marina Malheiros
Aconteceu na última quinta-feira, dia 6 de setembro, no Auditório Ibirapuera, o V Seminário Internacional ARTE!Brasileiros, intitulado “Arte Além da Arte”, com a participação de artistas, curadores, diretores de museus e historiadores de arte de vários países. O evento começou com a projeção do trabalho “Again”, do alemão Mario Pfeifer, e seguiu com o painel “Geopolítica e Arte”, com Aníbal Jozami, João Fernandes, Voluspa Jarpa, Diana Wechsler e mediação de Fabio Cypriano.
Primeiro a falar, o sociólogo argentino Aníbal Jozami, reitor da Universidade Nacional Três de Fevereiro (UNTREF) e diretor da BIENALSUR, destacou a importância da cultura na integração dos povos e de seu papel na diminuição das desigualdades e injustiças no mundo. “Porque pensamos isso, criamos uma Bienal que foi muitas vezes um ato de indisciplina” disse ele.
Em sua primeira edição, em 2017, a BIENALSUR foi realizada em 32 cidades de 16 países e, segundo Jozami, impactou de algum modo cerca de 25 milhões de pessoas. Para o sociólogo, fazer a cultura circular é uma forma de romper com a hierarquização vigente, que estabelece que o que deve reger o mundo é aquilo que foi pensado e criado no Norte. “Nós acreditamos que não há uma ordem hierárquica na cultura, na arte.”
Concebida inicialmente na UNTREF, em Buenos Aires, a BIENALSUR formou um comitê com integrantes de quase 30 universidades espalhadas por diversos países, inclusive de países do norte. “Porque para nós a ideia de sul não é apenas geográfica, mas uma perspectiva de mundo, uma forma de situar-se nele”.
Jozami falou ainda da importância de a BIENALSUR ser mais do que um conjunto de mostras, mas também uma plataforma de pensamento e de debate. “E assim criamos o projeto Sur Global, que a cada dois meses reúne artistas, críticos, curadores, sociólogos, filósofos e políticos de vários lugares para discutir sobre a arte e a cultura contemporâneas”.
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O artista Mario Pfeifer comenta o processo de criação de seu filme AGAIN.
A artista chilena Voluspa Jarpa fala sobre sua pesquisa com arquivos da inteligência.
Diretor-adjunto do Reina Sofía, João Fernandes refletiu sobre a produção artística em um mundo tão desigual.
Por fim, o argentino falou sobre diferentes eixos de trabalho da bienal, especialmente aqueles que tiveram impacto direto na vida de pessoas em regiões desprivilegiadas de várias cidades. “Porque eu acredito que é possível fazer a cultura circular e ir contra essa hierarquização vigente no mundo. É possível seguir sendo amante da utopia”, afirmou Jozami, antes de concluir falando da necessidade de romper fronteiras em um mundo que, infelizmente, ergue cada vez mais muros.
A segunda apresentação foi da historiadora de arte argentina Diana Wechsler, diretora artística da BIENALSUR, que expôs um pouco mais sobre a bienal e sua criação. Para ela, é notável que as relações hierárquicas do mundo contemporâneo também se revelem no campo da cultura. “Esta relação de centro e periferia no sistema capitalista atual está impressa também nas relações simbólicas, no âmbito da arte. Por isso, se esse mapa convencional nos impõe uma série de circuitos e hierarquias, nós nos propomos a desativá-las e repensá-las. Por isso falamos na palavra indisciplina”.
Wechsler explicou que a BIENALSUR propõe uma série de dinâmicas distintas daquelas instituídas em outros eventos do tipo, já que trata-se de uma bienal processual, deslocada no espaço e bastante horizontal em sua curadoria. Na primeira edição, a partir de uma chamada aberta para as propostas dos artistas surgiram eixos de trabalho, com temáticas como arte nas fronteiras, arte e ação social, intervenções no espaço urbano, questões ambientais, questões de gênero e imigrações, entre outros.
Ainda sobre a horizontalidade da BIENALSUR, Wechsler explicou que o evento realiza seus projetos tanto em museus e outras instituições de arte como em escolas, universidades e em espaços públicos de diferentes cidades; trabalha também com artistas jovens ou consagrados, de vários continentes, permitindo que eles que dialoguem e troquem experiências.
Por fim, a historiadora destacou a possibilidade da BIENALSUR “assumir as demandas sociais contemporâneas a partir da produção artística e incluí-las como problemas que possam fazer de cada mostra, de cada projeto, não só um espaço de conhecimento, mas também de pensamento”, permitindo que as pessoas sintam-se em diálogo com estes projetos.
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A diretora artística da BIENALSUR, Diana Wechsler, comentou sobre a criação e as ações da bienal.
Aníbal Jozami destacou a importância de se usar a arte como forma de modificar a realidade.
Após as exposições de Jozami e Wechsler foi a vez da artista chilena Voluspa Jarpa falar sobre seu trabalho, ligado à história e suas representações, desenvolvido principalmente a partir da pesquisa de arquivos. A artista trabalha há cerca de 15 anos com os arquivos das agências de inteligência que os Estados Unidos tem desclassificado (ou seja, tornado público) sobre os países latino-americanos no período da Guerra Fria.
Segunda ela, suas razões para trabalhar com os arquivos “não provêm dos conceitos básicos da historiografia, da necessidade de verificar e contrastar fontes de informação para estabelecer um ponto de vista de disputa com o historiador”. A razão para se aproximar e mergulhar nos arquivos “vem do encontro com o apagamento e censura da informação, vem da não história ou, o que é mais misterioso, vem da dimensão do sigilo como questão de segurança nacional, sua histeria e sua mudez”, disse ela, relembrando que viveu a infância numa América Latina ainda marcada por ditaduras militares.
O início de sua pesquisa se deu com a desclassificação, em 1999, de arquivos referentes ao período ditatorial chileno, onde estão expostos detalhes sobre a participação americana na repressão violenta à opositores do regime. “Lembro do choque quando vi essas notícias, e da expectativa criada, já que pensava que iria se produzir uma grande agitação histórica no Chile a partir disso. Não aconteceu, mas para mim isso se tornou uma questão simbólica”.
A artista falou também do choque de ver que, mesmo nos arquivos desclassificados, havia muitas tarjas e riscos que impediam a leitura de todo o documento. “É um ato histérico de mostrar e reprimir ao mesmo tempo. E revela que em um documento de 1972, por exemplo, há ainda hoje razões para informações não serem reveladas.”
Voluspa Jarpa mostrou alguns de seus trabalhos envolvendo pesquisa de arquivos da inteligência.
Para Jarpa, pensar nas diretrizes geopolíticas explicitadas nestes muitos arquivos diz muito também sobre a cultura. “Pensar que isso não tem um correlato na arte é ignorar a plataforma histórica na qual nos movemos.” Segundo ela, uma das coisas que mais aprendeu em todo estes anos foi a entender a profundidade com que a geopolítica determina a subjetividade e a forma como os discursos circulam pelo mundo.
“Nós não temos suficientemente claro que ainda vivemos sob sistemas coloniais, não só econômicos e políticos, mas sobretudo psíquicos e subjetivos, que nos impedem de ver até que ponto nossas histórias e nossas decisões ainda não nos pertencem”, concluiu a artista. “Habitamos regiões que não estão suficientemente emancipadas. E quando produzimos, na arte, discursos de emancipação, acho que eles ainda não são olhados como discursos de emancipação.”
O último a falar no painel foi o português João Fernandes, diretor-adjunto do Museu Nacional de Arte Reina Sofia, de Madrid, que também foi diretor do Museu de Serralves, no Porto, entre 2003 e 2013, e curador em diversas bienais. Citando os trabalhos de Jasper e do alemão Mario Pfeifer, também presente no seminário, Fernandes começou sua fala propondo uma reflexão sobre a produção artística em um mundo cheio de desigualdades, exploração e opressão.
“É interessante a forma como tantas obras de arte hoje nos trazem essas evidências de problemas do mundo dos quais o mundo revela muito pouca consciência”. Para ele, muitas vezes a arte revela problemas escondidos e nos ajuda a problematizar discursos dominantes. Fernandes ressaltou, no entanto, um aparente paradoxo do mundo globalizado, no qual muitas vezes “quanto mais informação, menos conhecimento temos”. “E até a própria proliferação da informação dos sistemas de comunicação artística contribuem para anestesiar socialmente muitas das próprias situações que acontecem.”
O diretor seguiu falando da importância da Bienal de São Paulo em seus primeiros anos na tarefa de descolonizar a história da arte; “descolonizar criticamente realidades que ainda hoje sobrevivem em relação a todo esse passado colonial eurocêntrico, homocêntrico, falocêntrico etc.”. Segundo ele, foi aqui que começou a ser assimilado, “comido, devorado e vomitado”, todo o discurso de dominação que marcou também a produção artística e o domínio geopolítico do mundo ao longo dos tempos.
“(…) temos que pensar como produzir a radicalidade de criar e problematizar novas linguagens artísticas independentemente dos sistemas da informação”, concluiu João Fernandes.
Após citar a Semana de 22 e a antropofagia, Fernandes falou da importância destes modelos de resistência surgidos na América Latina ao longo do século 20 e de como eles contribuíram com novas formas de fazer arte. Voltando aos tempos atuais, o diretor afirmou que “a arte tem absorvido muitos discursos produzidos fora dela e, se isso tem um lado positivo ao colocar em evidência fatos escondidos por uma ideologia dominante, também tem feito degradar e desintegrar aquilo que a obra de arte oferecia de diferente, da experiência dela, das suas novas propostas de construir formas de pensar, experienciar, sentir e divergir”.
O mais interessante, segundo ele, é pensar que a arte consegue estimular possibilidades de interpretação e conhecimento tão diferentes, “e isso é algo que só se consegue se a arte não abdicar e não deixar de aprofundar a radicalidade de um discurso próprio que ela sempre teve e pode continuar a ter”.
“Por isso não me interessa tanto uma ‘arte além da arte’, mas uma arte que faça parte do mundo, que saiba fazer parte dele, que nos mostre como a vida é mais interessante que a arte. Então temos que pensar como produzir a radicalidade de criar e problematizar novas linguagens artísticas independentemente dos sistemas da informação”, concluiu Fernandes.
Lucia Nogueira, Sem Título, cortesia do artista, Catherine Petitgas
Uma Bienal mais horizontal, que privilegie o diálogo e não o pensamento único e que enfatize mais a fruição do que o discurso: esta é a ambição da 33a Bienal de São Paulo, que abre as portas para o público no dia 7 de setembro. Com tal intuito, algumas estratégias foram colocadas em prática. Diferentemente do que ocorre tradicionalmente com os curadores assistentes, em que o trabalho se dá de forma conjunta e sob a orientação do curador geral, foram convidados sete artistas curadores que tiveram ampla liber- dade para criar seus núcleos, sem interferência do grupo. Ao curador geral, Gabriel Pérez-Barreiro, coube – além da escolha desses sete parceiros, a seleção de 12 outros artistas que pontuam a exposição e a coordenação geral dos trabalhos. Para chegar aos nomes finais, os critérios foram bastante subjetivos. Pérez-Barreiro conhecia ape- nas dois deles, Waltercio Caldas e Alejandro Cesarco. Os outros cinco (Antonio Ballester Moreno; Claudia Fontes; Mamma Anderson e Sofia Borges) foram agregados ao grupo por qualidades variadas como a consistência do trabalho e a capacidade de aglutinar pensamentos e obras de outros artistas. O efeito surpresa é um dos grandes diferenciais desta edição da mostra. Em primeiro lugar porque os artistas- -curadores praticamente não interagiram e, em sua maioria, desconhecem o que os colegas conceberam. Em segundo porque tomou-se a decisão de divulgar muito pouco sobre a mostra. De maneira inédita, não foi divulgada este ano a lista completa dos artistas, os jornalistas não tiveram acesso ao Pavilhão em montagem e as sínteses apresentadas tanto na imprensa como nos meios oficiais de comunicação são excessivamente genéricas. Na entrevista abaixo, Pérez- -Barreiro fala sobre suas escolhas e estratégias.
ARTE!Brasileiros — Há uma grande diferença entre o planejado e o real?
PÉREZ-BARREIRO — Olha, seguimos o caminho que eu procurava, de abraçar esse processo aberto, diferente, de convidar os curadores e dar-lhes liberdade para conceber uma exposição. As surpresas são bem-vindas. Fazem parte do processo. Até porque tem muito artista que eu não conhecia. Acho muito positivo estar diante de uma bienal que, a princípio, não se limita aos meus conhecimentos, que são sempre parciais. Estou trabalhando com o desconhecido e com a confiança nos curadores. Acho que todos eles fizeram um bom trabalho.
Ao contrário de outras dinâmicas de curadores assistentes, ou curadores parceiros, eles também não sabem o que o outro está trazendo…
Eu procurei um pouco isso. Quando você está vendo o que seu vizinho está fazendo, isso te afeta. É normal. E eu queria que eles trabalhassem meio sem limites e sem se intimidar ou pensar que deve dar uma resposta ao que está acontecendo ao lado. Teríamos o risco de virar uma conversa, o que não era o plano.
Ou seja, você quer a personalidade de cada um dos blocos reforçada e não diluída?
Muito reforçada. E como escolhi artistas bem diferentes um do outro, eu não queria que eles ficassem nem tentando fazer uma leitura do outro. O trabalho deles é construir uma exposição. É construir o mundo. Quero que cada um faça o que precisa fazer, sem interferência, nem da curadoria geral nem dos outros curadores. E de fato isso foi assim e foi intencional. Não estamos construindo uma exposição única.
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Cabelo, na ilha curada pelo Waltercio Caldas
Dalton da Costa na ilha curada por Waltercio Caldas
Você acha que o fato de você chegar numa exposição sem saber nada ou pouco sobre ela, te permite um acesso maior ao trabalho, ou o contrário?
São os dois. A Bienal tem esses dois públicos. Tem um publico muito menor, numericamente, que é aquele muito especializado. Na primeira semana vem para cá os grandes curadores do mundo, a gente conversa de uma forma muito codificada. E depois você tem essas outras 900 mil pessoas que não necessariamente têm alguma informação. Para mim esse público é prioridade. Pessoalmente acho que a arte é interessante quando ela foge, abre outras possibilidades. A leitura que o pessoal vai ter não será necessariamente a minha e eu gosto disso. Não acho que a minha visão seja tão brilhante que todo mundo tenha que sentir exatamente o que eu sinto. O desafio do nosso tempo é a diversidade. A gente ainda tem muita dificuldade de entender isso, a diversidade na subjetividade.
Como dar conta dessa diversidade? No setor educativo?
Também. E na curadoria. E na arquitetura. Eu acho que eles têm que caminhar juntos. O projeto arquitetônico do Álvaro Razuk tenta não enlouquecer a pessoa. Ele foi escolhido porque não se coloca como autor. Cada núcleo tem uma linguagem arquitetônica diferente. Eu acho que num prédio cansativo, dessas dimensões, é importante criar variação na experiência física, deixando lugar para sentar, conversar. Vamos abrir um café no segundo andar, na metade do percurso para dar uma descansada. A Bienal está criando um espaço para pensar. E acho que a arquitetura tem que dar conta disso. É um pouco difícil chegar numa síntese, mas a sensação é que trata-se de uma bienal um pouco mais delicada, mais rebaixada. Não há menção a nenhuma obra espetacular? No projeto tem áreas que são super intensas, de densidade quase insuportável, depois tem des- canso. O que não tem é o gesto para espetáculo. Não tem ninguém no vão, por exemplo. Isso por- que como não teria como garantir a autonomia dos projetos com uma coisa que atravessa três andares – num gesto meio fálico. Todo mundo teria que trabalhar com isso. Com relação a essa leitura global da Bienal, eu não consigo imaginar. Estou muito contaminado pelo que eu sei, mas me interessa muito esse tipo de conclusão do público. Estou muito curioso em relação ao olhar dos outros.
Você escolheu 12 artistas. É um conjunto com uma grande diversidade. Imagino que isso tenha sido proposital?
Alejandro Corujeira, Los-Ojos Callados. Foto: Francisco Fernandez
Foi. Porque no início, quando você fica colocando post-it na parede, eu me dizia que se fosse muito parecido iria um pouco em contra ao espírito da coisa. E eu quis muito, em toda a Bienal, também me desafiar. Quer dizer, não trazer muita coisa que eu já conhecia. Foram poucos aqueles com quem trabalhei neste grupo. A maioria é formada por pessoas ou que eu tinha admirado por muito tempo sem nunca conhecer, como a Vânia Mignone, por exemplo.
Você se preocupou com a presença brasileira de alguma forma? Nesse grupo a presença brasileira é um pouco maior.
Sim. Eu me coloquei cotas nas minhas escolhas dos curadores. Metade mulher, metade homem, diferentes idades, um terço brasileiro, um terço latino-americano, um terço o resto do mundo. Quer dizer, fiz esse exercício, mas eles tinham toda liberdade, então num determinado momento fiquei até preocupado que ia ter menos brasileiros, então nas minhas escolhas priorizei isso um pouco. É chato esse trabalho, mas eu sei onde estou pisando. Tem uma expectativa sobre isso e não quero obrigar o brasileiro a fazer uma representação brasileira. Já passamos esse momento histórico. Então no final, acho que vai estar bem perto da minha intenção original.
Anibal López, El préstamo, Guatemala, 2000/2012
Cada um dos curadores escolhe uma questão que é de certa forma muito candente na produção contemporânea e que ecoa com suas próprias questões? Isso foi conversado?
Foi e não foi. Cada um deles seguiu uma metodologia diferente. Uma outra intenção secundária era que a Bienal fosse tipo uma aula de curadoria. Quem olhar com esse olhar vai ver que há sete metodologias curatoriais diferentes. Acho isso interessante porque a gente pensa muito a curadoria como uma coisa só. Vamos tentar colocar dois exemplos diferentes:o Waltercio escolhia a obra, a Wura escolhia a artista.
E o fato de os curadores serem também artistas? O diálogo se deu de forma diferente?
Acho que sim. Falando a pura verdade, sinto que cada um deles me inspirou. Isso é uma exposição que eu nunca conseguiria fazer. Acho que eles superam na capacidade de articular uma visão. Estou muito emocionado com o resultado e acho que nós, curadores profissionais, estamos acos- tumados a lidar com muita questão estratégica, pensando qual publico você vai atender fazendo isso ou aquilo. A Bienal me dá o luxo de ser surpre- endido. Essa liberdade de articular os interesses foi uma bela surpresa.
Oúltimo livro do jornalista e romancista Edgard Telles Ribeiro, Uma mulher transparente, lançado este ano pela Todavia, desenha as marcas que a ditadura militar no Brasil deixa na vida de Gilda, uma mulher esfíngica. Na vida real, a artista carioca Neide Sá, nascida em 1940, não se assemelha um tanto à personagem com sua elegância noir. Quando a artista começa a produzir suas peças, em meados da década de 60 – e assinalada pelo movimento Poema-Processo (leia texto sobre livro do movimento aqui), do qual se destaca como uma das fundadoras –, não se pode negar que a artista transpõe seu olhar sobre o momento político do País.
São obras de Neide que ressaltam essa sua ligação com três Ps – política, poética e palavra –, que estão em exposição agora em Mulheres Radicais, na Pinacoteca de São Paulo, e em Arte-Veículo, no Sesc Pompeia.
Até recentemente, também faziam parte de Estrutura poética, ruptura e resistência, sua primeira individual na Galeria Superfície. O artista visual e diretor da galeria, Gustavo Nóbrega, não teve dúvidas de que Neide era uma artista que merecia um resgate substancial. Desde que começou a representa-la, se empenhou em inseri-la em grandes exposições.
Versão 1967-2010 de A Corda, exibida em individual da artista na Galeria Superfície.
No caso de Mulheres Radicais, ele conta, as curadoras Andrea Giunta e Cecilia Fajardo já haviam aparecido na casa da artista para convidá-la para fazer parte da exposição e pesquisar obras. Neide, no entanto, não sabia onde estava a obra, que no caso seria A Corda.
“Tinham obras que ela nem lembrava que existiam ainda e encontramos num depósito lá na casa dela”, conta o galerista. Dentre as obras encontradas durante sua pesquisa para a exposição em homenagem aos 50 anos de Poema-Processo no ano passado, que rendeu um livro, estava a obra pensada pelas curadoras, que prontamente foram contatadas por ele.
Durante a ditadura militar, a obra – composta por pregadores/clips, colagens de impressos jornalísticos e uma corda – ficava exposta na rua para que as pessoas fossem pregando as colegas, como num varal. “A polícia chegou a sequestrar algumas vezes essa obra dela, mas não sequestrava a artista porque não sabia quem era”, conta Nóbrega. Outra versão da obra esteve exposta na galeria e, agora, outra faz parte da exposição no Sesc, mostra que reúne obras de artistas que realizam intervenções midiáticas.
A obra A corda’, de Neide Sá, em sua versão de 1967.
Outra obra da artista que manifesta seu posicionamento de forma eminente é Transparências (1968). Três cubos de acrílico em proporções diferentes, colocados um dentro do outro, com vinis adesivos colados letras. Dependendo da perspectiva pela qual é observada, palavras como ‘Guerra’ e ‘Paz’, além de formações onomatopaicas que remetem a sons de batalhas, são percebidas: “Na codificação da palavra, eles [Neide e o Poema-Processo] conseguiam passar mensagens que o regime militar não percebia”, aponta Gustavo. Ele explica que Neide foi uma artista que chamou muito sua atenção nesse percurso de pesquisa sobre o movimento porque, além de ser a única mulher atuante no grupo de vanguarda, teve uma produção muito grande tanto naquele momento quanto posteriormente.
Neide é transparente porque, em seu fazer artística, comunica-se de forma aberta e determinada. Por meio do uso habilidoso da semiótica e da construção de seus poemas visuais, instiga o público, que se transforma em um interlocutor na experiência do contato com a produção da artista.