Lívia Conduru, Keyna Eleison e Vânia Leal, do CCBA, Leise Duarte - coordenadora de projetos estratégicos e eventos da Shell e Gabriel Gutierrez, coordenador do Instituto Cultural Vale. Foto: Luiza Lorenzetti
Localizado na esquina da Rua Manoel Barata com a Travessa Campos Sales, no centro do comércio de Belém (PA), o Centro Cultural Bienal das Amazônias (CCBA), inaugurado no dia 15 de maio, surge como um ponto de convergência para diversas manifestações artísticas e culturais que expressam a diversidade e o simbolismo da Pan-Amazônia e da Amazônia Legal.
O espaço é aberto seis meses depois do encerramento da primeira edição da Bienal das Amazônias, que aconteceu também em Belém durante os dias 3 de agosto e 5 de novembro de 2023. “O Centro Cultural Bienal das Amazônias se conecta com a primeira edição da Bienal das Amazônias no momento em que a nossa proposição é constituir um elo entre esse território que é muito vasto, que está relacionado a um bioma, mas que é constituído por diversas formas de compreensão de vida e de como a gente interage com esse território” explica Lívia Conduru, presidente da Bienal das Amazônias e do CCBA.
Keyna Eleison e Vânia Leal, curadoras da Bienal das Amazônias, também integram o time do centro cultural como diretoras de pesquisa e conteúdo e de projetos especiais, respectivamente. “Este é mais um espaço com vontade de pensar, de imaginar coletivamente, de pensar processos, de receber e de enviar pesquisas, pessoas, artistas, pesquisadores, professores, não só da área da cultura, mas principalmente da área da cultura”, afirma Keyna.
No primeiro piso do edifício de 8 mil metros quadrados, o público é recebido com um conjunto de redes para descanso, ar condicionado e banheiros. Para Lívia, essa recepção já é de alguma forma parte da pedagogia da experiência e da inclusão que a equipe tem buscado: “Para que quem esteja passando na hora do almoço, entre para usar o banheiro, a rede, e queira ver o que está acontecendo”.
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Vista da exposição RGB: As Cores do Século. Foto: Luiza Lorenzetti
Carlos Cruz-Diez, Couleur Additive RVB 1 e 2, Paris, 2014. Foto: Luiza Lorenzetti
A estreia do CCBA traz a exposição “RGB: As Cores do Século”, que celebra o centenário do venezuelano Carlos Cruz-Diez, em cartaz pela primeira vez em território paraense. Ana Clara, coordenadora de pesquisa da exposição, comenta: “Nesta montagem, em particular, a gente tentou ressaltar as raízes geográficas culturais do pensamento desse artista exímio que se consolidou como um grande mestre da arte cinética e o último grande pensador da cor”.
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Paula Sampaio, Mercado do Ver-o-Peso, Bairro do Comércio, 2006. Foto: Luiza Lorenzetti
Paula Sampaio, Mercado do Ver-o-Peso, Bairro do Comércio, 2006. Foto: Luiza Lorenzetti
Paula Sampaio, Mercado do Ver-o-Peso, Bairro do Comércio, 2006. Foto: Luiza Lorenzetti
Paula Sampaio. Foto: Luiza Lorenzetti
No segundo andar, a instalação fotográfica de Paula Sampaio ocupa o espaço com fotografias e entrevistas de moradores dos principais sítios históricos de Belém, localizados no bairro da Cidade Velha, atravessando o Complexo do Ver-o-Peso e os bairros da Campina/Comércio. “O recorte curatorial foi pensado para dialogar com o prédio onde o CCBA está instaurado, no coração do comércio de Belém. Essa exposição tem uma dialógica que atravessa o entorno desse lugar, os transeuntes desse lugar e, principalmente, a história e memória das pessoas”, aponta Vânia Leal, curadora do projeto.
O CCBA está preparado para receber o público com uma infraestrutura completa, incluindo café, loja, biblioteca e acessibilidade. O novo centro cultural promete ser um espaço de troca e valorização da cultura amazônica, trazendo um novo fôlego para a cena artística de Belém.
Logo no início do texto de apresentação da exposição J. Cunha: Corpo tropical, Jochen Volz, diretor-geral da Pinacoteca de São Paulo, diz que só no ano passado a instituição passou a ter uma peça de José Antônio Cunha em seu acervo. E ressalva: “Essa inserção tardia diz mais sobre as lacunas da coleção do museu do que sobre a relevância da obra do artista e os potentes diálogos que ela promove.” De fato, é inimaginável que só agora o status quo do sistema das artes visuais do país, dominado pelos sudestinos, esteja tirando o véu que cercava a atuação de 60 anos desse artista, designer gráfico, cenógrafo e figurinista baiano.
A exposição ocupa todo o 4º andar da Pina Estação, em São Paulo, e traz cerca de 300 itens, entre os quais pinturas, desenhos, cartazes, estampas, objetos e documentos. A curadoria é de Renato Menezes, da equipe interna da Pinacoteca, que sintetiza a obra de Cunha como “produto da associação homogênea e coerente entre beleza, alegria e compromisso político”.
A abrangência da mostra surpreende mesmo aqueles que vem acompanhando mais de perto a sua trajetória, entre os quais me incluo, pois minhas visitas a Salvador sempre passam por uma ida a seu ateliê no bairro da Boca do Rio. Meu olhar tem o ponto de vista do design, área em que ele se distingue por ter sido pioneiro na criação de uma linguagem visual para os movimentos afirmativos da cultura negra no Brasil. Aliou uma grande liberdade criativa a um conhecimento profundo da herança cultural e espiritual africana e da cultura popular e erudita brasileira para desenvolver uma linguagem própria, com muita originalidade.
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Detalhe de estampa para o bloco de carnaval Ilê Ayê, de J. Cunha, presente na exposição J. Cunha: Corpo Tropical', em cartaz na Estação Pinacoteca. Foto: Levi Fanan
Detalhe do painel 'Códice', presente na exposição 'J. Cunha: Corpo Tropical', em cartaz na Estação Pinacoteca. Foto: Levi Fanan
'Barroco safado', 2013, presente na exposição 'J. Cunha: Corpo Tropical', em cartaz na Estação Pinacoteca. Foto: Levi Fanan
J. Cunha nasceu na Cidade Baixa, em Salvador, em 1948, e desde cedo conviveu com a religiosidade afro-indígena, pelo lado materno, e com a cultura cigana, pelo paterno. Adolescente sem recursos, foi cursar tornearia mecânica no Senai, onde adquiriu conhecimentos técnicos de vários ofícios. Aos 18 anos, ingressou no curso livre da Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia, conectando-se com o conhecimento dos cânones das artes visuais ao devorar os livros da biblioteca.
No fervilhante ambiente cultural baiano nos anos 1960, tornou-se bailarino, cenógrafo e figurinista do grupo folclórico Viva Bahia, criado pela etnomusicóloga Emilia Biancardi, e colaborou com o Balé do Teatro Castro Alves e do Balé Brasileiro da Bahia. Na pintura, vinculou-se ao grupo Etsedron (a palavra Nordeste ao contrário), que questionava os efeitos do avanço do capitalismo nas identidades culturais locais. O boi, o cangaço, o sertão e a religiosidade popular são elementos frequentes nos trabalhos de Cunha já desde esse período inicial, abordado na primeira sala da exposição da Pina, sob o título Made in Brasil.
A fase seguinte, dos anos 1980 a 2005, é tratada no módulo Passar por aqui. Em 1980 J. Cunha criou a marca e o sistema de identidade do bloco de carnaval Ilê Ayê, em Salvador e durante 25 anos desenvolveu as temáticas específicas de cada carnaval, forjando uma nova linguagem plástica afro-brasileira. O alcance desse trabalho foi enorme, atingindo milhares de pessoas, pois os tecidos tinham impressões de mais de 10 mil metros, com as quais se confeccionaram cerca de 3.000 trajes, que depois eram reutilizados pelas pessoas. Os temas tratados a cada ano se desdobravam em várias mídias, entre elas os Cadernos de Educação, dirigidos para escolas.
A sala traz também um expressivo conjunto de cartazes, capas de disco, capas de livro, design urbano para o carnaval e outras festas populares, cenários para shows e para televisão, alfabetos, vitrines, superfícies de louças, cardápios e projetos de identidade visual.
O último núcleo expositivo, Neobarroco afro-pop, aborda a fase a partir os anos 2000. É ali que está o monumental Códice, de três por sete metros, com 21 telas subdivididas em 25 áreas quadradas, totalizando um conjunto com 525 campos, pintado ao longo de 2011 a 2014. Comprado recentemente pelo Instituto Inhotim, o painel resulta do conhecimento profundo que J. Cunha vem acumulando a vida toda sobre a esfera do sagrado. É uma obra que se pode admirar por horas, pela riqueza dos símbolos representando um panteão de divindades afro-brasileiras.
No mesmo ano de finalização do Códice, J. Cunha projeta o gradil de ferro e aço do Museu Nacional de Cultura Afro-Brasileira (Muncab), em Salvador, em que homenageia Ogum, o orixá da metalurgia, das ferramentas e da invenção, intercalando no metal – entre soldagens, texturas e vazados – arquétipos, signos, sinais e acontecimentos da diáspora negra.
No memorial do projeto do gradil, ele se compraz com a oportunidade de “realizar uma obra de arte com utilidade pública”. A afirmação serve para dar o tom de todo um percurso balizado por uma postura política e ideológica. A rotina diária é de dedicação compulsiva, seja na pintura sobre suportes diversos, isolado em seu ateliê, seja na interação com outras equipes, criando coletivamente e “expondo” coletivamente, na escala da cidade e imbricado no cotidiano das pessoas. Os temas traduzem “a dor e a delícia” de ser quem é. Denunciam as atrocidades do processo colonizador ocorrido no país e ao mesmo tempo celebram a vitalidade da cultura afro-brasileira. Nas palavras do curador Renato Menezes no alentado catálogo que acompanha a mostra, a obra se torna “um meio de celebração da energia vital, de renovação do axé e de imaginação de um futuro afro-indígena”. Acrescento que não só a obra – também a figura do artista é celebrativa e inspiradora, firme em suas posições e simultaneamente sem perder ocasiões para a galhofa e o deboche. Os nomes de suas obras dizem um pouco sobre isso, como Paulicéia diva-irada (comprada pela Pina); Maquinaíma; Jesus-Cícero Super Star; e O bode que enganou a mãe de santo, para não ser despachado, e ainda derrubou a antena de TV.
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'Códice', painel de 3 x 7 metros, 2011-2014, de J. Cunha, na exposição 'J. Cunha: Corpo Tropical', em cartaz na Estação Pinacoteca. Foto: Levi Fanan
Vista da exposição de 'J. Cunha: Corpo Tropical', em cartaz na Estação Pinacoteca. Foto: Levi Fanan
Tecidos feitos para o Ilê Ayê entre 1980 e 2005, de J. Cunha, na exposição 'J. Cunha: Corpo Tropical', em cartaz na Estação Pinacoteca. Foto: Levi Fanan
Para Menezes, a exposição J. Cunha: Corpo tropical “estimula um ajuste de contas com a história, reconhecendo em Cunha sua energia criativa singular, animando uma das carreiras mais prolíficas da arte brasileira atual.” Vale lembrar outras iniciativas que se debruçaram em sua trajetória: o livro de Danillo Barata, professor da Universidade Federal do Recôncavo, pela Editora Corrupio, em 2016; a exposição Uanga, no Museu de Arte Moderna da Bahia, em 2023, com curadoria de Daniel Rangel; e o documentário de 25 minutos que a Pacto Filmes fez sobre ele para o canal Curta também no ano passado, com minha curadoria e direção de DJ Dolores, disponível no Prime Vídeo. Certamente há muito mais a se explorar numa produção tão versátil e fértil, com novos olhares descobrindo novas conexões e trazendo à luz a sua importância na diáspora africana mundial.
SERVIÇO
J. Cunha: Corpo tropical Até 29 de setembro Pina Estação – Largo General Osório, 66 – Santa Ifigênia, São Paulo – SP
Horários: de quarta a segunda, das 10h às 18h (entrada até 17h)
Gratuitos aos sábados – R$ 30 (inteira) e R$ 15 (meia-entrada)
Catálogo de 176 páginas, com textos de Renato Menezes, Roberto Conduru e Carol Barreto
"Já vi muitas enchentes na minha vida, mas nunca tão altas. Minha casa foi construída sobre palafitas, mas agora o andar de baixo está submerso. Eu olho pela janela e vejo rua após rua debaixo d'água - tantas casas e lojas. Tudo o que podemos fazer é esperar a água descer, limpar e continuar". João Pereira de Araújo, Rio Branco, Brasil, 14 de março de 2015. Retrato da série "Submerged Portraits".
“Houve um ponto, para mim, em que eu estava pesquisando imagens referentes ao aquecimento global e senti que elas eram muitos distantes. Eram imagens de ursos polares e geleiras e, frequentemente, cenários esteticamente lindos”, relatou uma vez Gideon Mendel à jornalista Adele Peters. O fotógrafo sul-africano – com um corpo de trabalho referente aos desastres climáticos que ultrapassa uma década – busca oferecer uma outra faceta para a representação em imagens de uma das crises globais mais desconcertantes.
Mendel confessa a Peters que “muito do diálogo em torno da mudança climática e da resposta das organizações está ligado a um tipo de movimento ecológico branco, de classe média e anteriormente hippie”, o que estaria limitando sua eficácia, tendo em vista que as mudanças climáticas afetam muitas pessoas de cor em todo o mundo – “eu realmente sinto que é necessário uma injeção de um tipo mais radical de ativismo”, complemente ele. A observação de Gideon não é despropositada, como nota o pesquisador Emmanuel Skoufias: “Enquanto os olhos do mundo estão fixos em ursos polares, pinguins da Antártida e outros habitantes ameaçados pelo derretimento das calotas polares da Terra, relativamente poucos pesquisadores têm prestado a atenção devida – até anos recentes – para quantificar os possíveis efeitos de longo prazo da mudança climática na sobrevivência humana”.
“Eu trago as pessoas para a representação das mudanças climáticas”, afirma Gideon, radicado em Londres. Com seu projeto Submerged Portraits, ele começou a documentar enchentes em 2007, quando uma série de chuvas de verão fez com que grande parte do centro e do norte da Grã-Bretanha ficasse submersa. Em questão de semanas do primeiro episódio, milhões de pessoas em Bangladesh, Índia e Nepal tiveram que escapar de enchentes muito maiores daquelas que já haviam visto. O contraste entre os impactos dos dois eventos (enquanto dividiam certa vulnerabilidade que parece fornecer um estímulo para união) motivou o fotógrafo a dar liga à ideia de retratar as vítimas de enchentes. Desde então, ele têm visitado o Austrália, Bangladesh, Caxemira, Haiti, Paquistão e os Estados Unidos, para citar alguns dos 13 países países que, dentro do projeto, representam 19 enchentes.
Antes de desenvolver Submerged Portraits (englobado por um projeto maior chamado Drowning World), Mendel já não era um novato. Ele havia representado imageticamente temas como o Apartheid e a crise do HIV/AIDS na África do Sul, trabalho pelo qual venceu o World Press Photo. Ele encara Submerged Portraits como um distanciamento do fotojornalismo clássico: “Eu não sou um documentarista, sou uma espécie de interveniente”, afirma. “Não estou apenas fotografando o que está diante de mim, estou construindo cenários com as pessoas. Estou escolhendo o fundo, estou escolhendo onde colocar as pessoas. Eu não estou indo até elas e tirando suas fotos. Não estou produzindo evidências, estou procurando fazer imagens que falam algo por serem esteticamente poderosas e até mesmo por conta de uma beleza desconcertante em meio ao horror.”
“Ninguém consegue se lembrar de uma inundação maior. Ouvi dizer que o governo tem planos de nos mudar e transformar esta área em um parque. Mas eu ouço isso há anos e ainda estamos aqui. Quando as enchentes vêm, pegamos nossas coisas e partimos por um tempo”. Francisca Chagas dos Santos, Rio Branco, Brasil, 10 de março de 2015. Retrato da série “Submerged Portraits”.
Há algo desconcertante sobre as imagens. Por um lado são retratos convencionais de pessoas em pé, na frente da câmera e olhando para ela. No entanto, o contexto, a paisagem e o ambiente são extraordinários. Logo, eles são desconcertantes juntos. Esse formato clássico do retrato ajuda a conferir honestidade para Submerged Portraits, uma admissão da manipulação da cena.
Há uma sensação de ser testemunhado. Não posso ajudar as pessoas, não tenho recursos para trazer mudanças. Mas eu ofereço uma espécie de testemunho. E algumas pessoas parecem valorizar e apreciar.
Quando veio para Rio Branco, em 2013, o nível do Rio Acre havia alcançado 17,88 metros, tendo ultrapassado sua cota histórica, registrada em 1997, ao marcar 17,66 metros. De acordo com o portal de notícias G1, à época, cinco abrigos públicos foram mobilizados na capital do Acre para manter seguras as vítimas da enchente: por volta de 6 mil pessoas desabrigadas e mais outras 70 mil afetadas. A reportagem também indica que quarenta dos 212 bairros da cidade foram impactados com a cheia do Rio Acre, cujo nível, normalmente, fica por volta de seis a oito metros – em períodos de seca pode ficar abaixo de três. Mendel relata que quando chegou lá, o nível da água já havia abaixado, tendo antes passado por cima dos telhados de algumas casas. “As pessoas [que retratei] pertenciam a uma comunidade pobre e eles não tinham acesso a água encanada, então usavam a água da enchente para limpar suas paredes”.
Da série “Floodlines”: Mendel registra a marca deixada pelo aumento no nível da água na entrada de uma casa no distrito de Taquari. Rio Branco, Brasil, março de 2015.
Analisando o cenário de resposta ambiental de lá para cá, o fotógrafo faz a ressalva: “Não era que o governo antes de Bolsonaro fosse brilhante em termos de sua resposta ao meio ambiente, aliás acho que vinha agindo de maneiras muito contraditórias. Mas agora, o que é aterrorizante, em um sentido global, é que, em um momento da história em que se precisa de uma ação global coordenada – particularmente em mudanças climáticas -, há tantos líderes populistas no mundo que estão fazendo o seu melhor para minar esforços ambientais – e acho que com grande apoio de um complexo industrial petroquímico”.
Em 2011, no artigo Quatro frases que aumentam o nariz do Pinóquio, o jornalista e escritor uruguaio Eduardo Galeano também nota o apoio de setores da indústria nessa reversão dos esforços ambientais – embora, naquela época, não se referindo ao fenômeno do populismo. Galeano nos lembra que das dez maiores empresas produtoras de sementes do mundo, seis fabricam pesticidas (Sandoz-Ciba-Geigy, Dekalb, Pfizer, Upjohn, Shell, ICI). “A indústria química não tem tendências masoquistas”, escreve o uruguaio. Ele afirma: “A recuperação do planeta ou daquilo que nos sobre dele implica na denúncia da impunidade do dinheiro e da liberdade humana. A ecologia neutra, que mais se parece com a jardinagem, torna-se cúmplice da injustiça de um mundo, onde a comida sadia, a água limpa, o ar puro e o silêncio não são direitos de todos – mas, sim, privilégios dos poucos que podem pagar por eles”.
A relação entre classe e a crise ambiental, ressaltada por Galeano nesse trecho, vem ganhando maior atenção na última década. Este é um fator que Mendel não deixou passar em branco, pela diversidade tempo-espacial entre seus representados, pessoas que – mesmo pertencentes a um mesmo país, mas em regiões diferentes – terão condições distintas para lidar com os estragos causados pelas enchentes e a reconstrução das suas vidas.
Em relatório liberado pelo Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais das Nações Unidas (DESA-ONU), a desigualdade social (não só econômica, mas também de poder político) e a crise climática são interligadas – majoritariamente – por três fatores: a exposição dos grupos sociais desfavorecidos aos “efeitos adversos da mudança climática”; a suscetibilidade dos grupos desfavorecidos a danos causados por perigos climáticos; e a capacidade relativa desses grupos de lidar e se recuperar dos danos que sofrem. No caso das enchentes, por exemplo, grupos desfavorecidos têm maior probabilidade de viver em áreas propensas a serem alagadas, no entanto, apresentam menor poder econômico e político para se recuperar dos estragos causados pelas enchentes e/ou cobrar uma compensação do Estado.
“Vivemos no capitalismo. Seu poder parece inescapável. O mesmo aconteceu com o direito divino dos reis. Qualquer poder humano pode ser resistido e mudado por seres humanos. Resistência e mudança geralmente começam na arte”, disse a falecida escritora Ursula K. Le Guin em 2014, aos seus 84 anos. Em relação à fala de Le Guin, Mendel confessa: “Eu gostaria de concordar, mas me sinto muito desolado em relação ao futuro”. Apesar disso, ele também nota que poderia ser surpreendido. “Cheguei à maioridade na África do Sul, no final dos anos 1980. Eu nunca teria imaginado que o Apartheid teria caído, era completamente inconcebível, então podemos nos surpreender de como as coisas mudam.”
“Outros incêndios me atingiram anos atrás, mas este era um monstro; estava correndo tão rápido quanto minha van. Não me restou uma foto para mostrar aos meus filhos como era a avó deles. Não tenho mais fotos da minha infância ou de qualquer coisa que fiz quando era adolescente. É como se eu nunca tivesse existido.”, diz Anthony Montagner. Na foto da série “Fire”, Anthony está junto de sua família, sua esposa Fina e seus filhos Christian (9) e Dylan (6), onde costumava ser seu lar, agora completamente derrubado pelas chamas. Upper Brogo, Austrália, 18 de janeiro de 2020.
A desesperança na sua fala é posta à prova, no entanto, pela continuidade dos seus projetos, que segundo o fotógrafo se estabelecem em uma pirâmide sustentada entre documentário, arte, e ativismo. “Com Drowning World, sempre foi um debate:quando terminamos? Posso terminar? E em que momento? Em que ponto está completo? E essa é uma questão que ainda não resolvi por mim mesmo, porque sempre há mais o que fazer”. Mendel também planeja dar continuidade ao projeto Fire, que percorre outra faceta dos desastres climáticos impulsionados pela ação humana. Para sua próxima empreitada com Fire, o fotógrafo planeja reunir fundos para financiar uma volta à Califórnia, onde fotografou em 2018, e ao Brasil, para documentar as consequências da queima do Pantanal.
Com Drowning World, sempre foi um debate: quando terminamos? Posso terminar? E em que momento? Em que ponto está completo? E essa é uma questão que ainda não resolvi por mim mesmo, porque sempre há mais o que fazer.
Além de dar seguimento a esses dois trabalhos, ele estuda a possibilidade de realizar uma produção inédita partindo de sua história familiar. Seus pais foram judeus alemães que encontraram refúgio na África do Sul. Sua avó paterna também tentou sair da Alemanha, mas acabou não conseguindo. O pai do fotógrafo manteve os documentos que haviam sido preparados para a vinda da mãe, no entanto. A isso, Gideon soma correspondências e álbuns feitos pela avó, que estudou fotografia em Berlim de 1915 a 1917. “Há tantos anos que estou preso neste trabalho e sempre resisti a começá-lo, mas chegou a hora de tentar. Talvez eu tivesse que esperar a morte da minha mãe; ela faleceu há dois anos. O problema é que esta não é uma história única, muitas famílias ficaram feridas pelas migrações, a questão é como faço isso, o que eu consigo trazer para esse projeto”. Resta acompanhar seu percurso para saber.
*Modificações foram realizadas no artigo a fim de clareza.
Performance de 'O Barco', de Grada Kilomba. Foto: Icaro Moreno
Em sua retomada de projetos monográficos, o Instituto Inhotim convidou a artista portuguesa Grada Kilomba para ocupar a Galeria Galpão, onde já foram apresentados trabalhos de William Kentridge, Janet Cardiff e George Bures Miller. Ali, Grada recriou O Barco – The Boat, cuja versão original foi exibida em 2021 no Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia (MAAT), de Lisboa, e na Somerset House, em Londres.
A instalação que faz parte de O Barco foi feita inteiramente em Inhotim. Ela é composta de 134 blocos de madeira queimada, dispostos em uma área de mais de 220m². A estrutura faz uma alusão às embarcações que transportaram pessoas escravizadas durante séculos de tráfico transatlântico. Com uma tinta a óleo dourada, uma seringa e um pincel, Grada gravou versos do poema O Barco* em 18 deles. O mesmo texto aparece em iorubá, kimbundu, crioulo cabo-verdiano, português, inglês e árabe da Síria.
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Grada Kilomba no ensaio para a performance de 'O Barco'. Foto: Daniela Paoliello
Instalação 'O Barco', de Grada Kilomba. Foto: Icaro Moreno
Performance de 'O Barco', de Grada Kilomba. Foto: Icaro Moreno
Em meados de abril, quando a mostra individual de Grada Kilomba foi inaugurada, o poema foi recitado pela primeira vez, durante uma performance com um grupo de cantores de gospel e ópera, bailarinos clássicos e percussionistas, vindos de Portugal. A apresentação será remontada futuramente com artistas locais de Brumadinho e da região, que passarão por oficinas no instituto.
Ao explicar a concepção de O Barco, Grada ressalta que se trata de um “objeto vivo”, e que ela trabalha, em seu processo criativo, com “três grandes temas”: a violência, a morte e a repetição. Um caminho que ela considera “muito intenso”, feito de muita leitura e muita escrita, livros espalhados por sua casa e por seu estúdio.
“Daí eu começo a traduzir a minha pesquisa em imagens, movimentos, sons. E a obra começa então a aparecer. Para mim é importante não me fixar num material ou suporte. A obra me diz como quer aparecer. Com madeira, com terra, com música, performance, recursos digitais. Quase que me sussurra ao ouvido”, diz.
Segundo Júlia Rebouças, diretora artística do Inhotim, O Barco responde ao desejo de articular, na programação, conceitos relevantes para a instituição, a saber, a relação entre arte e natureza, a conexão com o território de Brumadinho, onde se encontra o instituto, e a contemporaneidade.
“Nesse sentido O Barco é um projeto muito simbólico, com muitas camadas. É performático, escultórico, monumental. E também vai ganhando contornos de poesia, de música, e sendo ativado pelo território ao longo do tempo”, afirma Júlia. “É também um trabalho que diz respeito a um passado que precisa ser revisto, revisitado criticamente, mas que também aponta para o futuro. E isso nos interessa muito. Todas essas visadas que nos levam outros contextos, outros mundos possíveis”.
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Performance de 'O Barco', de Grada Kilomba. Foto: Icaro Moreno
Performance de 'O Barco', de Grada Kilomba. Foto: Icaro Moreno
Performance de 'O Barco', de Grada Kilomba. Foto: Icaro Moreno
*LEIA ABAIXO O POEMA O BARCO:
Um barco, um porão Um porão, uma carga Uma carga, uma história Uma história, uma peça Uma peça, uma vida Uma vida, um corpo Um corpo, uma pessoa Uma pessoa, um ser Um ser, uma alma Uma alma, uma memória Uma memória, um esquecimento Um esquecimento, uma ferida Uma ferida, uma morte Uma morte, uma dor Uma dor, uma revolução Uma revolução, uma igualdade Uma igualdade, um afeto Um afeto, a humanidade
Motivo Japonês (1959), têmpera sobre tela. Crédito:
Acervo MAC USP
Conheci o trabalho de Eleonore Koch no início deste século e, nos anos 2010 surgiu a oportunidade de organizar uma exposição sobre o seu trabalho e percurso, o que acabou não ocorrendo. Mas, enquanto durou essa possibilidade, pensava em uma exposição sóbria e que, na medida do possível, revisse toda a sua poética – uma das mais singulares que tenho visto.
Anos mais tarde me ocorreu a ideia de que seria de grande interesse organizar uma exposição que reunisse num único espaço uma significativa porção de suas obras e algumas pinturas dos dois artistas que serviram de parâmetro para Koch até que ela constituísse sua própria poética. Refiro-me ao ítalo-brasileiro Alfredo Volpi e ao inglês Patrick Caulfield.
A obra de Volpi poderia ser definida como o resultado da ação de um artista que pautou sua produção no próprio fazer pictórico, na própria expressividade da cor. Isto não significa que, para ele, a história da pintura não tenha sido importante. Todos conhecemos seu apreço pela pintura dos “primitivos” italianos. Porém, tal reconhecimento não significou que Volpi teria desenvolvido uma absorção “crítica” daquela produção. Não, a pintura daqueles artistas do começo do Renascimento na produção de Volpi serviu como combustível para seu próprio fazer pictórico que, mesmo moderno, não excluiu sua origem ou tradição.
Por sua vez, a pintura de Patrick Caulfield poderia ser caracterizada como sendo uma poética reducionista e “fria”, que passava em revista o amor meio bandido que a pintura moderna sempre nutriu pela visualidade “baixa” da cultura de massa. De Léger, e passando por tantos outros – sobretudo pelos pop (com os quais ele não gostava de ser associado) –, Caulfield representou objetos chapados no plano, com cores saturadas e delineados fortemente, trazendo para o âmbito da pintura erudita – e do seu jeito – a cultura visual dos meios de massa.
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"Interior: Night" (1970-1), de Patrick Caulfield. Crédito: Institute of Contemporary Prints
"Small Green Pot"(1995), de Patrick Caulfield. Crédito: Bernard Jacobson Gallery
Sem título (Estudo para o mural Dom Bosco), 1960, de Alfredo Volpi. Foto: Jaime Acioli
Teria sido interessante cotejar a produção de Koch com as dos dois outros artistas para investigar os porquês das escolhas feitas por ela: como Koch pensou Caulfield em relação a Volpi e vice-versa, como Koch pensou a produção dos dois em relação a uma nova possibilidade para a sua poética?
Mas é claro que essa ideia também não vingou. Realizar uma exposição unindo obras dos três artistas era – e continua sendo –, uma missão praticamente impossível. Porém, felizmente para mim, que sempre apreciei o trabalho de Eleonore, e para todo o público interessado, no dia 6 de abril passado, o Museu de Arte Contemporânea, o MAC USP inaugurou a mostra Eleonore Koch: em cena, organizada por Fernanda Pitta, uma das curadoras da instituição.
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Sem título (1976), de Eleonore Koch, têmpera sobre tela. Crédito: Acervo MAC USP
Natureza-Morta com Moldura Verde (1970), de Eleonore Koch, têmpera sobre tela. Crédito: Acervo MAC USP
"Abismo" (1962), de Eleonore Koch, têmpera sobre tela. Crédito: Acervo MAC USP
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O MAC USP, na antiga sede do DETRAN de São Paulo, é um presente para os habitantes e visitantes da cidade. Onde já se viu no Brasil um lugar que, por si só, já é uma grande obra da arquitetura do século 20 e que, ainda por cima, apresenta um acervo com obras brasileiras e internacionais tão características da produção atual? São Paulo quando quer – e as políticas culturais dão certo –, pode ser uma mãezona. Como não vibrar quando, ao percorrer todas aquelas galerias repletas de obras de arte, encontrar a exposição dedicada à obra de Eleonore Koch, em cartaz até julho deste ano?
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Uma das questões que mais me mobilizam no trabalho de Koch é a estratégia usada pela artista para traduzir para a pintura aspectos da realidade onde ela estava mergulhada. Na verdade, o que sempre me interessou na sua obra não foi propriamente essa tradução, mas como a artista a produzia. Seguindo o fio proposto pela curadora, chego à seguinte conclusão: por estar em cena nos espaços que recria, Koch encena, com suas obras, a própria pintura; nesse sentido, ela não representa o real na pintura, mas, a seu modo, performa a própria pintura. E isso em cada uma de suas telas. E é isso que a torna tão próxima, e tão diferente, dos dois artistas que tomou como parâmetro quando ainda estava amadurecendo seu trabalho.
Grandiosa e, ao mesmo tempo, repleta de silêncio, essa retrospectiva. Durante a visita, me perguntei se a personalidade determinada de Koch talvez não buscasse esconder sua perplexidade perante o mundo ou o seu medo.
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Sem título (1963), de Eleonore Koch, têmpera sobre tela. Crédito: Acervo MAC USP
"Arco" (1960), de Eleonore Koch, têmpera sobre tela. Crédito: Acervo MAC USP
Sem título (depois de 1953), têmpera sobre tela. Crédito: Acervo MAC USP
Koch sempre pintou a pintura e, nessa performance, explorava e renovava o eterno problema dessa linguagem na modernidade. Problema inaugurado sobretudo por Paul Gauguin (será que Eleonore gostava de Gauguin?): o embate entre figura e fundo e entre eles e o olhar do espectador. Toda a obra de Koch não discute ou representa esta questão, ela é esse embate. Em suas telas, a artista elabora e reelabora esse drama que define a pintura, a partir de uma objetividade de matriz melancólica que, no limite, parece não acreditar muito no mundo, mas muitíssimo na própria pintura.
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Na mostra são, ao todo, mais de 90 pinturas, fora os inúmeros desenhos e fotografias que serviram de base para os trabalhos da artista. Obras do MAC USP, mas também de outros museus e coleções particulares estão ali reunidas não propriamente, ou não apenas, para celebrar a excelência de Eleonore Koch, mas para oferecer ao público a possibilidade de, a partir da visita à mostra, refletir sobre o próprio devir da pintura, uma vez que uma profissional tão sensível como Koch, dava sinais evidentes de (pensar) e performar a linguagem pictórica, não como expressão, mas como método.
Fóssil de planta doado ao Museu Nacional. Foto: Handerson Oliveira
OMuseu Nacional do Rio de Janeiro acaba de receber um reforço para seu acervo, quase seis anos após o incêndio que destruiu a maior parte dos 20 milhões de itens que abrigava. Por meio de uma parceria entre o Instituto Inclusartiz e a Associação Amigos do Museu Nacional (SAMN), a instituição recebeu uma doação de mais de mil fósseis pertencentes ao colecionador de origem suíço-alemã Burkhard Pohl.
Intermediada por Frances Reynolds, presidente do Inclusartiz, a iniciativa traz um novo fôlego para que a instituição possa voltar a ter um acervo robusto quando for reinaugurado, em 2026.
Graças à mobilização financeira e logística de Reynolds, um grupo de seis paleontólogos e estudantes brasileiros teve a oportunidade de realizar, em agosto de 2023, a primeira excursão de escavação conjunta no Noroeste dos Estados Unidos, explorando as terras ricas em fósseis de dinossauros da Formação Hell Creek, nos estados de Wyoming e Montana, sob orientação do Interprospekt Group. Dois alunos da equipe começaram a desenvolver um estudo sobre espécimes fósseis específicos durante a visita. Um deles usará os dados coletados em um réptil marinho em seu projeto de doutorado, e a ideia é que eles voltem a campo para seguir com as pesquisas.
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Crânio de Pterossauro Ludodactylus. Foto: Handerson Oliveira
Fóssil de Blatoidea (barata). Foto: Handerson Oliveira
Crânio de Pterossauro Tupandactylus imperator. Foto: Handerson Oliveira
Fóssil de anuro (sapo). Foto: Handerson Oliveira
Fósseis de crustáceo e de peixe. Foto: Handerson Oliveira
Alguns destaques da coleção:
– O holótipo – espécime de referência usado para descrever novas espécies – de Tetrapodophis amplectus, um fóssil único extensivamente estudado. Pohl explica: “Alguns argumentam que ele representa a espécie mais antiga de cobra, posicionada como a forma de transição entre lagartos e cobras, sugerindo a América do Sul – especificamente o Brasil – como o local de nascimento das primeiras cobras.”
– Enquanto o Brasil tem a distinção de ser o país onde mais espécies de pterossauros foram descobertas, a doação adiciona pelo menos dois crânios de pterossauros não estudados ainda, com potencial de se tornarem holótipos.
– Dois fósseis de dinossauros, provavelmente pequenos dromeossaurídeos ainda não descritos na literatura científica. São esqueletos únicos.
A esses exemplares, soma-se o crânio completo do pterossauro Tupandactylus imperator, um dos mais bem preservados já encontrados. Uma reconstrução da vida deste réptil voador foi feita e, juntamente com o fóssil, será uma atração importante nas novas exposições do Museu. Além deste pterossauro, vários outros espécimes já estão sendo estudados por pesquisadores e estudantes do Museu Nacional/UFRJ.
Performance de Paulo Nazareth, durante a abertura de sua individual "Esconjuro", no Instituto Inhotim. Foto: Daniela Paoliello
Em cartaz no Inhotim, a individual Esconjuro, de Paulo Nazareth, não poderia ser mais consonante com a proposta de programação do instituto para 2024. Com trabalhos inéditos e releituras de obras anteriores, a exposição ocupa a Galeria Praça e se espraia por outros espaços do Inhotim, respondendo ao desejo da instituição de trabalhar os conceitos de arte e natureza de forma ampliada. Ou ainda, como indagou Júlia Rebouças, diretora artística do instituto, em entrevista à arte!brasileiros: “O que podemos fazer aqui, que não se pode fazer em outro contexto?”.
Com o argumento de que Inhotim se encontra em uma “encruzilhada de muitos tempos”, num território que já foi atravessado pela Estrada de Ferro Central do Brasil, Nazareth explica que “a exposição trata do passado e de uma possibilidade de futuro que ainda não alcançamos”. A individual, lembra o artista, integra-se a um processo de trabalho iniciado com Cadernos de África, projeto concebido em 2012, composto de imagens em preto e branco, registradas durante viagens que ele fez na África e também no Brasil, envolvendo questões como trânsitos e comida.
O ponto de partida de Esconjuro foi a obra Casa de Exu (2015-2024), instalada perto da Galeria Praça. Nela, Nazareth incorpora sua proposta de uma nova relação entre tempo e espaço por meio do cheiro de aguardente que atinge o olfato das pessoas antes dos demais sentidos. Em uma das fronteiras do instituto, o artista deu início a uma plantação de bananas, frutas sempre presentes ao longo das estações do ano. Com a obra-plantação Bananal (2024), que inclui uma bananeira de bronze ancorada no chão, Nazareth novamente joga com noções de tempo e território: antes mesmo do Inhotim, a fruta já estava presente ali, alimentando trabalhadores e suas famílias.
Com Sambaki II (2024), trabalho comissionado pelo instituto, as bananas voltam como simulacros feitos de concreto, amontoadas e ladeadas por dois alto-falantes que reproduzem uma conversa no idioma crioulo. O áudio traz um diálogo, captado em São Paulo, com trabalhadores imigrantes da Guiné-Bissau, que ajudaram Nazareth na confecção de bananas de concreto. Já em Sambaki I, o artista mescla bananas de madeira e simulacros de bananas de dinamite. Novamente numa chave histórica, refere-se à primeira riqueza extraída do território brasileiro e à prática da mineração com os explosivos.
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Paulo Nazareth, durante performance para a abertura de sua individual 'Esconjuro', no Instituto Inhotim. Foto: Daniela Paoliello
Vista da exposição 'Esconjuro', de Paulo Nazareth, na Galeria Praça, do Instituto Inhotim. Foto: Ícar Moreno.
'Bananal', obra de Paulo Nazareth que integra a exposição 'Esconjuro', no Instituto Inhotim. Foto: Daniela Paoliello
'Bananal', obra de Paulo Nazareth que integra a exposição 'Esconjuro', no Instituto Inhotim. Foto: Daniela Paoliello
'Casa de Exu', obra de Paulo Nazareth na exposição 'Esconjuro', no Instituto Inhotim. Foto: Ana Clara Martins
Fazem ainda parte da individual séries de pinturas, obras externas, como Pato [Pago ou Pato feio], de 2024; peças e instalações Gameleira (2024); Alguidar (2024); Marco Temporal e Iemanjá (2023-2033); além de um conjunto de imagens de sua mãe, Ana Gonçalves da Silva.
Segundo Paulo Nazareth, o título Esconjuro é também um dos trabalhos, uma “obra imaterial” acionada, como numa performance, ao ser pronunciada por qualquer pessoa. Do mesmo jeito que seu sobrenome, que, ao ser proferido, evoca o nome da mãe de sua mãe, Nazareth Cassiano de Jesus, uma índigena da etnia borum enviada ao Manicômio de Barbacena, também em Minas Gerais, em meados dos anos 1940. Aqui, o artista se debruça sobre como a ancestralidade acompanha toda a sua produção.
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Paulo Nazareth e sua mãe, Ana Gonçalves da Silva, durante a montagem de 'Esconjuro', no Instituto Inhotim. Foto: Ana Clara Martins
Obras de Paulo Nazareth em cartaz na exposição 'Esconjuro', no Instituto Inhotim. Foto: Divulgação
Obras de Paulo Nazareth em cartaz na exposição 'Esconjuro', no Instituto Inhotim. Foto: Divulgação
Obras de Paulo Nazareth em cartaz na exposição 'Esconjuro', no Instituto Inhotim. Foto: Divulgação
Obras de Paulo Nazareth em cartaz na exposição 'Esconjuro', no Instituto Inhotim. Foto: Divulgação
A exposição solo de Nazareth tem curadoria de Beatriz Lemos, que destaca a retomada da visão curatorial original de Inhotim em 2024. Ela ressalta que esconjuro é uma palavra muito poderosa de nosso vocabulário, muito conhecida nos terreiros de religiões de matriz africana e ligada “ao dia a dia das benzedeiras, dos mateiros, pessoas que conversam com o sagrado das plantas”. E Nazareth, ela afirma, chega a Inhotim com esse vocábulo que se refere tanto à proteção quanto ao livramento de más energias, de coisas ruins.
“A exposição também traz outra possibilidade de se contar o tempo, um tempo alargado ao longo das estações. E essa nova contagem do tempo é feita por meio de reformas como aquelas que vemos nas periferias de cidades latino-americanas, em que a todo momento se faz um puxadinho aqui, constrói mais uma laje ali, em busca de qualidade vida e de aconchego”, explica a curadora. “Com essas duas ideias, das estações e das reformas, Paulo traz dois desafios institucionais, mexe com todo o instituto, numa exposição que depende e conversa com todas as equipes do museu”.
Tarsila do Amaral (Capivari/SP, 1886 – São Paulo/SP, 1973)
Retrato de Mário de Andrade, 1922
Óleo sobre tela [Oil on canvas], 53,5 x 46,5 cm
Acervo Artístico-Cultural dos Palácios do Governo do Estado de São Paulo
Foto: Eduardo Ortega
PARTE DOIS
Pelo fato da mostra Mário de Andrade. Duas Vidas ter sido concebida a partir das obras colecionadas pelo crítico, quando desci até o subsolo do MASP para visitá-la, estava ansioso por rever algumas das peças que haviam pertencido a Mário e mesmo conhecer outras que nunca haviam sido exibidas¹. Dentre as várias obras que a integram, a coleção congrega um dos mais importantes conjuntos de arte do modernismo brasileiro, com obras de praticamente todos os artistas do movimento: de Anita Malfatti e Di Cavalcanti a Candido Portinari e outros. Mas a mostra não fica confinada apenas aos modernistas brasileiros. Ela traz também alguns exemplares do conjunto de peças coloniais de Mário e uma série de fotografias produzida por ele durante suas viagens para o Norte e o Nordeste do Brasil, durante a segunda metade dos anos 1920.
Obras de diversas origens, o que as une é o fato de terem sido colecionadas por um dos intelectuais brasileiros mais importantes do século passado. Mas o que faz a coleção de Mário na série de exposições deste ano no MASP, dedicadas à questão LGBTQIA+?
Ora, Mário de Andrade era homossexual.
Na verdade, fica difícil afirmar de maneira categórica a homossexualidade do intelectual porque, em primeiro lugar, não é público, que eu saiba, qualquer caso amoroso que Mário possa ter tido com outros sujeitos. De concreto, o que sempre existiu foram os comentários que seus opositores espalhavam em conversas e mesmo em jornais e outros tipos de publicações. De fato, seus inimigos e ex amigos (Oswald de Andrade, por exemplo), eram mestres em tentar desqualificá-lo, tanto por sua origem africana (ou seja, por ter índices fenotípicos de homem negro), quanto por suas supostas afetações e interesse por homens.
Todas essas insinuações, não passavam disso, insinuações. Mesmo em seus depoimentos mais reservados em cartas a amigos e amigas, como Manuel Bandeira e Oneyda Alvarenga – considerados reveladores de sua sexualidade – o autor é evasivo, anuncia sua homossexualidade (no caso da carta para Bandeira) para, em seguida, fugir da questão².
Embora conhecesse um ou outro de seus trabalhos literários em que o homoerotismo era discretamente aludido, o certo é que, quando, em meados dos anos 1990, pesquisei sua produção como crítico de arte para meu doutorado, a questão da sexualidade de Mário não estava na ordem do dia. Durante a pesquisa para a tese, o único índice que, de fato, me chamou a atenção em relação à sexualidade de Mário foi aquele trecho da crítica que ele escreveu sobre as figuras de Portinari, citado na primeira parte deste artigo. Ali me pareceu evidente a emersão de algo vindo à tona na descrição daqueles “machos rudes” em contraposição às mulheres “boas como minha mãe”. E só.
…
Voltando à exposição, é interessante que as obras que a integram, além de terem pertencido ao crítico, possuem em comum apenas outro aspecto: todas representam figuras masculinas.
Seria esse aspecto a demonstrar a dimensão queer de Mário?
Flávio de Carvalho (Barra Mansa, Rio de Janeiro, Brasil, 1899—1973, Valinhos, São Paulo, Brasil). Homem [Man], 1933. Aquarela e tinta de caneta sobre papel [Watercolor and pen ink on paper], 37,5 × 29,7 cm IEB-USP
Se as obras de Bacon, lá no primeiro andar do museu, assinalavam uma sexualidade homoerótica, dilacerada – e que, como afirmei, transcendia essa questão e se dirigia a uma reflexão sobre a própria condição humana –, na mostra da coleção de Mário não havia nada disso. De fato, o que está ali apresentado não é a coleção do crítico, mas um recorte da mesma, resgatando apenas obras em que estão representados homens. Ora, por si só, a mostra apenas desse segmento não evidencia a homossexualidade do colecionador, e, para chegar a uma conclusão mais efetiva sobre a questão, o certo teria sido cotejar quantitativamente quantas obras, na coleção, representam homens e quantas representam mulheres, seres andróginos e crianças.
Mas é claro que essa medição também não ajudaria a determinar a sexualidade de Mário. Assim, a exposição acaba valendo pelo interesse das obras exibidas e não pelo teor geral da mostra.
***
Alguns dias depois da visita às duas exposições, comecei a ler o interessantíssimo catálogo da Mário de Andrade. Duas Vidas, que contém textos importantes para ampliar nossa compreensão sobre a dimensão queer da personalidade de Mário. Assim, mais do que nunca o catálogo assumiu uma importância ímpar para assegurar o objetivo e, portanto, também o interesse da exposição. Por tais motivos comentarei dois artigos ali publicados.
O primeiro deles leva o mesmo título da exposição, assinado por Regina T. Barros que, logo no início, atenta para o propósito principal da exibição: rever a coleção de arte de Mário de Andrade “pela perspectiva de uma sensibilidade gay”. Isto é, pelo fato de também integrar o grupo de mostras LGBTQIA+ do museu, a exposição possui propósitos próximos daquela dedicada a Bacon: adequar a pluralidade e alcance das obras ali apresentadas a um só direcionamento.
Na continuidade da leitura, me deparei com um trecho de uma carta que Mário endereçou a um amigo em que, rememorando a viagem que fez pela Amazônia – onde teve contato com a população mais pobre do lugar, inclusive fotografando-a. O trecho me lembrou a crítica de Mário sobre os homens figurados por Portinari:
Era uma verdadeira sensação de rendez-vous [encontro], o carinho meticuloso com que eu esperava todas as noitinhas o urro dos guaribas do mato. E aquelas conversas de terceira classe com seres duma rudimentaridade espantosa, seres por isso mesmo perfeitamente gratuitos, naquele cheiro veemente, contagioso, de lenha umedecida, bois e corpos seminus, você não imagina, Osório, eu era aquilo, meio vegetal meio água parada, não sei³
(A pulsão que emana desse parágrafo me parece ainda maior do que aquela presente no artigo sore Portinari, demonstrando que muitas vezes – e como o outro poeta –, Mário nunca soube direito onde colocar o desejo).
A curadora citou a carta para afirmar a presença, na subjetividade de Mário, da atração, do desejo sexual entre classes sociais (cross-class desire) – conceito que ajudaria a entender o interesse do intelectual em fotografar os homens desvalidos do Norte do País. E vai mais longe: Regina T. de Barros afirma, na sequência, que, concomitante a essa atração interclasse experimentada pelo crítico (onde, digo eu, estava inserida uma relação de poder, em que Mário era o mais forte), havia também uma identificação entre ele e seus modelos, pois o intelectual, em muitos autorretratos que produziu durante a viagem, repetiu as poses de seus retratados – mais um dado para ajudar a penetrar na dimensão complexa da subjetividade do crítico.
Mário de Andrade (São Paulo, Brasil, 1893—1945) Aposta de ridículo em Tefé [Bet of Ridiculous in Tefé], 12.6.1927 [June 12, 1927] Impressão digital sobre papel [Digital print on paper], 6,1 × 3,7 cm IEB-USP
Dentre uma série de outras questões, Regina atenta para algo que ajudaria a entender a razão da mostra: a relação privada que Mário estabelecia com sua coleção de desenhos⁴: “Os amadores do desenho guardam os seus em pastas. Desenhos são para a gente folhear, são para serem lidos que nem poesia”, disse o intelectual. E Regina acrescenta:
Nus masculinos, dorsos musculosos (…) negros, mulatos, indígenas, operários, intelectuais, marinheiros, garis, policiais, jogadores (…); homens no bar, homens repousando: uma seleção de desenhos colecionados por Mário tematizando figuras masculinas (…) e que, por si só pouco ou nada têm de eróticas (…)
E, em seguida, o pulo do gato:
Porém, quando entendidas como um conjunto de imagens consumidas de maneira privada, longe dos olhares da censura católica, moralista e heteronormativa, podem ser lidas sob uma perspectiva de recepção gay, mesmo que a posteriori (…)
E, então, a curadora cita o estudioso Rudi Bleys, para quem a intenção de uma determinada obra pode não ter sido homoerótica em sua concepção, mas “não é inteiramente errado reconhecer certo conteúdo ‘gay’ somente em virtude da contextualização”.⁵ Ou seja, individualmente as obras que formam a coleção de Mário de Andrade podem não ter sido concebidas com qualquer objetivo ligado à homossexualidade, mas o todo em que se inserem – a própria coleção.
Mas, a pergunta continua: o que vemos na exposição do MASP é a coleção de Mário? O crítico não teria colecionado figuras de mulher, de crianças, de seres andróginos, somente figuras de homens?
A questão será respondida mais adiante, em O encanto que nasce das adorações serenas, de Ivo Mesquita, texto também publicado no catálogo:
A coleção de arte de Mário de Andrade não foi constituída apenas por trabalhos escolhidos por ele. Muitas peças foram presentes de amigos, artistas ou não, mas ele investiu um bom dinheiro na época, ajudou uns tantos profissionais, algo marcante em uma pessoa que sempre viveu do seu salário. Reúne artistas brasileiros e estrangeiros e não há nessa reunião nada predominante entre figuras, retratos, paisagens e naturezas-mortas (…) Tampouco pode-se dizer que contenha uma temática erótica, como estamos buscando. Há umas tantas cenas de casais (…), bordeis (…). Nada excitante. Mas há alguns nus femininos, cenas de intimidade entre mulheres, bastante sexy como os de Carlos Leão (…), Enrico Bianco (…) e Marie Laurencin (…). Coerente com a coleção de um cavalheiro elegante naqueles dias⁶.
O que o texto apresenta, é que, para seus objetivos, pouco importa quantas figuras de homens ou de mulheres Mário colecionou. O que o interessa é demonstrar comoo crítico olhava para as imagens masculinas amealhadas durante anos. E, para tanto, Ivo como que incorpora o olhar de Mário com o objetivo de traduzir para o leitor a dimensão queer desse olhar. E assim, agindo como uma espécie de guia, ele nos transforma em turistas aprendizes de uma subjetividade complexa como a de Mário, não para “entendê-la”, mas apenas para frui-las.
(Desde o início Ivo está preocupado com a “experiência do olhar” e seu peso na aproximação com a arte).
O autor incorpora o olhar de Mário, é certo, mas não se submete a ele, pelo contrário. É notável como no texto existe, por assim dizer, um acolhimento crítico do que Mário percebia nos trabalhos de arte que escolheu ou que, por acaso, chegaram até ele.
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Vista da exposição "Mário de Andrade: duas vidas". Foto: Eduardo Ortega
Vista da exposição "Mário de Andrade: duas vidas". Foto: Eduardo Ortega
Vista da exposição "Mário de Andrade: duas vidas". Foto: Eduardo Ortega
Vista da exposição "Mário de Andrade: duas vidas". Foto: Eduardo Ortega
Vista da exposição "Mário de Andrade: duas vidas". Foto: Eduardo Ortega
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Um encontro esquisito esse de Mário e Bacon no MASP. Duas exposições de natureza distintas convivendo no mesmo lugar, exibidas no mesmo período porque enfocam perspectivas diferentes do universo queer: aquela presente na obra de um dos pintores mais importantes da segunda metade do século 20, e a outra fechada na coleção de um dos intelectuais brasileiros mais profícuos da primeira metade do século passado.
Quando Mário faleceu, em 1945, Bacon, ainda novo, estava deslanchando sua carreira.
Será que o crítico teve tempo de contemplar pelo menos alguma reprodução fotográfica da produção do pintor? Será que sentiria tesão ao observar tais imagens? Impossível saber a resposta. Mas Mário, sem dúvida, entenderia que a produção daquele então jovem Bacon, embora totalmente comprometidas com as pulsões pessoais que lhe ensejaram, iam muito além delas.
P.S. Como os leitores e leitoras perceberam, além da visita às duas exposições, foi fundamental para esta resenha, a leitura dos catálogos correspondentes. Se o MASP merece todos os elogios pelas duas mostras, ele merece também pelo menos um reparo: como comentam nas redes sociais, impossível firmar-se como uma instituição diversa, inclusiva e plural, cobrando R$ 35,00 (meia entrada), R$ 179,00 pelo catálogo da mostra dedicada a Bacon e R$139,00 pelo catálogo da mostra dedicada à coleção de Mário de Andrade. Que tipo de inclusão é essa?
—
¹ A maior parte da exposição, com curadoria de Regina T. de Barros, apresenta obras pertencentes ao acervo do Instituto de Estudo Brasileiro da USP, instituição que guarda a coleção de arte de Mário, assim como seu arquivo e biblioteca. A mostra fica em cartaz até o próximo dia 9 de junho.
² No catálogo, atento para dois textos que tratam do assunto. O primeiro, “Mário de Andrade: duas vidas”, de Regina Teixeira de Barros, (p. 14 e segs.) trata, entre outros aspectos, desse caráter evasivo do autor frente à sua sexualidade. A autora também se refere aos preconceitos sofridos por Mário. O segundo, “Os mesmos insultos extraliterários se repetem incansavelmente: homofobia e preconceito na recepção de Mário de Andrade”, (p. 94 e segs.) de Jorge Vergara, faz um interessante estudo sobre os preconceitos sofridos por Mário de Andrade. BARROS, Regina T. de Mário de Andrade: duas vidas. São Paulo: MASP, 2024.
³ Carta a José Osório de Oliveira. São Paulo. 1 de agosto de 1934. Apud BARROS, Regina Teixeira de. Op. cit. p. 26.
⁴ Na verdade uma coleção de papeis: desenhos, mas também gravuras e fotos.
⁵ BARROS, Regina Teixeira de. Op. cit. p. 26. P. 29/30.
⁶ MESQUITA, Ivo. “O encanto que nasce das adorações serenas”. In BARROS, Regina Teixeira de. Op. cit, p. 54.
Enquanto visitava a mostra de Bacon – a primeira e a mais completa exposição de pinturas do artista inglês em São Paulo¹,de repente me deparei com o seguinte depoimento do pintor:
Eu gosto dos homens
Gosto de seus corpos,
Gosto de seus cérebros,
Gosto da qualidade de sua carne²
Não sei se pelo fato de estudá-lo há tempos, ou porque pretendia, na sequência, visitar a mostra dedicada a ele no subsolo do Museu³ – o fato é que a aquela declaração de Bacon me lembrou de um texto que Mário de Andrade publicou em 1940, a respeito da obra de Candido Portinari, comparando-a com a do mexicano Diego Rivera:
(…) Portinari se fez realista (…). Uma espécie de realismo moral, franco, forte, sadio, de um otimismo dominador. Nisto ele se separa radicalmente da obra amarga e rancorosa de um Rivera (…). Portinari, sob o signo dos Antigos em que se colocou, ao mesmo tempo que pode conservar uma calma, um equilíbrio, uma temática que nada têm de literários, e são exclusivamente plásticos, soube dar uma esperança ao mundo (…)⁴
A partir dessas considerações sobre o realismo de Portinari, Mário explicita o fundo de sua tremenda admiração por Portinari:
(…) o seu realismo, si é otimista, não é sonharento. É um realismo apenas muito sadio e dinâmico. Eu gosto dessas mulheres suaves e fortes, brasileiras, brasileiríssimas de tipo, boas como minha mãe. Não tenho o menor medo de gostar. Eu gosto desses machos rudes de trabalho, olhe-se a mão em afresco. Isso é mão dura mas nobre, mão beijável (…)⁵
O que me chamou a atenção nesse trecho foi que Mário, se referindo às figuras femininas como “suaves e fortes”, “boas como minha mãe”, não as tratava como “fêmeas”, aproximando-as das outras figuras: os “machos rudes”, cujas mãos tinha vontade de beijar.
Lembrar-me desse texto de Mário na exposição dedicada a Bacon, mostrou-me o que poderia estar por trás da interpretação de Mário de Andrade sobre as figuras de Portinari.
…
Exposição impecável, aquela dedicada a Bacon: escolha bem-sucedida das obras (grande parte proveniente de instituições internacionais de ponta); disposição correta das pinturas no espaço (sem firulas de uma certa expografia enervante que anda por aí); iluminação equilibrada. O único dado que me incomodou foi a insistência das etiquetas de identificação das obras em não deixar esquecer a orientação queer do artista.
Museu que se pretende “diverso, inclusivo e plural”, a exposição “Francis Bacon: a beleza da carne” integra a programação do MASP que, este ano, é dedicada às “História da diversidade LGBTQIA+”; assim, é compreensível que todos os artistas e as artistas que se apresentarem nas exposições no museu em 2024 serão vistos sob esse viés⁶. Mas Bacon sempre me pareceu maior do que qualquer rotulação, e as obras presentes na mostra, só comprovavam essa minha impressão.
…
Giulio Carlo Argan, historiador e crítico italiano, quando escreveu sobre o expressionismo abstrato norte-americano, em seu hoje clássico Arte Moderna, comentou que a diferença entre a produção norte-americana do imediato pós-guerra e a europeia do mesmo período, seria o fato de que a primeira possuía:
vitalidade intensa e tenaz do germe que se gera espontaneamente numa água pútrida, estagnada; e a água pútrida é o passado que, não se organizando racionalmente em perspectiva histórica, cai no caos do inconsciente. O passado que não se converte em história e pesa como um complexo de culpa é a contrapartida oculta do modernismo ativista da extrovertida sociedade americana, a nódoa sombria em seu otimismo.⁷
Alguém poderá estranhar trazer para esta reflexão um autor aparentemente tão datado como Argan que, morto em 1992⁸, teve o original italiano do seu livro – L´arte moderna Dall´Illuminismo ai movimenti contemporanei – publicado no longínquo 1970. Esse mesmo alguém poderia também argumentar que, hoje em dia, a figura do crítico parece a própria definição de um intelectual a se desconfiar: sujeito branco, europeu e, ao que parece, hétero. E, ainda por cima, um intelectual com forte apego humanista e universalista (e seu universo limitava-se, é claro, à Europa e aos Estados Unidos).
Mas, mesmo assim, as ideias de Argan – como as de Mário de Andrade –, também me vieram à mente enquanto visitava a exposição dedicada a Bacon. E isso por quê? Porque ali havia um descompasso entre as legendas e a realidade concreta das obras ao lado. Enquanto as primeiras faziam de tudo para direcionar a interpretação das pinturas, de forma unilateral, apenas a uma sensibilidade queer, as obras pareciam negar tal confinamento. Elas, em sua concretude e crueza refletiam plasticamente, sobre a miséria da condição humana.
Bacon, que engendrou sua carreira na segunda metade dos anos 1940, parece ter constituído grande parte de sua obra no meio do trauma da Segunda Grande Guerra e seus desdobramentos. É certo, portanto, que sua produção não se constituía explicitando apenas sua sexualidade, mas também sua consciência – e desespero – de viver uma situação de implacável finitude, sem um devir transformador. A meu ver, grande parte das suas pinturas trata dessa miséria.
Lembrei-me de Argan porque, quando se referiu à obra de Jackson Pollock, ele falava de uma “poética da incomunicabilidade” para caracterizar a obra daquele artista e a de seus colegas. Para o crítico, essa produção deixava de dar sentido ao mundo (função que a arte teria sempre exercido), para deixar que o mundo lhe desse significado. Pollock e seus colegas faziam tábula rasa da história e da arte do passado, ignorando-as.
Foi visitando a mostra de Bacon que entendi que ele – artista britânico vivendo num continente que tentava se reconstruir – sentiu-se compelido, ou obrigado, a dar conta daquele mesmo passado que, segundo Argan, teria sido abandonado por seus colegas norte-americanos. Se Pollock e os artistas do seu entorno buscavam acabar ou não levar em consideração o passado e o passado da arte, Bacon lutou contra eles. Buscou exterminá-los enquanto possibilidades de ainda significarem algo naquele mundo pós-utópico, surgido depois da Segunda Grande Guerra.
Parece ter sido pelo seguinte motivo que Bacon reviu a tradição da pintura europeia: para destruir o espaço pictórico renascentista e suas convenções, espaço esse também presente na fotografia, por ele tão utilizada. Foi por esta razão que o pintor desconstruiu a visualidade de artistas fundamentais para a arte da Europa, como Velásquez, Picasso, El Greco e outros. É o próprio Argan que, ao examinar a operação de Bacon sobre a história (a partir da história da arte) afirma:
Evidencia-se, a partir de toda a sua obra, que ele [Bacon] não acredita na eleição ou na salvação, mas na degradação e na queda da humanidade; portanto, mesmo a pintura não é um processo eletivo, e sim degradante. Como tal, é desmistificação, desvendamento brutal da verdade sob a simulação. Bacon se afasta deliberadamente das linhas de pesquisa da arte moderna, liga-se aos ápices da pintura do passado, Velázquez ou El Greco. Não os adota como modelos, mas como objetos de crítica; quer demonstrar que, tivessem esses artistas levado seus discursos pictóricos ao fundo, teriam chegado a conclusões muito diferentes.⁹
Mais adiante comenta:
O que (e não importa se conscientemente ou não) quer demonstrar Bacon? Que basta aplicar à realidade (a realidade de Velázquez) o misticismo da sublimação e do êxtase, e logo a realidade, em vez de se “espiritualizar”, corrompe-se, apodrece, torna-se asquerosa e repugnante […] Portanto, é absurdo falar em “nova figuração” para a deliberada desfiguração de Bacon, a qual invoca a figura apenas para depreciá-la, aviltá-la, desfazê-la sob os olhos espantados do espectador.¹⁰
É por essa compreensão da obra de Bacon que acabei por entendê-lo como aquele artista que, na Inglaterra, se contrapôs à obra de Pollock e seus colegas, nos Estados Unidos. Se esses últimos desprezaram e tentaram ignorar a história, a tradição e toda a racionalidade ocidental, Bacon as desconstruiu e as reapresentou ao mundo como ruínas.
…
A impressão de que a etiqueta “artista queer” parecia, talvez, estreita demais para Bacon, de alguma forma foi confirmada com a leitura do (excelente) catálogo da mostra. Ali, o texto da especialista Rina Arya, intitulado “Quando a obra se torna queer: ambiguidade em Bacon”¹¹ me pareceu seguir ao encontro das questões que levantei acima. Logo de início, ela propõe que, para refletir sobre a obra do pintor, seria importante uma reelaboração do termo queer:
Outra postura queer de sua obra, proposta neste ensaio, emprega um quadro conceitual mais amplo para o termo “queer”, afirmando que, em sua obra, esse elemento vai além de uma discussão sobre gênero e sexualidade. Assim, esta leitura marca um afastamento da compreensão de “queer” como uma postura diante das relações entre pessoas do mesmo sexo na vida e na obra de Bacon – incluindo as atitudes sociais pejorativas daquele momento – em direção a uma reapropriação do termo, como uma teoria que problematiza categorias heteronormativas e defende uma fluidez de pensamento quanto à maneira de ser.¹²
(Parabéns ao MASP por incluir no catálogo da mostra, um texto que questiona ou problematiza o conceito que a guia, ampliando seu escopo original).
A autora atenta para o seguinte: em 2016, com a publicação do segundo catálogo raisonné do artista, surgiu uma série de obras contendo figuras andróginas e femininas. Este dado permitiu a Arya escrever:
A descoberta dessas pinturas que incluem figuras de identidade de gênero mais ambígua, bem como o grande número de obras que incluem nus femininos (…) excedendo os acasalamentos masculinos, desvia o foco exclusivo em Bacon como um pintor de nus masculinos. Seu olhar homoerótico e sua abordagem sadomasoquista, tanto na técnica quanto no conteúdo, são certamente uma vertente central de suas obras. Dito isso, essa leitura do queer em seu trabalho não é suficientemente extensa. Em Bacon, o queer vai além da problematização da identidade de gênero e propõe o desmantelamento da certeza ontológica.
O que podemos dizer com algum grau de certeza é que Bacon articula a condição humana na pintura, o que para ele significava a representação da força vital da carne, que não poderia ser preservada nem contida e que ameaçava desestabilizar qualquer tentativa de fazê-lo.¹³
Arya, mesmo reafirmando que o queer condiciona muito da produção de Bacon, atesta que suas figuras furtivas, solitárias e anônimas são como símbolos “do drama existencial humano”. E complementa:
Uma leitura contemporânea do queer baseia-se nessa leitura existencial, desmantelando categorias que antes demarcavam identidades socioculturais, inclusive o gênero, e, ainda mais fundamentalmente, aquilo que constitui a natureza humana. A questão ontológica do animal como parte do humano é mais fundamental para o significado do ser do que as concepções de gênero ou sexualidade. E isso permite a fluidez das posições identitárias e a complexa experiência do ser que é precisamente no zeitgeist atual. É por isso que Bacon perdura, ao contrário de tantos outros pintores do seu tempo: porque antecipa preocupações persistentes¹⁴
Como o leitor e a leitora podem imaginar, quando desci ao subsolo do museu para visitar a mostra “Mário de Andrade. Duas vidas”, com curadoria de Regina Teixeira de Barros, eu ainda não havia lido o texto de Rina Arya. Portanto, ainda estava na minha cabeça a sensação do quanto o conceito de queer me parecia estreito para definir toda a obra de Francis Bacon. Foi com essa ideia que desci para visitar a mostra da coleção que pertenceu a Mário de Andrade.
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¹ Em 2014 o Paço das Artes, então no campus da USP, apresentou exposição de desenhos do artista.
² Entrevista concedida a Melvyn Bragg em The South Bank Show, transmitido pela emissora britânica ITV, em junho de 1985; Apud: COSENDEY, Laura. “Francis Bacon: a beleza da carne”, In PEDROSA, Adriano/COSENDEY, Laura (coord. Ed.) Francis Bacon: a beleza da carne. São Paulo: Museu de Arte de São Paulo, 2024, p. 20.
³ “Mário de Andrade. Duas vidas”, sobre a qual falarei na sequência.
⁴ ANDRADE, Mário de. “Portinari”. IN Revista Acadêmica. Rio de Janeiro, n. 48 Fev1940. Apud CHIARELLI, Tadeu. Pintura não é só beleza. A crítica de arte de Mário de Andrade. Florianópolis: Letras Contemporâneas – Oficina Editorial Ltda. 2007, p.132.
⁵ Idem.
⁶ A mostra fica em cartaz no museu até o dia 28 de julho deste ano.
⁷ ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.p.527. Em tempo, quando o crítico se refere à arte norte-americana do pós-Guerra parece ter como modelo maior daquele fenômeno, sobretudo a pintura de Jackson Pollock.
⁸ Ano da publicação de seu livro no Brasil.
⁹ Idem, p. 488/489.
¹⁰ Idem, p. 489.
¹¹ ARYA, Rina. “Quando a obra se torna queer: ambuiguidade em Bacon”, In PEDROSA, Adriano/COSENDEY, Laura (coord. Ed.) Francis Bacon: a beleza da carne. São Paulo op. cit. p. 40 e segs. O catálogo traz outros textos igualmente de interesse para a compreensão da obra de Francis Bacon. Aqui me deterei apenas ao ensaio de Rina Arya.
Adriano Pedrosa, curador da 60ª Bienal de Veneza. Foto: Mauricio Jorge
Adriano Pedrosa, atual curador do Masp. Foto: Mauricio Jorge
O curador geral da 60ª Bienal de Veneza (2024), Adriano Pedrosa, é o primeiro latino-americano a assumir tal posto, impulsionado por uma trajetória de mudanças radicais. Quando jovem cursa direito e economia, mas logo se vê interessado pela arte e, a partir daí, inicia sua história de artista, crítico, curador e diretor de museu. Tudo começa quando seu namorado faz mestrado em Londres e ele passa uns bons meses por lá. “Todos os dias eu ia a National Gallery onde acompanhava os tours de visitas guiadas de uma, ou duas horas cada”. A singular experiência foi o gatilho para ele conhecer obras primas, ouvir comentários críticos e pensar arte. Com o tempo essa intimidade com a arte transforma-se em paixão. Como não havia tempo a perder, ele compra livros e revistas de arte escolhidos por ele mesmo, e traça um rumo para sua carreira.
De volta ao Brasil, no final da década de 80, faz cursos na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio, estuda pintura com Daniel Senise, Milton Machado, Beatriz Milhazes, Charles Watson e história da arte com Viviane Matesco. Em 1992 ele vai para os Estados Unidos, faz mestrado em arte no California Institute of the Arts, depoisde cinco anos volta ao Brasil e expõe no projeto Macunaíma da Funarte e, no Centro Cultural São Paulo, também no início dos anos 1990, onde mostra um trabalho de perfil quase etnográfico que trazia a memória do corpo queer, feito com toalhas roubadas em saunas. “Aquelas toalhas brancas, dobradas sobre uma prateleira, e que o título da obra indicava de onde elas vinham, me lembro que uma delas era da For Friends, uma famosa sauna em São Paulo que existe até hoje.”
São desse período desenhos experimentais, um deles integra o acervo do MAM/SP, e que traz o título Desenho feito com a mão esquerda por um destro, em que ele escrevia a palavra “viado” ou “bicha” repetidas vezes. Adriano também expõe duas vezes na Galeria Luisa Strina, em 1996 e 1999, e dois anos antes, é convidado para a mostra Espelhos e Sombras, curada por Aracy Amaral no MAM/SP.
Com o mestrado, fica mais claro para ele que seu interesse era mesmo por textos e curadorias. Em 1997, quando ele ainda estava nos Estados Unidos é chamado por Paulo Herkenhoff, curador da 24ª Bienal de São Paulo, para ser o curador-adjunto. Então, ele deixa Los Angeles, muda-se para a capital paulista e mais tarde assume a cocuradoria da 27ª Bienal de São Paulo, 2006, com a crítica Lisette Lagnado. Cinco anos depois torna-se o curador da Bienal de Istambul, quando pesquisa o mundo árabe. Como ele comenta, passa a circular internacionalmente, escrevendo para revistas como Frieze e Artforum. Em meio a tantos convites, em 2005 assume a curadoria da mostra Insite, em San Diego (EUA) e no Centro Cultural de Tijuana (Cecut, México). Em 2014 vem o convite que o animou de fato, ser o diretor artístico do Museu de Arte de São Paulo (Masp).
Pedrosa assimila o sistema de arte com um sentido criativo, às vezes usando o “enquadramento” de outras exposições, como ele diz. Agora, na 60ª Bienal de Veneza ele escolhe o tema Stranieri Ovunque – Foreigners Everywhere (estrangeiros por toda parte), que faz alusão ao controvertido Panorama da Arte Brasileira (MAM/SP) de 2009. O evento, curado por ele, mostrava a influência da produção brasileira em trabalhos de artistas estrangeiros. O título quase impronunciável, Mamõyguara opá mamõ pupé, vem do tupi antigo e quer dizer, justamente, estrangeiros por toda a parte, e que agora reaparece na Bienal de Veneza. O tema foi tomado emprestado da obra do coletivo Claire Fontaine, que consiste em neons que exibem o mesmo texto, em diferentes línguas.
Estamos renomeando os dois edifícios que agora constituem o Masp. O novo se chamará Pietro Maria Bardi e tem inauguração prevista para o final de 2024 e está conectado ao edifício atual, o Lina Bo Bardi, eles estrarão ligados por um túnel subterrâneo”
Uma citação de Gramsci adverte: “O velho mundo está morrendo, um novo demora a nascer, e neste claro escuro surgem os monstros”. Pergunto a Pedrosa se as duas guerras midiáticas e genocidas atuais, que estarrecem o planeta, serão refletidas nessa edição. E, também o que se pode esperar dos artistas participantes para entendermos melhor o momento em que vivemos. A resposta veio instantânea: “Ainda não estou autorizado a falar sobre o que há nesta Bienal”. No entanto, ele pode comentar o que estava circulando na internet sobre a presença de palestinos no evento.
“A Bienal de Veneza é dividida em três grandes segmentos: o primeiro é o Pavilhão Central onde ocorre a International Exhibition, considerada a mostra mais importante, da qual sou o curador. O segundo diz respeito aos países que expõem nos pavilhões nacionais, cujas mostras são organizadas pelos próprios países. O terceiro são os eventos colaterais, que acontecem por toda Veneza, e eu os seleciono a partir de inscrições de todo o mundo.”
Pedrosa comenta que os interessados se inscrevem neste segmento para obter o selo de participação dentro da Bienal. Das muitas propostas recebidas, ele escolheu 30. Um dos projetos inscritos era de um museu da Palestina nos Estados Unidos, e que não foi selecionado. Porém, havia uma outra obra proposta, também da Palestina, que foi aceita. “O projeto recusado veio à tona na internet falando que tinha havido um boicote aos artistas palestinos, mas eles não sabiam que o outro tinha sido selecionado. Em geral a lista dos eventos é divulgada um mês antes da Bienal abrir, seria em março, mas desta vez foi publicada em outubro. Há ali um projeto chamado Anchor in the Lanscape, organizado por Artists and Allies of Hebron. Hebron é uma cidade na Cisjordânia, na Palestina”.
A edição deste ano está dividida em dois grandes núcleos, o Nucleo Storico, que evoca em seu título o Núcleo Histórico da 24ª Bienal de São Paulo, e o Nucleo Contemporaneo. No primeiro, Pedrosa trabalha com Sofia Gotti, curadora italiana que vive no Reino Unidos e na Itália. No segundo núcleo, ele conta com Amanda Carneiro, curadora assistente no Masp. “Trabalho também com uma designer brasileira, a Paula Tinoco, do estúdio Campo, e a arquiteta Juliana Ziebell, ambas fizeram muitos projetos no Masp”. De Nova York estão na equipe Karen Marta e o Todd Bradway, “que me ajudam no editorial e que também atuaram nos livros do MASP. Há ainda muitos escritores do Sul Global, escrevendo textos sobre cada um dos artistas da mostra.”
Edifício atual à esquerda Lina Bo Bardi, e à direita, fachada do edifício Pietro Maria Bardi concluído. Metro Arquitetos. Foto: Divulgação
Os dois núcleos, o histórico e o contemporâneo, têm como foco quatro sujeitos/temas. O primeiro é o do estrangeiro, exilado, refugiado, imigrante, diaspórico. “São artistas que migraram, viajaram, e que moraram aqui e lá. Sobretudo, artistas o Sul Global que viajaram pelo Norte e vice-versa. Nesse sentido, não são necessariamente artistas que lidam com questões da imigração e da diáspora como tema, pois às vezes têm até um trabalho mais formal.”
O segundo sujeitos/temas desdobra a ideia do estranho e do estrangeiro para o queer. “Isso vem da minha própria vivência. Eu mesmo fui um estrangeiro em vários momentos da minha vida, morando fora e viajando, eu me identifico como queer. Assim, haverá uma presença grande de artistas queers, trans e não binários na exposição.” O terceiro sujeitos/temas é do artista outsider, aquele artista que opera em circuitos e contextos diferentes do moderno, do contemporâneo e da academia. Pedrosa entende que a presença do chamado artista popular é muito importante, tanto que que ele aparece na programação do Masp, apesar de ser, muitas vezes, marginalizado no circuito de arte. “É interessante ver como vários artistas, ditos populares já participaram da Bienal de Veneza nos anos 1960, como José Antônio da Silva, Maria Auxiliadora, Heitor dos Prazeres e a Madalena dos Santos Reinbolt, sempre no pavilhão brasileiro.”
O último temas/sujeiros é o indígena, que muitas vezes é tratado como estrangeiro no seu próprio território. “Os quatro segmentos do núcleo contemporâneo refletem nosso trabalho no Masp. Neste final de 2023, estamos expondo as Histórias Indígenas e, no ano que vem, vamos trabalhar as Histórias da Diversidade LGBTQIA+ ou, em inglês, histórias queers”. Além da Bienal de Veneza, o curador também está envolvido com as mudanças do Masp, onde ele é o diretor artístico desde 2014. “Estamos renomeando os dois edifícios que agora constituem o Masp. O novo se chamará Pietro Maria Bardi e tem inauguração prevista para o final de 2024 e está conectado ao edifício atual, o Lina Bo Bardi, eles estrarão ligados por um túnel subterrâneo”. A maratona de eventos, que envolve Adriano Pedrosa pelo mundo, atesta que ele não para. Quase às vésperas da inauguração da 60ª Bienal de Veneza, a revista inglesa Art Review o coloca na lista das 100 pessoas mais influentes do mundo. ✱