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Clarissa Tossin é destaque na Art Basel Hong Kong

Clarissa Tossin, 'Old Planet' e 'Mars Rising', 2019. FOTO: Instagram Clarissa Tossin

A brasileira Clarissa Tossin é um dos destaques do setor Discoveries da Art Basel Hong Kong, sendo representada pela galeria Commonwealth and Council, sediada em Los Angeles. Apresentando uma nova leva de trabalhos. Em 2018, Tossin já tinha exposto na cidade asiática, convidada a exibir a obra em vídeo Ch’u Mayaa (2017) na mostra Emerald City (2018) na K11 Art Foundation.

A artista falou à ARTE!Brasileiros sobre o trabalho que apresenta na ABHK 2019:

A!B: Como o livro de Octavia Butler inspirou você nesses trabalhos para o Basel Art HK?

Clarissa Tossin: Os trabalhos apresentados na Art Basel Hong Kong são parte de um trabalho maior que surgiu do meu interesse no uso de tradições indígenas amazônicas de Octavia E. Butler em sua trilogia de ficção científica Xenogenesis (1987-89), onde a Amazônia se torna o local para uma nova civilização de híbridos humano-alienígenas, os Oankali, após o colapso ecológico autoinfligido da Terra. Eu amo a figura do Ooloi na série de Butler, eles são o terceiro sexo indeterminado do Oankali que, na minha opinião, incorporam certas características de um xamã nativo, dada sua capacidade de armazenar toda a informação genética que eles adquirem dentro de seus corpos pela ingestão de amostras. O fato de o Ooloi “ingerir” amostras de nosso mundo vivo para compreendê-lo/decodificá-lo oferece uma conexão a Antropofagia, sobre canibalizar a cultura como estratégia de sobrevivência: “Só a antropofagia nos une”. Aposto que Manifesto Antropofágico foi uma das referências de Butler. Eu também estou particularmente interessada na protagonista da trilogia, Lilith, que incorpora características de um guerreiro amazônico. Ela é resistente e resiliente e dá origem a uma nova civilização de híbridos.

A!B: Como o seu olhar se voltou para a Amazônia?

A floresta tropical da Amazônia se repete em meu trabalho como um local particularmente rico para investigar as implicações das cadeias de commodities do capitalismo global e, portanto, uma perpetuação das forças coloniais representadas no meio ambiente, culturas e povos da região. Mas a Amazônia é o lado reprimido das narrativas da modernidade brasileira que retratam a capital do Brasil à frente e no centro. Crescer em Brasília instigou meu interesse por aquelas contranarrativas não reconhecidas, implícitas no ambiente fabricado, e fundamentou os meus trabalhos anteriores sobre a Amazônia, que focavam no legado de incursões de profissionais extrativistas e deslocamentos arquitetônicos na floresta.

A!B: Qual a ligação dos seus trabalhos com os pensamentos das grandes nações sobre o meio ambiente hoje?

As obras da Art Basel HK abordam a pegada da sociedade de consumo na sedimentação geológica da Terra como um alerta para uma mudança comportamental coletiva atrasada que reconhece que os seres humanos são parte da natureza e que precisamos trabalhar contra a passividade que cerca essa questão.

Acredito que parte dessa obsessão espacial vem de nossa ansiedade sobre os resultados potencialmente catastróficos do aquecimento global na Terra, e a outra parte é apenas a cultura do medo em jogo para justificar a criação de uma indústria interplanetária que pode eventualmente usar dinheiro e recursos públicos. Os trabalhos da Art Basel HK concentram-se na corrida espacial para Marte como uma forma ilusória de abordar as questões ambientais atuais.

Novos ares na SP-Arte

Jorge Soledar, A morte do boneco, 2017-2019.

Entre 3 e 7 de abril, o Pavilhão da Bienal, no Parque do Ibirapuera, será casa do Festival de Arte de São Paulo (SP-Arte) novamente. Comemorando a 15ª edição, a feira terá seus setores de arte comandados por novos curadores. Além disso, haverá 165 expositores no total: 121 galerias de Arte, e 44 de Design e inaugura o setor OpenSpace, que leva esculturas para a parte externa do prédio, com curadoria de Cauê Alves.

Quando convidada para a curadoria do setor SOLO, a chilena Alexia Tala pensou imediatamente em uma frase que lhe foi dita por Aracy Amaral há alguns anos: que o Brasil estava de costas para a América Latina. O que ela queria dizer é que o país estava sempre com o olhar voltado à Europa e aos Estados Unidos, sem criar vínculos com o próprio continente do qual faz parte. Foi por isso, conta Alexia, que ofereceu como proposta à Fernanda Feitosa, diretora da instituição, “usar a feira, especificamente os projetos em SOLO, como uma plataforma para nos abrirmos para olhar para si mesmos, entendendo que o Brasil é tão parte da América Latina como o resto”, conta a curadora para a ARTE!Brasileiros.

O pensamento a levou para uma obra da série Profecias, de Randolpho Lamonier, artista que estará presente na mostra do setor, na qual há a previsão de que em 2050 todos irão descobrir que o Brasil é a América Latina. Alexia, que também está trabalhando na curadoria da Bienal de Arte Paiz, na Guatemala, foi juntando ideias e moldando o seu desejo por formar uma estrutura curatorial que falasse de território por meio de teorias pós-coloniais: “Fiz a seleção de artistas desde uma perspectiva territorial contextual da América Latina. Como nos vemos? Quantas identidades diferentes foram criadas? E quais se tornam fictícias? Estas foram as primeiras perguntas que me fizeram pensar sobre a ideologia colonial”, explica.

Nesta perspectiva, a curadora de SOLO leva à SP-Arte Rafael Pagatini (Brasil, OÁ), María Edwards (Chile, Patricia Ready), Ayrson Heráclito (Brasil, Portas Vilaseca), Nicole Franchy (Peru, IK Projects), Feliciano Centurión (Argentina, Walden), Manata Laudares (Brasil, Sé), Randolpho Lamonier (Brasil, Periscópio), Alejandra Pietro (Chile, Die Ecke), Sandra Vásquez de la Horra (Chile, Bendana-Pinel) e Fernando Bryce (Peru, Espaivisor). São artistas que, com formas muito diferentes de trabalhar, levantam os questionamentos que ela se fez: “Perguntas atemporais que são atualizadas toda vez que vemos o exotismo exigido de fora para nosso território”.

Seja na recuperação de “uma memória religiosa e a força mística da cultura afro-baiana” feita por Heráclito, na reconstrução da História e na reflexão sobre ela “a partir do registro do que é necessário para manter dentro da história e não esquecer” feitas por Pagatini ou na conscientização sobre a AIDS feita por Centurión em uma “crônica pessoal de seu caminho para a morte” o setor SOLO vai aproximando os países do continente por meio de questões em comum.

Já no setor Masters, antigo Repertório, o novo curador, Tiago Mesquita, não buscou um eixo temático ou histórico. O crítico de arte conta que a experiência na curadoria de um evento como a SP-Arte ainda é muito nova para ele: “É muito atípico em relação a outros trabalhos que já fiz em curadoria”.

Tiago escolheu trazer para o Masters obras produzidas entre os anos 50 e 80, por serem trabalhos que “podemos olhar com certa distância temporal” para compreendê-los e compreender também a produção de seus respectivos autores. Carlos Fajardo (Marcelo Guarnieri), Ridyas (Central) e um projeto de Rubens Gerchman (Superfície), dentre outros.

A maior surpresa talvez seja no setor Performance. Marcos Gallon, que também organiza a mostra de performance arte VERBO, escolheu não destinar um espaço só para os trabalhos que serão apresentados. As performances aconteceram em espaços destinados a elas espalhados entre os expositores. A ideia de Gallon é incentivar as galerias a também levarem seus artistas que atuam com performance, assim o gênero se incorpora como outro meio possível de arte, não ficando marginalizado a um canto fechado. Até porque, segundo Gallon, a grande maioria das galerias de arte do estado de São Paulo representam artistas que trabalham com a performance.

Gallon também é impulsionado pela ideia de estimular colecionadores a comprar performances, fazer com que olhem ela como algo possível de ser vendido pelas galerias: “Assim, ela é trazida para o eixo da feira, que é a comercialização”. Para isso, a SP-Arte comprará uma das obras apresentadas e doará para o acervo da Pinacoteca de São Paulo. A obra será escolhida pela equipe da instituição, liderada por Jochen Volz. Estarão no setor os artistas Cadu (Vermelho), Cristiano Lenhardt (Fortes D’Aloia & Gabriel), Jorge Soledar (Portas Vilaseca), Maria Noujaim (Galeria Jaqueline Martins) e Jaime Lauriano (Galeria Leme/AD).

Premiações

O Prêmio SP-Arte de Residência, que oferece ao vencedor três meses de residência na conceituada Delfina Foundation, em Londres, têm seis finalistas, ao invés de cinco, como é de costume. Desta vez, o grande número de inscritos fez com que a SP-Arte escolhesse um nome a mais. Os selecionados foram: Bruno Faria (Periscópio Arte Contemporânea), Daniel Lie (Casa Triângulo), Jaime Lauriano (Galeria Leme A/D), Leticia Ramos (Mendes Wood DM), Paul Setúbal (Andrea Rehder Arte Contemporânea) e Virginia de Medeiros (Galeria Nara Roesler).

Na terceira edição, o Prêmio de Arte Marcos Amaro, uma parceria com a feira, mostrou o quanto foi interessante para os artistas que participam da feira, já que este ano se inscreveram 139 artistas com projetos, sites specifics, o que fez com que o anúncio dos finalistas fosse postergado por alguns dias. O ganhador será agraciado com um valor de R$ 50 mil, além de uma bolsa de até R$ 45 mil para a produção de um projeto artístico inédito na FAMA – Fábrica de Arte Marcos Amaro em Itu. O trabalho desenvolvido poderá ser adquirido posteriormente para o acervo da Fundação Marcos Amaro. Ambas as premiações terão seus resultados divulgados no dia 4 de abril, na SP-Arte.

Muito além da arte

Vista de Tania Bruguera, Hyundai Comission, Turbine Hall, Tate Modern, 2018

A escolha do coletivo ruangrupa (isso mesmo, com letra minúscula iniciando um nome próprio e que, em tradução livre do indonésio, significa “um espaço para a arte “)  para a direção artística da Documenta 15, que será realizada em 2022 na cidade de Kassel, é uma decisão coerente e afinada com o atual estado da arte contemporânea.

Por um lado a escolha é surpreendente, frente ao ataque que a instituição teve pelos governantes locais, quando edição anterior teve um déficit de R$ 32 milhões, grande parte causada pelo compartilhamento da mostra com a cidade de Atenas, chegando a um orçamento total de R$ 202 milhões.

Foram ataques de conteúdo político, típicos da atual estratégia da guerra contra a cultura, também em voga no Brasil, que ignoraram as questões essenciais da exposição, concentrando-se em uma perda econômico-financeira, quando se sabe que arte e cultura não dão lucro em nenhum lugar. A Documenta 14 teve recorde de público, com 1,23 milhão de visitantes, contra 904 mil da edição anterior.

Mas o ponto essencial é que a Alemanha não se curvou às falas de políticos desavisados e, honrando a tradição democrática da Documenta, convidou para integrar a equipe de seleção oito especialistas de renome internacional, entre eles, a diretora da Tate Modern, Frances Morris; a curadora sul-africana Gabi Ngcobo; o diretor do museu Van Abbe, Charles Esche, e o diretor da Pinacoteca de São Paulo, Jochen Volz. Esses quatro nomes já apontam para a representatividade da diversidade cultural do comitê.

“Escolhemos o ruangrupa graças à habilidade que o grupo demonstrou em chamar várias comunidades, incluindo públicos que vão além das audiências tradicionais do meio artístico, e promover participação e compromissos locais”, afirmou a equipe, em nota à imprensa.

Essa declaração ressalta dois eixos que merecem ser observados com atenção e refletem algumas das propostas mais importantes do sistema de arte atual: ir além das “audiências tradicionais” e o envolvimento com o contexto.

O próprio ruangrupa, ou Ruru, como é conhecido, deixou isso claro no texto divulgado quando se deu sua nomeação: “Se a Documenta nasceu em 1955 para curar as feridas da guerra, por que não deveríamos focar nos machucados de hoje? Em especial aqueles enraizados no colonialismo, no capitalismo ou nas estruturas patriarcais e contrastá-los com modelos baseados em parcerias que realmente capacitem pessoas a terem uma visão diferente do mundo.”

De fato, “modelos baseados em parcerias” é uma expressão essencial para se compreender arte contemporânea, desde seus primórdios nos anos 1960, mas que, muitas vezes, segue sendo preterido por modelos arcaicos, que mantêm o artista como autor criador de um objeto comercial.

Ora, desde Hélio Oiticica e Lygia Clark, no Brasil, ou Joseph Beuys, na Alemanha, a ideia de obra foi questionada, sendo substituída por outras propostas visando a ampliação do que seria o lugar da arte: seja na criação da Universidade Internacional Livre, como defendeu Beuys, em um ambiente terapêutico, para Clark, ou um espaço de encontro, para Oiticica.

Em um texto de 2012, para a edição 30 da revista inglesa Afterall, o crítico David Teh aponta como o ruangrupa “tem feito um profundo compromisso com Jacarta, tanto como lugar quanto como sujeito, e para sua população, tanto como público quanto como autor. Desde o primeiro dia, o grupo tem feito da cidade — a barulhenta máquina de comércio e administração não considerada fonte de cultura — uma protagonista primária de uma aventura épica de narração coletiva”.

Nesse sentido, a ideia de artista-propositor, defendida tanto por Oiticica quanto por Clark, fica clara. Ainda segundo Teh, no mesmo artigo, “a prodigiosa capacidade do coletivo alcança uma estética diversificada, incorporando desde o punk à cultura de rua, passando pela pesquisa documental e etnográfica, chegando até a experimentos conceituais e processuais. Misturar tudo é uma convicção firme de que os participantes são agentes em uma história social viva”.

Essa proposta de considerar o público como agente, afinal, é tudo que Beuys e Oiticica buscavam, em um programa que defendia uma expansão tão grande do campo artístico que não haveria mais limite entre arte e vida. “O museu é o mundo”, defendia Oiticica. “Todo mundo é um artista”, pregava Beuys. Não por acaso, foi na Documenta 6, em 1982, que o artista alemão usou a mostra como espaço para a Universidade Internacional Livre, e dois anos depois realizou uma série de cartões postais com textos provocativos, entre eles a frase “Com isso abandono a arte”, tornando manifesto o esgotamento institucional da arte, no momento do chamado “retorno à pintura”. Alguns meses depois, ele morreria.

Nesses últimos 50 anos, muitas propostas semelhantes foram apresentadas, como uma do francês Nicolas Bourriaud, que chegou a traçar uma teoria um tanto eurocêntrica, a “estética relacional”, dando conta de uma produção que também se valia de parcerias.

Contudo, entre as propostas recentes e mais radicais está a obra da cubana Tania Bruguera, na Tate Modern, durante sua instalação no Turbine Hall, entre outubro de 2018 a fevereiro deste ano. Junto com a ocupação do espaço monumental, ela também foi responsável pelo programa Tate Exchange, braço do educativo do museu, em uma ação inédita que mudou o nome do edifício Boiler House da Tate Modern para Natalie Bell, em homenagem a uma ativista local, além de trabalhar com um grupo de vizinhos do museu, o que ocorreu pela primeira vez na história da instituição, que será mantido por três anos.

Em palestra na Suíça, em Verbier, Bruguera defendeu o que considera a nova forma de entender o que é estética hoje. Para tanto, ela separou a palavra em espanhol, o que também vale para português, em “Est Etica”, ou seja, ser ético. “Essa é a questão essencial na produção artística de hoje, levar em conta o contexto, ser ético com o outro”, disse a artista. Ela chegou a promover encontros entre os moradores e responsáveis pelo museu.

No Brasil, muitos são os artistas que vêm buscando criar pontes com grupos e comunidades específicas. Há quem abra seu ateliê transformando-o em espaço de acolhimento para pessoas trans, enquanto outros participam de atividades em ocupações, como na Ocupação 9 de Julho, ou mesmo trabalhem com instituições como as Redes da Maré, no Rio, gerando ações de defesa desses espaços. São todas atividades que partem de um compromisso com questões sociais que se mesclam com preocupações do campo da arte ou que tem nele um gatilho. A Casa do Povo, no bairro do Bom Retiro, em São Paulo, tem sido um lugar privilegiado para esse tipo de parceria.

Por isso, quando Ade Darmawan, um dos membros de ruangrupa, afirma que “um artista deve ser capaz de constantemente balançar a fé das pessoas e tudo que está em volta dela ou dele, e contribuir criticamente para negociações sociais sobre valores existentes”, é possível constatar que a Documenta 8 15 vai seguir sendo o melhor termômetro para a arte ou não-arte do presente.

Desvio para a Chapada

Na Página anterior, ALTO, residência artística criada por Marianne Soisalo, localizado nas montanhas de Alto Paraíso de Goiás.

Foi graças ao filme De olhos bem fechados (1999), de Stanley Kubrick, que a brasileira de família finlandesa Marianne Soisalo criou uma das residências artísticas mais radicais em meio à natureza exuberante das montanhas de Alto Paraíso de Goiás, a 230 km de Brasília, na Chapada dos Veadeiros.

Vivendo em Londres nos anos 1990, Mari, como é chamada pelos amigos, era uma das proprietárias do cabaré Madame Jojo, que foi alugado por Kubrick para gravar uma das cenas de seu filme, quando o personagem interpretado por Tom Cruise encontra o amigo músico.

“Com o dinheiro do aluguel ela comprou o terreno onde hoje funciona a residência”, conta o artista Rodrigo Garcia Dutra, que desde o ano passado divide a responsabilidade pela residência ALTO com Mari.

Apesar de o filme ter sido rodado no final do século passado, o terreno em Alto Paraíso foi adquirido apenas em 2008 e as construções tiveram início em 2011. Nesse meio tempo, Mari, ativista ambiental com mestrado em Zoologia pela Universidade de Cambridge, dormia no Bruce, seu Landrover, quando ia à região.

Obra de Manoela Medeiros

No local ela mandou construir duas casas em árvores distintas, planejadas e realizadas por um especialista alemão, uma delas a 30 metros de altura. A visão de lá é deslumbrante, com direito a araras azul sobrevoando a região. Essas casas são a base do Mariri Jungle Lodge, uma casa criativa e um espaço de projetos de permacultura. Foi junto com a artista Karolina Daria Flora e o artista espanhol Rafael Perez Evans, atualmente vivendo em Londres, que ela criou o ALTO, recebendo artistas tanto por inscrição pelo site www.altoartresidency.com quanto por convite, o que tem sido organizada por Dutra e Mariana Bassani.

O artista foi morar em Alto Paraíso, em 2017, para trabalhar no Instituto de Arte e Educação da Secretaria de Educação de Goiás e atuar com arte em escolas públicas e em um assentamento dos Sem Terra. “Depois de cinco meses no serviço público decidi sair, e como já estava em contato com a Mari, acabei me envolvendo na residência”, conta Dutra. Tendo se formado pelo Royal College of Art, Londres, em 2014, ele retornou ao Brasil para participar da mostra Histórias Mestiças, no mesmo ano, realizada no Instituto Tomie Ohtake, e acabou se envolvendo com os índios Huni Kuin, que lá estavam para um ritual de ayahuasca na obra de Ernesto Neto. “Por conta desse chá acabei decidindo voltar ao Brasil”, explica o artista.

ALTO é uma residência bastante particular, com tempo de estadia aberto, por estar voltada a artistas com envolvimento com a terra e com a sustentabilidade. É o caso, por exemplo, da escritora inglesa Olivia Sprinkel, que irá passar um tempo lá nos próximos meses, escrevendo sobre o aquecimento global,.

Contudo, não são apenas ativistas os convidados, mas também aqueles interessados na temática, como foi o caso dos artistas Manoela Medeiros e Romain Dumesnil, que passaram duas semanas por lá no final do ano passado, a convite de Dutra. Juntos, eles possuem o Átomos, um espaço de arte autônomo, no Rio de Janeiro. Já passaram pela residência a convite de Dutra as artistas Marcia Ribeiro, Julie Beaufils, Daniela Fortes e Bia Monteiro, sendo que, ainda em 2019, está programada a vinda do artista Ivan Grilo.

Obra do artista Romain Dumesnil

“Acho importante deslocar para fora dos grandes centros urbanos os espaços de produção e reflexão em arte”, defende Dutra.

Uma das obras criadas por Medeiros na residência é uma releitura de Caminhando, obra emblemática criada por Lygia Clark, em 1964, por sua vez uma apropriação da fita de Moebius, onde dentro e fora se constitui como mesmo espaço. Enquanto a obra de Clark é em papel, a revisão de Medeiros é com folhas de árvores de Bananeira.

Se por um lado a experiência em Alto do Paraíso é deslumbrante, por conta da diversidade das florestas e cachoeiras da região, ela também é desafiadora frente aos conflitos com o agronegócio. Foi ele, provavelmente, o responsável pelo incêndio ocorrido em outubro de 2017, que destruiu 35 mil hectares de vegetação do cerrado no Parque Nacional dos Veadeiros, logo após sua expansão em cerca de três vezes. Especula-se que o incêndio, iniciado ao mesmo tempo em muitos lugares diferentes, teria sido uma contraofensiva dos fazendeiros.

Com essa situação de polarização, o que afinal é o retrato do Brasil atual, ALTO se torna uma experiência de imersão em um santuário ecológico que, longe de ser mero turismo, é afinal outra forma de vivenciar os conflitos e dilemas mais centrais do país.

A arte precisa de identidade

Retrato da série 'As Mulheres de Lá', de Fernanda Feher
Retrato da série 'As Mulheres de Lá', de Fernanda Feher
Fernanda Feher em seu ateliê no espaço Pivô

O espaço Pivô, sediado no ilustre edifício Copan, no centro de São Paulo, reforça cada vez mais seu compromisso em incentivar investigações e experimentos na arte, acolhendo artistas, curadores e pesquisadores em programas que oferecem. Um deles, o Pivô Pesquisa, se destina a residências oferecidas ao longo do ano a brasileiros ou estrangeiros emergentes, moldadas de acordo com o que busca cada um que se inscreve, com duração de aproximadamente três ou quatro meses cada.

Nos quase seis anos desde sua criação, participaram 145 artistas de 20 países diferentes, promovendo atividades que permitem importantes trocas entre os próprios participante, mas também com agentes externos, sejam eles críticos de arte ou o próprio público. Além disso, o programa dispõe de uma série de parcerias institucionais, que permitem intercâmbios valiosos, como com a CPPC (Colección Patricia Phelps de Cisneros), o British Council, o Matadero Madrid, o Centro Cultural São Paulo e a ArtRio.

Na primeira residência de 2018, participam 13 artistas. São eles:  Adrián S. Bará, Anna Costa e Silva, Carolina Cordeiro, Carolina Maróstica, deco adjiman, Fernanda Feher, Gilson Rodrigues, Leandra Espírito Santo, Maya Weishof, Renan Marcondes, Rui Dias Monteiro, Tomaz Klotzel e Vanessa da Silva.

ARTE!Brasileiros conversou com a artista Fernanda Feher, nascida em São Paulo e que atualmente mora em Portugal, sobre a temática do projeto que desenvolve no Pivô:

ARTE!Brasileiros: Quando você decidiu que queria ser artista?

Fernanda Feher: Passei a adolescência desenhando e pintando, até que meu seu diretor de teatro me disse: “Você tem que estudar pintura”.  Foi assim que sai do Brasil e estudei dez anos no PRATT Institute, no Brooklin, Nova Iorque, onde firmei minha vocação.

Porém, sempre fui idealista, ativista. Me envolvia no dia a dia com preocupações sociais e políticas. Na época, tinha a Fernanda pintora e a Fernanda ativista. Fazia trabalhos voluntários. Era uma divisão que me incomodava. Com o tempo criei o projeto “As mulheres de lá”, onde consegui sintetizar minha verdadeira vocação, trazer histórias para dentro da minha obra. Fiquei aliviada.

A!B: Como você criou este projeto?

Comecei a pesquisar a África e ver onde poderia colaborar. Fui primeiro para Tanzânia, numa escola de uma canadense que dava aula para mulheres adultas, com o objetivo de ajudá-las a criar independência de seus maridos ou de como se fortalecer individualmente e poder se independizar economicamente para poder trabalhar. Fiquei um mês e meio por lá.

Existem várias organizações com as que entrei em contato, uma delas baseada em Londres, Orchid, que me impressionou muito. Cuidam da questão da mutilação feminina no mundo inteiro.

Apresentei minha ideia original: viajar, entrevistar e pintar essas mulheres e utilizar a venda do trabalho para sustentar o trabalho da organização.

Assim, fui para o Quênia e, sem querer, para uma região próxima da Tanzânia.

O trabalho é muito difícil, porque a conscientização contra a mutilação genital esbarra com a questão cultural. Apesar disso ter sido banido pelo governo, as famílias tradicionais esperam as férias escolares para mandar as meninas todas, ao mesmo tempo, para fazer a mutilação. Para eles, a mutilação forma parte do “crescimento da mulher”. Algumas mulheres, não mutiladas, não conseguem casar ou sofrem bullying. A mutilação forma parte do “ser mulher”.

Ela acontece entre os 9 e 14 anos, no período em que a mulher começa a menstruar. O costume é tão arraigado que algumas famílias, hoje, fazem a mutilação no momento em que a menina nasce, como forma de driblar a lei, que agora proíbe.

Em outros casos a própria parteira, quando uma mulher não mutilada vai dar à luz, mutila a mulher no parto. Imagina o susto!

Trazer luz sobre este mito cultural impõe um trabalho seríssimo. Não pode banir e não dar o suporte à educação de porque a mutilação não seria necessária no desenvolvimento, e sim traumática. É extremamente complexo.

A!B: Você não nos contou essa história, mesmo assim fomos capturados pela sua obra mesmo sem ela ser literal. Pela força, pela cor. Como você explica isso?

Os meus retratos são de mulheres que discutem tudo isso. Algumas são mutiladas, outras são garotas que se acercaram das escolas onde estávamos para ouvir ou colaborar e dar aulas.

Eu tenho interesse em contar as histórias delas, sua força e alegria, e não necessariamente mostrar o lugar onde são vítimas. Quero tentar trazer na minha obra o outro lado. Eu gosto disso, delas se poder ver como um todo.

Acho que se eu pintasse vaginas mutiladas não estaria colaborando em nada com esse processo e talvez ninguém viesse me perguntar quem são essas mulheres…

De Nova Iorque para Paris

Santídio Pereira nasceu em Curral Comprido, no Piauí, mas mudou-se para São Paulo muito cedo, com apenas 8 anos de idade. Seu interesse por gravuras também foi bastante precoce, ainda menino, e passou a estudar técnicas artísticas no Instituto Acaia, com muito estímulo da mãe. Destacando-se especialmente na xilogravura, o jovem foi incorporado ao time de artistas da Galeria Estação, onde já realizou duas exposições individuais, em 2016 e em 2018.

Hoje com 22 anos, Santídio chamou a atenção de outros artistas, colecionadores e profissionais da arte pela sua juventude e o domínio da técnica, que para ele é uma mistura entre a pintura, o desenho e a escultura. Ele já expôs em unidades do SESC em São Paulo, Instituto Tomie Ohtake, Centro Cultural São Paulo e na feira Pinta, em Miami, dentre espaços. Desde o início de fevereiro e com o apoio da galeria Estação, ele passou a realizar uma residência artística oferecida pelo AnnexB, entidade que visa impulsionar artistas brasileiros em Nova Iorque.

Fundada em 2016, a instituição mantém um programa  de residências exclusivamente para artistas brasileiros, tendo recebido desde sua fundação nomes como Dalton de Paulo, Carla Chaim, Nino Cais e Ivan Grilo. AnnexB foi idealizado por Larissa Ferreira e tem Tatiane Schilaro como diretora criativa. Recentemente, foi anunciado que o espaço será o lugar que acolherá o vencedor do recém anunciado Prêmio Parque Lage.

Durante o mês de residência, até o começo de março, Santídio não só desenvolveu novos trabalhos como também realizou atividades pela cidade, como uma oficina para crianças na Lilian Weber School of the Arts, em parceria com a Anne Fontaine Foundation. Ao longo de sua estadia, ele conheceu o paulistano Moisés Patrício, que foi capa de nossa edição 43 com obra da série Aceita?, com quem trocou experiências e floresceu uma amizade.

Também no início de março, Santídio inaugurou uma exposição com algumas das obras produzidas no AnnexB, adicionada a outras que levou do Brasil. A mostra, que se prolonga até o dia 19 de abril, acontece em um dos locais da b[x], espaço que recebe artistas, criativos e tecnologistas para atividades. Com curadoria de Schilaro, ela foi intitulada Between Two Skies e tem são seis xilogravuas produzidas em 2016 e 12 monotipias desenvolvidas pelo artista durante seu período em residência no AnnexB. Para a curadora, a mostra “convida-nos a imaginar o colapso do horizonte, a multiplicação de firmamentos e terrenos ao se tornarem um só”.

Ainda este ano, ele realizará sua segunda exposição internacional, desta vez cruzando o oceano até Paris, onde apresentará obras na Fondation Cartier pour l’art contemporain. A instituição “dedica-se a promover e aumentar a consciência pública sobre a arte contemporânea. A cada ano, a Fondation Cartier organiza um programa de exposições baseadas em artistas ou temas individuais e comissionamento de artistas, enriquecendo assim uma importante coleção”. Por lá já passaram vários nome de artistas brasileiros, como Beatriz Milhazes, Luiz Zerbini, Adriana Varejão e Véio. A exposição na Cartier será uma coletiva, que tem como temática a ideia da árvore e acontecerá entre 9 de julho e 10 de novembro deste ano.

Não queime depois de ler

Gustavo Nobrega
Cartão postal com intervenção de Aristides Klafke

Com uma explosão silenciosa a partir dos anos 50, a arte correio tem seu pioneirismo em Ray Johnson e a New York Correspondance School, mas também parte de manifestções como o Fluxus, de Maciunas. Como o nome entrega, é um movimento no qual a arte cabe dentro de um envelope ou pacote que possa ser transportado via correio. As possibilidades são muitas e não se limitam apenas a cartas ou cartões postais. No Brasil, o movimento começou a ganhar corpo a partir dos anos 60.

Também conhecido como arte postal — termo que caiu em desuso por reduzi-lo apenas a uma das coisas utilizadas, o cartão postal —, o movimento consiste em uma troca de informações, criação de redes e, naquela época, uma nova mídia para a arte. Não se pode deixar enganar achando que apenas obras feitas em papel eram enviadas por correio, mas também objetos, fitas K7s e vídeos, alguns trocavam inclusive pedaços de tecido das próprias roupas. Os artistas buscavam formas de explorar todos os cinco sentidos no que era enviado para os colegas.

Esse movimento “não é mais um “ismo”, e sim a saída mais viável que existia para a arte nos últimos anos e as razões eram simples: antiburguesia, anticomercial, anti-sistema, etc”, escreveu o artista Paulo Bruscky em texto publicado em 1976 no Jornal Letreiro, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Para ele, um dos expoentes nacionais da arte correio, o movimento foi essencial no que diz respeito a quebrar barreiras, seja por atravessar fronteiras físicas ao interligar artistas de todos os cantos do planeta ou por não haver “nem julgamentos nem premiações aos trabalhos”.

Com um clima marginal, já que apenas os que recebem e repassam têm contato com os trabalhos, a arte correio ficou fechada a seus agentes, criando uma fluidez intimista. No Brasil, o movimento ganhou uma grande homenagem na Bienal de São Paulo de 1981, onde teve um espaço apenas para expor peças produzidas nesse fluxo, convidando artistas de todo o mundo. A curadoria geral daquela edição foi do crítico Walter Zanini, que há alguns anos já se dedicava a destacar a arte correio em suas falas e em seus escritos. Em texto de 1977 para o jornal O Estado de São Paulo, ele comentou não se podia “negar que essa atividade desencadeia situações comunicacionais e estruturais novas para a linguagem artística”.

Envolvido com pesquisas sobre grupos marginais, como o Poema-Processo e o Nervo Óptico, que tiveram exposição na Galeria Superfície nos últimos anos, o diretor da galeria, Gustavo Nóbrega, dedicou-se também a pesquisar a arte correio, criando um interesse por incentivar sua circulação no mercado: “A ideia é criar um olhar de colecionismo para isso, além de divulgar e mostrar essa produção que foi importantíssima”.

Durante as últimas férias de final de ano, Nóbrega fez uma viagem para o Nordeste para visitar ateliês de artistas que participaram daquelas atividades, ele aponta a região como berço da vanguarda do movimento. Em São Paulo, encontrou muito pouco material, “um, dois ou três envelopinhos”, lá ele encontrou obras aos montes, “arquivos gigantescos”. A arte correio, que teve ainda maior adesão de artistas no Brasil por volta dos anos 70, não foi assimilada como algo comercial: “Era uma coisa até anti-mercado”, ele conta. As obras eram trocadas entre os próprios artistas, instituições e galerias não integraram isso substancialmente a seus acervos. Até porque, segundo Gustavo, os próprios artistas não tinham a intenção de vender esses trabalhos.

A Superfície representa Falves Silva, um dos nomes que mais produziu na arte correio. Foi no ateliê de Falves que Gustavo encontrou grande parte de obras que trouxe consigo para São Paulo. A priori, tinha intenção de fazer uma exposição apenas com trabalhos do movimento, mas achou que seria muita informação. Algumas das obras que passaram pela pesquisa de Nóbrega estão na exposição atual da galeria, intitulada Novos Meios e Conceitualismo nos anos 70. A mostra terá arte postal de Avelino de Araújo, Paulo Bruscky, Edgar Antonio Vigo, Falves Silva e da australiana Pat Larter, dentre outros. Materiais do coletivo Karimbada além de obras da exposição Olho Mágico (1978) também estarão inclusos.

Delicada potência

Rosana Paulino, a permanência das estruturas

*por Solange Farkas

 

Em meio à produção artística que emerge das regiões de passado colonial do mundo, a obra de Rosana Paulino vem se tornando referência diante de nossos olhos. Na pesquisa curatorial que busca as vozes e falas desse polo geopolítico – e que alimenta as ações do Videobrasil –, sua força se impõe cada vez mais. Lembro-me da impressão que me causaram os primeiros trabalhos da artista que vi, sobretudo a série Bastidores (1997), na qual uma costura raivosa e definitiva toma o espaço de decoro e recato (branco, feminino e burguês) do bordado para calar e cegar mulheres negras. Ou das monotipias Proteção extrema contra a dor e o sofrimento (2011), nas quais linhas de costura caem dos olhos de uma figura nua de mulher para compor algo que parece um arremedo frágil de coberta protetora, mas também um emaranhado que limita e aprisiona.

Esta última série foi escolhida pelo artista e curador Daniel Lima para integrar a exposição Agora somos todxs negrxs?, que compôs o programa do Galpão Videobrasil em 2017. A mostra incluía ainda Tecido social, gravura de título irônico em que Paulino junta imagens com suturas malfeitas e costuras forçadas para por em xeque ideias de sociabilidade pacífica e unidade nacional. Disposto a desafiar a perpetuação do mito da cordialidade racial brasileira, inclusive no meio da arte, Lima reunia uma geração que se propõe a desconstruir o que descreve como o “tríplice trauma da colonização (extermínio das populações nativas, escravidão e perseguição religiosa) por meio do poder micropolítico da arte”.

Essas experiências pregressas com o trabalho da artista não me prepararam para o impacto que senti ao percorrer a exposição Rosana Paulino: costura da memória. Foi só diante do corpo de obra reunido pela Pinacoteca de São Paulo que me dei conta da real dimensão da produção da artista. Impressiona o domínio e a maestria com que ela se serve de uma diversidade de técnicas e linguagens, como aquarela, desenho, cerâmica, vídeo, bordado, escultura. Mas, mais ainda, a potência poética e política de sua narrativa, que mergulha na história para trazer à tona um passado doloroso e sua herança muito presente, seja na forma de impacto sensorial, seja por meio de associações instigantes de ideias.

Olhando em retrospecto mais de duas décadas de produção da artista, é especialmente tocante notar a delicadeza com que expõe questões e situações extremas, como a violência imposta à mulher, sobretudo negra, o mal-dissimulado racismo brasileiro e a ausência e a invisibilidade social do negro, frequentemente reduzido à condição de objeto de estudo das ciências naturais por nossa iconografia histórica – um repertório do qual Rosana, não à toa, se utiliza amplamente. Alguns entre muitos exemplos são o traço delicado e fluido com que ela reconecta à terra o corpo feminino negro, fragmentado e desenraizado pela escravidão, em Assentamentos; e a leveza das pequenas esculturas de cerâmica reunidas na instalação Tecelãs (2009), que evoca com grande pungência a dor da dupla submissão de ser mulher e negra.

Ao fazer jus a uma produção madura e de potência rara, a exposição na Pinacoteca revela Rosana Paulino como uma das artistas mais importantes em ação na cena contemporânea brasileira. Essa percepção reforça, mas não antecede, o convite que fizemos a Paulino para que apresente, na 21ª Bienal de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil, uma obra inédita, que está sendo comissionada pelo evento. A Bienal acontece a partir de outubro em São Paulo e investiga, por meio de um conjunto expressivo de trabalhos, como poéticas oriundas do Sul se relacionam com a ideia de comunidades novas, criadas por princípios distintos daqueles que fundaram os Estados nacionais. Como as que se aproximam de um caráter familiar ou tribal, expressando seus afetos em experiências de cunho doméstico ou memorialístico. Partindo de questões recorrentes em seu trabalho, relacionadas à memória e à ancestralidade, Rosana Paulino dialoga com esse universo e se aventura em uma nova linguagem. A exposição apresentada na Pinacoteca irá para o MAR – Museu de Arte do Rio em 13 de abril e ficará em cartaz até o final de agosto.


Rosana Paulino: a costura da memória
Curadoria de Valéria Piccoli e Pedro Nery
A partir de 13 de abril
Museu de Arte do Rio: Praça Mauá, 5 – Centro, Rio de Janeiro – RJ

Um jardim de códigos

Detanico Lain, Mares da Lua (lunar maria), 2018

É limitador atribuir à dupla Angela Detanico e Rafael Lain separadamente uma formação quando se fala em sua produção artística. É mais verdadeiro dizer que ambos são linguistas, designers gráficos, tipógrafos e semiologistas. E, claro, artistas. Afinal, há mais de 20 anos juntos, desde que migraram pela primeira vez, do Rio Grande do Sul para São Paulo, tudo o que foi aprendido era compatilhado. Tanto isso é verdade que chega a ser admirável, inclusive, o fato de um completar o outro de forma precisa quando uma palavra foge ao raciocínio, apesar de dificilmente palavras escaparem dessa dupla que a domina. “Uma parte grande da nossa produção é a criação de tipografias, de sistemas de escritas, nos interessamos muito pelos códigos, pelos alfabetos de diferentes lugares do mundo”, conta Angela. A mostra no Espaço Cultural Porto Seguro, em São Paulo, que se estende até 21 de abril, dá a dimensão disso na obra da dupla.

Hoje casados e com dois filhos, Rafael e Angela vivem em Paris e fazem parte de um grupo seleto de artistas, observados de perto por colecionadores e instituições de todo o mundo. A arte passou a ser a dedicação definitiva dos dois quando, em 2002, receberam uma bolsa no Palais de Tokyo. Já trabalhavam com design gráfico, desenvolvendo projetos e identidades visuais.

Angela e Rafael comentam que a ideia para organizar a mostra parte de um conceito de jardim, mas os japoneses, não os parisienses: “Os da França são muito organizados para nós”, ela brinca e continua: “Se bem que somos até bem ordenados nesses trabalhos, mas acho que a experiência de jardim corresponde mais ao japonês, um pouco mais selvagem”. Todas as obras possuem alguma ligação com a luz. Afinal, é a luz que indica a passagem do tempo, que permeia todas as obras em algum ponto. E é a luz que mantém um jardim vivo e forte.

Os primeiros trabalhos que o público encontra ao adentrar a exposição não dão ainda o tom exato do que será encontrado no andar de cima e no subsolo, além das obras na parte externa do prédio. Apesar de todos terem um diálogo entre si e partirem de códigos, não se invadem e não ditam uma obviedade. Cachoeira do silêncio (2018) foi produzida especialmente para a parede diagonal na entrada do local. Tendo como base uma foto de uma cachoeira que a dupla visitou em Kyoto, é trabalhada verticalmente em cima das linhas de pixels da imagem, desencadeando as cores por toda a parede, explica Angela: “É uma imagem fixa que vai sendo mostrada pouco a pouco”. Rafael conta que o som que acompanha a obra é o original da cachoeira japonesa.

Detanico Lain, Ulysses, 2017

Outra obra que representa um lugar afetivo para os artistas e que é mostrada pela primeira vez é Da Luz ao Paraíso (2018), que remonta o percurso entre os bairros paulistanos, respeitando o traçado das ruas e o relevo do trajeto. No mesmo ambiente, é reproduzida em uma parede Ulysses (2017), trabalho no qual uma figura humana definida por palavras caminha, em referência ao livro homônimo de James Joyce. Na narrativa, a personagem principal caminha pela cidade de Dublin durante 18 horas, redefinindo sua relação com o espaço (a cidade) e o tempo. O texto que constrói o corpo na parede é o livro de Joyce, cada passo é uma página virada.

Essa sensação da modificação do espaço e do tempo pode ser sentida por quem visita a exposição, que está a todo momento trazendo a reflexão sobre essa temporalidade. E é essa a intenção da dupla, podendo-se dizer que concluem esse desejo com sucesso.

Também inédita, a obra Nuvens de São Paulo (2018) esconde um texto de Oswald de Andrade, graficamente transformado em formatos de nuvens ao serem desfocadas, que se deslocam pela enorme tela na parede do mezanino. A literatura se faz muito presente na vida de Angela e Rafael, sendo material de muita pesquisa também: “A nossa biblioteca é uma parte muito importante da nossa vida”, reconhece Detanico. E a linguagem, seja por códigos, pixels, palavras ou imagens, permeia toda a exposição. Tudo se vincula também à origem do casal, que começou a trabalhar em conjunto na área do design gráfico, especialmente com tecnologia, no final dos anos 90.

No mezanino, os artistas explicam a vontade de trabalhar usando a arquitetura do espaço na construção da paisagem: de um lado as nuvens, opostas à cachoreira. No chão, a instalação Onda de Sal (2010), sendo uma figura formada pela palavra “onda”, escrita em um código criado pela dupla: “Uma parte grande da nossa criação diz respeito ao desenvolvimento de novas tipografias. Nos interessamos muito pelos alfabetos, as diferentes formas de escrita pelo mundo”. A geometria das letras nesse alfabeto cria diferentes modulações para a onda.

Já em outra parede, o público se depara com as 28 Luas (2014), uma videoinstalação onde a figura é formada pelo texto (assim como em Ulysses). No caso, a figura de uma lua é construída pelo texto de Galileu Galilei na primeira vez que observou o satélite, cada um dos vinte e oito minutos pelos quais o vídeo se estende forma um estado da lua a cada 28 dias de sua variação durante um ciclo. Outra experiência com a lua espera o público no subsolo: Mares da lua (2018) é uma videoinstalação que reflete em telas compostas por pedrinhas de jardim o nome dos mares presentes no satélite, como Mar da Tranquilidade e Mar das Ilhas. A luz cai sobre posições de letras, como uma gota, também em um código, formando as palavras e se abrindo pelas telas.

Para trazer uma reflexão sobre os problemas contemporâneos que envolvem um espectro geopolítico, Detanico Lain achou pertinente que a obra Ruído branco (2006), que teve estreia durante a Bienal de Veneza, fosse incluída na mostra. Fechando o percurso de 14 obras, várias imagens de satélite de um espaço da Floresta Amazônica são colocadas em camadas, aos poucos isso ganha intrusões de um branco, sendo apagado continuamente, fazendo referência aos problemas do desmatamento e as questões climáticas: “Se em 2006 isso era importante, agora isso é urgente”, dizem os dois quase em uníssono.

O Espaço Cultural Porto Seguro fará uma série de atividades relacionadas à mostra durante o período expositivo, que vai de 19 de janeiro até 7 de abril. Uma dessas atividades, ainda sem data, consiste na apresentação de uma performance pela SP Companhia de Dança, em um espaço reservado na instalação de Quadrado branco, trabalho que se desdobra a partir de três poemas do japonês Kitasono Katue. A obra foi criada em uma residência feita pelo casal no Japão, na qual se propuseram a estudar os textos do poeta.

 

Conexões no acervo do MAM

Keila Alaver, Sem título, 2000

Passado/Futuro/Presente, exposição em cartaz no Museu de Arte Moderna de São Paulo, é mais do que uma mostra comemorativa. Concebida no bojo das celebrações de 70 anos de criação do museu e originalmente criada há dois anos para apresentar o acervo da instituição para o público de Atlanta (vale a pena destacar que foi a primeira mostra do MAM em território norte-americano), a seleção oferece uma interessante oportunidade de fruição e reflexão sobre aspectos importantes da arte contemporânea brasileira. 

O critério adotado pelos curadores Cauê Alves e Vanessa Davidson não é nem cronológico nem temático. As 72 obras selecionadas para a versão brasileira, que ocupa a sala principal do museu até 21 de abril, não foram escolhidas com o objetivo de narrar ou ilustrar uma história oficial da arte nacional nem tampouco apresentar uma trajetória particular do acervo. A potência plástica, conceitual ou poética do trabalho, bem como sua capacidade de se conectar com outras peças da seleção, parecem ter sido os critérios mais importantes de escolha. Isso já fica evidente na primeira obra, “Notas sobre uma Cena acesa”, de José Damasceno. Este sedutor painel, que recria com centenas de lápis amarelos a imagem em perspectiva de uma silhueta observando uma tela, desperta imediatamente a simpatia do público, como testemunham o sorriso frequente na fisionomia dos visitantes. Apuro e criatividade formal, capacidade de síntese e apropriação de materiais e procedimentos incomuns estão entre os aspectos preponderantes desta obra e que ecoam por toda a exposição.

Como estrutura organizadora, a mostra está subdividida em cinco blocos: O corpo/O corpo social; Identidades mutáveis; Paisagem reimaginada; Objetos impossíveis; e a Reinvenção do monocromo. Mas tal segmentação é bastante porosa, como dizem os curadores já na apresentação. Assim, um mesmo trabalho muitas vezes se vincula a mais de um núcleo e muitas vezes serve de elemento condutor entre um e outro. É o caso, por exemplo, da escultura/instalação em mármore de Laura Vinci, que faz uma suave transição entre o bloco dedicado à paisagem e aquele que apresenta uma série de investigações sobre a monocromia.

Esse segmento dedicado a trabalhos que exploram a potência da cor não em sua diversidade, mas em sua essência formal mais pura, é um dos mais interessantes da exposição. E não só porque reúne obras importantes de autores bastante diferentes, como Rosangela Rennó e Antonio Manuel. Mas também porque ele parece sutilmente indicar que a tentativa de associar a arte brasileira ao uso generoso e abundante das cores seria reiterar estereótipos e que é preciso olhar para os mais diferentes aspectos de uma pesquisa de arte, sem reduzir as pesquisas a um único motivo central como a pesquisa conceitual ou o engajamento político. Curiosamente, este núcleo reúne o maior número de trabalhos abstratos da mostra, indicando que a separação entre figuração e abstração – que tanto marcou a história do museu em seus primórdios – perdeu sua relevância na atualidade.

A noção de identidade, quando pensada em sentido amplo, parece ser a que mais se sobressai na seleção e constitui um elemento central para se pensar a produção contemporânea. Seja no uso do corpo como elemento de criação, seja numa reinvenção/investigação da paisagem como lugar de síntese de uma ideia de nacionalidade que sempre escapa por entre os dedos. É interessante notar como ela está presente em investigações as mais distintas. Há uma forte presença de obras que partem da representação ou investigação do corpo humano como elemento de criação, como por exemplo a série de vídeos de Lenora de Barros acerca da imagem da artista, os comoventes pés com chagas recriados por Efraim Almeida ou ainda no já clássico trabalho 50 Horas, Autorretrato Roubado, de Rochelle Costi feito no início dos anos 1990. Mas a reflexão identitária se faz presente também em outro tipo de investigação plástica, como na irônica instalação Cortina de Vento – que brinca com o estereótipo da paisagem brasileira como um paraíso tropical cheio de coqueiros – ou ainda na icônica série de cartões postais em que Anna Bella Geiger contrapõe imagens de índios e ocidentais, mostrando como é frágil e instigante a oposição nativo versus estrangeiro.

Com trabalhos criados majoritariamente nas décadas de 1990 e 2000, a exposição mescla com cautela obras já bastante conhecidas do público e produções menos conhecidas, possibilitando reencontros agradáveis ou novas surpresas. Nessa relação entre maior e menor visibilidade, se insinua uma outra questão que parece interessante de se levar conta: a relação de mútua dependência entre artistas e museus e uma diminuição da capacidade própria de instituições como o MAM ampliarem seus acervos. Vários são os caminhos de entrada na coleção, mas – como se pode observar nas etiquetas de identificação – é inquestionável a importância das doações, sejam feitas por empresas, colecionadores, ou pelo próprio artista. Confirmando tal sensação, está a mostra que o museu dedica às novas aquisições de seu acervo, que pode ser vista na Sala Paulo Figueiredo. Ali fica claro como cada vez mais as parcerias são fundamentais para ampliar a capacidade dos museus e preencher as lacunas de sua coleção.

Passado/Futuro/Presente: Arte contemporânea brasileira no acervo do Museu de Arte Moderna de São Paulo
Curadoria de Vanessa K. Davidson e Cauê Alves
Até 28 de julho
Museu de Arte Moderna de São Paulo: Parque Ibirapuera (av. Pedro Álvares Cabral, s/nº – Portões 1 e 3)