Reconstituição das Celas

[Este é o quarto texto de uma serie de sete, elaborados pelo Professor titular em Psicanálise e Psicopatologia Clínica do Instituto de Psicologia da USP, Christian Dunker, que estamos publicando semanalmente. Sobe o título A Educação do Olhar e a Leitura de Imagens –  Desafios Éticos para os Museus“, já abordamos

1] Curadoria como sistemas simbólicos em conflito,
2] Forma estética e contradição social 
3] Formalização e Temporalidade

Resumo

Pretendo mostrar como as práticas de mediação convidam ao encontro com a obra como experiência de leitura reconstrutiva. Este processo pode ser entendido como experiência ética de reconhecimento, envolvendo forma estética e contradição social. A função ética do discurso, concentrada na noção de letra determina modos de relação com a obra que são também modelos de relação intersubjetiva com o outro. Apresento este tema a partir de sete desafios éticos para os museus contemporâneos.

4. Arquitetura e Espaço: a Soberania da Imagem

 Oimpacto da vida digital tem uma relação sincrônica e contemporânea com a reformulação do lugar social dos museus. Mais do que nunca é preciso pensamento museológico para mostrar que o contemporâneo não é transparente e imediato a nós mesmos. O contemporâneo só se obtém pelo trabalho de recriação do passado, como um passado possível para um futuro contingente. É este trabalho, que cria o contemporâneo como não idêntico a si mesmo e não redutível ao “isso tudo que está aí”, como totalidade coerente e harmônica ou desarmônica, tanto faz.

 A experiência digital não acontece toda de uma vez, em todos as posições, assim como o capitalismo não é o mesmo em todos os lugares. O relógio da história não marca a mesma hora em todos os seus quadrantes.

Neste “novo tempo” convém lembrar que museu não é só curadoria, ele se torna mais do que nunca arquitetura e ambiência.

Isso acontece, talvez, pelo alto nível de profanação da imagem que as novas telas impuseram à nossa relação com a imagem. Virtualmente todo conteúdo de todos os museus está “disponível” em escala reduzida e miniaturizada das telas de computadores, telefones e assemelhados. Isso não é só uma questão de escala, mas também de experiência do espaço, e de compartilhamento intersubjetivo, da relação com a imagem. Posso apreciar o Louvre sentando em meu vaso sanitário, ou melhor, diante de uma réplica perfeita do urinol de Duchamp. Posso ter todo Gugenheim ou Moma em meu próprio banco do parque, que não é Giverny. Posso decidir inclusive que aquela experiência acabou, simplesmente fechando a tela: ”Sou o senhor do meu tempo e o soberano doador de meu olhar, na duração que melhor me aprouver, sem que ninguém tenha o direito de perturbar esta experiência solitária”. Parodiando Primo Lévi: “É isto um museu?”.

Andando pelo Carré des Arts (1993), da pequena cidade francesa de Niemes, projetado por Norman Foster, em frente a um templo grego, percorrendo a arquitetura de Renzo Peano para o Instituto de Arte de Chicago (2009) ou o Museu Gugenheim de Bilbau (1992), de Frank Ghery, percebe-se uma consciência de que a experiência com a imagem precisa ser reinventada como experiência de circulação, como espaço público que modifica a concepção tradicional de enquadre. Lembremos a tese de John Berger em “Modos de Ver”, a forma pintura a óleo nasce como uma espécie de reapossamento de si, como retrato, como reapossamento da experiência da natureza perdida, ou da história ancestral e mítica, que define a tela como a moldura de um cofre. Os modos modernos de ver tem relação direta com os modos de possuir. Por isso os novos espaços museológicos precisam inventar novos modos de possuir e no limite criticar as formas estéticas pelas quais nos achamos senhores e possuidores da imagem, quando a verdade de alienação, articulada pela gramática de nossa fantasia, é que são as imagens que nos possuem. Essa teria sido a tese de Lacan e também de Foucault, em suas leituras divergentes sobre “As Meninas de Velásquez”.

Ainda não se entende muito bem porque no Brasil, a experiência do Museu da Resistência permanece tão excepcional, e o museu da escravidão não sai do papel. Sincrônico com o fato de sermos o último país latino americano a ter instituído uma comissão da verdade para investigar os crimes da ditadura civil-militar.

Fachada do Museu da Resistência em São Paulo
Reconstituição das Celas

Não seria a emergência de uma cultura de ódio no passado recente brasileiro, também derivada da carência de recursos de memória e de reconstrução de experiências traumáticas, que, como sabemos uma vez não elaboradas tendem a retornar com efeitos de repetição e violência piores e mais devastadores, porque desgarrados no tempo. É a intrusão do passado no presente sem a mediação do futuro. É a repetição do passado da violência de Estado com a mesma sanção e tolerância, mas agora dirigido ao assassinato de jovens negros de periferia, por exemplo.

Temos aqui dois exemplos importantes: o Museu do Holocausto de Berlim, que procura reconstruir a experiência sombria dos campos de concentração, com sua arquitetura vertical e opressiva, com suas rampas desequilibradoras, mas também no diálogo desta ambiência com a máquina que re-escreve automática e interminavelmente a Torá hebraica.  Assim a obra separa e contempla esta contradição que é o tratamento do humano como coisa, como máquina e sua recuperação, que pode se também mecânica, reproduzindo na forma o que o conteúdo quer esquecer.

Outra estratégia para o problema da recolocação da imagem é o museu do Apartheid em Johanesburg, África do Sul. Um museu que proíbe fotos de qualquer área interior. Logo na bilheteria somos sorteados: “brancos” ou “não-brancos”. E a entrada é bífida para cada qual, gradeada e inacessível para quem está do outro lado, somos levados ao desconforto imediato de que “estamos perdendo algo”, concomitante com a realização de que o  outro também está perdendo algo simplesmente por estar no outro corredor.

O museu não é todo assim, mas esta preparação, reduzida a uma breve experiência com a discriminação educa o olhar e introduz uma leitura de tudo que se seguirá pela sua apropriação corporal, movida pelo instante de desempatia radical.

 

 

 

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