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Desarmado e perigoso

Livro-reportagem retrata o ativismo político que marcou a fase inicial de John Lennon (na foto, com Chuck Berry e Yoko Ono) em Nova York e colocou o ex-beatle na mira do FBI. Foto: Jeff Albertson/Corbis

Aos beatlemaníacos de plantão, uma boa-nova: acaba de ser lançada a primeira edição brasileira de John Lennon em Nova York: Os Anos da Revolução (Editora Valentina, 248 páginas). Originalmente publicado no exterior há dois anos, o livro-reportagem do jornalista norte-americano James A. Mitchell retrata os primeiros anos do ex-beatle e de Yoko Ono na metrópole.

Aos não iniciados, trata-se de período divisor na vida e na carreira artística de Lennon, que transcorre a partir do verão de 1971, com o estabelecimento definitivo do casal na metrópole, passa pelo nascimento do filho, Sean Ono Lennon, em 1975, e tem final trágico na noite de 8 de dezembro de 1980, a fatídica segunda-feira que assombrou o mundo com a notícia do assassinato de Lennon pelo fã Mark David Chapman, que, após três dias de vigília em frente ao edifício Dakota e horas depois de pedir um autógrafo na capa do recém-lançado LP Double Fantasy, deflagrou cinco projéteis de um revólver calibre 38 contra seu ídolo, diante dos olhos horrorizados de Yoko.

A última década de vida do ex-beatle em solo norte-americano também é tema do documentário Os Estados Unidos X John Lennon (2006), de David Leaf e John Scheinfeld, exibido no Brasil em 2010. O “duelo” e os “anos de revolução” expressos nos títulos das duas obras dizem respeito a uma série de comportamentos provocativos de Lennon, concentrados, sobretudo, na primeira metade de permanência em Nova York, período abordado no livro.

Ao lado de Wayne “Tex” Gabriel, guitarrista do Elephant’s Memory, Lennon recebe o amigo Mick Jagger no Record Plant (1972). Foto: Bob Gruen/bobgruen.com
Ao lado de Wayne “Tex” Gabriel, guitarrista do Elephant’s Memory, Lennon recebe o amigo Mick Jagger no Record Plant (1972). Foto: Bob Gruen/bobgruen.com

Na interpretação do então presidente Richard Nixon, a influência mundial do ex-beatle e, claro, seu enorme poder econômico poderiam resultar no engajamento e financiamento de perigosas insurreições da juventude norte-americana contra sua gestão. De grande valor, os dois trabalhos documentais são complementares. Portanto, àqueles que viram o filme, vale celebrar a coincidência e garantir logo a aquisição do livro escrito por Mitchell.

Com narrativa distanciada, construí-da a partir do cruzamento de testemunhos de diversos personagens, John Lennon em Nova York: Os Anos de Revolução é um grande livro-reportagem. Entre dezenas de depoimentos, claro, prevalecem relatos do convívio de Lennon com os cinco músicos da também politizada Elephant’s Memory, sua banda de apoio, de convívio quase diário entre 1971 e 1973. Além desses relatos e de outros, registrados entre 2010 e 2013, período de produção do livro, Mitchell enriqueceu a obra com uma rigorosa pesquisa de documentos que abordam acontecimentos em jornais, revistas, livros, programas de rádio e TV. Equação que, ao final da leitura, constrói um retrato fascinante do longo processo de maturação da personalidade e das convicções políticas de John Lennon, acentuado a partir do momento em que ele cruza o Atlântico, aos 31 anos de idade.

Em protesto que reuniu cerca de 500 pessoas, o casal pede a retirada de tropas britânicas na Irlanda do Norte (1972). Foto: AP Photo/Ron Frehm/Editora Valentina
Em protesto que reuniu cerca de 500 pessoas, o casal pede a retirada de tropas britânicas na Irlanda do Norte (1972). Foto: AP Photo/Ron Frehm/Editora Valentina

Em solo norte-americano surge esse novo homem, que capitula aos dias subjetivos de desbunde contracultural para tornar-se militante efetivo em defesa das liberdades individuais de minorias mantidas à margem por Nixon, como os jovens soldados condenados a morrer em nome da pátria no Vietnã e mentores intelectuais da chamada Nova Esquerda, como Jerry Rubin e John Sinclair, dois dos mentores do Youth International Party (o Partido Internacional da Juventude, cujos seguidores eram chamados de yippies, corruptela de hippie), e Bob Seale, líder dos Panteras Negras, grupo de ativismo surgido na década anterior que chegou a usar táticas paramilitares para defender os direitos civis da população negra. 

A suspeição de Nixon sobre as reais intenções da ida de Lennon para os Estados Unidos foi inicialmente fundamentada pelo posicionamento obsessivo do músico em pedir o fim das ações das tropas norte-americanas na Guerra do Vietnã (operação iniciada em 1965, na gestão do antecessor de Nixon, o democrata Lyndon B. Johnson). Crítica que ficou explícita na canção Give Peace a Chance e nos chamados Bed Ins, protestos cobertos pela imprensa que ele e Yoko fizeram na cama, em Amsterdã, na Holanda, e Toronto, no Canadá, logo após se casarem no início de 1969.

Mas o cerco contra o atrevimento do ex-beatle ganha novas dimensões com sua chegada em definitivo a Nova York. Pouco depois, procurado por Jerry Rubin)2), Lennon torna-se voluntário da frente de articulação do chamado John Sinclair Freedom Rally, festival que incluiu estrelas como Stevie Wonder e o poeta beat )Allen Ginsberg em defesa de Sinclair, que, além de integrar o núcleo intelectual dos yippies também era líder do White Panther Party, o Partido dos Panteras Brancas, facção de jovens brancos solidários à causa dos Black Panthers. Sinclair estava preso havia quase dois anos e condenado a uma década de reclusão, depois de cair em uma cilada e oferecer dois cigarros de maconha a um policial infiltrado em meios aos yippies. O festival foi realizado em 10 de dezembro de 1971. Dois dias depois, com o impacto da adesão de Lennon, Sinclair estava solto.     

 

Lennon, Yoko, o produtor Phil Spector (deitado) e os músicos do Elephant’s Memory, no camarim do Madison Square Garden (1972). Foto: Bob Gruen/bobgruen.com
Lennon, Yoko, o produtor Phil Spector (deitado) e os músicos do Elephant’s Memory, no camarim do Madison Square Garden (1972). Foto: Bob Gruen/bobgruen.com

Em decorrência do envolvimento com o escândalo Watergate, Nixon renunciou em agosto de 1974, não sem antes causar muitos transtornos para o casal. Logo após a realização do John Sinclair Freedom Rally, Nixon determinou que J. Edgar Hoover, poderoso-chefão do FBI, a polícia federal dos EUA, destacasse investigadores para ficar 24 horas na cola de Lennon. Personagem mitológico havia décadas, Hoover tornou-se célebre na caçada a gângsteres durante a Lei Seca, nos anos 1940, mas morreu, em 1972, sem enquadrar o ex-beatle.

O monitoramento ostensivo do FBI sobre o dia a dia do casal incluía escutas telefônicas e informantes infiltrados, a caráter, na boêmia nova-iorquina. No rol de alcaguetes relatados no livro estava também um colaborador com status de majestade, o cantor Elvis Presley, que procurou Nixon para se voluntariar como araponga de Lennon. Em paralelo, o presidente tentou, sem sucesso, deportar o casal dos Estados Unidos, com a justificativa de que seu visto temporário não poderia ser renovado, devido a complicações com a polícia britânica, decorrentes de um flagrante por porte de maconha em 1968, fato que originou um moroso processo judicial. Em outubro de 1975, depois de longa batalha travada por seu advogado John Wildes, uma das fontes do livro, Lennon enfim conseguiu visto permanente nos EUA.

“Lennon jamais teve o período inicial de sua vida em NYC examinado com tanta profundidade e clareza”, afirma Lee Ranaldo, ex-guitarrista da banda Sonic Youth. Foto: Divulgação
“Lennon jamais teve o período inicial de sua vida em NYC examinado com tanta profundidade e clareza”, afirma Lee Ranaldo, ex-guitarrista da banda Sonic Youth. Foto: Divulgação


Ídolo de Bob Dylan e um dos patronos da música folk e country norte-americana, o compositor Woody Guthrie (1912-1967) costumava estampar no corpo de seu violão a frase “this machine kills fascists” (em bom português, “esta máquina mata fascistas”). A sentença, somada à fama de andarilho que cruzava o país de instrumento em punho, sintetizava a faceta política de Guthrie, um trovador em defesa da justiça social. Não por acaso, Dylan surgiu na cena musical de Nova York em meio às transições políticas e comportamentais do começo da década de 1960, fazendo o mesmo: vertia acordes de violão e letras extensas em verdadeiros hinos de conscientização política, caso de The Times They Are A-Changin’ e Blowin’ In The Wind.

Naquela primeira metade dos anos 1960, entre os fãs ilustres de Bob Dylan o mais famoso deles era John Lennon. Em 28 de agosto de 1964, ocorreu o antológico primeiro encontro entre os Beatles e Dylan. Para além da controversa história de que foi ali que aconteceu, no Hotel Delmonico, em Nova York, a primeira experiên-cia dos Beatles com maconha, oferecida por Dylan, o encontro abriu caminho para uma nova fase dos quatro rapazes de Liverpool. Chegava ao fim a fase juvenil marcada pelo romantismo ingênuo de canções como Help, Eight Days a Week e I Love Her e passava a ser construído o repertório que mudou o comportamento jovem na trinca de obras-primas Rubber Soul (1965), Revolver (1966) e Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band (1967). Com o fim oficial dos Beatles em abril de 1970 e o decreto “the dream is over” (o sonho acabou) expresso na canção God, do seu primeiro álbum solo John Lennon/Plastic Ono Band lançado em dezembro daquele ano, Lennon deixou de lado o pacifismo contemplativo da geração Flower Power. Desarmado e perigoso, como Guthrie e Dylan, deu início ao ativismo político retratado neste livro essencial.

MAIS
Leia entrevista com o jornalista James A. Mitchell, autor de John Lennon em Nova York: os anos da revolução.

Cartaz do John Sinclair Freedom Rally, festival em defesa da liberdade do líder do White Panther Party, condenado a dez anos de prisão pelo porte de dois cigarros de maconha. Dois dias após o evento, Sinclair foi solto em liberdade condicional. Foto: Divulgação
Cartaz do John Sinclair Freedom Rally, festival em defesa da liberdade do líder do White Panther Party, condenado a dez anos de prisão pelo porte de dois cigarros de maconha. Dois dias após o evento, Sinclair foi solto em liberdade condicional. Foto: Divulgação

 

Em nome do pai

João Candido Portinari, fundador e diretor-geral do Projeto Portinari. Foto: Paula Giolito

A celebrada volta dos painéis Guerra e Paz ao Brasil é, sobretudo, o ápice de uma emocionante história de luta pela memória do gênio de Brodósqui. Luta que nasceu da inquietude de seu filho, João Candido, perante a terrível constatação do escritor Antonio Callado, grande amigo e biógrafo de Portinari, que em entrevista a Ralph Camargo, em 1977, desabafou: “Segregado em coleções particulares e salas de bancos, Candinho vai se tornando invisível. Vai continuar desmembrado nosso maior pintor, como o Tiradentes que pintou?”.

Contestar a triste profecia de Callado, por intermédio do Projeto Portinari, tornou-se o grande desafio da vida de João Candido. Em entrevista à revista IstoÉ Gente!, em 2003, ano do centenário do nascimento de Portinari, ele revelou ao repórter Fábio Farah que, aos 18 anos, era avesso ao ambiente artístico vivido ao lado do pai: “Achava chatíssimo. Como lamentei mais tarde não ter aproveitado aquilo!”.

O “aquilo” a que João Candido se referiu era muito mais que o cumprimento de protocolos sociais. Era a própria obra do pai e seu significado bruto de identidade de um País que ele também amava, mas que abandonou para estudar Matemática, na França, e fazer doutorado de Engenharia de Telecomunicações, nos Estados Unidos.

João Candido vivia fugindo da sombra onipresente do pai, mas estaria fadado a, obsessivamente, reencontrar seus numerosos vultos e defender com todas as forças a magistral obra de Portinari.

“Eu tinha um tio francês, Pierre, um grande professor de Matemática e Física. Ele me ajudou a aprender Matemática quando eu tinha 12 anos e foi um pouco meu guru. Uma espécie de alternativa ao meu pai. Como bom francês, o Pierre só acreditava na França e me convenceu a estudar Matemática por lá. Com 18 anos, fui interno de um daqueles liceus dantescos de Paris e, depois, passei no concurso da Escola Nacional de Telecomunicações. Eu me formei em engenharia e fui para os Estados Unidos, onde fiz doutorado no MIT, em Massachusetts. Recebi o convite da PUC do Rio para voltar ao Brasil, em 1966. Um período meio maluco, pois eu estava ao mesmo tempo desesperado por estar muito tempo sem vir ao Brasil. Também estava sem rumo na minha própria vida. Recebi o convite de voltar para PUC e ajudar a criar o Departamento de Matemática. Mais de dez anos depois é que tive a ideia de fazer o Projeto Portinari e pedi uma licença sem vencimentos. Meus amigos diziam pasmados: ‘Você está completamente louco! Largar uma carreira como a sua na matemática para mergulhar em uma coisa absolutamente desconhecida e sem futuro!’. Eu realmente fui contra a opinião de todo mundo”, recorda.

Nostálgico de um País que não mais reconhecia, ele conta que o “chamado” para a missão de entregar as tais “cartas” deixadas pelo pai ao povo brasileiro veio de um museu dedicado ao artista-símbolo do povo holandês: “A gota d’água foi uma visita que eu fiz ao Museu Van Gogh, em 1978, que me deu um baque. Mas, se eu não contar os precedentes disso, não vai dar para entender. Voltei ao Brasil, e o País que amo e do qual morria de saudades estava tomado por militares. Vivi dez anos fora, sem ter amigos para reencontrar – meus amigos eram todos do meu tempo de futebol de praia, no Leme, sabe-se lá onde é que eles estavam! –, e também não tinha consciência política e histórica do momento que o País vivia. Estudava muito e nada mais. Lidava com alunos ligados à guerrilha e isso me emocionava muito, porque me deparei com um Brasil irreconhecível. O meu Brasil, de quando eu tinha saído, de uma identidade muito forte marcada em mim, praticamente não existia mais! Uma coisa de muita melancolia. Lembro-me de que, às vezes, parava o carro em uma rua deserta e ficava chorando de saudades desse Brasil que carregava em mim e que não via fora de mim. Lembro de um artigo do Celso Furtado no Estadão que o título era: Quem somos?. Era exatamente essa a questão. Cheguei ao Museu Van Gogh com essa carga toda que acabei de te passar e vi aquele prédio de quatro andares parecendo um formigueiro de gente. Crianças, velhos, pobres e ricos se acotovelando. Já conhecia o museu, tinha ido acompanhado de meu pai, quando eu era criança, e naquele momento parei e pensei: ‘O que é que essas pessoas estão procurando aqui? Estão vindo buscar a pintura, no sentido intelectual? Comparar estilos e pinceladas?’. Nada disso, elas estavam ali para ganhar uma injeção de identidade na veia. Elas saíam fortes dali. Tinham a identidade revelada de uma forma poética, através do olhar e do talento de um imenso artista nacional. Aí, veio a inevitável comparação: ‘E nós, no Brasil?’. Nós também tínhamos um pintor que fez isso, um pintor que pintou o seu povo, a sua terra e a sua alma. E onde é que ele estava? Em lugar nenhum!”

Em uma sala emprestada pelo amigo, professor e presidente da Fundação Rui Barbosa, Américo Jacobina Lacombe – espaço descrito como “quase uma delegacia, dessas com escrivão, delegado e só” –, com móveis usados, “de jacarandá preto”, doados pelo Itamaraty, João Candido fundou, em 1979, o Projeto Portinari.

Ancorado inicialmente por documentos do pai e outros que herdou do acervo da própria mãe, Maria, entusiasta e devota memorialista da obra e da vida do marido, João Candido encontrou grande acolhida de parceiros fundamentais para os grandes êxitos que alcançaria. A extinta companhia aérea Varig, por mais de dez anos, subsidiou as viagens feitas pelo projeto, para mais de 20 países.

A Rede Globo deu início a uma campanha de quatro anos, com exibições diárias de vinhetas pedindo informações que levassem a obras e documentos. Braço imprescindível dessa ação foi também o apoio dos Correios, que dedicou ao projeto a Caixa Postal 500, de fácil memorização, para facilitar o fluxo de informações. A exemplo da Varig e do Itamaraty – este fundamental para as ações no exterior –, todos os parceiros fizeram de suas filiais espécies de sucursais do Projeto Portinari.

Os dias de Fundação Rui Barbosa foram breves. Já em 1980, João e equipe foram acolhidos definitivamente pela PUC-RJ, e as pesquisas e descobertas empenhadas por eles mostrariam facetas particulares do próprio País e de um rico período histórico.

“Os documentos que encontramos começavam a falar mais da vida que da obra desse pintor, um homem que teve um papel dentro de sua geração, que ia muito além da pintura. O Clarival do Prado Valladares, um importante historiador de arte, costumava dizer que Portinari foi um polo de captação e irradiação das principais preocupações estéticas, artísticas, culturais, sociais e políticas do seu tempo. Estamos falando da mesma geração de Mario de Andrade, Manuel Bandeira, Heitor Villa-Lobos, Graciliano Ramos, José Lins do Rêgo, Carlos Drummond de Andrade, Lucio Costa, Oscar Niemeyer, Jorge Amado e tantos outros. Uma geração brilhante. Ao levantar toda a documentação e cruzar esses documentos com as obras e entre si, construímos uma grande base de informações, capaz de iluminar o processo histórico, cultural e político brasileiro dos anos 1920 até 1960.”

Em 1980, a emissora carioca possibilitou ao Projeto Portinari outra rica experiência: a produção de um Globo Repórter dedicado ao pintor, dirigido por ninguém menos que Eduardo Coutinho, o maior documentarista do País. Coutinho foi tomado pela ideia de ignorar depoimentos previsíveis de intelectuais, artistas, críticos de arte e historiadores, e partiu com João Candido e o cinegrafista Dib Luft à pequena Brodósqui, a terra natal de Portinari, no interior de São Paulo, imortalizada e tornada universal por seus pincéis e suas cores.

“Logo que fizemos o primeiro encontro para discutir o programa, o Eduardo me disse, enfático: ‘Olha João, não vamos ficar no Rio entrevistando político, artista e intelectual, não. Vamos lá para Brodósqui, porque é lá que está a chave do mistério’. E que mistério era esse? O grande mistério de essa cidadezinha ser o berço de um menino que nasceu em condições de extrema humildade e se tornou o grande pintor Portinari. Tínhamos uma fotografia de meu pai, aos 9 anos, na escola – pouca gente sabe, mas ele estudou somente até a terceira série do primário –, um menino pobre, com 11 irmãos e todos eles trabalhavam nas fazendas de café. Decidimos ir para Brodósqui eu, o Coutinho, e um terceiro amigo, que também era um sujeito fantástico, o Dib Luft. Encontramos colegas de escola, retratados nessa foto, que na época já estavam com mais de 80 anos e fizeram relatos belíssimos. Esse é um momento divisor, pois foi justamente aí, quando meu pai tinha 9 anos, que passou pela cidade um grupo de artistas itinerantes que vivia de decorar igrejinhas das cidades do interior e que chamou meu pai para pintar umas estrelinhas no teto da capela. Foi a primeira coisa relacionada à pintura que ele fez na vida. Encontramos outro velhinho que também fez esses trabalhos com meu pai, e ele foi categórico em afirmar que: ‘Doente para aprender arte, Candinho era o primeiro a chegar e não saía nem para almoçar’. Em dado momento, ele diz que também fazia de tudo para ajudar os artistas e que, para ele, não havia diferença entre pintura e escultura. Era tudo a mesma arte. Um depoimento incrível, pois ele responde o mistério apontado pelo Eduardo. Essa gente, apesar de pobre e muito humilde, tinha grande sensibilidade e inteligência. Meu avô, por exemplo, chegou em Brodósqui, formou um grupo de música, deu a ele o nome de Carlos Gomes, e o primeiro desenho que meu pai fez foi, justamente, um retrato do Carlos Gomes! Essa gente veio de um País com tradições seculares. Trouxe no sangue a sensibilidade artística italiana.”

A volumosa descoberta de documentos e o encontro de importantes fontes demandariam ao projeto a elaboração de um programa de história oral, amplamente influenciado pelo trabalho do CEPEDOC, da Fundação Getúlio Vargas. Para a alegria de João Candido e de seus pesquisadores, vestígios de um País construído por outros grandes homens, esquecidos na cortina de fumaça de nossa turbulenta história, surgiam entrelaçados à rica trajetória de vida de Portinari.

“Encontramos pessoas incríveis, que tinham convivido com ele e que também tiveram extrema importância para o Brasil, mas que caíram no mais completo esquecimento, como o Celso Antônio, um grande escultor, que participou da aventura fantástica que foi a construção do prédio do antigo Ministério da Educação e Saúde, que hoje é o Palácio Gustavo Capanema (o mesmo local onde Portinari foi velado, em 1962, e onde Guerra e Paz foram restaurados, a partir de 2010). Uma riquíssima experiência interdisciplinar reunindo arquitetos, como Lucio Costa, Niemeyer e Reidy; paisagistas, como Burle Marx; pintores, como Portinari e Guignard; e escultores, como o Bruno Giorgi e o Celso Antônio – que encontramos, pobre e absolutamente esquecido, morando no subúrbio do Rio de Janeiro. Fizemos com ele o que deve ter sido sua última entrevista. Celso morreu dois meses depois e o depoimento dele foi emocionante.”

As mais de três décadas de pesquisas, amparadas por ciência e tecnologia, renderam ao Projeto Portinari a impressionante marca de cinco mil obras localizadas e catalogadas, e mais de 30 mil documentos reunidos. Trabalho feito a duras penas, que custou até mesmo incursões policiais a favelas, em busca de falsários, mas que enriqueceu e que continua a enriquecer a ação que mais orgulha João Candido, o Programa Acesso, que procura levar ao maior número de brasileiros as mensagens de paz e harmonia social tão caras a Portinari.

Em 2003, ponto alto das comemorações do centenário de nascimento do pintor, João e sua equipe realizaram o que, até então, foi seu feito mais notável, a publicação do catálogo raisonné, a mais completa fonte de referência sobre a obra de um artista, algo planejado por ele desde os primeiros dias de projeto. “Já em 1978, estava anotado na minha cadernetinha, onde organizava as primeiras ideias. Por aqui, só os maiores especialistas tinham ideia do que era um catálogo raisonné. Não tínhamos experiência formada no Brasil sobre um trabalho dessa natureza. Esse é o primeiro catálogo raisonné ao sul do Equador, não só na América Latina.”

No texto em que apresenta o Projeto Guerra e Paz, João Candido recorre ao poeta alemão Rainer Maria Rilke, em Elegia de Duíno, para definir como ele se sente a cada vez que alcança seus êxitos: “Se o arcanjo que está por trás da estrela descesse apenas um passo em minha direção, meu coração explodiria”.

A maior visita feita pelo “arcanjo por trás da estrela” a João Candido começou a ser ensaiada no final de 2007, quando ele soube que o prédio sede da ONU, em Nova York – outra grande aventura modernista, projetado por Le Corbusier, e um grupo de arquitetos que incluía Oscar Niemeyer –, entraria em ampla reforma e só reabriria em agosto de 2013.

Estava João Candido perante a oportunidade única de vislumbrar a volta de Guerra e Paz ao Brasil e de também promover a itinerância das duas obras monumentais pelo mundo. Os painéis foram doados, como um presente do Brasil, na inauguração da ONU, em 1957, em cerimônia na qual nem Portinari nem Niemeyer puderam participar, por conta do envolvimento de ambos com o Partido Comunista. A América vivia então o auge da violenta paranoia McCarthista.

Obcecado pelo simbolismo da obra, Portinari abreviou a própria vida para legar à humanidade a mensagem universal de Guerra e Paz. Severamente intoxicado com a superexposição às tintas, ele teve uma hemorragia, em 1953, e foi proibido de pintar por seus médicos, “proibido de viver”, como definiu em uma entrevista após o diagnóstico letal.

Ignorando todas as advertências, Portinari empenhou mais de quatro anos de estudos e nove ininterruptos meses para gestar os 280 m2 de Guerra e Paz. Morreria cinco anos depois, deixando uma obra sem precedentes. Um gigante espelho do País, estilhaçado em mais de cinco mil pedaços, como atesta João Candido.

“Quando ele pinta o Brasil também está falando da guerra e da paz. Ele nunca pinta o Brasil sem paixão. Tem sempre o drama e a poesia, o lírico e o trágico, a fúria e a ternura. A todo momento em que pinta o Brasil, Portinari passa mensagens éticas, humanas e sociais, que chegam ao ápice em Guerra e Paz. Os painéis carregam uma mensagem que vai além do Brasil, transborda fronteiras e vai para a humanidade toda. A ida de Guerra e Paz a São Paulo causará grande impacto. Haverá elementos que não houve no Rio: um tempo maior de exposição e quase 200 estudos originais. Nem meu pai pode vê-los em seu conjunto, pois estiveram sempre espalhados em coleções particulares. Será um grande e emocionante evento. Depois, partiremos para a itinerância internacional, que vai começar em 2012, ano do cinquentenário da morte de meu pai, e vai até 2013, quando a obra deve voltar para a ONU, e nós ainda nem tivemos tempo para pensar nisso. Nossa ficha ainda não caiu!”.

O Brasil contemporâneo em Milão

André Komatsu, Base Hierárquica, 2011-2014

Todos os anos o Padiglione D’Arte Contemporanea di Milano, o PAC, escolhe um país ou um continente para ser o tema de sua exposição de verão. Na edição passada, a África foi o continente escolhido. Países como Japão e Cuba também já tiveram suas temporadas. Este ano é a vez do Brasil ocupar o espaço expositivo do pavilhão. É o que conta Jacopo Crivelli Visconti, curador da mostra Brasile: Il coltello nella carne (Brasil: Navalha na Carne) ao lado de Diego Sileo. A exposição teve abertura no dia 3 de julho e se estende até 9 de setembro.

Convidado pelo PAC para a curadoria, Jacopo não teve muitas dúvidas de que forma abordaria a arte brasileira em tempos atuais: “No meu ponto de vista, se quisermos falar da arte brasileira hoje em dia, não tem como não partir de uma discussão sobre as questões políticas e sociais”. Apesar disso, confessa, estava um pouco cansado da literalidade das exposições que são expressamente políticas: “Muitas vezes [essas exposições] forçam uma leitura rasa dos trabalhos, como se o trabalho de arte, quando lidam com questões políticas ou sociais, se resumissem apenas àquilo”.

O desafio para ele foi justapor, em vários momentos, trabalhos que têm conotações muito claras a trabalhos que não têm ou não sugerem esse tipo de leitura, pelo menos à primeira vista. “Através dessa justaposição, o público é levado a ver alguns trabalhos que teoricamente são apenas esculturas ou pinturas abstratas pelas conotações e interpretações que elas podem ter como obras que refletem um contexto carregado socialmente e politicamente. E, por outro lado, ler obras muito políticas – ou que refletem isso de forma mais clara por terem sido estudadas com esta finalidade – como obras mais poéticas”, conta Jacopo.

Desta forma, foram reunidos trinta artistas brasileiros (ou em atividade no Brasil) de diversas gerações e com trabalhos em várias linguagens e formatos para que integrassem a mostra. São eles: Ícaro Lira, Cinthia Marcelle, Ana Mazzei, Letícia Parente, Regina Parra, Vijai Patchineelam, Berna Reale, Celso Renato, Mauro Restiffe, Luiz Roque, Daniel Steegmann Mangrané, Tunga, Carlos Zilio, Maria Thereza Alves, Clara Ianni, Francesco João, André Komatsu, Runo Lagomarsino, Leonilson, Sofia Borges, Paloma Bosquê, Jonathas de Andrade, Iole de Freitas, Daniel de Paula, Deyson Gilbert, Fernanda Gomes, Ivan Grilo, Carmela Gross, Tamar Guimarães e Maurício Ianês.

 

Um dos momentos em que Jacopo considera que esse contraste entre o que é mais explícito e o que é mais abstrato aparece é no espaço onde está uma instalação de Fernanda Gomes (Sem Título/Casetta, 2016) e, ao lado dela, uma instalação de Ícaro Lira (Campo Geral, 2015). “De alguma forma, os dois trabalhos são próximos, porque usam materiais muito simples. Mas se for feita uma leitura rasa, o trabalho do Ícaro é um trabalho didático e político. E o trabalho da Fernanda seria um trabalho totalmente abstrato em questão de estrutura”, pontua o curador. Ele acredita, porém, que essa colocação dos trabalhos junto a pinturas de Celso Renato que também estão dispostas ali leva a fazer leituras que geralmente não são feitas: “São nessas fricções desses trabalhos que está a parte mais interessante da exposição”.

O período das obras se expande dos anos 70 até obras de 2018, inclusive algumas estão sendo comissionadas pelo próprio PAC. É o caso da instalação Somos, de André Komatsu, artista da Galeria Vermelho que representou o Brasil na 56ª Bienal de Veneza. Feita com cimento em pó, sacos de cimento usados e ferro. Segundo o artista, o trabalho surge a partir de observações suas das fotografias de Marcel Gautherot na construção de Brasília e do contexto dos vilarejos em que viviam os candangos, obreiros que trabalharam na construção da capital.

“Uma dessas cidades/vilarejos surgiu a partir dos restos de material da construção de Brasília. Ela foi denominada como Sacolândia, porque as casas eram feitas com uma estrutura meio mambembe, de sarrafos/restos de madeira. As paredes eram feitas do acúmulo de sacos de cimento”, conta Komatsu. Gautherot quis publicar um livro com fotografias sobre esses vilarejos, mas foi boicotado pelo governo: “Quando eu soube dessa história, comecei a desenvolver esse projeto pra cá, porque a exposição tem, de certa forma, a intenção de trazer um caráter um pouco histórico e político”.

O contraste desenvolvimentista da cidade construída com os vilarejos em que viviam os construtores dela voltou a atenção do artista para a relação de desigualdade existente ali. Para André, se for pensado um ponto de vista menos idealista e utópico, ainda se vive em uma estrutura colonial: “Nós vivemos uma herança escravocrata. De certa forma, essa utopia [desenvolvimentista] torna-se uma mentira”. Interessado pelas questões políticas e sociais, o artista aponta que os trabalhos na exposição não são literais nesse sentido, como já pontuado anteriormente por Jacopo. “Acho que, de fato, é algo que a arte permite. Ela não precisa ser literal”.

 

Lucas Dupin e suas crônicas sobre o chão

Lucas Dupin, Sem título, Série 7 performances para a Pça. do Patriarca, 2018. FOTO: Alessandra Haro

Um homem atrai os pombos da Praça do Patriarca jogando comida para eles. Deixa que se aproximem. Quando se forma um bom grupo de aves em volta dele, solta uma bombinha para dispersá-los. Esse roteiro é o que conduz um vídeo-performance sem título que é exibido na exposição Rés do Chão, de Lucas Dupin, na galeria Lume até 28/7.

“A mão que afaga é a mesma que apedreja”, o artista usa verso icônico de Augusto dos Anjos para resumir a ideia por trás da performance citada. Ela é uma das sete que ele preparou para executar na Praça do Patriarca, em São Paulo. Natural de Belo Horizonte, o artista já perambulou bastante pelo Brasil e pelo mundo para estudar arte e participar de residências. Dupin foi vencedor do 2º Prêmio Energias da Arte, dado pelos institutos Tomie Ohtake e EDP. Participou de residências no Canadá, no Reino Unido e mais recentemente na FAAP, em São Paulo.

Os trabalhos apresentados na exposição na Lume são resultado de vários processos de Lucas ao longo dos anos. Apesar de terem contextos que remetem ao tema urbano, não foram pensados em um contexto grupal para a exposição. “Não tinha a intenção de fazer uma retrospectiva, tampouco de pegar um tema”, comenta e continua: “Depois pensei e vi que tinha tudo a ver como chão, com esse olhar para baixo”, diz.

Lucas Dupin, Jardins Suspensos, 2015-2018

Lucas também afirma que gosta de ouvir o que suas obras dizem: “Eu não faço nenhum projeto a partir de uma premissa, é sempre a partir de um processo de diálogo, de escuta. Por isso, tem trabalhos de inúmeras linguagens, inúmeros formatos e inúmeros assuntos”. Para ele, é uma dificuldade no mundo de hoje, onde as coisas têm que encaixar de forma muito fácil.

Acabou vendo, então, a intersecção entre os trabalhos que tem anos de distância a partir da execução e caiu em um texto de Antônio Cândido. Em A vida ao rés do chão, o sociólogo e crítico literário que completaria 100 anos em 2018, comenta a duração do gênero crônica, que estaria sempre “ao rés do chão”, por ser transitória e tratar de temas comuns.

Assim, Dupin chegou ao título da mostra e declara o quão próximo de uma crônica sua exposição e todo o seu trabalho de pesquisa são: “Me interessa justamente tomar aquilo que é o mais banal e prosaico possível, deslocar e lançar um outro olhar. Gosto de levar as coisas para um outra lugar”.

Desenhos de estalinhos estourados no chão e mesmo fotografias de elásticos de jornais lançados na rua são algumas dessas coisas simples que Lucas coloca em outra perspectiva. Na obra mais falada da exposição, Jardins Suspensos, ele cultiva entre os vãos das pedras portuguesas pendentes plantinhas intrusivas que retirou da calçada em frente à galeria.

“Apesar de ser Rés do Chão, de ter essa proposta de olhar para baixo, os trabalhos têm a dimensão do tempo, da permanência”, diz. Isso porque o artista está sempre buscando a marca do tempo nos objetos que usa para seus trabalhos, seja nos restos de calçadas de pedras portuguesas, populares no século 19, ou na duração do processo de feitura da obra, como pintar bituca por bituca de cigarro em aquarela. É desta forma que o artista mostra que o cotidiano banal ainda importa para a arte.

Agenda: confira os destaques da semana 21 a 27 de julho

Bente Olesen Nystrom, do livro Hr. Alting. Gyldendal. Copenhagem, 2006

ABERTURAS

Bente Olesen Nystrom, do livro Hr. Alting. Gyldendal. Copenhagem, 2006

A Ilustração Como Porta Para o Mundo, coletiva no Sesc Bom Retiro, até 14/10

Em parceria com o Instituto Emília, o Sesc traz ao Brasil uma mostra que seleciona um panorama de 50 anos mostra de ilustradores realizada na Feira do Livro Infantil e Juvenil de Bolonha. Apesar de trazer artistas extremamente conhecidos no mercado da ilustração mundial, muitos não são conhecidos do público brasileiro em geral porque nunca foram traduzidos no Brasil. Nomes como Chiara Carrer, Tony Ross e Jean-Louis Besson são alguns dos que tem obras expostas na mostra.


Mundano, ‘Luta rupestre’, 2018

Mundano: Vozes Mundanas, individual na Emmathomas, abertura em 24/7.

Com curadoria de Ricardo Resende, Mundano apresenta 40 obras de diferentes linguagens para falar dos problemas que cercam a sociedade atual. Nas palavras do curador: “O grande desafio dessa mostra é manter ou permanecer com as veias de artivista, integradas e ativadas no espaço comercial de arte. Ver um artista ainda disposto a manifestar-se, a preocupar-se com o outro e com o coletivo nas paredes de uma galeria, é, de fato, um alento quando se observa o mundo em que prevalece o individualismo, a banalidade e a competição nas relações humanas”.


Neide Sá, Reflexível, 1977

Neide Sá: Estrutura poética, ruptura e resistência, individual na Galeria Superfície, abertura em 24/7

Uma das artistas de mais personalidade no Brasil, Neide Sá é a única mulher fundadora do movimento Poema Processo, dado na década de 60. Para sua primeira individual na Superfície, serão apresentados fotogramas, filme, colagem e instalações. A artista também estará presente na exposição Radical Women, que abre em agosto na Pinacoteca de São Paulo.


Ana Maria Tavares, Barcelona (Antigodlin), 2018.

Ana Maria Tavares: Rotações Infinitas, individual na Galeria Vermelho, até 18/8

O conjunto de trabalhos apresentados em Rotações Infinitas partem de uma vontade recorrente na produção de Tavares: apontar para o fato de que apesar dos enormes esforços em direção a um certo purismo programático no campo da arquitetura modernista, essa nunca conseguiu de fato eliminar o ornamento.


Maxwell Alexandre, Presente, 2017

Maxwell Alexandre: O Batismo de Maxwell Alexandre, individual n’A Gentil Carioca  no Rio de Janeiro, abertura em 21/7

Para a sua primeira exposição individual, o artista apresentará obras inéditas, concebidas especialmente para a exposição, que conta com texto crítico de Fernando Cocchiarale. Em peregrinação, o artista e os membros do coletivo A Noiva – Igreja do Reino da Arte, caminharão com as obras do artista até a galeria, partindo do ateliê de Maxwell na Rocinha.


Antonio Canonico, Sem título, 2018

Alexandre Canonico: Como vão as coisas, individual na Silvia Cintra + Box 4 no Rio de Janeiro, abertura em 21/7

A exposição é a primeira individual do artista paulistano Alexandre Canonico no Rio de Janeiro. O título escolhido reflete exatamente a ideia que permeia todos os trabalhos da mostra e sua pesquisa artística, que é como um material se relaciona em relação a outro no espaço.


CONVERSA

 

Patricia Leite, Gruta, 2014

Mínimo, múltiplo, comum, conversa no auditório da Pina Estação, em 21/7

O curador José Augusto Ribeiro bate papo com as artistas Marina Rheingantz e Patricia Leite sobre a exposição Mínimo, múltiplo, comum. A mostra fica em cartaz até 17 de setembro e apresenta trabalhos caracterizados por figurações simples, planas e sintéticas, por vezes beirando o limite da abstração. Essas imagens reproduzem, no geral, cenas de solidão – pelo isolamento de seres e objetos ou pelos espaços vazios, sem presença humana.

A ilustração como porta para o mundo: alimentando imaginários

A Feira do Livro Infantil e Juvenil de Bolonha é considerada o evento mais importante do setor no mundo inteiro. Ela funciona como farol no mercado, atraindo profissionais de várias áreas que trabalham com o segmento de alguma forma, sejam eles editores, autores, ilustradores, etc.
 
Em parceria com o Instituto Emília, o Sesc traz ao Brasil uma mostra que seleciona um panorama de 50 anos mostra de ilustradores realizada na feira. ‘A Ilustração como porta para o mundo’ está em cartaz no Sesc Bom Retiro até 14 de outubro e, além de reunir artistas internacionais premiados, traz cinco artistas brasileiros que se destacam na ilustração contemporânea. “Acho que é uma oportunidade muito especial, não só para ilustradores, mas para todos aqueles que trabalham com o livro ilustrado”, diz Dolores Prades.
Apesar de trazer artistas extremamente conhecidos no mercado da ilustração mundial, muitos não são conhecidos do público brasileiro em geral porque nunca foram traduzidos no Brasil. Nomes como Chiara Carrer, Tony Ross e Jean-Louis Besson são alguns dos que tem obras expostas na mostra.
A curadoria internacional é de Paola Vassali. Já Dolores Prades, à frente do Instituto Emília, tornou-se a curadora nacional da exposição: “Eu achei que era fundamental trazer alguma representação da ilustração brasileira”, comenta.
Apesar do recorte da ilustração em livros infantis e juvenis, a exposição cabe para todas as idades, despertando a curiosidade dos mais jovens e a nostalgia dos mais velhos.

A Ilustração como Porta para o Mundo

Visitação gratiuta

Até 14 de outubro de 2018
Ter a sex: das 09h00 às 21h00
Sab: das 10h00 às 21h00
Dom: das 10h00 às 18h00

SESC Bom Retiro
Alameda Nothmann, 185 – Bom Retiro, São Paulo – SP, 01216-000
Tel: 11 3332 3600

 

Os encantos da Fábrica de Arte Marcos Amaro, inaugurada em Itú

Definitivamente inaugurada no último mês na cidade de Itu, interior de São Paulo, a Fábrica de Arte Marcos Amaro (FAMA) se mostra um importante espaço para o desenvolvimento da arte no País.

Para a inauguração da Sala Almeida Júnior, na FAMA, foi aberta a exposição ‘O tridimensional na coleção Marcos Amaro: frente, fundo, em cima, embaixo, lados. Volume, forma e cor’. Idealizada como uma mostra permanente, tem curadoria de Ricardo Resende e reúne obras de alguns dos mais importantes artistas nacionais, como Adriana Varejão, Tunga, Leda Catunda e Nelson Leirner.

Além disso e das obras espalhadas pelos canteiros do espaço, a artista Edith Derdyk, vencedora do primeiro Edital de Ocupação, tem exposição na Sala Rolim Amaro, Arranque. No projeto, a artista mostra resultado de investigações da história de seus antepassados que sofreram no holocausto.

Salas para residências, oficinas, workshops e outras ações também se fazem presentes no local, mostrando seu caráter multidisciplinar. A FAMA entra no polo cultural do estado de São Paulo e já integrará a 25ª edição do Festival de Artes de Itu.

 


Contato:

+55 11 2715 4608
contato@fmarte.org

Rua Padre Bartolomeu Tadei, 09
Vila Sao Francisco, Itu – SP – 13300-190

Agenda: confira os destaques da semana de 14 a 20 de julho

Arjan Martins, 'O triângulo do Atlântico'. FOTO: Cortesia do artista e da Galeria A Gentil Carioca.

ÚLTIMOS DIAS

Arjan Martins, ‘O triângulo do Atlântico’. FOTO: Cortesia do artista e da Galeria A Gentil Carioca.

Ex-Africa, coletiva no CCBB de São Paulo, até 16/7

Exposição que traz ao CCBB pela primeira vez um grande e essencial panorama da arte contemporânea do continente e da identidade da África moderna, marcada por uma diversidade de encontros culturais e interações, por processos de intercâmbio e aculturações, através da recente produção de 18 artistas, vindos de 8 países africanos. A eles se juntam também dois artistas afro-brasileiros, Arjan Martins e Dalton Paula.


ABERTURAS

Cartazes com obras do designer Aleksandr Mikhailovich Rodchenko

VKHUTEMAS: O futuro em construção, coletiva no Sesc Pompeia, até 30/09

Entre os projetos recriados para a exposição, estão obras de artistas como Ródtchenko, Tátlin, Kandinsky, Maliévitch, El Lissítzki, Zaliésskaia e Komaróva. “Oferecemos ao público uma seleção sintética da produção de grandes mestres, com destaque para as estruturas físicas e tridimensionais de gesso Arkhitekton, criadas por Kazimír Maliévitch, o projeto A Cidade Flutuante, do arquiteto Gueórgui Krútikov, as peças de roupas desenvolvidas por Liubov Popova e Várvara Stepánova”, cita a pesquisadora de cultura russa e curadora da exposição, Neide Jallageas.


Registro da obra Alfaiataria realizada no Bonnefantenmuseum, em Maastricht, Holanda, 2014-2015. FOTO: Cortesia da artista

Laura Lima: Alfaiataria, individual na Pinacoteca de SP, até 8/10

Ao instalar um espaço de trabalho com pessoas reais no centro da Pinacoteca, Laura Lima retira a ênfase dada aos objetos artísticos no espaço do museu para focar-se em acontecimentos. Segundo a curadora Fernanda Pitta “Lima recusa-se a chamar seus trabalhos de performances. Para a artista, não se trata de sublinhar os sujeitos ou a subjetividade de suas ações, mas entender os participantes (que ela chama de viventes) também como matéria da obra de arte, ocupando o espaço do mesmo modo que os objetos, o mobiliário e a própria arquitetura”.


Durval Pereira. ‘Casariozero’, s/d

Durval Pereira: Impressões Brasileiras (100 anos), individual no Memorial da América Latina, abertura em 18/7.

Com curadoria do pesquisador e arquiteto Lut Cerqueira, a mostra chega a São Paulo depois de ter passado por espaços culturais de Recife e Ouro Preto. A exposição reúne cerca de 220 trabalhos do artista, marcando diversas fases e temáticas de suas pinturas. Os visitantes poderão ainda conhecer um pouco mais de sua trajetória em tours virtuais, concebidos em realidade 3D, entre uma tela e outra.


John Akomfrah, ‘Tropikos’, 2016. FOTO: Smoking Dogs Films; Courtesy Lisson Gallery

John Afomfrah: Tropikos, sala de vídeo do MASP, até 12/8

Filmado em Plymouth, no sudoeste da Inglaterra, local central para o comércio e tráfico de africanos escravizados durante o período colonial britânico, Tropikos é “uma tetralogia sobre a água e os sonhos”, conforme apresentação no início do vídeo. É uma história contada em quatro atos, em que as fronteiras entre o delírio e a realidade são borradas. Akomfrah alcança esse efeito através de procedimentos formais e estéticos que conferem um ritmo perturbador ao vídeo.


Helena Trindade, ‘Poema a Derrida’, s/d

As instalações, compostas por esculturas, vídeos, fotografias, objetos e performance no dia da abertura, reúnem cerca de 40 trabalhos, a maioria de 2018. Em cada instalação há elementos que remetem às demais, reafirmando o interesse da artista em trazer ao seu vocabulário plástico a inesgotável articulação da linguagem escrita.


Lilian Zaremba, ‘Memoânfora’, 2018

O Círculo, coletiva na Galeria Millan, até 11/8

A mostra apresenta uma seleção atual de trabalhos voltados à arte sonora e à rádioarte, produzidos por quatro brasileiros que são referências nessas áreas: Julio de Paula (SP), Marco Scarassatti (MG), Renata Roman (SP) e a Lilian Zaremba (RJ).


 

Ismael Monticelli, instalação composta por escritos a giz sobre parede, 10 cartazes impressos sobre papel e 7 maquetes construídas isopor

Ismael Monticelli: Exercício de Futurologia, instalação no Paço das Artes em SP, abertura em 17/7

Ismael expõe o resultado de uma pesquisa realizada a partir da situação do Paço das Artes que, desde sua inauguração há quase cinqüenta anos, não conta, oficialmente, com uma sede própria. “Nômade, que parece estar sempre à deriva e a procura de um lugar para aportar”, refere-se o artista à instituição que já ocupou diversos endereços como a Avenida Paulista, o edifício da Pinacoteca, a Avenida Europa e a Cidade Universitária da USP

Um país que nem nota sua destruição

"(...) será tudo isso feito de propósito? Pode tanta destruição ser fruto apenas do acaso?", pergunta Janine. FOTO: Flickr/CC

Um dia destes, passei em frente ao Museu do Ipiranga – que fica no bem-chamado Parque da Independência, ou seja, ali onde dom Pedro rompeu nossa subordinação colonial a Portugal – e vi um aviso: “Área com incidência de febre amarela”, mais ou menos isso.

Fiquei chocado: no lugar exato onde nasceu o Brasil, o Brasil independente, está o aviso de que voltou uma doença antiga, uma doença da pobreza, uma doença que tínhamos quase vencido, mas retornou com bastante força.

Não, caro leitor, ou raro leitor como diz o Juca Kfouri: não vou fazer mais um ataque ao governo Temer, que os merece todos, por sinal. Meu problema aqui não é esse governo, somos nós, um país que não dá a menor bola aos símbolos.

E não falo dos símbolos nacionais, bandeira, hino e outros menos cotados, como o selo da República. Falo de símbolos bem mais fortes, como o lugar em que nascemos, quase nossa maternidade como país.

A poucas centenas de metros onde está o Parque da Independência, convertido em criadouro de mosquitos quase assassinos, passa o córrego do Ipiranga, aquele mesmo das margens plácidas, que ouviram um brado retumbante. Bonito, não é? Não apenas um brado, mas um que ecoou, que ao longe e pelo seu som forte deu luz a um País.

Pois o córrego hoje exala um cheiro ruim. Durante muito tempo, alagava a região; agora, canalizado, só fede, algumas ou muitas vezes ao ano.

Não é muito descaso? A primeira linha de nosso hino, a terceira palavra dela (“Ouviram do Ipiranga…”) assim desrespeitada, descuidada? É esse o amor que se tem pelo nosso nascimento coletivo, nosso nascimento enquanto coletividade? Um córrego em parte tapado, em parte esgoto?

***

Vou para o Rio. A cidade maravilhosa foi fundada em 20 de janeiro de 1567. Onde? No Morro do Castelo. Procure no Waze, peça ao Uber, olhe nos mapas do metrô. Não existe. Foi arrasado, há pouco menos de um século. Na verdade, foi destruído exatamente em 1922, o ano do centenário da Independência. Um século de nosso nascimento como nação independente, de nossa maioridade, teve entre outros preços o de matar o berço da então capital do Brasil.

Não parece um sacrifício terrível, desse que nem mesmo os astecas fariam? Para o Brasil festejar sua independência, ele destrói o lugar em que nasceu sua capital. Psicanalistas, interpretem. A maioridade destrói o nascimento, é isso? Mas talvez nem precisemos – muito – de vocês. A interpretação é (quase) óbvia, a explicação salta aos olhos.

Sim, destruímos nossos principais lugares de memória. Volto a São Paulo. Vou ao Pátio do Colégio, que é nosso Morro do Castelo. O Pátio é o lugar, bem no centro da cidade, a um passo da Praça da Sé, em que se fundou São Paulo de Piratininga, num planalto com muitas águas, entre elas, claro, as então nada poluídas do Ipiranga. O planalto se chamava Inhambussu (aquele que se vê ao longe).

Lá está, inteiro, o Colégio dos Jesuítas. Sei que essa ordem religiosa foi um tanto controversa, mas afinal é um bom augúrio criar uma cidade a partir de uma escola. Eu, como educador, como ex-ministro da Educação, só posso gostar. Também penso que construí-la num lugar do qual se enxerga ao longe é maravilhoso, a melhor metáfora ou mesmo definição para educação: ela nos faz ver ao longe.

Blz, como hoje se escreve: beleza.

Mas olho o Colégio. Ele não tem nada do original. Esse era de pau a pique e depois de taipa, mais brasileiro impossível. O que aconteceu? O edifício foi ruindo, descuidado, até que decidiram reconstruí-lo, faz uns sessenta anos, num mix de entusiasmo e de lentidão, de modernidade (Mário de Andrade preservando o patrimônio) e tradicionalismo (a TFP o festejando).

Também aqui, choca o descuido com o nascimento da que hoje é a maior cidade brasileira.

Tanto descaso faz perguntar, inevitavelmente: será tudo isso feito de propósito? Pode tanta destruição ser fruto apenas do acaso? Ser, perdoem a rima involuntária, apenas descaso? Ou temos, alguém tem, um projeto de destruição do que somos?

***

Ato falho, poderia dizer um leitor de Freud, mas não: são destruições escancaradas. O ato falho é coisa pequena, uma fala ou uma ação erradas, mas pequeninhas, que porém indicam uma verdade sobre algo maior. Por exemplo, o personagem de Casa de Papel que, ao declarar seu amor pela esposa, chama-a pelo nome da amante (o mais trivial, o mais banal dos atos falhos). Mas aqui o que temos não é essa autodenúncia involuntária, com o inconsciente vencendo a razão, o id desmentindo o ego, que aparece por exemplo em Freud, mas algo que recorda mais a Carta Furtada, de Edgar Allan Poe. (Curiosamente, é um conto analisado por Lacan, mas o que diremos aqui não tem nada a ver com esse autor).

O tema do conto é simples: um documento foi subtraído de um personagem da realeza, e escondido de maneira que ninguém o encontra. Como? Simplesmente, ficou exposto na parede, à vista de todos, com apenas alguns toques que o transformam de algo nobre em coisa vulgar. Uma das morais do conto: o melhor esconderijo é o que está mais à vista. O que menos observaremos é o mais visível, o evidente. A melhor forma de destruir símbolos, sem ninguém os perceber, é destruindo-as à vista de todo o mundo. E o melhor modo de acabar com o berço do Rio não é fazê-lo a pretexto de celebrar os cem anos da independência brasileira?

***

Terminando: alguns anos atrás, de volta a Araçatuba, no noroeste paulista, decidi procurar a maternidade Santa Tresenhinha, onde nasci. E descobri que ela foi demolida. Senti um vazio. Não tinha sido reformada. Apenas, demolida. Fico pensando: como deveríamos nos sentir, quando os lugares de nosso nascimento, de nossa maioridade, são destruídos ou desmerecidos? Por que o fazem? Por que nem notamos que o fazem? Por que aceitamos? Mas aceitamos tanta coisa. O Brasil parece viciado em aceitar o inaceitável. Tanto que a destruição pode ser acintosa, não precisa se mascarar.

Ntando Cele: “Não estou aqui para ser negra”

“Ntando tinha 10 anos quando Nelson Mandela saiu da prisão, em 1990, e assumiu a liderança política da África do Sul. Ela foi da primeira geração de crianças negras sul-africanas a entrar na escola dos brancos”. Foto- Divulgação
“Ntando tinha 10 anos quando Nelson Mandela saiu da prisão, em 1990, e assumiu a liderança política da África do Sul. Ela foi da primeira geração de crianças negras sul-africanas a entrar na escola dos brancos”. Foto- Divulgação

*Por Ivan Martins

Ntando Cele tem uma risada deliciosa. Ela ri alto, frequentemente, e seus olhos, no instante em que ri, parecem expressar um comentário irônico sobre a situação a seu redor. Ntando é sul-africana e, sabendo disso, eu, que nunca pus os pés na África, logo comecei a pensar que ela ri “com a alegria dos africanos”. Assim, quase sem perceber, entrei no território conflagrado em que a dramaturga, atriz, cantora e dançarina de 36 anos recolhe os elementos do seu trabalho – o território dos estereótipos raciais.

Ntando esteve em São Paulo em março de 2017, como uma das convidadas da Mostra Internacional de Teatro. Ela fez quatro apresentações. Por obra da propaganda espontânea, a fila para conseguir os ingressos gratuitos do Itaú Cultural cresceu exponencialmente a cada noite. Quem conseguiu entrar viu um espetáculo que mistura comédia, música e experimentação visual. Black off (literalmente, negro fora, mas que pode ser lido também como alusão à expressão back off, que significa recuar, ficar longe) expõe uma versatilidade que poucos artistas seriam capazes de reproduzir no palco. Isso tudo embalando um conteúdo crítico raramente visto no Brasil.

A montagem que Ntando apresentou na Mostra se divide em três partes. Na primeira, pintada com tinta branca, e usando peruca loira e lentes azuis, ela encarna Bianca White, uma branca sul-africana com sotaque de rica que se dispõe a ajudar os negros a serem mais felizes, encontrando a sua brancura interior. “Feche os olhos”, ela diz. “Pense nos seus ossos, nos seus dentes, sinta a sensação deliciosa da brancura. Não é maravilhoso”? O riso emerge aos borbotões da audiência incomodada. Sim, porque, além de fazer piadas, Ntando provoca diretamente a plateia de “morenos”, forçando as pessoas a confrontar os seus próprios estereótipos, quando não a sua identidade. A personagem Bianca White representa uma crítica visceral aos racistas sul-africanos, mas, ao mesmo tempo, é ela mesma um deplorável estereótipo. A faca de Ntando corta dos dois lados.

“O meu propósito último como artista é ser vista de uma forma diferente daquela que me veem”, diz ela, dois dias depois da apresentação, enquanto conversa comigo no banco de trás de um táxi. “Quero ser percebida como um ser humano de múltiplas camadas. Eu posso ser um estereótipo, claro, mas eu sou muito mais do que isso. As ideias sobre quem eu sou, sobre o que cada um de nós é, frequentemente são falsas. Mas às vezes são verdadeiras. Há uma luta constante entre estereótipos e realidade. Eu me interesso por essa contradição. Eu sou essa contradição”.

O falecido James Baldwin, talvez o escritor negro mais influente da história americana, protagonista do documentário Eu não sou seu negro, escreveu algo semelhante. Ele dizia que o problema dos estereótipos raciais é que eles capturam parte da verdade sobre as pessoas, mas apenas uma parte, que não configura um ser humano completo. Ntando leu Baldwin. Ela o cita num texto-depoimento chamado Strange, publicado no blog dela. É uma referência ao ensaio mais famoso de Baldwin – Strange in the Village – publicado em 1953. Nele, o escritor conta como foi viver numa vila Suíça de 300 habitantes que nunca haviam visto um homem negro. Sua conclusão é que os moradores, apesar de meses de convívio cordial, nunca conseguiram percebê-lo como um ser humano de verdade. Ntando vive na Suíça, casada com um homem branco suíço, pai do seu filho de dois anos. Os três visitaram o mesmo vilarejo onde Baldwin viveu, 60 anos depois, e Ntando conta uma experiência que sugere que o mundo não mudou o suficiente. Ela tem uma crise de choro na piscina porque as pessoas não param de olhar para o seu corpo, acintosamente, como se ela fosse um objeto, uma atração, não uma pessoa. Baldwin entenderia perfeitamente.

Na segunda parte da peça, vestindo shorts e uma camiseta, descalça, ela desfila no palco como uma “africana típica”, levando água na cabeça diante de uma paisagem ensolarada da savana. É outro estereótipo, outra redução simplista e falsa, que ela combate, primeiro, com uma maravilhosa sequência de expressões faciais e caretas, como se montasse máscaras de si mesma diante do público. Depois, Ntando canta em xosa – idioma falado por sete milhões de pessoas na África do Sul – uma canção pungente que parece dizer: sim, eu sou africana, uma pessoa complexa como você, moderna, não apenas o complemento visual a um cenário ocupado por leões, girafas e antílopes.

Ntando tinha 10 anos quando Nelson Mandela saiu da prisão, em 1990, e assumiu a liderança política da África do Sul. Ela foi da primeira geração de crianças negras sul-africanas a entrar na escola dos brancos. Eram quatro ou cinco em cada turma, e ela descreve a situação como “difícil”. “As crianças brancas estavam acostumadas a ver os negros apenas como serviçais domésticos, não como colegas. Essa situação perdura até hoje”, ela diz. Classe média, filha de pai policial e mãe professora, ela é a mais velha de quatro irmãos. A responsabilidade que isso carrega está explícita no significado do seu nome: God’s will, a vontade de deus. “Imagine o peso desse nome sobre uma criança”, diz ela, antes de rir gostosamente. Ntando fez colégio, depois estudou arte dramática na faculdade. Aos 21 anos, depois de atuar em algumas peças e criar espetáculos solitários de arte e dança, estava “morta de tédio”. Então, descobriu o teatro de vanguarda europeu e foi atrás dele. Na Holanda primeiro, onde estudou, depois na Suíça, onde se fixou e casou. Na África do Sul, diz que vivia “sob exclusão, abaixo dos padrões de uma pessoa normal”. Ela acredita que a situação melhorou pouco para os negros depois de Mandela, embora ninguém goste de admitir isso. O país do arco-íris racial é uma peça de propaganda. Na vida real, a maioria negra é pobre e discriminada. A discussão, o avanço em direção ao que ela chama de “humanidade”, é dolorosamente lento: “Eu me sento num restaurante na Cidade do Cabo e ainda sou a única cliente negra. Os outros negros estão servindo, varrendo ou lavando os pratos. Vocês sabem como é isso no Brasil”.

Na Europa, onde chegou em busca de conhecimento e liberdade pessoal, Ntando descobriu que estava confinada a um espaço de “criatura primitiva”. “Como mulher africana, as pessoas assumem que não estudei, que não sei o que estou fazendo e que, provavelmente, sou uma prostituta. Por isso estou lá, não é? Eu simplesmente não existo. As pessoas cumprimentam quem está ao meu lado e não me dirigem a palavra. É chocante, mas real”. Como ainda não fala alemão – idioma de Berna, a cidade onde mora – ela não tem a desenvoltura necessária para lidar à altura com esse tipo de situação. “É a mesma experiência de exclusão que eu tinha na África do Sul, mas agora de outra forma”, diz ela.

E o Brasil? Ela sorri, como quem pede para não responder a essa pergunta, mas eu insisto, e digo a ela que seja franca. E ela é. “O fato de que a maioria das pessoas aqui seja mestiça me parece algo lindo. Acho as pessoas muito bonitas”, diz ela, com um sorriso. “Ao mesmo tempo, o fato de que vocês ainda estejam preocupados com quem é branco ou preto, ou quem é branco o suficiente ou preto o suficiente, me parece bizarro”, continua. “Assim que eu cheguei ao Brasil percebi que não há brancos aqui. A brancura é só um conceito. Claro que existem pessoas brancas, mas, como a vasta maioria é mestiça, a abordagem do assunto deveria ser outra. O fato de que a discussão, aqui no Brasil, continue sendo a respeito de quem é mais branco, me parece muito estranho, e muito frustrante”.

Parte importante do que Ntando sabe sobre o Brasil – o N do nome dela se pronuncia com a língua atrás da arcada superior dos dentes, como um nhhhhhh – ela aprendeu no contato com os alunos do workshop que conduziu durante duas manhãs, na Oficina Cultural Oswald de Andrade, no bairro do Bom Retiro. Eram cerca de 20 jovens, selecionados pela organização da Mostra de Teatro entre atores, professores e artistas de rua. Formavam um grupo heterogêneo, com todas as cores e caras paulistanas, mas com acentuada predominância de brasileiros mestiços, aqueles mais comuns na periferia da cidade do que no centro abastado. Com eles, conversando em inglês, com auxílio de uma tradutora, Ntando ouviu falar de racismo, sexismo, homofobia, descriminação e violência, e de como funciona a hierarquia social brasileira, baseada em gênero, cor e renda. Durante o workshop – do qual eu participei no segundo dia – ela usou seu próprio trabalho para sugerir aos jovens a possibilidade de fazer arte com sentimentos de exclusão e injustiça, mas sem se deixar tomar pela raiva. Insistiu, também, que é preciso encontrar uma forma de atrair a atenção das pessoas, de fazer com que elas parem, escutem e prestem atenção no que o artista está tentando contar. “Nosso desafio é transformar o invisível no visível, falar daquilo que não é falável”, disse a eles. “Temos de ser sedutores”.

Transformar o invisível no visível – e falar daquilo que não é falável – talvez resuma o que Ntando faz no palco. Na terceira parte do seu espetáculo, ela se transforma numa roqueira raivosa e sensual, que dança e canta vestindo um maiô de couro preto, arrastando com ela os olhares perplexos da plateia. A banda que a acompanha – três músicos suíços, guitarra, teclados e percussão – produz um barulho de fazer inveja às bandas do punk rock. As letras das canções, todas de Ntando, exploram o universo da raiva. “Eu estou aqui e eu sou negra/ Mas eu não estou aqui para ser negra”, diz um refrão. O que ele significa? “Ser negra está associado a um monte de coisas, e elas têm muito pouco a ver com a maneira como eu me vejo”, ela explica. “Eu não estou aqui para satisfazer as ideias alheias sobre quem eu sou e o que posso fazer. Ao encarnar a persona de uma mulher negra raivosa eu pareço familiar, mas não há mulheres negras no punk, e isso desafia o estereótipo”.

Ao ler esse tipo de coisa, alguém pode imaginar por trás das frases uma mulher dura e agressiva, mas Ntando é o inverso disso. Há muita gentileza nela, um sorriso que brota fácil e uma maneira calorosa e acessível de lidar com as pessoas. Durante o workshop, aconselhou os jovens mais de uma vez a que não se levassem tão a sério, que tentassem se divertir com o seu trabalho, que procurassem equilíbrio entre combatividade e paz interior. “Estou soando meio exotérica, né”? Ao final do trabalho, um a um, os alunos vieram se despedir com um abraço afetuoso, que ela retribuía sem hesitar. Comigo, assim que começamos a conversar, passou longos minutos contando das delícias do convívio com seu filho Valentin, e da dificuldade que é estar longe dele. “Agora eu não sou mais inteiramente absorvida pelo meu trabalho, pela arrrrte, e esse sentimento é muito bom: saber que há mais na minha vida do que eu mesma”, diz ela. Perguntei em seguida se ela era feminista e a resposta, inesperada, foi um “não”, qualificado. “Eu tento falar como mulher negra, numa sociedade racista, essa é a minha questão. O debate sobre feminismo, tal como eu vejo, só tem um lado, o das mulheres brancas”, diz ela. “Por causa desse ângulo, eu não digo nada no meu trabalho a respeito de feminismo. Talvez pareça contraditório, mas é assim que eu sinto no momento”.

Como os espectadores de Black off puderam perceber, há muito de contraditório e visceral no trabalho de Ntando Cele. Mas há nele, sobretudo, uma enorme vitalidade, uma força extraída das coisas mais essenciais e mais contemporâneas, que tem tudo a ver com o que acontece no Brasil. Ser mulher, ser negra, ser mãe. Ter nascido na África, viver na Europa, viajar o mundo. Conhecer a exclusão num país de maioria negra, sentir-se excluída na Europa como minoria, entrar em contato com a esquizofrenia morena do Brasil. É dessas contradições, e de um talento enorme, que se alimenta a arte dela. Uma arte complexa que, nas palavras de Bianca White, sua personagem racista, apenas as pessoas brancas e instruídas, “que não são boas de cama”, são capazes de fazer e entender. Ou não.

Confira mais fotos do workshop com Ntando na site do MITsp.

*reportagem publicada originalmente em abril de 2017