Conhecido por seu trabalho com alta gastronomia, Sergio Coimbra decide se dedicar agora à criação de obras de fine art. Depois de fotografar para dezenas de livros de renomados chefs ao redor do mundo e de colaborar para trabalhos de artistas como Ai Weiwei, Sergio cria sua primeira série para uma exposição individual em galeria: Supernova, que acontece até 28 de junho na Galeria ArtEEdições, em São Paulo.
Pensando na técnica de spin, Sergio teve a ideia de construir uma máquina que desempenhasse o meso tipo de rotação, mas com temperos e outros materiais culinários. Optou por fazer essa experimentação na cozinha do chef Massimiliano Alajmo de Padova, na Itália, e passou quase duas semanas numa espécie de laboratório.
O efeito criado com a espiralização de farinha, pimenta, líquidos e outros materiais fez com que Marcello Dantas, convidado pelo artista para fazer a curadoria da exposição, visse o raro fenômeno estelar da Supernova nas fotografias. Assim, surgiu a série Supernova, que foi acrescida de uma instalação, colocada em exibição na SP-Arte. Uma espécie de planetário com quatro projetores reproduz as fotografias de Sergio em um domo. As pessoas se deitam em um estofado e podem observar as supernovas criadas pelo artista. A experiência nessa obra, intitulada Supernova – Domo pode ser conferida até 7 de abril na feira.
Na mitologia grega, as Moiras, três irmãs filhas da noite, são as divindades que controlam os destinos e cursos das vidas humanas. A primeira é responsável por fiar, a segunda por tecer e a última por cortar o fio da vida dos mortais. Inspirada nestas personagens, a artista plástica Edith Derdyk apresenta, no Sesc Ipiranga, a instalação Moiras, um site specific composto de 485 hastes de ferro presas à uma parede nas quais se entrelaçam 70 mil metros de linhas brancas esticadas, em uma trama que percorre 17 metros de extensão e quase 2 de altura.
Apesar do título, o trabalho de Derdyk não estabelece com a história mitológica uma relação direta, discursiva, mas tem nela uma espécie de pano de fundo. “Comecei a pensar muito na linha dotada de sentidos, ligada à questão dos destinos: de onde vem e para onde vai; o tempo de saída e o tempo de chegada; a linha como elemento transitivo e transitante, que é da natureza dela”, explica. “E movida por tudo isso me veio a ideia das Moiras.”
Tendo como matriz, desde os anos 1980, o desenho – e consequentemente a linha –, Derdyk foi com o tempo expandindo sua compreensão deste conceito, passando a praticar um “desenho expandido” que pode se dar em instalações, fotografias, vídeos ou gravuras. “Desde 1997, quando fiz minha primeira instalação usando a linha no espaço, eu venho atuando no entendimento do desenho como essa extensão do corpo no espaço, que nasce da leitura do próprio espaço. A linha acaba virando um campo de acontecimentos”, conta.
Decorrem destes trabalhos questões sobre acúmulo, repetição, conectividade, encontros, colisões, estabilidade e instabilidade. Nas linhas que criam tramas, labirintos e tessituras, “eu começo a identificar padrões orgânicos que existem na natureza, mas também os modos das comunidades humanas se organizarem”, explica Derdyk.
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"Moiras". FOTO: Aline Santini.
A artista Edith Derdyk em frente à "Moiras". FOTO: Rosa Antuna.
"Moiras". FOTO: Rosa Antuna.
Construção da instalação. FOTO: Fernando Fogliano
"Moiras". FOTO: Divulgação.
"Moiras". FOTO: Rosa Antuna.
Entra aí a história das Moiras, sobre o destino das vidas humanas, assim como o mito de Sísifo, personagem que dia após dia, repetidamente, tenta rolar uma grande pedra ao alto de uma montanha. “No livro do Albert Camus ele questiona: o que faz uma pessoa todo dia tentar levar uma pedra ao topo de uma montanha? É a esperança de um amanhã, de um futuro. E pensar nisso hoje em dia é muito forte”, diz Derdyk.
Em Moiras, que demorou cerca de duas semanas para ser construída e contou com uma equipe de colaboradores, a fiação surge como gesto repetitivo, mas que, ao mesmo, está sempre diferindo e criando novos campos de sentidos. A instalação é vinculada ao projeto FestA! – Festival de Aprender, do Sesc, que trabalha nesta edição com a ideia de conectividade e com a relação da arte com a ciência.
“A proposição da instalação visa construir uma espacialidade rizomática e conectiva, feita de combinatórias entre o caminho das linhas que se ligam de um ponto a outro, de maneira a tecer uma trama aérea, meio suspensa, como se esta trama tecida revelasse, através do caminho que cada linha traça, os infinitos destinos cruzados”, diz Derdyk.
As linhas, que ativam e ressignificam o espaço, nos falam também de horizontalidade e conectividade entre pessoas, ou seja, da possibilidade de diálogo e convivência. De um processo construtivo trabalhoso e cansativo – “meio aracnídeo”, diz a artista – resulta essa trama que aparenta também leveza e fluidez.
“É interessante pensar também que há uma certa inutilidade. Muito trabalho, muito esforço físico, muscular, muito tempo dispendido para um resultado que é quase um nada.” E que, ao fim, terá os fios rompidos, assim como faz a terceira das três Moiras ao cortar o fio da vida. Antes de desfeito, o trabalho está exposto no Sesc Ipiranga até o dia 26 de maio.
Moiras, de Edith Derdyk
No deck do Sesc Ipiranga – Rua Bom Pastor, 822 – Ipiranga, São Paulo
James Capper, AERO CAB Test Run. Foto: Frederik Jacobovits
Pode uma cidade altamente elitista, frequentada basicamente por bilionários do circuito internacional, onde nem mesmo o cidadão médio suíço tem acesso, ser sede de um encontro de arte contemporânea?
O desafio é encarado pelo Verbier Art Summit (VAS), que teve sua terceira edição realizada nos dias 2 e 3 de fevereiro passado. O evento foi criado por um grupo de moradores e proprietários de chalés da pequena cidade de três mil habitantes. O que não falta lá são milionários famosos, como a cantora Barbra Streisand, o empresário Richard Branson, o colecionador Dakis Joannou e o príncipe Andrew, da Inglaterra, que há três anos pagou nada menos que R$ 65 milhões por uma cabana de sete quartos. Exagero dá o tom do local, onde um drink pode chegar a custar R$ 25 mil nas festas VIP da cidade.
Desde 2017, o VAS, liderado pela advogada holandesa Anneliek Sijbrandij-Schachtschabel, consiste em um encontro de dois dias organizado por um curador convidado. A primeira foi Beatrix Ruf, então diretora do Museu Stedelijk, no ano passado Daniel Birnbaum, do Museu de Arte Moderna de Estocolmo, e agora Jochen Volz, diretor da Pinacoteca do Estado de São Paulo.
O artista brasileiro Ernesto Neto falou com o público sobre humanismo e interconexões. Foto: Alpimages Fleur Gerritsen
Durante dois dias, às tardes, o time por ele escolhido se apresentou em um auditório com entrada franca para inscritos, enquanto pela manhã, nos sofisticados chalés de madeira dos organizadores, grupos selecionados debateram com os convidados, encontros onde jornalistas não eram permitidos. Também fez parte da programação a exibição do filme O Vermelho do Meio-Dia, realizado pelo artista suíço Tobias Madison em São Paulo, em colaboração com o Grupo Mexa, que chocou a plateia por retratar uma cidade bastante decadente, e o teste da escultura móvel do artista inglês James Capper em meio à estação de esqui.
Com o tema Somos muitos. Arte, o politico e múltiplas verdades e um time bastante radical, entre eles a artista cubana Tania Bruguera, o sociólogo português Boaventura de Souza Santos, a líder indígena brasileira Nadine Terena e a curadora sul-africana Gabi Ngcobo, Volz reposicionou o evento elitista de forma elegante. “Tive total liberdade para organizar as mesas, convidei pessoas que admiro muito”, contou Volz, em Verbier. Alguns dos artistas selecionados, como Bruguera, Grada Kilomba e Rirkrit Tiravanija farão parte da programação da Pinacoteca, agora em 2019. Em 22 de junho, o livro com todas as palestras do evento será lançado na Pinacoteca.
“Nós precisamos descer das montanhas para chegar na lama”, chegou a afirmar o curador alemão radicado no Brasil na abertura do evento, ainda sob o impacto do estouro da barragem em Brumadinho, ocorrido poucos dias antes da abertura do Summit. Foi uma fala poética e direta de como o debate sobre arte não deve ficar restrito a um mero encontro, mas merece provocar ações concretas.
Seguindo a deixa de Volz, muitos dos convidados buscaram reconfigurar o auditório onde o encontro ocorria, como a alterar estruturas de poder. Foi o que fez logo na primeira sessão Kilomba, que abandonou o pedestal selecionado para os palestrantes, preferindo falar sentada, de maneira mais informal. “Desaprender é também alterar espaços”, definiu a artista portuguesa, que participou da 32ª. Bienal de São Paulo, em 2016. Ela apresentou na Suíça cenas de seu mais recente trabalho, Illusions 2, uma desconstrução do mito de Édipo, criado para a 10ª Bienal de Berlim, no ano passado.
O tom geral seguiu em reflexões políticas, como fez Terena, que abordou as ameaças aos 800 mil índios que vivem no Brasil e começou sua fala parafraseando o presidente da escola de samba Sossego: “Arte não é para covardes”. Para ela, “a maior arte dos povos indígenas é se manter vivo, é resistência”.
Jochen Volz com Naine Terena, à esquerda, e Anneliek Sijbrandij, à direita. Foto: Frederik Jacobovits
Resistência também foi tema da fala de Ngcobo, sobre experiências de movimentos anti-apartheid na África do Sul, nos anos 1970, e como jovens artistas atualizam, atualmente, as questões daquele período.
Já Santos, no segundo dia, em uma fala que abordou questões vinculados à defesa dos direitos humanos, declarou estar participando de movimentos contra o uso indiscriminado de agrotóxicos no Brasil. “Há muito mais pessoas com câncer no interior de São Paulo por conta dos venenos espalhados pelo agronegócio”, provocou.
Figura frequente em Verbier, por conta de um festival de música que ocorre na cidade, a cantora lírica Barbara Hendricks, embaixadora da Acnur (Alto Comissário da ONU para Refugiados) fez uma defesa da arte como elemento empoderador.
Finalmente, o artista tailandês Tiravanija repensou o espaço do encontro de forma radical: desceu para a plateia e sugeriu que cada um alterasse a organização das cadeiras, deixando de estarem todas voltadas para o palco. Sob penumbra, ele pediu ao público que observasse sua própria respiração por dez minutos. Ao final, pediu que cada um falasse algo a partir das experiências dos dois dias em Verbier, gerando certa tensão, afinal foi um palestrante que preferiu não falar. Houve quem, após participações tão políticas, propusesse que o grupo deveria ter alguma ação concreta, enquanto outros, como Gabi Ngcobo, ao invés de falar, tocou a canção “We don’t need another hero”, famosa na voz de Tina Turner, que foi o título da Bienal de Berlim, por ela organizada no ano passado.
Nesse ambiente um tanto irônico, o silêncio de um artista como Tiravanija é uma atitude bem coerente com um evento para discutir arte em uma cidade como Verbier. Arte, de fato, não é para covardes.
*Fabio Cypriano, viajou a convite do Verbier Art Summit
Entre o primeiro trabalho realizado conjuntamente e os dias atuais passaram-se apenas seis anos. Neste período prolífico, Bárbara Wagner, 38, e Benjamin de Burca, 43, realizaram cerca de dez grandes projetos – entre séries fotográficas, videoinstalações e curtas-metragens musicais – e com eles estiveram presentes em uma série de bienais, exposições e festivais ao redor do mundo. Percorreram espaços dos universos da arte e do cinema e, neste 2019, foram premiados no Festival de Berlim com o curta RISE (2018). Agora, se preparam para representar o Brasil na 58ª Bienal de Veneza com o inédito Swinguerra, filmado em Recife.
Em uma sequência produtiva quase sem respiros desde 2013, a dupla desenvolveu uma linha de pesquisa coerente e sólida tanto nas temáticas tratadas quanto na criação de uma linguagem e estética autorais – mesmo com as nuances e peculiaridades de cada projeto. Mas, segundo eles mesmos, poucas vezes pararam para analisar este conjunto da obra. “Tenho começado a pensar nisso só recentemente. Até pouco tempo a gente não conseguia ver um corpo, porque produzimos muita coisa em pouco tempo. Agora que acumulamos alguns trabalhos a gente consegue olhar para trás e perceber mais claramente as relações entre eles”, diz Wagner, que ao lado de De Burca conversou por mais de uma hora com a ARTE!Brasileiros.
Especialmente nos projetos filmicos, que agora chegam a sete, a dupla apresenta obras audiovisuais concebidas em conjunto com seus protagonistas, que misturam documentário e ficção, realidade e imaginação, e que levantam debates sobre o uso do corpo, a indústria musical, os diálogos e conflitos entre cultura pop e manifestações tradicionais e sobre as ideias de bom e mau gosto. Temáticas tratadas de modo multidisciplinar em trabalhos que retratam personagens de universos marginalizados e como eles próprios se autorrepresentam e se apresentam ao mundo – dos músicos de brega e dançarinos de frevo de Recife aos rappers de Toronto; dos cantores do schlager de Münster aos oradores evangélicos da Zona da Mata pernambucana.
Still de “Swinguerra” (2019)
“Por um lado, são manifestações que parecem marginais, mas na vida real elas são muito centrais na cultura. O schlager é o gênero mais consumido na Alemanha, o hip hop é um fenômeno mundial e o brega é muito popular aqui no Nordeste”, afirma De Burca. “Acho que a gente procura entender esses fenômenos que parecem marginalizados, mas que na verdade têm um nervo central na nossa experiência de cultura”, completa Wagner. “Eles bebem o tempo inteiro dessa produção cultural central, ao mesmo tempo não precisam dela, não são dependentes do mainstream e dos meios de comunicação convencionais. São grupos que encontram saídas para sua própria existência, dentro desse universo de trocas entre centro e periferia”.
Neste sentido, Wagner e De Burca questionam a noção, em voga em setores do ativismo político e em áreas das ciências sociais, de “dar voz” às minorias e aos marginalizados. Para a dupla, esses grupos têm voz própria, “sabem muito bem como se apresentar”, e o trabalho trata muito mais de ouvir essas vozes ou, ainda, criar juntos outras vozes possíveis. “Então a gente sempre se pergunta qual pode ser a nossa contribuição. O registro que a gente faz em audiovisual tem que ir para um outro lugar, que vem do encontro, do diálogo entre as nossas vontades de observar, de compreender e de questionar e a vontade artística deles, das pessoas com quem a gente colabora”, diz Wagner.
O que resulta, portanto, vem de um fazer compartilhado que chega a algo novo. De algum modo remete a filmes etnoficcionais de Jean Rouch, que criava narrativas junto aos protagonistas, ao mesmo tempo que transparece menos improvisação que os trabalhos do francês. Para a dupla, o trabalho conjunto começa no planejamento e no roteiro, segue na filmagem, e continua, posteriormente, em toda a carreira da obra. “A gente mantém contato com todo mundo que a gente trabalhou desde o primeiro filme até hoje, e eles sempre sabem onde os filmes estão circulando”.
Da Europa para o Brasil
Wagner e De Burca já desenvolviam trabalhos autorais quando se conheceram na Europa, no fim de 2009, na época em que a artista realizava seu mestrado em Artes Visuais na Holanda. Wagner, nascida em Brasília e formada em jornalismo em Recife, aprofundava uma pesquisa principalmente fotográfica, já centrada em questões do corpo e nos campos da cultura pop e da tradição. Benjamin, nascido em Munique (Alemanha), com graduação e pós-graduação em Artes concluídas em Glasgow (Escócia) e Belfast (Irlanda do Norte), tinha um trabalho focado principalmente em colagens, fotografias e pintura.
A dupla Bárbara Wagner e Benjamin de Burca. FOTO: Chico Barros/ Divulgação
A primeira obra feita em parceria começou a ganhar forma quando os dois se mudaram para a capital pernambucana no fim de 2012, em “um período muito interessante para se observar o que era a representação de uma nova classe média no Brasil”. Edifício Recife (2013), uma série fotográfica acompanhada de pequenas entrevistas, analisa “a relação entre as esculturas de prédios nobres de Recife e os porteiros destes edifícios”. Apesar de não ser centrada em questões musicais ou do corpo, o trabalho já apresentava várias das temáticas desenvolvidas posteriormente pela dupla, como o contraste entre classes sociais e o uso do espaço urbano.
No mesmo ano surgiu a primeira obra audiovisual, Cinéma Casino (2013), uma investigação sobre o gênero musical maloya entre as novas gerações na Ilha da Reunião. Comissionado para a 4a Bienal do Oceano Índico, o trabalho foi filmado no departamento ultramarino francês, localizado próximo à África, e coloca em perspectiva sonoridades e danças locais – tanto vertentes tradicionais ligadas à cultura crioula e à resistência anticolonial quanto manifestações contemporâneas alinhadas à indústria de consumo. “A gente estava interessado em entender como é que os corpos desses jovens, bastantes influenciados pela cultura pop, transitam entre a tradição e o contemporâneo”, comenta a artista.
Still de “Faz que Vai” (2015)
Foi essa mesma linha de pesquisa, transportada para outro território e contexto, que resultou no curta Faz que Vai (2015), trabalho feito em Recife após a produção de dois outros projetos: Desenho Canteiro (2014), uma vídeo-colagem sobre o mercado imobiliário; e Como se Fosse Verdade (2015), um híbrido de série fotográfica e instalação realizado no terminal de ônibus de Cidade Tiradentes, em São Paulo. Faz que Vai, filmado com quatro dançarinos de frevo, levanta também questões de gênero, que percorrem outros trabalhos da dupla.
“No caso dos filmes a gente entendeu que a música é o elemento que constitui uma espécie de fundamento para as práticas que pesquisamos. Seja de dança, dos videoclipes, da canção. É a performance de forma geral ligada às indústrias da música que estão no limite entre a tradição e o pop”, diz Wagner. “São jovens que têm pela primeira vez a possibilidade de trabalhar com arte, e o corpo é um elemento central nisso. Ele é o instrumento de trabalho nessa cultura do espetáculo”.
Democratização e mundo da arte
Convidados para a 32a Bienal de São Paulo, com curadoria de Jochen Volz, a dupla produziu Estás Vendo Coisas (2016) também em Recife, deslocando-se do universo do frevo para o dos jovens cantores de brega em boates e nas gravações de videoclipes. Considerando que passaram 900 mil pessoas pela Bienal, foi ali que se deu o momento de maior visibilidade para o trabalho dos artistas. Wagner confessa: “Foi muito emocionante ver como as pessoas se relacionam com o trabalho. Pessoas com idades e repertórios diferentes, com compreensões distintas do que é um trabalho artístico”.
Still de “Estás Vendo Coisas” (2016)
Segundo ela, foi um momento interessante também para ver como o trabalho repercutia no próprio mundo da arte, com educadores, com o circuito comercial, com curadores independentes ou com a direção de instituições. “A gente está sempre testando, porque cada instância dessas tem suas especificidades. E por ter esse trabalho híbrido, é muito bom poder mostrar o RISE, por exemplo, tanto em uma galeria privada de São Paulo (Fortes D’Aloia & Gabriel) quanto no festival de Berlim. É interessante testar os cruzamentos dessas esferas, os pontos de interseção”.
O curta feito no ano após a bienal, Bye Bye Deutschland! (2017), realizado para o festival Skulptur Projekte de Münster, acompanha um casal de cantores de schlager, gênero musical popular na Alemanha e em países do norte europeu marcado por letras e melodias sentimentais. “E também tinha muito a ver com essa questão de bom gosto e mau gosto. Artistas alemães contemporâneos torcem o nariz para o schlager, então a gente querer falar sobre esse gênero foi uma surpresa, até mesmo para o Skulptur Projekte. Mas, para nós, era o único caminho possível. Um trabalho em Münster tinha que ser sobre isso”, explica Wagner.
Essa surpresa de que fala a artista levanta também um estranhamento quando se pensa no grande reconhecimento que a dupla alcançou em meios onde os gêneros musicais de que tratam são normalmente considerados ruins. “Os circuitos da arte e do cinema são muito elitistas. Mas o que eu sinto é que de algum modo os nossos trabalhos comunicam algo, até para além da nossa intenção, que interessa as pessoas. Mas é difícil explicar, nós mesmo estamos sempre tentando entender.”
Still de “Bye Bye Deutschland!” (2017)
A reação mais polêmica veio com o curta Terremoto Santo, de 2017 – ano em que Wagner foi vencedora do Prêmio PIPA –, que apresenta o universo evangélico da Zona da Mata pernambucana a partir de uma gravadora de música gospel da cidade de Palmares. Ao criar no filme uma atmosfera ao mesmo tempo real e fantasiosa, em que, em dado momento, a câmera treme simulando um terremoto – em diálogo com a música que está sendo cantada –, a dupla incomodou parte da comunidade artística. “Até hoje a recepção é dividida. Tem gente que acha que o filme é propaganda conservadora dos evangélicos, outros acham que a gente pode ter até debochado deles”, ela comenta. O curioso, segundo De Burca, é que os trechos que soam mais ficcionais nos filmes são sempre concebidos nos processos de criação com os próprios personagens, a partir de coisas que existem em suas vidas.
“Na prática artística desses grupos, sejam cantores, dançarinos, produtores musicais do brega, do schlager, do gospel ou da swingueira, essa fantasia é muito presente. Não há limites entre ficção e realidade. Entrar e sair do espetáculo é uma prática que eles manejam muito bem, e o limite entre uma coisa e outra fica muito fluido”, diz Wagner. “Acho que o cinema permite o manejo entre essas narrativas e, para nós, borrar esses limites é importante até mesmo para suspender o julgamento sobre o que se está vendo.” Fazer a câmera tremer no momento do “terremoto”, seria como “fazer tremer” qualquer tipo de leitura fácil sobre o trabalho da dupla. “A gente não tem nenhum pudor em levar às últimas consequências essa ideia de que um filme pode falar da realidade, mas ao mesmo tempo ser completamente fantasioso. Queremos criar fissuras”.
RISE (2018), curta que venceu o Audi Short Film Award na Berlinale deste ano, dá continuidade à essa ideia. Filmado em uma estação de metrô recém-inaugurada na periferia de Toronto, o trabalho foi realizado com integrantes do grupo Reaching Intelligent Souls Everywhere, que reúne jovens rappers, poetas e cantores afrodescendentes da cidade. O curta, que foi comissionado pela AGYU (Art Gallery of York University), chama atenção, talvez de modo ainda mais acentuado que outros filmes, para o extremo cuidado técnico e estético que percorre a produção da dupla – que sempre trabalha com o diretor de fotografia Pedro Sotero (parceiro de filmes de Kleber Mendonça).“Acho que se não fosse esse rigor do cinema, com alta qualidade de som e imagem, a gente perderia todo o nosso esforço em promover uma relação empática com o conteúdo do trabalho”, afirma Wagner.
Still de “Terremoto Santo” (2017)
Swinguerra, que está em fase de pós-produção, é o trabalho que representará o Brasil na 58a Bienal de Veneza, comissionado para tal a partir da escolha de Gabriel Pérez-Barreiro. O novo filme apresenta três grupos: os de swingueira, que se reúnem em quadras de escolas públicas de Recife e preparam coreografias para socializar e competir entre si; os dançarinos de brega funk, que derivam da swingueira, mas trabalham comercialmente em palcos de boates e em shows de MC’s; e os do chamado passinho do maloka, adolescentes que criam danças e coreografias para se divertir e divulgar no Instagram: “Da quadra, para o palco, para o Instagram. No filme nós cruzamos essas expressões, seus códigos, corpos e gestos”.
Em uma prática multidisciplinar, que mistura cinema, artes visuais, performance, música, dança e antropologia, no qual o fazer é compartilhado e onde surgem questões de gênero, raça, classe e indústria cultural, Bárbara Wagner e Benjamin de Burca têm consciência da responsabilidade política de seus trabalhos, especialmente no contexto atual brasileiro. “Esse lugar em que ao invés de ‘dar voz’ procura-se ouvir, ou falar junto, é possivelmente um lugar de resistência. Porque isso mostra como esses grupos que a gente encontra, esses artistas, criam suas próprias saídas para resistir no mundo. E trabalhar junto com eles é, portanto, participar da construção destas formas de resistência”.
Raquel Valdes Camejo, Blue Cube, 2015. Foto: Leonor Amarante
Com o temaA Construção do Possível e um discurso amplo, afinado com as preocupações sócio-político-ambientais do momento, a 13ª Bienal de Havana abre suas portas, em 12 de abril, com uma versão evolutiva de seu trabalho ao longo desses anos. Coloca em pauta linhas temáticas vinculadas à arquitetura, à cidade e seu entorno, à ecologia e aos temas de gênero e migrações. Uma das novidades dessa edição é que ela se estende a outras cidades da Ilha:Pinar del Río, Matanzas, Cienfuegos, Sancti Spíritus y Camagüey.
A Bienal, como estratégia, vai investigar a percepção do mundo atual, procedimentos poéticos e da natureza que envolvem memória, sociedade, história, pertencimento, uma topografia viva tendo em conta “as condições de um mundo que tem intensificado as ameaças nucleares e belicistas, a fobia, o racismo, os deslocamentos forçados, as tendências fascistas, o uso sistemático da mentira e a crise meio ambiental que ameaça a sobrevivência da espécie humana”. O grupo de curadores, liderado pelos críticos cubanos Nelson Herrera Ysla e Jorge Noceda Sánchez, espera que a arte assinale novos caminhos de raciocínio coletivo. São cerca de 170 artistas, vindos de 45 países, alguns deles com obras que captam as tensões silenciosas. Entre os artistas convidados estão Sara Ramo, Lais Myrrha e Ruy Cézar Campos (Brasil). Tania Candiani (México); Pedro Cabrita Reis (Portugal); Abdoulaye Konaté (Mali), Guy Wouet (Camarões); René Francisco Rodríguez,José Manuel Fors, Juan Carlos Alom, Kadir López, Dania González e Ruslan Torres (Cuba).
José Patrício, Espirais Cromáticas VI, 2018. FOTO: Robson Lemos
Com aproximadamente 83 mil visitantes entre os cinco dias que a Art Basel Miami Beach ficou aberta para visitação no último dezembro, a feira recolheu números animadores em relação às vendas promovidas pelas galerias participantes. Boas notícias também para a arte latino-americana, que sempre se destaca na feira.
A organização da feira anunciou que as vendas foram fortes em todos os níveis do mercado. Porém, cada vez se torna mais evidente a força dos compradores de países próximos. A regionalização das edições da feira tem sido algo constatado por muitos nos últimos anos.Por ter edições em vários continentes, a Art Basel tem visto alguns de seus frequentadores preferirem esperar a edição mais próxima a atravessar o oceano para comprar obras de arte. Ainda assim, visitas de colecionadores e de representantes de instituições como o Centre Pompidou, de Paris, e a Serpentine Galleries, de Londres, não decepcionam.
No evento de 2018, algo chamou a atenção das galerias que participavam: a vontade dos compradores em quererem inserir em suas coleções obras de artistas negros, latinos e de mulheres artistas. Esse desejo revela de alguma forma a força das reivindicações de movimentos que lutam contra o apagamento da produção artística feita por esses grupos sociais.
As galerias brasileiras reportaram certo êxito em suas vendas. Dentre as 14 brasileiras, a Galeria Nara Roesler, com sede em São Paulo, Rio de Janeiro e Nova Iorque, vendeu obras de nomes como Vik Muniz, Tomie Ohtake, Julio LeParc e Artur Lescher. Já a Bergamin & Gomide negociou trabalhos de Ivan Serpa e de Leonílson.
As duas são as únicas casas do Brasil que também participam da edição da feira em Hong Kong, entre os dias 29 e 31 de março. A Nara Roesler apresentará trabalhos de alguns dos artistas que fizeram sucesso em Miami Beach, mas também integra ao time obras de Xavier Veilhan, Hélio Oiticica e José Patrício. A paulistana Bergamin & Gomide irá apostar em obras de Jac Leirner, Rivane Neuenschwander, Jim Hodges, Lorenzato e Mira Schendel.
Rirkrit Tiravanija, Sem Titulo, 2018. FOTO: cortesia do artista e kurimanzutto,
Participando do setor Discoveries com a galeria Commonwealth and Council, de Los Angeles, a brasileira Clarissa Tossin, representada no Brasil pela Galeria Luisa Strina, apresentará alguns trabalhos que desenvolveu recentemente (Leia entrevista com Clarissa clicando aqui). Partindo de ideias levantadas pela escritora Octavia E. Butler na triologia Xenogenesis (1989), Tossin traz à luz “uma materialidade pós-apocalíptica”que envolve as questões ecológicas do planeta, considerando “as tradições estéticas das pessoas nativas da Amazônia em relação à cultura contemporânea de mercadorias”. Destaque também para o artista Rirkrit Tiravanija, nascido na Argentina, que estará exibindo uma obra sem título, de 2018, feita de folha de ouro escrita em caracteres chineses, que pode ser traduzido como “Estamos sonhando sob a mesmo céu”, colado em um jornal.
O evento em Hong Kong terá a participação de 242 galerias, de 35 países. Num movimento que também demonstra um pouco dessa regionalização das edições da feira, o setor Kabinnet terá foco em artistas da Ásia, apresentando tanto nomes já consagrados quanto artistas em ascensão. Serão, ao todo, 21 apresentações conceituais em espaço delimitado e com curadoria especial dentro dos estandes. Destaques para Simon Starling no The Modern Institute e Joan Miró, na Galeria Lelong.
No setor Film, o artista multimídia e produtor de filmes Li Zhenhua separou 27 obras de cinema e vídeo que abordam o contexto sociopolítico atualmente, incluindo trabalhos que foram exibidos em grandes festivais, como Spring Fever, de Lou Ye, que chegou ganhar o prêmio de melhor roteiro em Cannes em 2009 e Dong, de Jia Zhangke, exibido no Venice International Film Festival e no Toronto International Film Festival em 2006. Em Conversations, o destaque fica por conta da conversa entre diversos curadores que produziram exposições com base na geografia asiática “discutindo o formato de exposição como um modo de fazer mapas que buscam novas compreensões, perspectivas e des/conexões em uma região composta de muitas regiões”.
A brasileira Clarissa Tossin é um dos destaques do setor Discoveries da Art Basel Hong Kong, sendo representada pela galeria Commonwealth and Council, sediada em Los Angeles. Apresentando uma nova leva de trabalhos. Em 2018, Tossin já tinha exposto na cidade asiática, convidada a exibir a obra em vídeo Ch’u Mayaa (2017) na mostra Emerald City (2018) na K11 Art Foundation.
A artista falou à ARTE!Brasileiros sobre o trabalho que apresenta na ABHK 2019:
A!B: Como o livro de Octavia Butler inspirou você nesses trabalhos para o Basel Art HK?
Clarissa Tossin: Os trabalhos apresentados na Art Basel Hong Kong são parte de um trabalho maior que surgiu do meu interesse no uso de tradições indígenas amazônicas de Octavia E. Butler em sua trilogia de ficção científica Xenogenesis (1987-89), onde a Amazônia se torna o local para uma nova civilização de híbridos humano-alienígenas, os Oankali, após o colapso ecológico autoinfligido da Terra. Eu amo a figura do Ooloi na série de Butler, eles são o terceiro sexo indeterminado do Oankali que, na minha opinião, incorporam certas características de um xamã nativo, dada sua capacidade de armazenar toda a informação genética que eles adquirem dentro de seus corpos pela ingestão de amostras. O fato de o Ooloi “ingerir” amostras de nosso mundo vivo para compreendê-lo/decodificá-lo oferece uma conexão a Antropofagia, sobre canibalizar a cultura como estratégia de sobrevivência: “Só a antropofagia nos une”. Aposto que Manifesto Antropofágico foi uma das referências de Butler. Eu também estou particularmente interessada na protagonista da trilogia, Lilith, que incorpora características de um guerreiro amazônico. Ela é resistente e resiliente e dá origem a uma nova civilização de híbridos.
A!B: Como o seu olhar se voltou para a Amazônia?
A floresta tropical da Amazônia se repete em meu trabalho como um local particularmente rico para investigar as implicações das cadeias de commodities do capitalismo global e, portanto, uma perpetuação das forças coloniais representadas no meio ambiente, culturas e povos da região. Mas a Amazônia é o lado reprimido das narrativas da modernidade brasileira que retratam a capital do Brasil à frente e no centro. Crescer em Brasília instigou meu interesse por aquelas contranarrativas não reconhecidas, implícitas no ambiente fabricado, e fundamentou os meus trabalhos anteriores sobre a Amazônia, que focavam no legado de incursões de profissionais extrativistas e deslocamentos arquitetônicos na floresta.
A!B: Qual a ligação dos seus trabalhos com os pensamentos das grandes nações sobre o meio ambiente hoje?
As obras da Art Basel HK abordam a pegada da sociedade de consumo na sedimentação geológica da Terra como um alerta para uma mudança comportamental coletiva atrasada que reconhece que os seres humanos são parte da natureza e que precisamos trabalhar contra a passividade que cerca essa questão.
Acredito que parte dessa obsessão espacial vem de nossa ansiedade sobre os resultados potencialmente catastróficos do aquecimento global na Terra, e a outra parte é apenas a cultura do medo em jogo para justificar a criação de uma indústria interplanetária que pode eventualmente usar dinheiro e recursos públicos. Os trabalhos da Art Basel HK concentram-se na corrida espacial para Marte como uma forma ilusória de abordar as questões ambientais atuais.
Entre 3 e 7 de abril, o Pavilhão da Bienal, no Parque do Ibirapuera, será casa do Festival de Arte de São Paulo (SP-Arte) novamente. Comemorando a 15ª edição, a feira terá seus setores de arte comandados por novos curadores. Além disso, haverá 165 expositores no total: 121 galerias de Arte, e 44 de Design e inaugura o setor OpenSpace, que leva esculturas para a parte externa do prédio, com curadoria de Cauê Alves.
Quando convidada para a curadoria do setor SOLO, a chilena Alexia Tala pensou imediatamente em uma frase que lhe foi dita por Aracy Amaral há alguns anos: que o Brasil estava de costas para a América Latina. O que ela queria dizer é que o país estava sempre com o olhar voltado à Europa e aos Estados Unidos, sem criar vínculos com o próprio continente do qual faz parte. Foi por isso, conta Alexia, que ofereceu como proposta à Fernanda Feitosa, diretora da instituição, “usar a feira, especificamente os projetos em SOLO, como uma plataforma para nos abrirmos para olhar para si mesmos, entendendo que o Brasil é tão parte da América Latina como o resto”, conta a curadora para aARTE!Brasileiros.
O pensamento a levou para uma obra da série Profecias, de Randolpho Lamonier, artista que estará presente na mostra do setor, na qual há a previsão de que em 2050 todos irão descobrir que o Brasil é a América Latina. Alexia, que também está trabalhando na curadoria da Bienal de Arte Paiz, na Guatemala, foi juntando ideias e moldando o seu desejo por formar uma estrutura curatorial que falasse de território por meio de teorias pós-coloniais: “Fiz a seleção de artistas desde uma perspectiva territorial contextual da América Latina. Como nos vemos? Quantas identidades diferentes foram criadas? E quais se tornam fictícias? Estas foram as primeiras perguntas que me fizeram pensar sobre a ideologia colonial”, explica.
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Feliciano Centurión, Sem título / Untitled, 1989
FOTO: Walden Gallery
Randolpho Lamonier, Sem título, série "Profecias", 2018. FOTO: Periscópio Galeria
Sandra Vásquez de la Horra, "La florecida", 2014. FOTO: Cortesia Bendana-Pinel Galería
Nesta perspectiva, a curadora de SOLO leva à SP-Arte Rafael Pagatini (Brasil, OÁ), María Edwards (Chile, Patricia Ready), Ayrson Heráclito (Brasil, Portas Vilaseca), Nicole Franchy (Peru, IK Projects), Feliciano Centurión (Argentina, Walden), Manata Laudares (Brasil, Sé), Randolpho Lamonier (Brasil, Periscópio), Alejandra Pietro (Chile, Die Ecke), Sandra Vásquez de la Horra (Chile, Bendana-Pinel) e Fernando Bryce (Peru, Espaivisor). São artistas que, com formas muito diferentes de trabalhar, levantam os questionamentos que ela se fez: “Perguntas atemporais que são atualizadas toda vez que vemos o exotismo exigido de fora para nosso território”.
Seja na recuperação de “uma memória religiosa e a força mística da cultura afro-baiana” feita por Heráclito, na reconstrução da História e na reflexão sobre ela “a partir do registro do que é necessário para manter dentro da história e não esquecer” feitas por Pagatini ou na conscientização sobre a AIDS feita por Centurión em uma “crônica pessoal de seu caminho para a morte” o setor SOLO vai aproximando os países do continente por meio de questões em comum.
Já no setor Masters, antigo Repertório, o novo curador, Tiago Mesquita, não buscou um eixo temático ou histórico. O crítico de arte conta que a experiência na curadoria de um evento como a SP-Arte ainda é muito nova para ele: “É muito atípico em relação a outros trabalhos que já fiz em curadoria”.
Tiago escolheu trazer para o Masters obras produzidas entre os anos 50 e 80, por serem trabalhos que “podemos olhar com certa distância temporal” para compreendê-los e compreender também a produção de seus respectivos autores. Carlos Fajardo (Marcelo Guarnieri), Ridyas (Central) e um projeto de Rubens Gerchman (Superfície), dentre outros.
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Rubens Gerchman, Sem título (Caixa de Morar), 1968/1998. FOTO: Cortesia Galeria Superfície.
Fernando Zarif, Sem título (Retrato), c. 1980. FOTO: Luciana Brito Galeria
Rydias Sem Título, s/d. FOTO: Central Galeria
A maior surpresa talvez seja no setor Performance. Marcos Gallon, que também organiza a mostra de performance arte VERBO, escolheu não destinar um espaço só para os trabalhos que serão apresentados. As performances aconteceram em espaços destinados a elas espalhados entre os expositores. A ideia de Gallon é incentivar as galerias a também levarem seus artistas que atuam com performance, assim o gênero se incorpora como outro meio possível de arte, não ficando marginalizado a um canto fechado. Até porque, segundo Gallon, a grande maioria das galerias de arte do estado de São Paulo representam artistas que trabalham com a performance.
Gallon também é impulsionado pela ideia de estimular colecionadores a comprar performances, fazer com que olhem ela como algo possível de ser vendido pelas galerias: “Assim, ela é trazida para o eixo da feira, que é a comercialização”. Para isso, a SP-Arte comprará uma das obras apresentadas e doará para o acervo da Pinacoteca de São Paulo. A obra será escolhida pela equipe da instituição, liderada por Jochen Volz. Estarão no setor os artistas Cadu (Vermelho), Cristiano Lenhardt (Fortes D’Aloia & Gabriel), Jorge Soledar (Portas Vilaseca), Maria Noujaim (Galeria Jaqueline Martins) e Jaime Lauriano (Galeria Leme/AD).
Premiações
O Prêmio SP-Arte de Residência, que oferece ao vencedor três meses de residência na conceituada Delfina Foundation, em Londres, têm seis finalistas, ao invés de cinco, como é de costume. Desta vez, o grande número de inscritos fez com que a SP-Arte escolhesse um nome a mais. Os selecionados foram: Bruno Faria (Periscópio Arte Contemporânea), Daniel Lie (Casa Triângulo), Jaime Lauriano (Galeria Leme A/D), Leticia Ramos (Mendes Wood DM), Paul Setúbal (Andrea Rehder Arte Contemporânea) e Virginia de Medeiros (Galeria Nara Roesler).
Na terceira edição, o Prêmio de Arte Marcos Amaro, uma parceria com a feira, mostrou o quanto foi interessante para os artistas que participam da feira, já que este ano se inscreveram 139 artistas com projetos, sites specifics, o que fez com que o anúncio dos finalistas fosse postergado por alguns dias. O ganhador será agraciado com um valor de R$ 50 mil, além de uma bolsa de até R$ 45 mil para a produção de um projeto artístico inédito na FAMA – Fábrica de Arte Marcos Amaro em Itu. O trabalho desenvolvido poderá ser adquirido posteriormente para o acervo da Fundação Marcos Amaro. Ambas as premiações terão seus resultados divulgados no dia 4 de abril, na SP-Arte.
Vista de Tania Bruguera, Hyundai Comission, Turbine Hall, Tate Modern, 2018
A escolha do coletivo ruangrupa (isso mesmo, com letra minúscula iniciando um nome próprio e que, em tradução livre do indonésio, significa “um espaço para a arte “)para a direção artística da Documenta 15, que será realizada em 2022 na cidade de Kassel, é uma decisão coerente e afinada com o atual estado da arte contemporânea.
Por um lado a escolha é surpreendente, frente ao ataque que a instituição teve pelos governantes locais, quando edição anterior teve um déficit de R$ 32 milhões, grande parte causada pelo compartilhamento da mostra com a cidade de Atenas, chegando a um orçamento total de R$ 202 milhões.
Foram ataques de conteúdo político, típicos da atual estratégia da guerra contra a cultura, também em voga no Brasil, que ignoraram as questões essenciais da exposição, concentrando-se em uma perda econômico-financeira, quando se sabe que arte e cultura não dão lucro em nenhum lugar. A Documenta 14 teve recorde de público, com 1,23 milhão de visitantes, contra 904 mil da edição anterior.
Mas o ponto essencial é que a Alemanha não se curvou às falas de políticos desavisados e, honrando a tradição democrática da Documenta, convidou para integrar a equipe de seleção oito especialistas de renome internacional, entre eles, a diretora da Tate Modern, Frances Morris; a curadora sul-africana Gabi Ngcobo; o diretor do museu Van Abbe, Charles Esche, e o diretor da Pinacoteca de São Paulo, Jochen Volz. Esses quatro nomes já apontam para a representatividade da diversidade cultural do comitê.
“Escolhemos o ruangrupa graças à habilidade que o grupo demonstrou em chamar várias comunidades, incluindo públicos que vão além das audiências tradicionais do meio artístico, e promover participação e compromissos locais”, afirmou a equipe, em nota à imprensa.
Essa declaração ressalta dois eixos que merecem ser observados com atenção e refletem algumas das propostas mais importantes do sistema de arte atual: ir além das “audiências tradicionais” e o envolvimento com o contexto.
O próprio ruangrupa, ou Ruru, como é conhecido, deixou isso claro no texto divulgado quando se deu sua nomeação: “Se a Documenta nasceu em 1955 para curar as feridas da guerra, por que não deveríamos focar nos machucados de hoje? Em especial aqueles enraizados no colonialismo, no capitalismo ou nas estruturas patriarcais e contrastá-los com modelos baseados em parcerias que realmente capacitem pessoas a terem uma visão diferente do mundo.”
De fato, “modelos baseados em parcerias” é uma expressão essencial para se compreender arte contemporânea, desde seus primórdios nos anos 1960, mas que, muitas vezes, segue sendo preterido por modelos arcaicos, que mantêm o artista como autor criador de um objeto comercial.
Ora, desde Hélio Oiticica e Lygia Clark, no Brasil, ou Joseph Beuys, na Alemanha, a ideia de obra foi questionada, sendo substituída por outras propostas visando a ampliação do que seria o lugar da arte: seja na criação da Universidade Internacional Livre, como defendeu Beuys, em um ambiente terapêutico, para Clark, ou um espaço de encontro, para Oiticica.
Em um texto de 2012, para a edição 30 da revista inglesa Afterall, o crítico David Teh aponta como o ruangrupa “tem feito um profundo compromisso com Jacarta, tanto como lugar quanto como sujeito, e para sua população, tanto como público quanto como autor. Desde o primeiro dia, o grupo tem feito da cidade — a barulhenta máquina de comércio e administração não considerada fonte de cultura — uma protagonista primária de uma aventura épica de narração coletiva”.
Nesse sentido, a ideia de artista-propositor, defendida tanto por Oiticica quanto por Clark, fica clara. Ainda segundo Teh, no mesmo artigo, “a prodigiosa capacidade do coletivo alcança uma estética diversificada, incorporando desde o punk à cultura de rua, passando pela pesquisa documental e etnográfica, chegando até a experimentos conceituais e processuais. Misturar tudo é uma convicção firme de que os participantes são agentes em uma história social viva”.
Essa proposta de considerar o público como agente, afinal, é tudo que Beuys e Oiticica buscavam, em um programa que defendia uma expansão tão grande do campo artístico que não haveria mais limite entre arte e vida. “O museu é o mundo”, defendia Oiticica. “Todo mundo é um artista”, pregava Beuys. Não por acaso, foi na Documenta 6, em 1982, que o artista alemão usou a mostra como espaço para a Universidade Internacional Livre, e dois anos depois realizou uma série de cartões postais com textos provocativos, entre eles a frase “Com isso abandono a arte”, tornando manifesto o esgotamento institucional da arte, no momento do chamado “retorno à pintura”. Alguns meses depois, ele morreria.
Nesses últimos 50 anos, muitas propostas semelhantes foram apresentadas, como uma do francês Nicolas Bourriaud, que chegou a traçar uma teoria um tanto eurocêntrica, a “estética relacional”, dando conta de uma produção que também se valia de parcerias.
Contudo, entre as propostas recentes e mais radicais está a obra da cubana Tania Bruguera, na Tate Modern, durante sua instalação no Turbine Hall, entre outubro de 2018 a fevereiro deste ano. Junto com a ocupação do espaço monumental, ela também foi responsável pelo programa Tate Exchange, braço do educativo do museu, em uma ação inédita que mudou o nome do edifício Boiler House da Tate Modern para Natalie Bell, em homenagem a uma ativista local, além de trabalhar com um grupo de vizinhos do museu, o que ocorreu pela primeira vez na história da instituição, que será mantido por três anos.
Em palestra na Suíça, em Verbier, Bruguera defendeu o que considera a nova forma de entender o que é estética hoje. Para tanto, ela separou a palavra em espanhol, o que também vale para português, em “Est Etica”, ou seja, ser ético. “Essa é a questão essencial na produção artística de hoje, levar em conta o contexto, ser ético com o outro”, disse a artista. Ela chegou a promover encontros entre os moradores e responsáveis pelo museu.
No Brasil, muitos são os artistas que vêm buscando criar pontes com grupos e comunidades específicas. Há quem abra seu ateliê transformando-o em espaço de acolhimento para pessoas trans, enquanto outros participam de atividades em ocupações, como na Ocupação 9 de Julho, ou mesmo trabalhem com instituições como as Redes da Maré, no Rio, gerando ações de defesa desses espaços. São todas atividades que partem de um compromisso com questões sociais que se mesclam com preocupações do campo da arte ou que tem nele um gatilho. A Casa do Povo, no bairro do Bom Retiro, em São Paulo, tem sido um lugar privilegiado para esse tipo de parceria.
Por isso, quando Ade Darmawan, um dos membros de ruangrupa, afirma que “um artista deve ser capaz de constantemente balançar a fé das pessoas e tudo que está em volta dela ou dele, e contribuir criticamente para negociações sociais sobre valores existentes”, é possível constatar que a Documenta 8 15 vai seguir sendo o melhor termômetro para a arte ou não-arte do presente.
Na Página anterior, ALTO, residência artística criada por Marianne Soisalo, localizado nas montanhas de Alto Paraíso de Goiás.
Foi graças ao filme De olhos bem fechados (1999), de Stanley Kubrick, que a brasileira de família finlandesa Marianne Soisalo criou uma das residências artísticas mais radicais em meio à natureza exuberante das montanhas de Alto Paraíso de Goiás, a 230 km de Brasília, na Chapada dos Veadeiros.
Vivendo em Londres nos anos 1990, Mari, como é chamada pelos amigos, era uma das proprietárias do cabaré Madame Jojo, que foi alugado por Kubrick para gravar uma das cenas de seu filme, quando o personagem interpretado por Tom Cruise encontra o amigo músico.
“Com o dinheiro do aluguel ela comprou o terreno onde hoje funciona a residência”, conta o artista Rodrigo Garcia Dutra, que desde o ano passado divide a responsabilidade pela residência ALTO com Mari.
Apesar de o filme ter sido rodado no final do século passado, o terreno em Alto Paraíso foi adquirido apenas em 2008 e as construções tiveram início em 2011. Nesse meio tempo, Mari, ativista ambiental com mestrado em Zoologia pela Universidade de Cambridge, dormia no Bruce, seu Landrover, quando ia à região.
Obra de Manoela Medeiros
No local ela mandou construir duas casas em árvores distintas, planejadas e realizadas por um especialista alemão, uma delas a 30 metros de altura. A visão de lá é deslumbrante, com direito a araras azul sobrevoando a região. Essas casas são a base do Mariri Jungle Lodge, uma casa criativa e um espaço de projetos de permacultura. Foi junto com a artista Karolina Daria Flora e o artista espanhol Rafael Perez Evans, atualmente vivendo em Londres, que ela criou o ALTO, recebendo artistas tanto por inscrição pelo site www.altoartresidency.com quanto por convite, o que tem sido organizada por Dutra e Mariana Bassani.
O artista foi morar em Alto Paraíso, em 2017, para trabalhar no Instituto de Arte e Educação da Secretaria de Educação de Goiás e atuar com arte em escolas públicas e em um assentamento dos Sem Terra. “Depois de cinco meses no serviço público decidi sair, e como já estava em contato com a Mari, acabei me envolvendo na residência”, conta Dutra. Tendo se formado pelo Royal College of Art, Londres, em 2014, ele retornou ao Brasil para participar da mostra Histórias Mestiças, no mesmo ano, realizada no Instituto Tomie Ohtake, e acabou se envolvendo com os índios Huni Kuin, que lá estavam para um ritual de ayahuasca na obra de Ernesto Neto. “Por conta desse chá acabei decidindo voltar ao Brasil”, explica o artista.
ALTO é uma residência bastante particular, com tempo de estadia aberto, por estar voltada a artistas com envolvimento com a terra e com a sustentabilidade. É o caso, por exemplo, da escritora inglesa Olivia Sprinkel, que irá passar um tempo lá nos próximos meses, escrevendo sobre o aquecimento global,.
Contudo, não são apenas ativistas os convidados, mas também aqueles interessados na temática, como foi o caso dos artistas Manoela Medeiros e Romain Dumesnil, que passaram duas semanas por lá no final do ano passado, a convite de Dutra. Juntos, eles possuem o Átomos, um espaço de arte autônomo, no Rio de Janeiro. Já passaram pela residência a convite de Dutra as artistas Marcia Ribeiro, Julie Beaufils, Daniela Fortes e Bia Monteiro, sendo que, ainda em 2019, está programada a vinda do artista Ivan Grilo.
Obra do artista Romain Dumesnil
“Acho importante deslocar para fora dos grandes centros urbanos os espaços de produção e reflexão em arte”, defende Dutra.
Uma das obras criadas por Medeiros na residência é uma releitura de Caminhando, obra emblemática criada por Lygia Clark, em 1964, por sua vez uma apropriação da fita de Moebius, onde dentro e fora se constitui como mesmo espaço. Enquanto a obra de Clark é em papel, a revisão de Medeiros é com folhas de árvores de Bananeira.
Se por um lado a experiência em Alto do Paraíso é deslumbrante, por conta da diversidade das florestas e cachoeiras da região, ela também é desafiadora frente aos conflitos com o agronegócio. Foi ele, provavelmente, o responsável pelo incêndio ocorrido em outubro de 2017, que destruiu 35 mil hectares de vegetação do cerrado no Parque Nacional dos Veadeiros, logo após sua expansão em cerca de três vezes. Especula-se que o incêndio, iniciado ao mesmo tempo em muitos lugares diferentes, teria sido uma contraofensiva dos fazendeiros.
Com essa situação de polarização, o que afinal é o retrato do Brasil atual, ALTO se torna uma experiência de imersão em um santuário ecológico que, longe de ser mero turismo, é afinal outra forma de vivenciar os conflitos e dilemas mais centrais do país.