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Resolução do Conac tarifa obras de arte armazenadas em aeroportos pelo peso

Ministros Sérgio Sá Leitão (MinC) e Valter Casimiro (MTPA) discutiram regulamentação do conceito de atividade cívico-cultural. Foto: Clara Angeleas (Ascom/MinC) / Reprodução/ Divulgação

O Diário Oficial desta quarta (21/11) publicou uma resolução do Conac (Conselho de Aviação Civil) que promete descomplicar o cenário de cobrança de taxas aeroportuárias sobre obras de arte.

Os itens armazenados nos aeroportos internacionais, se tarifados pelo valor de mercado, podem custar milhares de reais. Sendo assim, a partir de hoje, a cobrança volta a ser feita pelo peso da obra.

A decisão estimula o fomento cultural no país. O ministro da Cultura, Sérgio Sá Leitão, em nota divulgada pelo Ministério da Cultura, enfatiza que a cobrança pelo valor de mercado das obras inviabilizaria a realização de exposições e concertos musicais com coleções vindas de fora – e sugere que a medida garante estabilidade jurídica.​

A taxa

A nota  demonstra que o impasse referente à alteração na cobrança de taxas de armazenagem para itens culturais foi iniciado no fim de 2017. Na ocasião, a tentativa de mudança colocou-se referente aos instrumentos da Orquestra Nacional do Conservatório de Toulouse, que apresentou-se no Teatro Cultura Artística, em São Paulo.

No início deste ano, parte dos aeroportos passaram a utilizar-se de uma reinterpretação do termo “cívico-cultural”, aplicado pela Anac em 1983. O Aeroporto Internacional de São Paulo, por exemplo, argumentou que a feira SP-Arte não era “patriótica.”

Reação da comunidade museológica e resolução do Conac

Obra de Leon Ferrari / Divulgação Nara Roesler

A comunidade museológica e de galeristas posicionou-se de forma contrária à medida e alegou que o aumento  de custos trazido pela medida prejudicaria o cenário cultural brasileiro. A exemplo disto, está a obra do argentino León Ferrari. Trazido pela galeria Nara Roesler para a SP-Arte, seu trabalho foi taxado em R$ 17 mil. Caso a taxação por peso tivesse sido respeitada, o valor seria de R$ 200.

De modo geral, a modalidade de cobrança elevou alguns valores em até mesmo mais de 900%. Durante o período, instituições como o Museu de Artes de São Paulo (MASP) e a Bienal de Arte de São Paulo recorreram à Justiça a fim de dar continuidade às suas exposições e evitar a cobrança de tarifas abusivas. A taxa sobre o valor das mercadorias poderia dificultar também feiras como SP-Arte, ArtRio, além do recebimento de obras estrangeiras por galerias nacionais.

A nova resolução é fruto dos empenhos conjunhtos do Ministério da Cultura e do Ministério dos Transportes.

 

Paulo Tavares – Memória da Terra

No seminário “Arte Além da Arte” (6 de setembro de 2018), Paulo Tavares, co-curador da Bienal de Arquitetura de Chicago de 2019 e professor da Universidade de Brasília, iniciou sua fala propondo uma pergunta: “Se a cidade e o território são direitos, pode ser a arquitetura concebida como uma forma de advocacia deste direito? E o que isso significa?”.

O arquiteto e curador apresentou o projeto Memória da Terra, relacionado ao processo de deslocamento forçado dos índios Xavante do Mato Grosso, no qual, justamente, a arquitetura – “o desenho, a modelagem, o mapeamento” – são utilizados como instrumento de advocacia de direitos.

“É preciso dizer que o processo de modernização do território brasileiro tem uma fundação intrinsicamente colonial”, disse ele. Tavares afirmou que o projeto de destruição ambiental vivido pelo Brasil no século 20, especialmente no período da ditadura militar, foi também um projeto arquitetônico de território. Ele discorreu sobre o que foi chamado de “processo de pacificação”, ou seja, a criação de postos indígenas que concentraram as populações ameríndias e, retirando-as de seus territórios originais, liberaram as terras para exploração.

Dada a dificuldade de mapear fisicamente o desaparecimento de populações indígenas, justamente pela falta de registros governamentais, o projeto Memória da Terra passou a investigar a remoção forçada dos povos Xavante de seus territórios a partir das imagens existentes. Com fotos feitas por jornalistas da época sobre a “conquista” das terras indígenas, Tavares e os outros integrantes do projeto passaram a fazer uma espécie de “arqueologia da imagem”, utilizando estratégias da arquitetura para reconstituir o mapa dessas aldeias desaparecidas.

Assim, relacionando o desenho das aldeias – sempre uma espécie de estrutura em arco – vistos nas fotos com imagens de satélites antigas recentemente tornadas públicas pelos EUA, os pesquisadores do projeto conseguiram mapear as aldeias. Também se utilizaram das marcas que se podem ver nos territórios, como assinaturas no chão, definidas pelo padrão botânico. “As árvores cresceram na mesma estrutura em arco em que eram desenhadas as aldeias. Assim, a história desse povo continua registrada na própria composição botânica da floresta.”

Esse desenho botânico, portanto, é fruto direto da arquitetura dessas aldeias, explicou Tavares. “São produtos das ruínas, mas são ruínas vivas. Podemos então entender árvores e plantas como monumentos históricos? Pode ser a floresta considerada um patrimônio urbano, arquitetônico? Pode ela ser vista como cultura, não natureza?”

Considerando a resposta positiva para estas questões, o projeto se desdobrou em um relatório que, junto com as outras provas colhidas pelo Ministério Público, servem como “material evidenciário” para uma petição que foi feita ao Iphan e a Unesco para que este solo seja considerado um patrimônio arquitetônico. O trabalho tem sido feito também em parceria com as populações indígenas da região, como mostrou Tavares ao longo de sua exposição.

LIMBO, a existência humana colocada em xeque

Limbo
Obra: Peccatorum suorum, 2001-2018 / Imagem Cacio Murilo / Divulgação

José Rufino constrói ao longo de sua vida um labirinto, vivido e ficcional, com enigmas que ecoam e constituem o tecido de um processo de produção permanente. Desde infância foi impulsionado pelos cenários de sua indignação: casa grande senzala, perseguição política aos pais, fome no campo, testemunha da destruição das relações humanas.

Limbo

Como um vídeowall, a exposição Limbo, em cartaz até domingo na Biblioteca Mário de Andrade, nos lembra em retrospectiva, o caminho trilhado por Rufino com trabalhos que se manifestam em circunstância atemporais. Sondagem/transformação é um binômio que se junta a outros interesses como passado, memória, morte, oprimido-opressor. Nos anos de 1980, período de intensa produção e proliferação de novas mídias, como libertação de vontades criativas reprimidas pela ditadura, Rufino trabalha as cartas do avô, poderoso senhor de engenho, escritas em um período de particular opressão. A visão retrospectiva do artista, no sentido de que a arte de uma época deve envolver, e não simplesmente gerar sucesso, tem conduzido seu percurso. Dentro dessa linha do tempo há rupturas, mas não contradições, mesmo quando expõe um desenho desenvolvido aos dez anos, cuja imagem imprecisa lembra o  teste de Rorschach, que anos mais tarde ele desenvolveria em várias séries.

A retrospectiva é uma versão evolutiva de uma arte que revela alguns princípios adotados por acaso, como a minimal art, com simplicidade formal e complexidade de conteúdo. Rufino trabalhou um acúmulo de escolhas e redescobertas de obras guardadas, esquecidas, algumas inconclusas na espreita para serem exibidas, em um contexto mais amplo. Entre dezenas delas há o que ele classifica de pré-obras ou proto-obras, além de desenhos,
maquetes, poesia concreta e visual e arte-postal. Limbo é feito de camadas de poesia, denúncia, e da atrofia de espaços de seres marginalizados, que abrange o período
de 1970 a 2018, além de obras recentes O impulso que conduz a retrospectiva vem de um
processo íntimo e complexo, dentro de uma poética que lida com vazios e asperezas, para alinhavar uma história que já foi exposta em cerca de duzentas mostras no Brasil e no Exterior. Em Rufino, o silêncio e a ausência se tornam presenças, como tem demonstrado também como curador da Usina de Arte, em plena zona da mata, no sul de Pernambuco.

Limbo
Imagem: José Rufino / Divulgação
Limbo
Imagem: José Rufino / Divulgação

Visitação: até 18 de novembro de 2018
Todos os dias, das 08h às 19h.
Local: Hall da Consolação, Saguão e Sala Oval
Rua da Consolação, 94
Entrada Gratuita

Alex Flemming, o artista viajante

Imagem: Divulgação / Alex Flemming, Sistema Uniplanetário, 2008

Alex Femming no MAM-Rio

A instalação de Flemming “A exposição Sistema Uniplanetário – In Memorian Galileu Galilei” foi exposta pela primeira vez em 2008, nas ruínas da Igreja St. Johannes Evangelist, em Berlim. Em ocasião dos 70 anos do MAM-Rio, ganha espaço ao lado de outras obras e artistas.

Uma seleção de trabalhos dos acervos do MAM, produzidas por meio de diferentes meios e suportes, com foco no panorama de transformações da pintura de paisagem à modernidade e os dias atuais, foi reavivado. Assim, com  curadoria Fernando Cocchiarale e Fernanda Lopes, Flemming recoloca-se em destaque.

*Por Diogo Mesquita, em novembro de 2009

A exposição Sistema Uniplanetário – In Memorian Galileu Galilei, do artista Alex Flemming, aconteceu em 2010 na Pinacoteca do Estado, em São Paulo, dentro do Projeto Octágono Arte Contemporânea.

Flemming propunha a inversão da teoria do heliocentrismo. A tese de que a Terra gira em torno do sol, comprovada por Galileu Galilei, ganha destaque em sua obra. Com curadoria de Ivo Mesquita, 50 globos escolares rodavam em órbita sobre 50 vitrolas.

“Minha proposta é retratar uma visão de mundo ideal – e até certo ponto utópica – na qual todos os indivíduos deveriam viver em órbitas diferentes, mesmo que em velocidades e ritmos diversos, mas harmônicas entre si”, disse na ocasião o artista brasileiro, radicado na Alemanha desde os anos 1990.

O artista viajante

As andanças, típicas do artista de sucesso na contemporaneidade, quase sempre levam o andarilho a dedicar um olhar descuidado, superficial ou anestesiado diante das realidades encontradas. Não é o caso de Alex Flemming, que tem o hábito de levar consigo um diário de viagem, no qual anota reflexões sobre os distintos aspectos dos lugares visitados e seus habitantes. Neles, o artista demonstra curiosidade, mas também sua adesão ou repúdio frente às situações vividas. Tudo lhe interessa e é anotado sem hierarquia, desde aspectos relevantes, como fatos históricos, até as ocorrências mais prosaicas, como um anúncio impresso em um jornal local de alguém que solicita companhia para enfrentar a solidão do cotidiano. Muitas anotações são incorporadas a seus projetos artísticos.

Ao homenagear o telescópio, Flemming joga com metáforas e poéticas que tratam do tema da visão, um dos elementos essenciais da linguagem artística – o saber ver. Do grego “tele”, que quer dizer longe, e “scopio”, que quer dizer observar, a intenção é permitir estender a capacidade dos olhos humanos. O objetivo do artista é  permitir olhar longe e ir até os limites da consciência possível de seu tempo.

A história registra que, em 1608, Hans Lippershey, fabricante de lentes holandês, construiu em Middelburg, pequena cidade dos Países Baixos, o primeiro telescópio. A notícia chegou ao conhecimento de Galileu Galilei, que em 1609 apresentou um aparelho feito por ele mesmo a partir de experimentações e polimento de vidro. Nesse mesmo ano, Galileu apontou seu telescópio para o céu noturno para observar a Lua. Assim, foi o primeiro a usar esse tipo de aparelho para investigação astronômica. O instrumento ficou conhecido popularmente como luneta.

Sistema Uniplanetário

Para realizar a instalação na Pinacoteca, Alex reuniu 50 globos escolares que giram sobre toca-discos. O artista afirmou que “o globo simboliza o mundo que é cada um de nós, todos iguais, mas ao mesmo tempo diferentes. Cada qual em sua rotação, uns muito rápidos, outros prestes a parar, outros já parados para sempre. E os toca-discos são uma espécie de arqueologia do cotidiano, que recupera parte da parafernália elétrico-eletrônica com que nos cercamos na tentativa de ser feliz”.

A proposta foi apresentar um conjunto que contraria as observações de Galileu, provocando um jogo de contradições com a história. Os globos, ou os planetas de Alex, não giram em torno do Sol, nem obedecem a lógica sistêmica, astronômica. Giram em torno de si mesmos, como individualidades, com rotações variadas, lentas ou aceleradas. Alguns simplesmente não giram e são meros figurantes entre bailarinos. Com essas variantes  desempenhos diferenciados, Flemming criou um conjunto estimulante e provocador, pelas ilações e interferências de outras lógicas e outras realidades. Envereda por novas poéticas. Sugere as alegorias da individualidade (cada globo girando em torno de si mesmo) e de sociabilidade (a dinâmica dos 50 globos).

Os movimentos silenciosos dos toca-discos e as relações formais entre a esfera e o disco criam situações de coreografias visuais sedutoras que podem, até mesmo, provocar efeitos hipnóticos pela constância e articulação cronométrica da compilação.

A obra de Alex Flemming

A utilização de ícones da história e não apenas da história da arte é uma atitude recorrente na sua obra. Na instalação da Pinacoteca o título chama nossa atenção para os fatos históricos ocorridos na Itália no século XVI. Há a reavivação na memória sobre o conflito entre a ciência e a religião, entre a verdade e o poder. Galileu, para não contrariar dogmas da Igreja, foi obrigado pelo Tribunal da Inquisição a retroceder nas suas conclusões sobre o heliocentrismo, sob a ameaça de prisão e morte. Não há dúvida de que o significado extraordinário desse conflito motivou Alex Flemming. Os temas da injustiça e da violência sempre instigaram o artista e estão presentes nas diversas fases da sua produção. Talvez, ao dar título a essa instalação, Flemming tenha pensado na frase de Galileu: “A verdade é filha do tempo e não da autoridade”.

Antes de iniciar sua carreira, Alex esteve ligado ao cinema. Realizou sete curtas-metragens em super-8. Contudo, a experiência cinematográfica incorporou-se ao seu olhar e modo de abordar variados temas. Na sua primeira exposição, realizada em 1978, Alex mostrou obras de caráter documental – eram nove fotogravuras compunham a série Natureza Morta. Esse pequeno conjunto impressiona pela contundência, crueza e violência de suas imagens, que denunciam o absurdo da tortura. Cenas de corpos fragmentados, dentes sendo arrancados por alicates, o pênis sendo eletrocutado. Na época, em plena ditadura militar, a dor escancarada nas gravuras adquiria força dramática e provocava a consciência por retratar situações parte da realidade.

Nos projetos seguintes e ao longo de sua vasta e diversificada carreira, Alex Flemming não perdeu o olhar cinematográfico e documental. Mesmo nas obras em que esse olhar não é prevalente, percebe-se p apreço ao documento, como quem, por meio dele, procura dar veracidade à sua poética. Na série Alturas, os sofás usados e os animais empalhados são documentos que tentam deter a caminhada do tempo ou testemunhar nossa solidão, desejos e frustrações.

A partir de Alturas, Flemming passou a acrescentar letras, inicialmente com função de escrever o nome dos retratados e, posteriormente, com novo protagonismo – revelavam e ocultavam conceitos e poéticas. Textos de Haroldo de Campos, de Heinrich Heine eram gravados na superfície da tela. A disposição das letras, no entanto, dificultava sua leitura. Os textos seguem lógica particular a cada série. Por exemplo, nos móveis pintados, Alex reuniu textos de anúncios de jornais. Nos retratos realizados para a estação Sumaré do metrô paulistano, o artista selecionou um poema para cada personagem, sempre de autores diferentes, abrangendo vasto período da poesia brasileira – de José de Anchieta a Torquato Neto.

Tudo que se refere ao corpo fascina o artista. A juventude e sua beleza, a carnalidade no êxtase e na dor, mesmo as frias ilustrações de anatomia ou trabalhos de taxidermia. Eros acompanha toda a obra de Alex Flemming, revela desejo febril perante um corpo jovem e decepção perante a escatologia do tempo. A beleza física é efêmera e a juventude fugaz.

Em 1987 inicia as telas Atletas, retomando muitas dessas imagens em 1989, nos Body-builders. Nas duas séries há a clara intenção de seduzir, entretanto, nos Body-builders há sedução e violência política. O corpo masculino é retratado frontalmente, coberto por uma sunga que revela o volume de seu conteúdo, o tórax musculoso sobre o qual Alex fundiu à pele mapas e geografias que se referem a conflitos armados. As telas respiram erotismo, mas trazem também a presença da morte e suscitam questões sobre o tempo e a transitoriedade da vida. Na entrevista a Henrique Luz, o artista afirma: “Na série política de Body-builders utilizei textos do Antigo Testamento que pregam a guerra e o extermínio do outro”.

Em 1990, eu era diretor do Museu da Arte de São Paulo e Alex Flemming propôs realizar uma instalação na escadaria do museu situado na avenida Paulista. O artista chamou-a de Tauromaquia – Ex-Touros e era composta de diversas cabeças de touro empalhadas (daquelas que são exibidas em churrascarias), pintadas de um azul que lembra Yves Klein, dispostas sobre latas de lixo, colocadas de ponta-cabeça sugerindo colunas gregas. As cabeças estavam ao ar livre ladeando os degraus que davam acesso ao museu. Os Ex-Touros abriram caminho para a instalação O Sacrifício, realizada no ano seguinte, na XXI Bienal Internacional de São Paulo. Esta, serviu de rito de iniciação para os inúmeros trabalhos de animais empalhados que se seguiram na sua obra. Àquele momento, Alex Flemming frequentou o Museu de História Natural de São Paulo, que não era aberto ao público, e convenceu os professores e os cientistas a lhe doarem animais empalhados que seriam incinerados por já estarem deteriorados ou pela falta de interesse científico. “Com esse lixo da ciência montei minha participação na Bienal”, disse mais tarde o artista.

Flemming nunca deu suas costas para a história, a conjuntura social e política. Muitas obras tratam explicitamente dos conflitos políticos, das ideias e das polêmicas de seu tempo. Pouco depois da ação terrorista às torres gêmeas de Nova York e em pleno período de retaliação militar ao Iraque e Afeganistão, desenvolveu o projeto Flying Carpet com obras feitas a partir de tapetes persas que eram recortados para assumirem as formas de silhuetas de aviões de caça ou de bombardeio norte-americanos.

Suas obras estão presentes nos principais museus brasileiros.

 

Campos da Invisibilidade: a existência está além do alcance visual

Imagem: Divulgação / Alan Turing - reprodução

No dia 08 de novembro, o Sesc Belenzinho abriu as portas da exposição “Campos da Invisibilidade.” A curadoria é de Cláudio Bueno, Ligia Nobre e assistência curatorial de Ruy Cézar Campos, que também apresenta duas obras.

Por meio da organização de 23 produções de 18 artistas brasileiros e estrangeiros, propõe-se a imersão e reflexão sobre o que há efetivamente por trás das várias conquistas tecnológicas presentes no dia a dia do sujeito contemporâneo. Ou seja, quais os processos industriais e impactos geopolíticos por eles gerados. Fotografias, vídeos, áudios, mapas e instalações questionam o mito da imaterialidade implantado pelas tecnologias e denunciam os altíssimos custos para o meio ambiente.

Campos da Invisibilidade concentra trabalhos que carregam diferentes bagagens dos artistas brasileiros, ingleses, britânicos, colombianos, canadenses, franceses, africanos e franco-guianenses, com a reflexão comum.

Campos da invisibilidade: a humanidade esvaziada

A mostra coletiva foi dividida em cinco núcleos que estabelecem conexões entre si: A Praia do Futuro, Adeus a Sete Quedas, Ouroboros, Cosmogramas e Visualizações do mundo. 

Produzido por Ruy, o vídeo “A chegada de Monet” abre o espaço do Sesc Belenzinho em diálogo com as obras de Tabita Rezaire e Louis Henderson. Seus trabalhos questionam o uso e privação territorial, material e social envolvidos nos processos exploratórios do meio ambiente em função de infraestruturas tecnológicas.

Para Tabita Rezaire, os espaços digitais são responsáveis pela continuidade de uma herança colonial, promovendo exclusão e opressão. A artista estabelece relação entre a reprodução do racismo nesses ambientes apontando para a utilização de rotas de navios negreiros enquanto caminho de cabos de transmissão.

A obra de Carolina Caycedo, por sua vez, chama a atenção devido às dimensões: uma foto de satélite, de mais de 2 metros de altura e 3 de comprimento, mostra a região de Mariana, Minas Gerais, após a catástrofe ocorrida em novembro de 2015. Anteriormente exposta na Bienal de São Paulo (2016), a imagem evidencia a dimensão da vitimação dos ecossistemas devido ao descaso humano em prol de um suposto desenvolvimento industrial.

Sete quedas por mim passaram, / E todas sete se esvaíram.

Cessa o estrondo das cachoeiras, e com ele / A memória dos índios, pulverizada,

Já não desperta o mínimo arrepio. / (…) Os sete fantasmas das águas assassinadas

Por mão do homem, dono do planeta.

(…) Aqui sete visões, sete esculturas / De líquido perfil / Dissolvem-se entre cálculos computadorizados / De um país que vai deixando de ser humano / Para tornar-se empresa gélida, mais nada.

(…) Que luz e força tarifadas geram /À custa de outro bem que não tem preço / Nem resgate, empobrecendo a vida / Na feroz ilusão de enriquecê-la.”

(Carlos Drummond de Andrade, Adeus a Sete Quedas, 1982)

Logo atrás, uma espécie de cabine abriga a projeção de um vídeo intitulado “A Gente Rio.” A narração do poema de Carlos Drummond de Andrade sobrepõe-se a imagens de cachoeiras e rios, que pouco a pouco dão lugar à represas e usinas hidrelétricas. O vídeo flui em conversa com personagens que falam da exploração dos ambientes em que vivem.

A Gente Rio – Be Dammed. from Carolina Caycedo on Vimeo.

Os demais painéis abordam, em comunhão, a exploração petrolífera, do carvão, diagramas que pensam a comunicação a partir da observação de bactérias e de outras espécies, a exibição de mapas em tempo real das rotas de aviões, navios, cabos submarinos e minas abandonadas, além do  gráfico de movimentações da Bolsa de Valores de São Paulo. É por meio deles que os curadores buscam evidenciar a presença física e massiva da infraestrutura tecnológica no funcionamento da vida no segundo milênio da humanidade.

O Brasil do futuro que chegou

Para introduzir as diversas camadas e abordagens propostas na navegação que pode ser escolhida ao desbravar a mostra, como coloca Lígia, no dia 07 de novembro, antecedente à abertura, às 18h30, aconteceu o Encontro Campos da Invisibilidade. A mesa trouxe a artista, professora da PUC-Rio e pesquisadora do CNPq, Débora Danowski, e a artista-contadora de histórias, Tabita Rezaire.

Encontro Campos da Invisibilidade/ Imagem: Divulgação, Sesc Belenzinho

Débora comenta as sensações resultantes do recém-findado período eleitoral. Os contextos violentos em que o processo submergiu-se, diz, a coloca em choque. Isso, porque pode-se notar a ascensão da extrema-direita no Brasil, que traz consigo ideias negacionistas no que diz respeito às minorias sociais e questões ambientais.

A artista e professora estuda, nos últimos anos, a ideia do fim do mundo ocasionado pelas progressivas alterações climáticas e ecologia global, devidas principalmente pela queima de grandes quantidades de combustíveis fósseis e outras práticas que movem a atividade capitalista desde meados do século passado. “Confesso que não esperava que o céu começasse a cair sobre nossas cabeças tão cedo”, lamenta Danowski.

Para o curador, o Brasil vive um um momento de importante virada política, que o coloca diante de um suposto desenvolvimento.  “Ele (Bolsonaro) diz que não haverá mais terras indígenas, entre outras coisas. Ignora histórias, memórias e populações. Isso implica também no projeto tecnológico que se debate aqui”, aponta.

Tabita finaliza com a proposição de alternativas a partir de suas experiências, pesquisas e  obra, “Cura Decolonial: Tecnologia, Espiritualidade e o Erótico.” Para ela, a importância dos trabalhos expostos é possibilitar a plantação de sementes. “Vivemos atravessados por normas impostas e ilusórias. Mas estamos aqui, existimos e não desistimos. Temos que lutar com amor”, finaliza.

A resistência Malê e o samba da Mangueira

A figura lendária de Luiza Mahin, retratada pela designer Amy Hood.

Resistência fazia parte do cotidiano dos malês, como ficaram conhecidos os negros muçulmanos de etnia nagô, trazidos como escravos para a cidade de Salvador no século XIX. Num país onde a maioria dos senhores era analfabeta, os malês tinham conhecimentos de matemática, sabiam ler e escrever em árabe, assim como  investiam na alfabetização dos filhos nascidos no Brasil. Protagonistas de uma das mais aguerridas revoltas contra o regime escravocrata, eles estão na letra do samba-enredo de 2019 da Mangueira, ao lado de Marielle Franco, a ativista assassinada este ano no Rio; dos caboclos de julho, principais símbolos da luta pela independência na Bahia; e dos que resistiram à ditadura militar.

“Salve os caboclos de julho/Quem foi de aço nos anos de chumbo/Brasil, chegou a vez/De ouvir as Marias, Mahins, Marielles, Malês”, diz trecho do samba-enredo da escola, “Eu quero um Brasil que não está no retrato”. A referência aos Mahins, por sua vez, está ligada à figura da africana livre Luiza Mahin. De acordo com relatos transmitidos de geração a geração, Luiza estava entre os líderes do Levante dos Malês, planejado para eclodir no amanhecer do dia 25 de janeiro de 1835, final do Ramadã, o mês de jejum e preces contínuas dos muçulmanos. Nos tabuleiros de Luiza, em vez de quitutes, meninos ligados ao movimento pegariam instruções em árabe para distribuir pelas ruas de Salvador.

Luiza era mãe do advogado, poeta e abolicionista Luiz Gama, vendido como escravo ainda criança, pelo próprio pai, o antigo senhor da líder malê. Levado para São Paulo, Luiz Gama (1830-1880) conquistou liberdade e fama. Dois anos antes de morrer, ele registou em carta ao jornalista Lúcio de Mendonça ser “filho natural de uma negra africana livre chamada Luiza Mahin”, que sempre recusara a doutrina cristã: “Minha mãe era baixa de estatura, magra, bonita, a cor era de um preto retinto e sem lustro, tinha os dentes alvíssimos como a neve, era muito altiva, geniosa, insofrida e vingativa. Dava-se ao comércio – era quitandeira, muito laboriosa, e mais de uma vez, na Bahia, foi presa como suspeita de envolver-se em planos de insurreições de escravos, que não tiveram efeito”.

O Levante dos Malês, como também aconteceu com outras revoltas de minorias, foi denunciado à polícia às vésperas de acontecer. Virou uma batalha de rua entre soldados com armas de fogo e negros empunhando espadas. Eram os chamados “negros de ganho”, pessoas escravizadas que não cortavam cana nem moravam em senzalas. Contavam com relativa liberdade e recebiam pequenas quantias pelos serviços prestados. Ao final do levante, estima-se que 70 insurgentes estavam mortos e 500, presos. Os castigos envolviam açoitadas para os escravos e deportação para os libertos, mas a repressão aumentou para todos os escravos, malês ou não. Cinquenta e três anos depois, no entanto, a escravatura foi abolida.

Feira Parte de Arte Contemporânea

Feira Parte
Vitor Mizael, 2018 / Imagem: Divulgação

Autointitulada a “Feira de Arte mais interessante do Brasil”, a Feira Parte chega à sua 8ª edição. O evento abre as portas no dia 07/11, em São Paulo.

Sobre a Feira Parte

Pioneiro no país no tocante à arte contemporânea com foco em novos talentos e o fomento à produção artística atual, o evento impacta a renovação e dinamização do mercado artístico brasileiro. Direcionado àqueles que buscam conhecer o mais interessante da arte e experimentá-la. Parte é ideal para atualizar coleções ou iniciá-las.

Galerias, coletivos e projetos solo com propostas ousadas dão corpo à Parte. Marcam presença Andrea Rehder Arte Contemporânea, Artur Fidalgo Galeria, Casa Triângulo, Coletivo ÁTOMO, Emmathomas Galeria, Galeria Athena, Galeria Luisa Strina, Galeria Millan, MAM, Pinacoteca, Zipper Galeria, entre outras.

Debates 

Dirigida por Tamara Perlman e Carmen Schivartche, a programação da feira conta também com mesas de conversa sobre temas tocantes ao pensar, ser e fazer artístico.

Quinta-feira, 08/11

15h – “Filosofia da Arte, Estética e o Belo”;

17h – “O mercado de arte online: perspectivas e estratégias”;

Confira.

 

 

 

Universalismo e Particularização: Determinação e Indeterminação

Apresentamos aqui o sétimo e último texto referente à serie “A Educação do Olhar e a Leitura de Imagens – Desafios Éticos pra os Museus” do Professor Christian Ingo Lenz Dunker

Resumo

Pretendo mostrar como as práticas de mediação convidam ao encontro com a obra como experiência de leitura reconstrutiva. Este processo pode ser entendido como experiência ética de reconhecimento, envolvendo forma estética e contradição social. A função ética do discurso, concentrada na noção de letra determina modos de relação com a obra que são também modelos de relação intersubjetiva com o outro. Apresento este tema a partir de sete desafios éticos para os museus contemporâneos.

 

7 Universalismo e Particularização: Determinação e Indeterminação

 

Partimos da curadoria como escuta do conflito entre sistemas simbólicos e chegamos ao museu como lugar de articulação entre formas estéticas e contradições sociais.

Como nos lembra Axel Honneth a experiência da formação encontra-se entre a dialética do amor e da amizade e a dialética das leis da ética. Reunir os afetos comunitários e as demandas sociais com a força instituinte e institucional do museu, convoca afetos atinentes ao espaço da formação cultural: respeito. Por isso a resposta museológica não pode ser apenas uma resposta normativa, que olha para o passado e o dá por resolvido, criando uma regra de decisão para o futuro. Ora, um futuro pensado deste jeito, como correção do passado, jamais encontrará a verdadeira experiência de reparação (amendment), no sentido psicanalítico, ou de cura, no sentido clássico da palavra.

Isso pode se tornar mais exasperante, confirmando as piores experiências de exclusão simbólica, cognitiva e comportamental. Convidar alguém a exprimir seus sentimentos e externalizar suas opiniões, como se todos os discursos fossem igualmente legítimos e válidos, como se não houvesse diferença entre cultura erudita e popular, é um erro que reproduz a violência simbólica que visa teoricamente superar. O reconhecimento institucional é importante e insuficiente. É preciso também o reconhecimento como experiência de partilha da indeterminação e da determinação. Ninguém consegue estranhar-se sem que antes tenha sido capturado pelo litoral de saber onde se encontra. E se no caso das populações excluídas, este litoral é dado pela experiência escolar, isso deveria ser reconhecido antes da extração compulsória do lugar à voz.

A experiência produtiva de indeterminação não é apenas a negação da determinação, imposta pelos sistemas simbólicos hegemônicos e pelas suas gramáticas reificadas de colocação de conflitos ou de solução da demanda bífida de renovação formal e de transformação social. Isso é angústia ou anomia, mas não empuxo a mudar a si e ao mundo.

Um bom exemplo de como a indeterminação pode se tornar uma força produtiva, quando associada com a forma estética está no trabalho do chileno Alfredo Jaar.

Percorrendo as ruas destruídas pelo desastre nuclear de Fukushima ele percebe a profusão de giz e lousas, espalhadas em torno das escolas. Aulas que nunca mais serão dadas. Alunos que jamais verão seus professores. Com os resíduos de giz ele faz uma espécie de tanque, onde a memória da violência e da perda, remete simultaneamente ao que poderia ter sido e ao que será, por sua reconstrução como obra. Articulação semelhante se encontrará na obra que reúne um milhão de passaportes finlandeses, para indicar o déficit de acolhimento de estrangeiros naquele país. Passaportes produzidos com verdadeiro papel moeda, e que ao final serão queimados em um ato que reverbera o desperdício e o acúmulo de recursos não partilhados. A meterialidade do espaço, separado por uma parede de vidro, através da qual se pode enxergar os passaportes, mas não possuí-los, interpela aqueles que serão excluídos para sempre de uma nova morada. Sem hospitalidade, sem hospedeiro e mesmo assim uma escuta empática dos refugiados na Europa de nossos dias.

Para uma exposição no Museu de Arte Contemporânea de Helsinki em 1995, Alfredo Jaar mandou imprimir um milhão de falsos passaportes finlandeses. Depois da exposição, teve de destruí-los por ordem das autoridades responsáveis pela imigração.

Durante muito tempo os museus foram lugares reverenciais, assemelhados às catedrais medievais, feitas para produzir o sentimento de apequenamento e de culpa. Lugares nos quais o corpo do frequentador mostra seu passaporte de classe e exibe seu acúmulo de capital cultural diante da suposta inveja dos passantes adjacentes.

Mas não é suspendendo esta história, que é a história dos próprios construtores de história, que vamos concorrer para a emancipação do olhar e para a invenção de mundos ainda impensados pela ciência e pelos discursos reprodutivos.

O museu empático deve construir uma experiência transformativa de reconhecimento, entre o público e a obra, mas também entre o público e ele mesmo, e entre o museu e o público. Os afetos são decisivos aqui, mas são também insuficientes, como vimos se não estiverem inscrito em um laço social e uma relação discursiva real.

Este é o desafio ético fundamental para os museus contemporâneos

Lugar, voz e linguagem: Empatia e Estranhamento

Artista do Museu do Inconsciente, presente na curadoria de Sofia Borges na 33a Bienal de SP

[Este é o quinto texto de uma serie de sete, elaborados pelo Professor titular em Psicanálise e Psicopatologia Clínica do Instituto de Psicologia da USP, Christian Dunker, que estamos publicando semanalmente. Sobe o título A Educação do Olhar e a Leitura de Imagens –  Desafios Éticos para os Museus“, já abordamos

1] Curadoria como sistemas simbólicos em conflito,
2] Forma estética e contradição social  
3] Formalização e Temporalidade
4] Arquitetura e Espaço: a Soberania das Imagens

5 Lugar, Voz e Linguagem: Empatia e Estranhamento

 

Lembremos que a empatia (Einfühlung) é um conceito desenvolvido por Vischer no contexto da teoria estética. Só depois disso ela foi traduzida ao inglês, como empathy, no contexto da psicologia de Titchner e reapropriada por Freud para descrever o tipo de laço ou de efeito que se espera entre psicanalista e psicanalisante. A empatia não é apenas um afeto pontual de afinidade e identificação. Isso é melhor descrito pelo conceito de simpatia, ou seja, caímos juntos em relação a um determinado objeto, gostamos das mesmas coisas, nosso gozo está referido ao mesmo traço ou ao mesmo tipo de letra.

Empatia é um percurso, um caminho, uma trajetória de leitura e escuta. Podemos distinguir quatro tempos desta experiência potencialmente transformativa:

  1. Ser afetado pelo outro, a ponto de que ele me convoca para assumir um ponto de vista que não é o meu e que desconfirma o semblante no qual eu me reconheço e do qual minha identidade depende. Aqui temos um tipo de experiência amorosa, uma maneira de fazer um, pelo traço comum, pelo mesmo.
  2. Mas assumir o ponto de vista do outro e retornar ao seu, descobrindo que eles são semelhantes ou convergentes isso é a simpatia ou identificação mimética, não é empatia. A empatia progride a partir disso quando além do ponto de vista do outro experimentamos o estranhamento que ele supostamente experimenta. Quando reconstruímos, como suposição e hipótese, o corpo que cabe nesta letra, o afeto que se produz a partir deste traço.
  3. O terceiro tempo da empatia advém quando o estranhamento e a não identidade que eu reconheço no outro, em relação a ele mesmo, convoca algo em mim. É a emergência da verdade deste estranhamento do lado do sujeito. Por isso o terceiro tempo da empatia é o tempo da diferença e do desencontro do outro, antes recebido e acolhido hospitaleiramente. Passamos do hospital para o hospedeiro, do amigo bem vindo para o alien perturbador.
  4. O quarto tempo da empatia é também a retomada do primeiro. Neste tempo devolvo algo ao outro, como que em retribuição pela transformação que ele desencadeou. É o tempo da resposta, que nunca poderá se esgotar em “gostei” ou “não gostei”, típicas do primeiro e do segundo tempo da empatia. Geralmente este quarto tempo é marcado por expressões tais como “mexeu comigo”, “não consegui esquecer” ou “tempos depois aquela imagem ficava voltando”. O quarto tempo é o tempo no qual a empatia dá luz à narrativa, quando tentamos passar adiante a boa piada recebida. Quando tentamos compartilhar aquilo que seria nosso, só nosso, conseguimos subverter a experiência de apossamento que caracteriza os modos mais simples de ver.

É o que a experiência recente do museu da empatia tentou realizar ao nos oferecer um repertório de sapatos, nos quais nos colocamos (segundo tempo), para escutar a história dos seus “donos”, (terceiro tempo), para enfim deixarmos para trás os sapatos e as histórias tendo nos transformados em outros repassando a experiência como estou tentando fazer agora, com este texto (quarta tempo).

No contexto contemporâneo das chamadas lutas por reconhecimento estamos às voltas com a demanda de inscrição de séries simbólicas em conflito: gêneros, raças, classes, línguas, culturas. Demandas de sofrimento que pedem pela inscrição no espaço público. Demandas dirigidas aos museus porque eles são e penso que deveriam continuar a ser, instâncias de sanção e de autorização de posições de fala. Mas, pelo exposto anteriormete, ser reconhecido pelo museu não é apenas ser catalogado, fazendo parte do acervo em seu modo próprio de lembrar e esquecer. A demanda precisa ser reconhecida não apenas em seus objetos representativos, mas também em sua gramática própria, vamos dizer assim, em seu pensamento “museológico” próprio. Por isso ter lugar, inclusive ter lugar de fala, pode ser inócuo se do outro lado não construímos um lugar de escuta. E ter um lugar de fala é fundamental, mas em certo sentido porque ele é só um lugar, um ponto de vista, que pode ser reduzido novamente a uma elite particular. O que se demanda não é o reconhecimento protocolar do lugar de fala, mas também da voz. A voz a que traz o corpo e o corpo que se transforma no percurso empático.

Aqui a confusão é frequente entre o expressivismo, que demanda a autonomia do singular, e a irredutibilidade da experiência, como reposição e completamento da identidade, que é uma estratégia decisiva das formas de corpo segregadas e a experiência transformativa que se pretende em relação ao poder modificador de mundos da memória, desde que articulada ao desejo.

A “Tragédia” encenada pela curadora Sofia Borges na 33a Bienal de São Paulo conta com diversos artistas dialogando entre si

Nos detalhes escondidos do corpo, presentes na obra de Sofia Borges, que nos traz meias caras, bocas recortadas em detalhes grotescos, percebemos a função decisiva da metáfora como impulsionadora e formadora das narrativas de sofrimento, logo de sua transformação.

Atividade Interna, Maria Laet, 2017

É uma estratégia de certo modo oposta a de Maria Laet, que enquadra o litoral feito de linhas e rasuras que o mar impõe à areia de uma praia. Crítica dos muros e fronteiras? Alusão ao fato de que sem marés e fronteiras indeterminadas o que temos é fratura e quebra.

Se Sofia Borges trabalha com a narrativa narcísica do sofrimento, Maria Laet escolha a narrativa esquizoide. Na primeira está em jogo meu reconhecimento de identidade, propiciado por uma imagem que opera em espelho. Na segunda está em pauta minha experiência de unidade. Ser idêntico não é o mesmo que ser um.

2 livros para ler agora

Confira dois livros para ler agora, selecionados pela ARTE!Brasileiros para a Série “Imperdíveis”.

Livros para ler agora

Por Tatiana Marotta

Clarice Lispector -Todos os Contos
Organização de Benjamin Moser, Rocco, 654 páginas

Pela primeira vez, todos os contos da escritora Clarice Lispector estão reunidos em um só livro. O volume é organizado pelo americano Benjamin Moser, autor de Clarice, uma Biografia e divulgador da obra da escritora nos EUA. Moser estará na Flip deste ano, lançando o livro Autoimperialismo.

TRECHO

“E as máscaras? Eu tinha medo mas era um medo vital e necessário porque vinha ao encontro da minha mais profunda suspeita de que o rosto humano também fosse uma espécie de máscara.”

AUTORA

Uma das maiores escritoras brasileiras, Clarice Lispector publicou o primeiro livro aos 23 anos: Perto do Coração Selvagem. Também escreveu, entre contos e romances, A Hora da Estrela, popularizado no cinema.

Exames de Empatia
Leslie Jamison,  tradução de Rosaura Eichenberg,  
Globo Livros, 296 páginas

Reunião dos melhores ensaios da escritora. São textos que mesclam passagens autobiográficas, reportagem e insights filosóficos.  Com enfoque feminista, tratam da dor física, violência e privações extremas.

TRECHO

“Empatia não é apenas lembrar-se de dizer deve ser realmente difícil – é imaginar como trazer a dificuldade à luz para que possa ser percebida. Empatia não é apenas escutar, é fazer as perguntas cujas respostas precisam ser escutadas. Empatia requer investigação, tanto quanto imaginação.”

AUTORA

Professora assistente na Universidade de Columbia, Jamison é colunista do The New York Review of Books e colaboradora da Harper’s e The Believer, entre outras revistas.