Entre as múltiplas vozes que tentam dar conta do mundo contemporâneo, algumas se encontram na 60ª Bienal de Veneza. Movimentos sociais antirracistas, obras de artistas LGBTQIA+ e saberes ancestrais transformam gritos de alerta em obras de arte. Em um momento de crise financeira na Europa, nos Estados Unidos e em vários outros países, há poucas obras de grandes dimensões e de boas ideias. Com ataques e defesas, o conjunto é diferente de tudo o que os críticos já propuseram em anos anteriores para a bienal mais icônica do gênero.
O título Straniere Ovunque – Estrangeiros por toda parte é um ponto de vista que sintetiza o pensamento do curador brasileiro Adriano Pedrosa, o primeiro latino-americano e queer confesso a ocupar tal posto. A exposição reúne 331 artistas vindos de 81 países e acontece no momento crucial em que o número de migrantes forçados chegou a mais de 100 milhões, em 2022, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, portanto esse número atualizado é bem maior.

Estamos vivenciando um momento histórico para a produção artística dos povos originários, que, aos poucos, retomam seu lugar no planeta depois de genocídios e racismos estruturais seculares. A iniciativa desvenda as circunstâncias que levaram os povos aborígenes dos cinco continentes a seu precário estado atual. A mostra também fala da memória, aquela que elegemos para nossa legitimação no mundo. “A memória que serve para que outros recuperem a sua e que, unida a outra e a outra, chegue a formar as memórias de todos os homens”, como ensina o crítico Nelson Herrera Ysla.
O Pavilhão Central localizado na entrada principal do Giardini di Castello é o epicentro da mostra, onde Pedrosa defende parte de seus conceitos. Em contraste com algumas edições anteriores, este local privilegiado exibia obras impactantes de nomes consagrados do mercado internacional, com trabalhos inovadores, muitos feitos para a ocasião. Hoje, o pavilhão exibe, além de uma extensa coleção de pinturas ligadas ao modernismo brasileiro e de outros países, obras feitas por indígenas e uma coleção de trabalhos abstratos assinados por artistas queers, provenientes de China, Itália e Filipinas. Na fachada do edifício, o coletivo brasileiro Mahku (Movimento dos Artistas Huni Kuin) foi especialmente convidado para intervir no frontão, executando um painel monumental de 700 metros quadrados. A mostra se desenvolve sobre a produção de outros sujeitos, que se movem no interior de diversas sensualidades, como o artista outsider que se encontra às margens do mundo da arte, assim como o artista popular e o artista indígena, tratado como estrangeiro em sua própria terra.
Em Veneza os espaços expositivos são superdimensionados. Ao caminhar pela Corderie do Arsenale, um antigo e imenso entreposto de mercadorias, tem-se a sensação de que o piso se expande. Neste local icônico, os artistas aborígenes Selwuin Wilson e Sandy Adset da nação maori, originários de Aotearoa/Nova Zelândia, mostram uma impactante instalação, misturando ancestralidade e contemporaneidade, em dois ambientes expositivos de impacto simbólico. Por este trabalho receberam o Leão de Ouro de melhor obra. Ao adentrar no espaço, o público tem contacto direto com os saberes nativos maori. A enorme tenda denominada takapau chama a atenção pela beleza técnica e elegância formal e se constitui em uma espécie de esteira tecida para ser usada em cerimônias festivas e nos partos. Ainda no Arsenale se destaca o trabalho do coletivo Claire Fontaine, nascido em Paris com sede em Palermo (Itália) e que inspirou o título dessa edição da Bienal, Stranieri Ovunque. Com forte apelo visual, a obra constitui-se de neons coloridos que trazem as duas palavras stranieri ovunque escritas em cinquenta línguas diferentes, entre as quais se destacam idiomas indígenas, alguns já extintos.
Dentro do universo agigantado da Bienal cabe ao curador geral fazer a curadoria do Pavilhão Central, do Arsenale e das 30 exposições colaterais espalhadas por Veneza. Já os 37 pavilhões nacionais, espalhados no Giardini di Castello, são de responsabilidade de cada país proprietário, desde a seleção dos artistas ao curador da mostra e à montagem da exposição. O Brasil mantém seu pavilhão desde 1952, e ele está localizado em um local estratégico, no final de uma ponte, passagem obrigatória a outros pavilhões. A coletiva Ka’a Pûera: nós somos pássaros que andam, curada por Arissana Pataxó, Denilson Baniwa e Gustavo Caboco Wapichana, merecia um projeto expositivo à altura da importância das peças expostas, que marcam a resistência dos povos originários do Brasil. A exposição destaca Glicélia Tupinambá com os mantos de seu povo, e chama a atenção a videoinstalação Dobra do tempo Infinito, de Ziel Karapotó, com projéteis e maracas, uma alusão ao período violento de colonização. Já era tempo de se estabelecer o rompimento com as formas coloniais que minimizam as contribuições indígenas impondo a categorização do que é considerado indígena ou não. O trabalho de Olinda Tupinambá coloca luz na voz Kaapora, a unidade espiritual que observa as atitudes do homem com a Terra.
A expansão do discurso curatorial é grande e, com o título Italiani Ovunque, o núcleo histórico apresenta a diáspora artística italiana no mundo no século 20, com artistas que foram para o exterior e lá construíram suas carreiras na América Latina, África, Ásia e nos Estados Unidos. Esta seção apresentada no Arsenale mostra cerca de 40 obras expostas nos emblemáticos cavaletes do Masp, projetados por Lina Bo Bardi, com obras de artistas de origem italiana que viveram no Brasil e em vários países da América Latina. Lina, autora do projeto arquitetônico do Masp, recebeu o Leão de Ouro da Bienal de Veneza de Arquitetura, em 2021. A montagem exibe obras colocadas lado a lado provocando diálogos impossíveis como a Pedra Robat (1974), xilogravura de Maria Bonomi, e o Círculo Negro (1963), pintura de Clorindo Testa, expoente da arte argentina. Este segmento reúne obras ligadas ao modernismo da primeira hora como A mulher dos cabelos verdes (1915), tela de Anita Malfati, e obras posteriores como a pintura Fachada Marrom, (1950-60) de Alfredo Volpi e a pintura S/T (1963) de Waldemar Cordeiro.
A abordagem estratégica, centrada no global, multicultural e pós-colonial, deu ênfase às migrações, diásporas, desterritorialização e aos exílios. Essas bases foram moldadas por várias plataformas que promovem a diversidade e o diálogo intercultural desta edição. O pavilhão vencedor foi o da Austrália, apresentando a obra de Archie Moore, artista e cineasta de origem aborígene. A instalação Kith and Kin é um manifesto centrado na ideia de escuta como ativismo. A obra de Moore é complexa, destacada pelo imenso mural preto totalmente desenhado à mão, meticulosamente pesquisado ao longo de mais de quatro anos, inclui 3.484 pessoas e se inscreve nos 65 mil anos de história da Austrália, oferecendo monumental árvore genealógica dos primeiros aborígenes habitantes da Austrália. Os textos desenhados na parede nomeiam seu parentesco kamilaroi e bigambul.
A menção honrosa foi conferida à La Chola Poblete, artista argentina queer de ascendência indígena. A premiação foi euforicamente recebida por jornalistas, galeristas e colegas argentinos presentes em Veneza. Nascida em 1989 em Guaymallén, pequena cidade de Mendoza, na adolescência La Chola era conhecida como Maurício Poblete. O repertório da artista abrange trabalhos que refletem os dilemas e desafios de sua herança mestiça e da sua opção de gênero. Em 2017, La Chola recebe o prêmio de Artista do Ano, pelo Deutsche Bank. As pinturas expostas na Bienal, realizadas em aquarela se desenvolvem com temas abstratos, pop, em pequenas figuras que demonstram o sincretismo entre a cultura ocidental e a cosmologia aborígene.
Com enfoque nos conflitos ecológicos raciais do momento, o artista e cineasta John Akomfrah transforma o Pavilhão da Grã-Bretanha em uma poética instalação com narrativa cinematográfica. Listening All Night to the Rain foi construída com temas sobre a memória, injustiça racial, diáspora e mudanças climáticas. A obra é composta de oito multicanais que desempenham várias funções simultaneamente, com narrações visíveis e sonoras. Para ele, a água e seus significados formam um tecido cognitivo composto de numerosas estratificações narrativas visuais e sonoras. Em todo pavilhão ele trabalha um campo cromático específico influenciado pelo quadro do artista norte-americano Mark Rothko (1903-1970), com o objetivo de indicar, segundo o curador Tarini Malik, em qual abstração pode-se representar a natureza fundamental do drama humano.
A Alemanha mais uma vez dividiu opiniões com seu pavilhão no Giardini, ao ambientar uma catástrofe pós apocalítica de uma usina industrial. Com um grupo de atores encenou uma tragédia vivenciada por operários de uma fábrica de cimento. Dois artistas dividem a cena: Ersan Mondtag, cria uma cenografia densa que mostra os efeitos do cimento da fábrica Eternit, em Berlim, onde depois da guerra seu pai trabalhou e morreu contaminado por amianto. O cenário se completa com o vídeo futurista de Yael Bartana que se reporta às novas migrações humanas a bordo de uma nave espacial que se dirige a galáxias desconhecidas.
Neste ano, dilatando seus domínios para além do Giardini, a Alemanha ocupa também uma área na Ilha La Certosa, nos arredores de Veneza. A obra Thresholds instalada no Giardini e ao ar livre deu contemporaneidade à edição e deixou o visitante comum desorientado. Em La Certosa são vários autores de arte hightech atuando numa paisagem de árvores esparsas e vento constante. O artista Jan St. Werner ao criar a instalação Volumes Invertidos, dentro das ruínas de um mosteiro, dá ênfase aos sons repetidos de alta frequência emitidos por um microfone giratório. Já o musicista Michael Akstaller trabalha simultaneamente sons de gotejamentos e ruídos dissonantes vindos de duas árvores e que supostamente constituem um diálogo entre elas. Quem chega à Ilha La Certosa pouco fica por lá pela complexidade dos trabalhos e quem mantém a frequência do local durante a bienal, são artistas e diletantes experimentais.
Esta edição, que fica em cartaz até novembro, mexeu com a percepção da arte sem os desafios invocados pelo evento. Burocratizou a circulação dos jornalistas e estampou a diversidade das cosmovisões nitidamente expostas pelo atordoado homem de hoje. ✱