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A Bienal de Arquitetura de São Paulo contra a megalomania

Estação de Metrô São Paulo - Morumbi, do escritóorio 23 SUL. Foto: Pedro Kok
“Paisagens Espontâneas”, do Studio Associates

Até algum tempo atrás, um arquiteto esperaria ter projetado a grande obra de sua carreira para poder enviá-la para uma bienal, afirma a curadora e pesquisadora Vanessa Grossman. Projetos em escalas menores – como intervenções pontuais em cidades ou residências – e debates aparentemente muito específicos – sobre a manutenção de edifícios ou o impacto dos hábitos alimentares no espaço construído, por exemplo – pareceriam pouco significativos para serem expostos em uma grande exposição internacional. Pois a 12a Bienal Internacional de Arquitetura de São Paulo, que acontece entre 10 de setembro e 8 de dezembro, rompe radicalmente com essa ideia.

Intitulada Todo Dia, a mostra se volta para o cotidiano e para as práticas (aparentemente) banais para discutir questões de relevância global, como a sustentabilidade, a preservação dos bens construídos e as desigualdades social, racial e de gênero. Dividida em duas exposições montadas em “edifícios-manifesto do cotidiano”, o CCSP (projetado por Eurico Prado Lopes e Luiz Telles) e o Sesc 24 de Maio (de Paulo Mendes da Rocha), a edição tem curadoria de Vanessa Grossman e Ciro Miguel, brasileiros, e da francesa Charlotte Malterre-Barthes, todos sediados atualmente na Suíça. É a primeira vez que a curadoria do evento é selecionada através de um concurso público, organizado pelo Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB-SP).

“Nós percebemos que havia uma espécie de volta ao cotidiano na arquitetura. Isso não é algo novo, mas na última década os arquitetos falam cada vez mais sobre o cotidiano como uma dimensão temporal e espacial que é pertinente para a disciplina”, explica Grossman. “Em geral, arquitetos têm uma certa megalomania de que, se pudessem, projetariam o mundo todo. Mas acho que há cada vez mais uma percepção de que herdamos um mundo já construído e que uma forma impactante de modificá-lo é trabalhando nessa dimensão do cotidiano.” Ao mapear as práticas contemporâneas, diz a curadora, nota-se então uma certa “ética e estética da simplicidade”, uma outra forma de operar o mundo.

“Nova República”, trabalho de Hélio Menezes e Wolff Architects montado entre o Sesc 24 de Maio e Galeria do Reggae. Foto: Divulgação

Nesta percepção, falar sobre o que é servido à mesa de jantar, a reforma de uma casa ou a manutenção diária de espaços públicos e privados pode ser tão relevante quanto falar sobre a construção de uma grande obra pública. E isso não exclui, segundo os curadores, discutir as questões de escala urbana ou global, mas trata-se de entender a conexão entre as diversas esferas. O tema do cotidiano surge, portanto, como uma espécie de denominador comum para discutir as muitas formas de intervenção, segundo Grossman.

Para tratar deste vasto universo, os curadores estruturaram duas mostras com características distintas. Enquanto no CCSP são apresentados 74 trabalhos selecionados entre os 710 enviados em uma chamada aberta – projetos em diferentes escalas e apresentados em variados suportes –, no Sesc são expostos dez “dispositivos” – espécies de instalações – comissionados, criados na maioria por equipes multidisciplinares. Se a primeira aposta em um formato expositivo mais tradicional, como explica o presidente do IAB-SP, Fernando Túlio, a segunda “dialoga com uma mostra de arte contemporânea, em termos de linguagem, com projetos site-specific que se espalham por lugares inusitados do edifício”.

Ambas as mostras dialogam com os três eixos temáticos definidos pela curadoria. O primeiro, “relatos do cotidiano”, refere-se principalmente à produção e aos usos do espaço ligados a questões sociais. Envolve tanto as sutilezas e belezas do dia a dia quanto as violências, desigualdades e segregação que afetam as sociedades, tratadas a partir de temáticas raciais e de gênero, entre outras.

Estação de Metrô São Paulo – Morumbi, do escritório 23 SUL. Foto: Pedro Kok

Para Túlio, “essa Bienal quer destacar e sensibilizar a opinião pública para a perspectiva de colocar os cidadãos em primeiro lugar no planejamento das cidades. Especialmente os cidadãos que estão em situação de maior vulnerabilidade”, afirma. “Em São Paulo, por exemplo, temos pessoas que vivem em situações análogas a de refugiados urbanos, sem uma moradia digna. Então é preciso adotar mecanismos que consigam qualificar a vida.”

O segundo eixo, “materiais do dia a dia”, aborda questões de sustentabilidade em um mundo que vive a era do Antropoceno – conceito usado por diversos cientistas para definir uma nova era geológica, a atual, considerando todo o impacto causado pelo homem no planeta. Neste eixo surgem temas ligados ao uso dos materiais construtivos, assim como um diálogo mais direto com o mundo rural e com as temáticas indígenas, em um esforço de não restringir o debate às questões urbanas que costumam pautar eventos de arquitetura.

Aparecem aí trabalhos que abordam o comer, por exemplo, e outras práticas do dia a dia. “Até algum tempo atrás pensava-se que apenas os grandes projetos impactavam a humanidade, mas que o cotidiano estava um pouco isento de participar dessa cadeia. E hoje a gente consegue perceber as coisas de uma forma mais atrelada, até pela globalização e pelas tecnologias disponíveis”, diz Grossman. “Então há muitos arquitetos, atualmente, pensando sobre como trabalhar sem causar mais impactos no planeta.”

“Apanhador de Nuvens”, no topo do Sesc 24 de maio, trabalho de BRUDER (Alexandre Theriot e Stéphanie Bru)

O terceiro eixo, “manutenções diárias”, lida com uma dimensão intrínseca à arquitetura, mas muitas vezes vista como menos importante do que a construção ou edificação. “A manutenção é um assunto da ordem do dia, especialmente quando vemos casos como o incêndio do Museu Nacional, no Rio, ou o desabamento do edifício Wilton Paes de Almeida, em São Paulo. Temos um problema crônico de manutenção no Brasil, mas podemos falar também da Notre-Dame, em Paris, que pegou fogo por falta de manutenção”, diz a curadora. Neste eixo, a mostra procura adentrar ainda a manutenção em outras escalas e dimensões, seja o cuidado diário com o corpo até a preservação da memória coletiva.

No intuito de democratizar a Bienal e alcançar um público mais amplo do que o nicho dos arquitetos, a edição procura tratar todos os eixos temáticos de modo multidisciplinar e multimídia. O evento coloca a arquitetura em diálogo com a História, a Antropologia e as artes visuais e expõe os trabalhos através de áudios, instalações e uma grande quantidade de vídeos – não apenas plantas arquitetônicas, textos e fotos de projetos. “O tema do cotidiano é um tema tangível”, diz Grossman, “e tentamos abordá-lo de forma didática”.

Para Túlio, o uso de novos formatos expositivos é também uma necessidade nos tempos atuais. “Antes, para conhecer um projeto de fora de sua cidade você teria que ter acesso a uma revista, que era cara e de mais difícil acesso. Hoje está tudo na internet. Então aquele modelo de feira, de apenas apresentar projetos, se esgotou. Por isso o desafio de flertar com novas linguagens e formatos, para poder sensibilizar o público. Acho que essa bienal avança nesse sentido, mas é um desafio permanente”.

“Jardim do Ócio”, série de fotografias de Pedro Motta

Outro aspecto importante no sentido da democratização foi a escolha dos dois edifícios que abrigam a mostra, localizados em áreas centrais da cidade e com grande circulação de pessoas de todas as idades e classes sociais. É a terceira edição da Bienal de Arquitetura fora do Pavilhão do Ibirapuera. O presidente do IAB-SP destaca, por fim, o que chama de papel primordial da vida em sociedade, “a dimensão civilizatória”, e o papel fundamental da arquitetura neste sentido. “Nesse contexto de crise da democracia, a arquitetura também tem o papel de reconstituir os valores e a dimensão republicana da coisa pública.”

E ele volta, uma vez mais, ao cotidiano: “Uma pessoa que vive na cracolândia, por exemplo, o problema dela não é só a falta de moradia; não é só a falta de apoio médico; não é só a falta de emprego; nem é só a falta de acesso a equipamentos da assistência social ou de cultura. São todos esses problemas integrados, além de questões mais íntimas, da família, por exemplo. Então a história do cotidiano vem muito no sentido de lançar luz sobre isso. Porque quando você consegue entender o cotidiano de uma pessoa, consegue entender esses aspectos múltiplos”, conclui Túlio.

Todo dia
Sesc 24 de Maio – Rua 24 de Maio, 109, Centro, São Paulo
Até 29 de setembro de 2019

Arquiteturas do cotidiano
Centro Cultural São Paulo (CCSP) – Rua Vergueiro, 1000 – Paraíso, São Paulo
Até 8 de dezembro de 2019

 

Ocupação Herzog vai além do drama político

Bebê André. FOTO: Arcervo instituto Vladimir herzog.

Vlado Herzog tinha 38 anos quando foi morto, sob tortura, nas instalações do Doi-Codi, no ano de 1975, em São Paulo. Na época era editor do programa Hora da Notícia, da TV Cultura, e havia ido voluntariamente prestar depoimento. A partir daí montou-se uma farsa, na tentativa de encobrir o assassinato transformando-o em suicídio, e teve início uma luta acirrada para que a verdade viesse a tona, transformando o jornalista numa espécie de símbolo contra a opressão e em defesa da democracia, cujo último capítulo foi a condenação do Estado brasileiro pela Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA, em 2018. É a ele que o Itaú Cultural dedica a 46ª edição do projeto Ocupação, que vem ao longo de anos revisitando a obra e biografia de grandes figuras da cultura brasileira. Acertadamente, a exposição vai além do drama político do biografado. O ponto de partida não é o final dramático, mas um entremeado de referências a sua vida pública e privada, um percurso que de certa forma explica porque foi tratado de forma brutal como inimigo do Regime. Resgata a história de uma figura multifacetada, profundamente interessada pelos rumos do país num momento particularmente violento de sua história e que via na arte, sobretudo no cinema – campo de seu maior interesse – um caminho de ação e reflexão.

Logo no início, os visitantes se deparam com uma seleção cuidadosa das fotografias que ele tirava de forma obsessiva e rigorosa. Nos acervos da família, foram encontradas mais de 70 caixas de slides, cuidadosamente identificados, contendo imagens que vão de registros pessoais da viagem a experimentações de grande riqueza formal, composições marcadas por um olhar agudo e o uso de ângulos e enquadramentos inusitados, como aquele que mostra seu filho André, ainda bebê, em meio a um roseiral de intenso tom vermelho. A mulher que o segura, provavelmente sua mulher Clarisse, praticamente sai da cena para tornar a imagem mais intensa e perturbadora.

Esse primeiro núcleo, denominado de Vlado Multimídia, traz também uma série de documentos, depoimentos de amigos e companheiros de jornada, bem como textos de autoria de Herzog sobre o cinema, testemunhando tanto uma ação real neste campo como um interesse jornalístico em defesa de um uso social da linguagem. Infelizmente, só conseguiu dirigir um curta metragem, intitulado Marimbás, mas já se preparava para a realização de um documentário sobre Canudos. Tanto as fotos feitas durante sua pesquisa de campo na Bahia como Marimbás, fazem parte da mostra. O catálogo também é dedicado exclusivamente a relação dele com o cinema.

Sua vida pessoal, o trabalho jornalístico e sua permanência como um símbolo de luta contra a opressão (representado em trabalhos como a ação de Cildo Meireles, que carimba notas de dinheiro com a pergunta: “Quem matou Herzog?”) constituem os outros núcleos da mostra. Ao longo de dois anos de pesquisa, que envolveu uma equipe de oito pesquisadores, além da equipe do Itaú Cultural e do Instituto Vladimir Herzog – parceiros na produção da mostra –, milhares de dados e documentos foram coletados. Espalhados pelo espaço expositivo o visitante se depara com uma série de ricos elementos como fac-símiles de seus artigos para vários veículos, cartazes e livros póstumos em homenagem a ele, documentos importantes relativos ao Caso Herzog como a decisão do juiz Márcio José de Moraes que, em 1978, reverteu a versão oficial de suicídio, em meio a objetos de cunho simbólico como sua máquina de escrever e sua câmera fotográfica. São especialmente tocantes itens como o registro de entrada da família Herzog, em 1946, no Brasil e uma carta que seu pai lhe escreveu narrando a vida da família durante a Segunda Guerra Mundial, quando se refugiaram na Itália fugindo da Iugoslávia e do antissemitismo. Ou ainda a fotografia da redação do Estado de S. Paulo, completamente vazia, no dia de seu enterro.  Um testemunho visual da enorme solidariedade e comoção causadas pelo seu assassinato pelo regime militar.

“Foi um verdadeiro garimpo. Isso que vemos aqui é apenas a superfície”, conta Luis Ludmer, do Instituto Herzog e co-curador da mostra juntamente com Claudiney Ferreira, gerente do Núcleo de Audiovisual e Literatura do Itaú Cultural. A ideia é que todo esse material sirva, no futuro,  de base para a construção de um site, tornando permanente o acesso a todo esse volume de material, que tende a tornar-se ainda mais amplo com divulgações como esta mostra cuja função não é apenas a rememorar o passado e resgatar a figura do intelectual engajado, fazendo com que ele nunca seja esquecido, mas também construir um modelo de resistência importante em momentos de recuo dos direitos humanos como o que vivenciamos hoje. “Não queríamos nada fúnebre”, afirmam os curadores. Daí a opção por uma museografia aberta, com os vários núcleos em diálogo, marcada por uma certa leveza e rusticidade.

Ocupação Vladimir Herzog
Itaú Cultural – Av. Paulista, 149 – Bela Vista, São Paulo
Até 20 de outubro

 

Fotografia da memória

Foto de João Pina
Roupa íntima encontrada dentro de sepultura estudada na EAAF (Equipe de Antropologia Forense) em Buenos Aires. Foto: João Pina / Condor

Seja em Portugal, sua terra de origem, ou nos vários países da América Latina onde trabalhou, o fotógrafo João Pina, 38, dedicou boa parte de seus 20 anos de carreira a fazer “com que histórias não caiam no esquecimento”. Da família herdou o interesse pela política – os avós, militantes comunistas, foram presos políticos durante o regime salazarista. Compreendeu, também, a importância da memória e de conhecer o passado tanto para entender o presente quanto para reparar traumas e injustiças históricas.

Não à toa, Por Teu Livre Pensamento, seu primeiro trabalho autoral, foi uma espécie de acerto de contas com a própria história, a partir de registros de sobreviventes da perseguição política em Portugal. Condor, projeto que demorou nove anos para ser concluído e resultou em um livro e uma série de exposições ao redor do mundo, investigou a Operação Condor, articulação entre seis ditaduras militares sul-americanas (Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai) organizada para reprimir a oposição de esquerda.

Vieram ainda outros projetos em Portugal, em Cuba, na Colômbia (sobre as FARC), no Rio de Janeiro (46750, que leva no nome o número de homicídios ocorridos na cidade entre 2007 e 2016), entre outros. Atualmente, o fotógrafo desenvolve um trabalho sobre Tarrafal, campo de concentração criado pelo governo português em Cabo Verde nos anos 1930, e começa a se debruçar sobre a herança escravocrata em Portugal. Infelizmente, segundo Pina, olhar para o passado é um trabalho ainda pouco feito tanto no Brasil quanto em seu país – apesar de que lá as discussões sobre o colonialismo e a ditadura começam a se tornar mais presentes.

No caso brasileiro, mais preocupante para o fotógrafo, o resultado é, entre outros, a eleição de um presidente, Jair Bolsonaro, que elogia “um torturador que deveria ter sido preso por crimes de lesa-humanidade”. Além disso, no caso do Rio de Janeiro, “não tenho dúvidas de que o fato de a Polícia Militar matar em média mil pessoas por ano tem a ver com essa cultura que vem da ditadura”, afirma.

Em cada projeto, a partir de longa pesquisa e investigação, Pina constrói narrativas sobre histórias escancaradas ou escondidas, presentes ou passadas. A violência que aparece explícita nas cenas atuais de ações policiais no Rio surge, de outro modo, silenciosa em uma sala vazia que foi utilizada para sessões de tortura na Argentina ou, ainda, nos rostos de sobreviventes de tortura nos países sul-americanos.

Com atuação cada vez maior fora do fotojornalismo, onde iniciou a carreira, Pina passou a expor, ao longo dos anos, em museus e galerias, além de ter publicado três livros. “Está completamente fora do meu controle e não me interessa como o mercado ou a academia classificam meu trabalho – se é fotografia documental, artística, jornalística. O que me interessa é contar histórias. Posso me classificar apenas como um autor que tem uma voz e coisas a dizer.” Leia abaixo a íntegra da entrevista.

ARTE!Brasileiros — Muitos de seus projetos lidam com acontecimentos de um tempo que você não viveu. Como utilizar a fotografia, que capta o momento presente, para tratar destes fatos do passado. Quer dizer, quais artifícios você utilizou e utiliza?
João Pina – Alguns artifícios dos quais eu sou consciente e outros não. O trabalho passa pela investigação, por ouvir fontes primárias para chegar a pistas, lugares, pessoas e objetos, digamos assim. Eu acho que tem a ver com isso, com estudar, pesquisar, entrevistar e, depois, perceber como é que se pode contar histórias do ponto de vista visual. Então eu vou seguindo as pistas desta visualização do passado no presente. E a partir disso vou criando.

Parece sempre existir o desejo de tornar públicas essas histórias apagadas, muitas vezes esquecidas. Faz sentido pensar assim?
Sim, acho que isso é a minha missão, conseguir ampliar essas vozes e fazer com que essas histórias não caiam no esquecimento. Essa é minha grande preocupação, especialmente nesse momento que estamos vivendo, no qual parece que estamos reescrevendo e reinterpretando a história de acordo com quem está no governo. Isso para mim é muito assustador.

Em 2016, quando ainda estava em curso o processo de impeachment de Dilma Rousseff, você disse que o fato de o Brasil não ter discutido seu passado – e de as Forças Armadas e alguns políticos continuarem fazendo apologia ao golpe – era muito preocupante, porque semeava o terreno para que abusos pudessem voltar a acontecer. Um desses políticos, Jair Bolsonaro, foi eleito presidente. Como enxerga esse momento?
Esse processo de não olhar para a memória no Brasil é muito semelhante ao que acontece em Portugal, então isso não me é estranho. Mas eu olho com mais preocupação para o caso brasileiro porque sinto que as instituições em Portugal são um pouco mais sólidas ou, pelo menos, existe menos instrumentalização política das instituições neste momento. E este esquecimento no Brasil, associado a outros problemas de populismo – que propõe receitas fáceis para problemas profundos –, deu nisso que estamos vendo, com a eleição do Bolsonaro, com uma polarização enorme e um aumento exponencial de violências que se pensavam resolvidas.

As violências herdadas da ditadura?
Porque as coisas não se resolvem por osmose, por si próprias, elas têm que ser faladas, mexidas, sanadas e só depois é que se pode encerrar um processo. No Brasil, tal como em Portugal, onde esse processo de resolução não existiu, muitas pessoas achavam que isso estaria resolvido. Mas o fato é que o Brasil continua a ter quartéis com os nomes dos ditadores e que tivemos um deputado, agora presidente, dedicando seu voto no impeachment a um torturador que deveria ter sido preso por crimes de lesa-humanidade. E uma boa parte da população acha que isso é normal. Portanto, enquanto essas condições objetivamente existirem é normal que esse tipo de resultado aconteça. As consequências são as que estamos vendo.

Com a anistia veio essa ideia de que era preciso esquecer para seguir em frente. É preciso, na verdade, lembrar para seguir em frente?
É difícil dar uma receita. Tenho lido livros inclusive sobre o direito de esquecer, não só do direito de relembrar. Mas definitivamente acho que ignorar o problema não é uma receita. A história deve ser lembrada para se entender como é que as coisas chegaram onde chegaram. E no Brasil esse exercício é muito pouco feito. Esse exercício nunca foi feito dentro das Forças Armadas, que continuam defendendo que houve uma revolução libertadora que salvou o Brasil do comunismo, esse bicho-papão que come criancinhas. De outro lado, boa parte da esquerda também não evoluiu seu discurso. Não podemos esquecer que o Partido dos Trabalhadores (PT) esteve 12 anos no poder e fez muito pouco para discutir estes assuntos. Houve uma Comissão Nacional da Verdade, mas o que se seguiu a isso, na prática, foi absolutamente nada. E com o atual panorama político, então, será menos que nada, será o retrocesso, o reescrever da história.

Esse discurso de um governo que vem salvar o país do comunismo, de 1964, é muito semelhante ao que elegeu Bolsonaro…
Exatamente como em 1964, quando dizia-se que tudo era comunismo. Ou seja, quem diz que tudo é comunismo não sabe sequer o que é comunismo. Comunismo, fascismo, são palavras que entraram no léxico distorcidas. Inclusive a esquerda comete este erro quando acusa qualquer um de fascista. Às vezes chama de fascistas pessoas que são neoliberais, o que é completamente diferente. Mas enfim, é uma discussão longa, que tem a ver com a falta de educação política e cívica. Temos que pensar como se pode ultrapassar isso. O Brasil sofre muito com a falta de educação formal, digamos assim, e a história se torna mais manipulável. E se muitos brasileiros, mesmo na escola, não aprendem de fato o que aconteceu em 1964, em 1968, na Guerrilha do Araguaia etc., isso é preocupante.

E nos outros países da América do Sul que você pesquisou, o quadro é muito diferente?
As situações são distintas. A Argentina é um país onde essas questões são muito presentes, porque logo após a ditadura a sociedade civil mobilizou-se muito – e as vítimas também eram muitas. Então isso passou a estar na ordem do dia e houve condições políticas para a discussão caminhar. De algum modo, é um caso exemplar. Acho que seria impensável na Argentina uma figura adotar um discurso como o de Bolsonaro sobre a ditadura e ter tamanha popularidade e destaque.

Por fim, passando para o projeto 46750, sobre a violência no Rio de Janeiro, parece haver um diálogo forte – talvez não tão explícito – com o que se vê em Condor, já que a violência policial no Brasil é ainda resquício direto da violência repressiva da ditadura. Faz sentido?
Faz todo o sentido. Eu comecei Condor em 2005 e o 46750 em 2007, em uma fase em que eu estava muito focado em entender esses processos de violência, não só do passado quanto do presente. E muito rapidamente para mim essa violência do presente começou a mostrar suas nuances que vinham lá de trás. E, no caso do Rio, não tenho dúvida nenhuma de que o fato de a Polícia Militar matar em média mil pessoas por ano tem a ver com essa cultura que vem da ditadura. Na verdade, o que se vê ali é também resultado da impunidade implementada pelos portugueses quando chegaram ao Brasil, da escravidão, e depois da ditadura militar. O fato de a polícia brasileira ser uma polícia militar, a que mais morre e que mais mata no mundo, isso não vem de ontem, mas de 500 anos.

Existe uma discussão muito presente hoje no universo artístico de quanto as artes visuais podem ser também um artifício potente para tratar da história. Como você vê essa questão?
Acho que mesmo na academia hoje há uma preocupação crescente em tratar as coisas também fora do texto, usando a linguagem visual para isso. E eu percebi isso com Condor. Ao utilizar imagens para tratar deste assunto, rapidamente comecei a ser contatado por professores e acadêmicos, e a ser chamado para fazer conferências acerca do assunto. Acho que começou a se perceber melhor, 200 anos depois do surgimento da fotografia, o poder do visual e os contributos que ele pode dar inclusive para a academia, seja em uma aproximação apenas documental ou mais artística, poética, mais livre.      

Você acredita que a arte, e mais especificamente a fotografia, pode ter alguma virtude reparadora? Quer dizer, tanto para as vítimas de violências quanto mesmo para a sociedade, trabalhos como esses que você faz podem ter também um papel de cura, digamos assim?
Não sei, talvez seja muito pretensioso ou utópico pensar desta maneira. Não acho que uma imagem em si vá sanar, curar ou dar justiça a quem quer que seja. Mas acho que ela pode sim contribuir, tal como o texto, a pintura e a música, para que exista alguma espécie de justiça, reparação e mais bem-estar para as vítimas. E, também, mais mal-estar para os culpados, que ao se verem retratados possam talvez repensar o que foram suas atitudes, perceber as consequências do que fizeram.

Parceria da FAMA, Galeria Estação e ARTE!Brasileiros leva cerca de 400 pessoas à Itu

Público no seminário 'A arte como construção de mundos' (2019), realizado em parceria com a FAMA. Foto: Daniela Noronha

O seminário internacional A Arte Como Construção de Mundos, realizado pela Fábrica de Arte Marcos Amaro, com apoio da Galeria Estação e organização da ARTE!Brasileiros aconteceu no último dia 7 de setembro na sede da FAMA, em Itu. Quatro especialistas de diferentes áreas que trabalham a Art Brut (ou Outsider Art) expuseram em suas falas experiências à frente de instituições, representação de artista e também a partir de uma visão da Psicologia e da Filosofia, considerando o trabalho produzido por artistas com sofrimento psíquico.

Com introdução de Marcos Amaro e Raquel Fayad, respectivamente presidente e diretora da Fundação Marcos Amaro, o seminário contou com mediação de Ricardo Resende, curador da Fundação e do Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea. As palestrantes convidadas foram Elisabeth Telsnig, representante da obra do artista Josef Hofer e curadora de sua individual em cartaz na Galeria Estação; Tania Rivera, psicanalista e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro; Solange de Oliveira, pós-doutoranda no Depto. de Filosofia da USP, onde estuda artista Judith Scott e outros artistas outsiders; e Raquel Fernandes, médica psiquiatra e diretora do Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea.

Público assista à apresentação de Solange de Oliveira. FOTO: Daniela Noronha

Passaram pelo seminário cerca de 400 pessoas. Entre os presentes estavam galeristas, artistas, representantes de instituições, arte-educadores, professores e estudantes. A crítica de arte Aracy Amaral, a artista Nazareth Pacheco e o artista Gilberto Salvador foram alguns dos nomes que acompanharam as palestras. O público foi composto de pessoas vindas da capital paulista, de Itu, do Rio de Janeiro e também de cidades vizinhas, como Sorocaba e Indaiatuba.

Ao final das falas, todos puderam desfrutar de um dia na Fábrica de Arte Marcos Amaro, onde no momento sete exposições estão em cartaz, entre elas mostras de Bispo do Rosário, Nazareth Pacheco, de Louise Borgeois, de Samuel de Saboia e Pola Fernandez.

Meio século bem registrado

Foto de Carlos Moreira no Guarujá, 1981

A retrospectiva Carlos Moreira – Wrong so Well ocupa três andares no Espaço Cultural Porto Seguro, em um caudaloso apanhado da obra do artista que também foi professor de fotografia. Como tal participou da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP) de 1971 a 1974 e, de novo, em 1979 até 1990.

Ainda 1990, ele criou a Escola de Fotografia M2 Studio, junto com Regina Martins, que hoje integra o time de curadores da exposição.

O título, Wrong so Well, vem de uma anotação feita pelo artista entre suas fotos digitais: “I like when you do it right. But I like much more when you do it wrong so well” (Eu gosto quando você acerta. Mas gosto muito mais quando você erra tão bem).

Moreira dedica-se à fotografia autoral, à fotografia de rua e à fotografia de viagens. Suas fotos são registradas com muito cuidado, sensibilidade e prazer.

O prédio da Porto Seguro no bairro dos Campos Eliseos, que abriga a obra, já se tornou um dos centros importantes da arte em São Paulo e a mostra de Carlos Moreira é a mais recente das 16 exposições lá apresentadas, série que começou com Grandes Mestres Leonardo, Michelangelo e Rafael, que inaugurou o espaço no começo de 2016.

Nesta retrospectiva são cerca de 400 fotos, escolhidas pelos curadores Fábio Furtado, Regina Martins e Rodrigo Villela — que é diretor executivo e artístico do Espaço Cultural —, em um trabalho de curadoria que começou em janeiro e mergulhou nos arquivos de mais de 50 anos do trabalho do fotógrafo.

Para os curadores, a “exposição nasceu diante de alguns desafios consideráveis ainda que maravilhosos… Foram inventariados mais de 150 mil fotogramas coloridos – imagens inéditas que agora podem ser vistas pelo público pela primeira vez. A parte em preto e branco, embora já catalogada e organizada previamente, representa outros 80 mil fotogramas, aproximadamente. Se juntarmos a isso sua produção digital, desde o começo dos anos 2000 até agora, o volume, no mínimo, duplica. Sem falar no delicioso risco de se ter uma nova e extraordinária sequência de imagens feita por Carlos a cada dia, no decorrer do processo”.

Nascido em São Paulo em 1936, Carlos Moreira começou a fotografar no começo dos anos 60, quando encantou-se com Cartier-Bresson, de quem a influencia mais tarde se afastou. Atualmente o fotógrafo reconhece “uma certa ‘dureza’ em Cartier-Bresson” que hoje o incomoda, “mas foi importante na minha formação”.

Moreira formou-se pela Universidade Mackenzie, em Economia, e optou pela fotografia em 1964, abandonando a nem mal iniciada economia.

Conhecido por suas fotos analógicas em preto e branco, produzidas em cidades por onde passou, nas paredes do Espaço Cultural Porto Seguro também estão expostas 250 fotos inéditas de suas fases cor e digital. Dividida em núcleos, a exposição reúne desde as fotos do começo da carreira até imagens digitais recentes. Carlos Moreira já expôs em Paris (1983), Washington (1986) e Nova York (1988). Suas fotos estão em acervos importantes, como o do Pompidou.

Também são interessantes suas escolhas técnicas neste momento onde a vertiginosa transição tecnológica que nos assola há décadas, além do dito progresso, provoca também discussões onde nem os ícones são poupados. Recentemente, Sebastião Salgado provocou burburinho nas redes sociais ao disparar que, para ele, as “imagens de celular não são fotografia”.

A obra de Carlos Moreira vem à luz através de câmeras e técnicas escolhidas de maneira saudavelmente eclética.

Ele fotografa com Leicas, analógicas e digitais, com as práticas Canon Powershot e também com os, ainda menos complexos, aparelhos celulares. Suas fotos são impressas em preto e branco, em cores e em vários suportes que incluem até cadernos, tipo Cícero e Moleskine.

E, a respeito disto, é importante a frase incluída na expografia da mostra: “… fica claro que para ele o cerne da fotografia não está no dispositivo em si, mas naquilo que ele proporciona ao artista em sua relação com o mundo”.

Carlos Moreira – Wrong so Well
Espaço Cultural Porto Seguro
Até 27 de outubro
Entrada gratuita

 

 

Sérgio Sister e suas armas de resistência

Sérgio Sister, Esticados
Sérgio Sister, Esticados, 1967, tinta acrílica sobre tela 97 x 130 cm

Oportuna a mostra que Sérgio Sister realiza na Galeria Nara Roesler, em São Paulo (até 5 de outubro), apresentando pinturas que realizou no final da década de 1960 e desenhos produzidos na prisão, entre 1970 e 1971. Oportuna por dois motivos, pelo menos: em primeiro lugar porque, nesses dias em que tentam negar os desmandos cometidos pela última ditadura civil-militar brasileira (sendo que alguns buscam negar que ela tenha de fato ocorrido), é didático colocar o público frente a testemunhos de vítimas daquele período que jamais será apagado da história do país; um segundo motivo para a relevância da mostra é que ela apresenta os dois primeiros momentos da trajetória de um artista então muito jovem (Sister nasceu em 1945) e que, com o passar dos anos, viria a ser reconhecido como uma das principais referências da pintura no Brasil.

Visitando Imagens de uma juventude Pop: pinturas políticas e desenhos da cadeia, o que de início chama a atenção são as diferenças de abordagens plásticas usadas por Sister nas pinturas e nos desenhos.

No primeiro grupo é espantosa a vivacidade que emana daquelas pinturas que, atentas ao burburinho da metrópole, aos flagelos da sociedade de massa e aos perigos da ditadura, (que aos poucos mostrava sua cara), demonstram a crença no fazer pictórico, acreditam no que denunciam e em como denunciam. Nelas é notável como Sister – a exemplo de alguns colegas de geração – conseguia filtrar e torná-los seus, os códigos das vertentes então mais em voga (a Pop, a Nova Figuração etc.), tudo crivado por um tipo de arquitetura do campo plástico que – passível de ser associada à estrutura das paginas de histórias em quadrinho –, nada me tira da cabeça que poderia ser debitada igualmente à experiência concreta, ainda forte em São Paulo à época (talvez o mesmo débito de Claudio Tozzi, em suas primeiras produções).

Essa concepção forte, no entanto, como que se liquefaz nos desenhos produzidos por Sister no período em que passou no antigo Presídio Tiradentes, em São Paulo, de triste memória. Se nas pinturas imediatamente anteriores havia como que uma afirmação do discurso, um voluntarismo juvenil repleto de vivacidade e ironia, nos desenhos agudos realizados na prisão, a arquitetura das cenas tende a se esvair, escoando pelos cantos (neste sentido, um desenho em especial, que mostra a bandeira do Brasil em processo de diluição, me parece emblemático). O plano do papel recebe inúmeras situações, como que registradas à socapa. São várias cenas produzidas à maneira de colagens, em que o artista atesta o cinismo, a barbárie, a tortura – cenas trágicas e – pasmem! – repletas de um quase humor ferino e triste.

Apesar de graves e importantes como testemunhos instransponíveis da atuação do estado sobre o cidadão comum, esses desenhos são mais do que isso, e não se encaixam como emblemas solenes daquela situação em que o artista foi uma vítima entre tantas. São documentos de um crime, é certo, mas também sua própria superação. Atuam como a melhor resposta ao arbítrio porque o ridiculariza ao mesmo tempo em que questionam a si mesmos. Esses desenhos se recusam a significar meros documentos sobre a barbárie sofrida, para atuarem como reelaborações críticas das maldades que apontam, não se deixando abater por elas. São armas de resistência.

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Como mencionado, passadas cinco décadas, a obra de Sérgio Sister é apontada como uma das principais referências da pintura brasileira atual e, aparentemente, não possui nenhuma referência daquelas produções de início de carreira: nem o denuncismo de suas primeiras pinturas, nem o teor crítico de seus desenhos. Será?

Nos últimos anos, a produção de Sister tem se caracterizado como uma afirmação de certos elementos constitutivos da pintura, reverenciados na modernidade, como estratégias para a delimitação de seu próprio campo: a reiteração da bidimensionalidade, a ênfase no ato de pintar e o uso planejado do monocromático a enfatizar todas essas peculiaridades. Nenhuma representação – a pintura não representa o real, ela se apresenta como um novo dado –; nenhuma cor mais estridente – os tons mais baixos tendem a reforçar a dimensão planar da pintura e a realçar os índices da ação do pintor sobre a superfície.

Porém, a distância entre os dois momentos da produção de Sister tende a encurtar-se quando se analisa a estruturação que o artista fazia de suas pinturas no início de carreira. Ali, talvez os ensinamentos das correntes construtivas brasileiras informassem a maneira como o artista arquitetava o campo pictórico, dividindo-o num tipo de gradeado que ressoava as estruturas daquelas vertentes, dividindo o campo do suporte em áreas comunicantes, porém autônomas. Agora, observando suas pinturas recentes, parece que Sister foca sua atenção e trabalha em cada uma dessas áreas em particular, destacando-as do corpo geral da grade, fazendo com que alcancem seu protagonismo.

Difícil sustentar esse liame proposto para os dois momentos do artista? Pode ser, uma vez que se trata aqui de uma questão aparentemente de puro interesse formal, como que para justificar a suposta falta de engajamento atual de Sister frente à situação política e social.

Engano. As pinturas austeras e rigorosas que hoje Sister produz guardam, das pinturas e sobretudo dos desenhos do seu período inicial, o mesmo papel de armas de resistência. Ao afirmar as especificidades da linguagem pictórica – tão caras à modernidade – a produção mais recente do artista parece se colocar numa distância crítica em relação à cooptação que sofre a prática da pintura nas últimas décadas, quase sempre fácil presa do processo de alienação a que vem sendo submetida – índice mais do que plausível do processo de alienação e embrutecimento que nossa sociedade sofre na atualidade.

 

 

Adriana Varejão: por uma retórica canibal

Adriana Varejão, Proposta para uma Catequese - Parte I - Díptico Morte e Esquartejamento (1993) [Foto por Eduardo Ortega]

A exposição Adriana Varejão – por uma retórica canibal reacende as indagações sobre o barroco e a colonização brasileira sob o olhar aguçado da artista carioca. Exposta no Mamam – Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães, no Recife, a mostra reúne 25 trabalhos produzidos entre 1992 e 2018 e faz emergir pontos obscuros da história brasileira.

O interesse suscitado por estas obras, já conhecidas do eixo Rio/São Paulo, ocorre agora da combinação acertada do recorte da curadora Luisa Duarte, com obras pontuais inseridas no Nordeste, território fortemente influenciado pelo barroco. Acima de tudo, local privilegiado para pensar a colonização que fez uso forçado da mão de obra escrava, na exploração massiva da cana de açúcar. Basta lembrar que a Capitania de Pernambuco, em 1534, era a mais rica e poderosa entre as 14 criadas pelos portugueses. Experimentar esse confronto é fazer voltar à superfície impressões submersas de um vasto passado ainda não digerido.                                                                

A exposição começa com o visitante sendo conduzido, naturalmente, à sala de projeção onde Transbarroco, videoinstalação de autoria e direção da artista e Adriano Pedrosa, é exibido em grande tela. Cenas escolhidas de quatro filmes, com projeções simultâneas, mostram fragmentos de igrejas do barroco brasileiro. A excitação visual das imagens funciona como organismo vivo, umas entrando nas outras, de tal maneira que o espectador não permanece em estado contemplativo. A trilha sonora mistura percussão do Oludum, acordes de órgão da Igreja de Mariana, toques de sinos, ritmos de samba. Quase como um sussurro, ouve-se a voz ao escritor angolano José Eduardo Agualusa falando trechos de Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre. Transbarroco é uma interpretação livre que coloca o visitante em meio à fotografia, cinema e instalação, reforçando Mário Pedrosa: “a arte é um exercício experimental da liberdade”.

ele Tatuada à Moda de Azulejaria, 1995. FOTO: Jaime Acioli

A arquitetura do Mamam, como plano espacial, suspende o tempo em devaneio poético e abraça a exposição sem interferências. Algumas obras, nascidas em temporalidades distintas, dialogam com o contemporâneo como a pintura Incisões a la fontana, 2000, que deixa exposta a matéria interna, carne humana viva, inspirada na famosa tela do artista ítalo-argentino Lucio Fontana. No percurso de uma revisita ao colonialismo, vale refletir sobre Proposta para uma catequese – Parte 1 diptico: Morte por esquartejamento, de 1993. Só esse trabalho dá conta do conceito de contracatequese, defendido por Varejão. Em um detalhe da obra, um homem é empalado, método de tortura e execução que consiste na inserção de estaca no corpo da vítima, até a sua morte. A transgressão da cena reposiciona os sentidos e abre um novo lugar para sentir e pensar a violência no Brasil atual e sua herança colonial.

Há uma forte marca autoral nas obras de Varejão inspiradas em azulejos, ícone da cultura portuguesa, pela sistematização do movimento de repetição e multiplicidade de formas geométricas, presentes tanto em trabalhos mais antigos quanto nos mais recentes. A série Ruínas de charque, de 2000, simula pedaços de arquitetura com pinturas desses azulejos, entremeadas pela representação da carne de charque. Ao longo de sua pesquisa Adriana colecionou mais de seis mil deles registrados por ela desde 1988, com imagens que a inspiram.

Consumir poéticas diversas, digerir e devolvê-las em uma obra autoral, faz parte do registro do real e da fantasia que povoa a produção de Varejão e quase toda arte brasileira. O marco inaugural do antropofagismo nacional pode ser o episódio em que o padre Don Pero Sardinha é devorado pelos índios Caetés, em 1556, em um ritual canibal no litoral do Nordeste. Isso ocorreu 372 anos antes do Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade ser lançado em 1928.

Azulejão (Neo-concreto), 2016. FOTO: Vicente de Mello

O interesse de Varejão pelo barroco vem do seu início nas artes, quando a conheci em 1988, na galeria Thomas Cohn no Rio de Janeiro. Ela fazia sua primeira individual aos 23 anos e dizia que as pinturas expostas eram resultado de uma viagem a Minas, onde se surpreendeu com o barroco das igrejas. Essa inspiração que persiste até hoje, a levou a estudar e pesquisar em Salvador e Cachoeirinha, (Bahia), Recife (Pernambuco), Mariana (Minas Gerais) e, posteriormente, em Portugal. Hal Forster, em seu texto O artista como etnógrafo, fala sobre o protagonismo que a antropologia como discurso exerce sobre a produção contemporânea, considerando como virada etnográfica o crescente interesse pelo Outro.

A mostra de Varejão foi inserida pelo Mamam no seu projeto Exposição Individual de Artistas Mulheres, sendo a terceira da série. A diretora Mabel Medeiros comenta que neste momento o museu está reestudando o acervo com atenção na produção feminina, ainda escassa na coleção. A exposição Adriana Varejão – por uma retórica canibal deve seguir até o final do ano para outros estados brasileiros fora do eixo Rio/São Paulo.

Nheë Nheë Nheë, Genealogia do Ócio Tropical

Nheë Nheë Nheë
Nhee 2, Pinturas em aquarela de imagens de pedras

Estou sem tempo! Não podemos perder tempo! Esqueça essas expressões antes de entrar na exposição Nheë Nheë Nheë, Genealogia do Ócio Tropical de Márcio Almeida, no Sesc Santo Amaro, no Recife. Tente mergulhar no ócio, relaxar e pensar que a vida é uma aventura existencial.

Se tiver vontade sente ou deite no espaço expositivo, afinal este pode ser seu momento de descobertas, gozo, prazer de se encontrar consigo mesmo. Estar no ócio é estar no sossego redesenhando a vida e mediando o lugar da transgressão criadora. A vadiagem experimental se nutre de um não fazer nada criativo. Em síntese é o que transmite essa mostra sutil, de limpeza formal marcante, e que reflete sobre as relações de trabalho, desde o período do Brasil colônia até os dias de hoje.  O conceito traz outros contornos e reafirma o pensamento de Antonio Negri, filósofo marxista italiano quando define:  “O trabalho é capacidade de produção, atividade social, dignidade, mas por outra parte é escravidão, comando, alienação”.

A exposição é alinhada com três trabalhos anteriores e o mais recente, Nheë Nheë Nheë, é fruto da residência de Márcio Almeida na Usina de Arte Santa Terezinha, na Zona da Mata, sul de Pernambuco. Por alguns dias ele experimentou momentos de ação e descanso. Produziu dentro de um tempo livre, que nos dias de hoje corre o risco de ser eliminado pelo governo. Não trabalhar formalmente é visto pelo sistema como vagabundagem, preguiça, ócio. Hanna Arendt, em A Condição Humana, nos lembra que todas as palavras europeias para trabalho significam também dor e esforço – em latim e inglês labor, em grego ponos, em francês travail, em alemão Arbeit.

O que se distingue nessa obra é a forma de combinar elementos que brotam no espaço expositivo, desde o título da mostra nascido nas origens de nossa língua indígena. Ñheé, segundo o antropólogo Adolfo Colombres, significa fala. Portanto, Nheë, Nheë, Nheë, pode ser uma tradução livre de tagarelice. Também se refere a uma forma de controle exercida pelos religiosos na tentativa de unificar as linguagens tribais para facilitar a catequese forçada.

No texto de apresentação, o curador Beano de Borba comenta o trabalho de Márcio Almeida como um ócio tradicional e um rito selvagem, sustentados por uma insurgência do tempo liberto. A intenção do artista é “realizar um paralelo entre a questão do trabalho ocidental e o ócio tropical”. Nesse contexto, ele tem como base a interferência das religiões e as estratégias dos colonizadores na catequização os indígenas. Ócio e liberdade é o binômio que atravessa todas as quatro instalações que compõem a mostra. “No processo de curadoria partimos do novo trabalho, Nheë Nheë Nheë, e incluímos outras obras, desdobramentos ligados à lógica ocidental de trabalho e que refletem as distorções praticadas pelo sistema”.

A instalação Nheë Nheë Nheë, que dá título à mostra, é um exercício delicado composto por treze peças criadas com galhos de oliveira, pás e ferro de cova que dão forma às ferramentas de trabalho. Apesar do espaço relativamente pequeno da galeria, as obras fluem. A parede envidraçada do chão ao teto não atrapalha, ao contrário, incorpora a paisagem externa, mimetizando a vegetação com os galhos secos.  Em outra instalação, Nosso Descanso é Carregar Pedras, o serialismo está presente no conjunto de cartões de ponto de hospitais sobre os quais o artista ilustra com aquarela imagens de pedras, elementos simbólicos da escravidão desde os tempos bíblicos. O relógio de ponto marca o tempo demandado pelo sistema que, segundo Foucault, se transforma em uma forma de controle trabalhista.

A mais abrangente delas, Waiting for Work é marcada pela fotografia, uma série de dez imagens que captam o momento de descanso de funcionários após o intervalo do almoço. O tempo de não fazer nada, de livre reflexão e comunicação entre os colegas. Essa realidade do espaço temporal diário é extensão animada de um campo de atração e repulsa, movido por forças poéticas e sociais. Fecha a mostra, Truck Sistem, que toca em um dos aspectos mais cruéis do trabalhismo brasileiro, a servidão por dívida. Com cerca de 30 papéis carbono, coletados e grafados, Márcio Almeida coloca em discussão a recorrente escravidão por débitos vivida pela classe trabalhadora da cidade e do campo. Esse procedimento de abuso vigente no Brasil, mostra que o trabalhador não consegue liquidar suas dívidas com o patrão, mesmo as da cantina, tornando-se escravo permanente do empregador.

Nos dias de hoje, com o homem subtraído do tempo a que tem direito, Genealogia do ócio tropical poderia ser um ponto de partida para a bula do remédio: Vida outro Modo de Usar? O artista acredita que sim. “Entendo a produção como algo ligado diretamente ao pensamento livre, sem compromissos, é exatamente nesses instantes de reflexão que somos mais produtivos”. Márcio Almeida prova desse remédio constantemente. Só começa a trabalhar uma obra, sem nenhum instrumento, pensando tranquilo deitado na rede, maquinando ideias, literalmente no ócio.


Márcio Almeida: Nheë Nheë Nheë,
Genealogia do Ócio Tropical
Até 28 de setembro, das 9h às 17h.
Sesc Santo Amaro, no Recife.
Rua 13 de Maio, 455, Santo Amaro – Recife
+55 (81) 3216-1728

Bienal de Berlim começa evocando Flávio de Carvalho

Flávio de Carvalho, 'Experiência n. 3', 1956 Photograph, b/w Source: Fundo Flávio de Carvalho/CEDAE-UNICAMP, Campinas © The Heirs of Flávio de Carvalho
“O peixe dentro do mar nada sabe do voo nupcial da abelha, nem das ideias de um comandante de navio, mas poderá um dia entrar em contato com os ossos de um homo sapiens e ponderar sobre os ossos.
Uma coleção de ossos é, portanto, mais importante a um observador do que os ossos do próprio observador. A luz sobre o passado é o único tipo de luz capaz de iluminar o presente, e de ajudar a derreter o véu da cegueira; o passado colecionado em museu apresenta mais sugestibilidade que o tumulto de uma geração, e é eminentemente capaz de concorrer ao desabrochar do indivíduo”.

 

O trecho acima é parte do livro Os ossos do mundo, publicado em 1936, portanto há mais de 80 anos, e escrito por Flávio de Carvalho, após seis meses de viagem na Europa, entre 1934 e 1935. Exp. 1: Os Ossos do Mundo é justamente o título da atividade que dá início à 11ª Bienal de Berlim, nesta sexta, dia 6 de setembro, com curadoria de María Berríos, Renata Cervetto, Lisette Lagnado e Agustín Pérez Rubio.

O arquiteto e artista transgressor Flávio de Carvalho (1899 – 1973), que em 1956 saiu de saias em São Paulo, foi um dos que inspiraram o projeto vencedor para a Bienal de Berlim, no ano passado, e suas propostas surgem agora como referência para o processo curatorial do time majoritariamente latino-americano, exceção do espanhol Rubio.

“Parece uma exposição, mas não é. É apenas uma abertura pública do processo curatorial enquanto experiência. Não encontramos uma palavra para traduzir “experiência”. Em alemão, nem “erfahrung”, nem “erlebnis”, nem “experiment”, conseguiu satisfazer o grupo mais a equipe da bienal”, escreveu Lagnado por e-mail, respondendo a duas perguntas sobre a mostra.

Experiência é um termo usado por Carvalho em várias de suas ações consideradas hoje precursoras da performance, como Experiência n. 2, em 1931, quando atravessou uma procissão de chapéu, no centro de São Paulo, para fúria de religiosos católicos. No mesmo ano, ele publicou um livro relatando o caso e fazendo uma longa análise de suas implicações com referências na psicanálise.

A Bienal de Berlim tem início agora ocupando o ExRotaprint, um edifício em um bairro periférico com alta população de imigrantes em Berlim, escolhido pelos curadores para iniciar um processo de vivências, encontros e reuniões com artistas em residência.

Lagnado observa o momento de escritura de Os Ossos do Mundo (disponível online em https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/2769), em 1934, “ano paradigmático para a ascensão do nacionalismo” em consonância com a situação atual: “Estamos chegando agora, trinta anos após a queda do Muro de Berlim, com nossas referências de casa na bagagem.”

Segundo a curadora, o espaço funciona como um laboratório, já que não tem condições museológicas. A exp.1, de fato, sequer terá obras propriamente ditas, “mas rastros de uma coleção de ideias amadurecidas nos últimos seis meses durante as conversas internas”.

A proposta reflete um pouco outra iniciativa de Flávio de Carvalho, o Clube dos Artistas Modernos – CAM, criado em 1932,  que, como aponta Lagnado,  “promoveu apresentações paradigmáticas de Osório César, como o mês das crianças e dos loucos, a conferência de Mário Pedrosa sobre Käthe Kollwitz, sem contar o Teatro da Experiência que acabou fechando o espaço”.

Bienais têm de fato se prolongado no tempo para além da mostra, e a própria Como Viver Junto, que teve à frente Lagnado, na 27ª Bienal de São Paulo, em 2006, começou antes com um extenso programa de seminários. A proposta agora é muito mais radical. O espaço será aberto ao público de quinta a sábado, em horários definidos, quando os curadores estarão lá trabalhando, recebendo quem quiser ir, com uma programação para escolas da vizinhança. “Importante deixar claro que essas experiências são nossas e não uma réplica do percurso do Flávio”, defende a curadora.

Outra inovação da Bienal de Berlim é evitar o sigilo em torno dos participantes da mostra. O convite de exp.1 já anuncia contribuições de cerca de 30 participantes, eles o próprio Flávio de Carvalho, além do Teatro da Vertigem e da artista Virgínia de Medeiros, ambos também do Brasil, Cecília Vicuña, do Chile, e o Mapa Teatro, da Colômbia.

“Coletivos, artistas, educadorxs, palestrantes, coreógrafxs, poetas, todxs são igualmente integrantes da 11th Berlin Biennale for Contemporary Art. Não há uma separação entre exposição e programa público, ou entre exposição e educativo”, escreveu ainda Lagnado.

 

 

Os ‘Planos-Pipa’ de Marcelo Jácome

Marcelo Jacome, Planos Pipa

Marcelo Jácome é carioca, nascido em 1980, e visita Curitiba pela primeira vez. Sua atuação como artista plástico é diretamente influenciada por sua formação em Arquitetura e Urbanismo. Seu trabalho com formatos escultóricos busca ativar espaços livres, como com as obras Pontos Suspensos, Multiedros Relacionais e, a mais conhecida, Planos-Pipa. É esta última que o artista ativou no átrio do Shopping Pátio Batel, na capital paranaense, onde poderá ser vista de 5 a 28 de setembro.

O trabalho com as pipas começa quando Jácome passa a trabalhar com colagens utilizando papel de seda, as quais intitulou não-lugares. Segundo ele, isso aparece em um momento de sua carreira no qual percebeu uma necessidade de trabalhar com uma paleta de cores mais industrial: “Eu enxergo o mundo a partir de massas cromáticas, relativizo essas massas… Então sempre foi algo muito corriqueiro estar fazendo um recorte do mundo através dessa prática”, ele conta. Nesse momento, as cores evidenciadas do material chamam a sua atenção.

Ao começar a visualizar outras formas de utilizar o material, o artista enxergou as espacialidades dentro das composições que surgiam com a sobreposição do papel de seda. “Por que não passar isso para um espaço?”, ele pensou naquele momento. Nessa época, com um grande ateliê na zona portuária do Rio, não teve dúvidas de que passaria o trabalho para um formato escultórico. “Eu entendi que eu precisava de uma estrutura para que a coisa se efetivasse de uma maneira pertinente”. E foi então que as pipas apareceram para Jácome como uma solução plástica, um sistema formal.

Por fim, essas instalações site-specific, sempre feitas de acordo com o que os lugares, oferecem na possibilidade arquitetônica, foram chamadas de Planos-Pipa. Com elas, o artista já ocupou locais como a Saatchi Gallery, em Londres, e a Art Basel, na Basileia. Porém, o trabalho no Pátio Batel é o mais desafiador até agora, Marcelo conta. Para ele, foi instigante poder pensar algo possível, considerando a técnica e a montagem, para uma área tão grande quanto a disponibilizada pelo centro de compras curitibano — a maior na qual já ativou a instalação.

Com uma ligação essencial com a arte, tendo ao longo de seus pisos uma mostra permanente de seu acervo de obras, o Shopping Pátio Batel executa desde o ano passado a ideia de convidar um artista para realizar alguma intervenção de impacto durante seu aniversário. “Sempre quisemos usar a arte como mais um item para tornar a visita ao shopping uma atividade gostosa. Isso sempre foi parte do nosso conceito”, comenta Mariane Kucinski Caponi, gerente de marketing e relacionamento do Pátio Batel.

Completando seis anos neste mês de setembro, a curadora responsável pelo projeto, Eneida Gouvêa Vieira, viu no trabalho de Jácome a alternativa ideal para preencher o extenso ambiente do átrio do shopping, ao qual Mariane se refere como “uma grande tela em branco”. A área do piso tem aproximadamente 400 m², com 25 metros de altura.

Planos-pipa é a segunda intervenção realizada nesse local. Em 2018, a estreia foi comandada pelo artista estadunidense Jason Hackenwerth, que criou uma escultura com 15 mil balões. Além da estrutura monumental necessária para ativar o espaço, também é fundamental que todas as pessoas pudessem desfrutar do trabalho: “É importante que fosse uma obra de arte que fosse de fácil leitura para todos os públicos”, conta Mariane: “O Marcelo casou muito com isso. Ele consegue ter uma obra grandiosa: simples na sua essência, mas incrível na sua forma”.