"Batizado de Macunaíma", 1956, Tarsila do Amaral

Partindo de Tarsila a pintura começa a influir na poesia brasileira. O quadro “Abaporu” decide a vocação de Raul Bopp […]; outros do mesmo ciclo suscitarão textos de Mário de Andrade […]. Telas como “Distância”, “A cuca”, “O sono”, “A negra”, viajarão clandestinamente ao longo dos meus Poemas, alternando com obras de Max Ernst, do Primeiro Cícero Dias e do primeiro De Chirico. A pintura pau-brasil e a pintura antropofágica aplainam os caminhos posteriores da poesia. (Murilo Mendes/Poesia Completa. Retratos Relâmpago. P.1250).

O que pretende o MASP ao colocar na mesma sala O Abaporu, 1928, e Batizado de Macunaíma, 1956, ambas de Tarsila do Amaral? Proporcionar ao público, mesmo que por alguns minutos, a convivência com aquele que seria o “início” da trajetória da artista, ao lado do seu “canto do cisne”, ou obriga-lo a vivenciar a experiência de ocupar o mesmo espaço com uma das obras mais importantes da artista, ao lado daquela que marca o seu fim melancólico? Para o público com intimidade com a obra de Tarsila, a segunda opção seria a mais correta. Para esse visitante, a experiência tem um travo amargo, pois aquela convivência ganha laivos de perversidade, maldade mesmo, para com a artista. Já para o público comum essa experiência possui outro grau de perversidade. Colocar no mesmo espaço as duas obras significa ensinar que ambas se equivalem, possuem o mesmo vigor estético, a mesma importância histórica.

A importância de Abaporu está no fato de que essa pintura – rompendo com a bem-comportada pintura brasileira de sua época –, introduzia uma iconografia disruptiva que, borrando os limites do bom-gosto da tradição, trazia à tona um ser mitológico terrível, vindo das entranhas do inconsciente da artista e do coletivo. Tal força foi o que teria catalisado os interesses de Tarsila, Oswald de Andrade e Raul Bopp a forjarem o Movimento Antropofágico – vertente que colocaria (e ainda coloca) a arte do Brasil em um patamar mais elevado no âmbito cultural internacional.

Batizado de Macunaíma repete em chave “estilizada” a tradição da grande pintura ligada às academias, preocupadas em enaltecer os sentidos de “Pátria”, “Nação” e outras instituições, a partir de episódios significativos, quer da história oficial, quer da mitologia etc. Neste sentido, ao pintar Batizado de Macunaíma, Tarsila parece ter desejado elevar o personagem criado em 1928, por Mário de Andrade, ao patamar de um símbolo. Símbolo do que? Provavelmente da institucionalização definitiva pelo qual o Modernismo de São Paulo passava durante aquela década do IV Centenário da cidade. Se Abaporu significa o romper de algo novo entre nós, Batizado é simplesmente o travestimento do novo em instituição, em norma. As duas obras possuem semelhanças porque aquela de 1956 foi produzida em “estilo” modernista. Ou seja, Tarsila copiou a si mesma, trivializou, cristalizou em estilemas aquilo que nos anos 1920 era pura experimentação.

“Abaporu”, 1928, Tarsila do Amaral.

Mas para o MASP parece não haver problemas em colocar lado a lado duas obras que, apesar das aparências, são a negação uma da outra. Assim agindo, a instituição naturaliza o artifício, agregando ao legado de Tarsila a ser celebrado e rememorado, aquilo que restou nos porões das instituições públicas ou mostrado com certo pudor em paredes particulares. Digo isso porque essa estratégia de mostrar joio ao lado de trigo, é uma constante em toda a exposição da artista no MASP e não apenas na sala comentada. Paisagens emblemáticas de Tarsila, por exemplo, produzidas no auge do seu período mais proteico, são exibidas ao lado de arremedos de si mesma, produzidos décadas mais tarde. O público com um pouco mais de intimidade com sua oba entende essa atitude do Museu como um equívoco ou como uma ação articulada para ajudar no processo de exumação do “outro lado” da produção de Tarsila. Já o público em geral, esse para o qual (supostamente) a exposição foi produzida, sai da mostra acreditando que tudo o que ele viu é digno de reverência, que todos os trabalhos ali apresentados possuem a mesma potência estética e a mesma importância para a cultura do país.

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Uma alternativa para fugir à apresentação de todos os lados de uma artista como Tarsila, seria optar em apresentar apenas as obras que, de fato, a tornaram significativa para a arte brasileira. Apenas com boas obras, textos e outros materiais de apoio, o público sairia da mostra com uma compreensão mais clara sobre como Tarsila foi, aos poucos, ganhando o status de principal artista da primeira metade do século passado. Porém, se a meta é apresentar igualmente o seu lado “obscuro”, com certeza a melhor estratégia não deveria ser essa utilizada pelo MASP: neutralizar diferenças profundas entre as obras, mostrando-as lado a lado, ou então na mesma sala. Por que não apresentar as obras menos felizes de Tarsila e explicar – a partir dos parâmetros não só da história da arte, mas da própria realidade formal de cada uma delas – as razões que as tornam diferentes daquelas reconhecidamente basilares para a arte brasileira? Na certa tal opção encontraria oposição ferrenha de colecionadores, galeristas, diretores de museu etc. Com certeza a mostra resultaria mais diminuta, porém mais honesta para com o público.

Misturar alhos com bugalhos definitivamente não é fazer uma “Tarsila Popular”, é apresentar uma Tarsila “populista”, uma exposição, talvez, mais preocupada em agradar aos patrocinadores e em atender às agruras do mercado; jamais para suprir as gritantes necessidades de educação artística da população.

4 comentários

  1. Excelente, Tadeu Chiarelli! Brava sua coragem em desafiar essa tentativa de populismo que acaba tergiversando a historia (e trajetória) de Tarsila.

  2. Gostei muito do texto. Não vi a exposição. Li uma matéria na revista época, de 10.06.2019. Tudo indica que Tadeu Chiarelli está coberto de razão.!

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