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Estou refletida na minha obra

Frame do vídeo "Illusions Vol. II - Oedipus", de Grada Kilomba. Foto: Levi Fanan

É impensável não se posicionar naquilo que nós fazemos. Se eu não me posiciono  naquilo que eu faço, então minha posição é de poder e de privilégio tão grande, que eu não preciso me mencionar, e sendo um exercício de poder, então é um exercício colonial”,  defendeu a artista Grada Kilomba em debate na Pinacoteca do Estado na abertura de sua mostra Desobediências Poéticas, em cartaz até 30 de setembro.

Kilomba respondia a uma pergunta da plateia sobre as razões dos elementos biográficos em sua obra, portanto posicionar aí denota esse caráter de primeira pessoa: “É importante explicar porque se escrever em primeira pessoa; eu não falo sobre os outros, eu tenho que falar sobre eu mesma, sobre as minhas questões”, disse ao lado de Djamila Ribeiro, filósofa  que hoje encarna o debate em torno do lugar de fala, um dos elementos presentes no debate da Pinacoteca.

Para Kilomba, assumir uma postura representa uma quebra importante na história da arte, já que “muitos artistas e muitas artistas mulheres também brancas baseiam seu trabalho na exploração absoluta da negritude, dos depoimentos, da língua, do discurso, das imagens, dos arquivos e da performance da negritude”. Escrevendo isso, lembro das pinturas em que Adriana Varejão se retrata como índia em uma de suas séries, e acho que de fato é preciso se questionar estratégias de representação como esta.

A própria Kilomba reconhece que “isso funcionou até pouco tempo atrás porque muitas artistas mulheres negras não tinham acesso a essas plataformas, mas em 2019 é absolutamente impossível dar credibilidade a esses trabalhos. É importante que não haja uma reencenação do colonialismo. Quando falamos em nome do outro estamos reproduzindo a essência do discurso colonial que é usar o outro como objeto pelo qual eu falo como sujeito”.

Com sua voz pausada e profunda, Kilomba usa as palavras de forma precisa, como nas narrações de duas de suas projeções em vídeo no segundo andar da Pinacoteca: Ilusões Vol. I Narciso e Eco e Ilusões Vol. II Édipo. Nelas, a artista reconta os mitos gregos de maneira performativa para em seguida desconstruí-los a partir de questões em torno da raça. Enquanto freudianos entendem a morte do pai como um conflito de família, Kilomba aponta como “esta fixação na família (branca) ignora as dimensões históricas e políticas deste conflito”, de acordo com sua própria narração.

Grada Kilomba e Djamila Ribeiro em conversa na abertura da exposição. Foto Levi Fanan

Ela segue ainda de forma certeira: “no seio de uma relação colonial, por mais que as pessoas marginalizadas obedeçam à lei, nós raramente nos tornamos a autoridade legal, em vez disso, tornamo-nos os que são punidos e assassinados pela própria lei”, como a retratar de forma exemplar a discriminação cotidiana no Brasil.

Já em Ilusões II, a artista trata de quão “narcisista é esta sociedade branca patriarcal na qual todos nós vivemos que é fixada em si própria e na reprodução da sua própria imagem, tornando todos os outros invisíveis”, usando aqui também sua própria narração. No catálogo da mostra, Djamila Ribeiro aponta como, no Brasil, Cida Bento já utilizava a mesma ideia com o termo “pacto narcísico de branquitude”. Segundo ela, esse conceito defendia que “as pessoas brancas consentem um pacto para se premiarem, se protegerem, não importando as circunstâncias e, com isso, manterem o estado de coisas injusto perante pessoas negros”.

Nada mais adequado, portanto, que ver trabalhos assim no segundo andar da Pinacoteca, onde está o acervo da instituição, para que eles funcionem como um agente disruptivo na narrativa oficial da história da arte que tanto deixou invisível as minorias, que no Brasil são as maiorias.

Os trabalhos de Grada Kilomba ocupam exatamente as salas nos cantos do acervo, como a permitir que, entre um deslocamento e outro, seja possível se refletir sobre os traumas do processo colonizador. Em Table of Goods, por exemplo, ela cria uma escultura com cacau, café e açúcar, justamente os produtos produzidos pelos escravos no Brasil. Encimada por velas, essa escultura torna-se uma espécie de memorial sobre o sacrifício de milhões de negras e negros.

Já em O dicionário, ela cria um ambiente onde cinco palavras são descritas em seus significados – negação, culpa, vergonha, reconhecimento e reparação – estabelecendo uma espécie de percurso de como a opressão pode passar por distintas fases até ser eliminada.

O que não deixa de ser notável nesse pequeno conjunto de obras é a utilização do corpo de forma performática, particularmente nos vídeos, nos quais a própria Kilomba trabalha com um grupo de atores que atuam nos limites entre dança e teatro.

Essa estratégia é coerente com seu posicionamento em defesa da descolonização. Como ela afirma: “O momento chave da descolonização é nos posicionarmos na nossa subjetividade para sempre dizer de que lugar, de que tempo e de que espaço estou a escrever, quem sou eu e que biografia minha é esta que me leva a escrever isso e a essa produção do conhecimento. Eu estou refletida na minha obra e esse é o momento chave da descolonização do conhecimento e das artes.”

O debate na Pinacoteca está acessível em: https://www.youtube.com/watch?v=ovSKrDLs9Ro.

Além de participar da abertura de sua exposição, Kilomba esteve em São Paulo para lançar o livro “Memórias da Plantação. Episódios de racismo cotidiano”, sua tese de doutorado defendida há 10 anos na Alemanha, um texto que questiona não só a violência social na descriminação, como o próprio formato acadêmico.

Marc Ferrez e Man Ray em São Paulo: visões distintas sobre dois monstros sagrados

Charles F. Hartt, com a cidade do Recife ao fundo, durante levantamento da Comissão Geológica do Império. Recife, 1875. Fotografia de Marc Ferrez / Acervo IMS

Mesmo nesses tempos bicudos que vivemos em 2019, São Paulo anda pródiga de boas e excelentes exposições – e olha que este ano que nunca deveria ter começado ainda não acabou!

Muitas individuais e coletivas ocorridas em galerias comerciais ou em espaços alternativos apresentaram a produção mais recente de artistas em franca atividade com produções de qualidade, como o caso de KA’RÃI, de Dora Longo Bahia, mostrada recentemente na Galeria Vermelho (e aqui comentada). Já Featuring – montada em um ateliê no bairro de Santa Cecília –, apresentou obras de Leandro Muniz, Marcelo Pacheco e Thomaz Rosa. Não, não havia um “artista principal” e seus convidados: a mostra apresentou sem distinções as produções desses três jovens pintores que um dia, com certeza, irão dar o que falar. KA’RÃI e Featuring são duas mostras que dão bem a medida da potência e potencialidades da arte produzida na cidade.

Mas como o ambiente paulistano não vive apenas de individuais e coletivas mostrando obras recentes de artistas locais, foram inúmeras as exposições que ocorreram (ou ocorrem) este ano em São Paulo com o objetivo de apresentarem resumos, antologias ou retrospectivas de artistas consagrados.

Se algumas deixaram a desejar (caso da retrospectiva de Tarsila no MASP, aqui também comentada), outras conseguiram a proeza de trazer para o público da cidade preciosidades e aspectos pouco divulgados de grandes nomes da arte produzida no Brasil e em outros países. Dentro desse universo mais restrito das exposições retrospectivas ousaria afirmar que duas das mais importantes até o momento foram, sem dúvida, aquelas dedicadas a Marc Ferrez (Marc Ferrez: Território e Imagem, em cartaz no Instituto Moreira Salles, entre março e julho) e Man Ray em Paris (até final de outubro, no Centro Cultural Banco do Brasil). Ambas apresentaram seus artistas com o que foi considerado o melhor de suas produções.

No entanto, há uma diferença entre as duas mostras: se em Marc Ferrez: Território e Imagem o objetivo era rever o percurso do fotógrafo (Rio de Janeiro, 1843-1923) no contexto de transformação do Brasil, desde o final do Segundo Império até a consolidação da República Velha, Man Ray em Paris, por sua vez, tem como foco principal demonstrar a excepcionalidade do artista norte-americano (1890-1976), durante os períodos em que passou na capital francesa (1921-1940 e 1951/1976).

Preocupado em entender as transformações passadas pelo país naquelas décadas cruciais da história do Brasil, o curador da mostra Marc Ferrez: Território e Imagem, Sergio Burgi, centrou seu interesse nos trabalhos desenvolvidos por Ferrez e sua equipe junto a diversos empreendimentos governamentais ou privados, ligados ao conhecimento mais meticuloso do território brasileiro, e da expansão da malha ferroviária do país.

Em paralelo a tal objetivo interessava também a Burgi investigar a adesão de Ferrez ao desenvolvimento da fotografia naquele período, no intuito de dar conta das demandas de suas atribuições como fotógrafo oficial das várias viagens que realizou pelo país, documentando aqueles empreendimentos.

Para traduzir essas questões para o público do IMS, a curadoria lançou mão não apenas do acervo de obras de Marc Ferrez, pertencentes ao Instituto, mas também de obras do fotógrafo, pertencentes à coleção do Getty Museum, assim como de câmeras e outros equipamentos fotográficos de época, documentos autógrafos, impressos e uma série de outros objetos que davam a exata medida do comprometimento de Marc Ferrez com as transformações da fotografia e a importância cada vez maior que ela assumia em uma sociedade em contínua mutação.

Como resultado de todo esse empenho em pensar a fotografia de Ferrez dentro do contexto mais alargado das transformações pelas quais passava o país naquela época, e também das próprias mudanças da fotografia, Marc Ferrez: Território e Imagem converteu-se em uma das exposições mais dinâmicas apresentadas em São Paulo este ano, levando o público do Instituto a uma imersão profunda, tanto na produção de Ferrez e na história da fotografia, quanto na própria história do país.

Já a curadora de Man Ray em Paris, Emmanuelle de L’Ecotais, parece ter tido por objetivo demonstrar como Man Ray pode e deve ser reconhecido como um dos principais artistas da primeira metade do século passado, ligado à experimentação no campo da fotografia e do cinema. Porém, a essa dimensão fortemente empírica da produção do artista (que, de maneira contraditória, não lhe retirava o caráter premeditado de muitas de suas produções), não correspondeu uma curadoria cujo mote também tenha sido a experimentação. Pelo contrário: Man Ray em Paris prima por uma expografia que tem a discrição como característica principal utilizada, na certa, para valorizar as estupendas fotografias vintage que compõem grande parte das peças ali apresentadas.

Creio poder afirmar que a exposição transfere para os espaços expositivos onde a maioria de suas obras são exibidas a sofisticação singular que emana das preciosas imagens do artista norte-americano. Os espaços foram trabalhados para que o visitante se concentrasse no universo de Man Ray, a partir da visualização cuidadosa de cada uma das fotografias, pensadas como se fossem objetos únicos.

O que não é o caso.

Como sabemos, a fotografia possui, talvez como sua principal característica, a possibilidade de multiplicação. Ela não é única como a pintura e é justamente nessa sua capacidade de transcender a unicidade que reside sua maior potência. E Man Ray parecia saber disso e parecia saber também como era possível fazer sua produção trafegar por vários caminhos atingindo um número imenso de pessoas, fato impossível se cada uma das imagens que criava se mantivesse única. Por isso o artista não produziu os retratos que produziu (ou qualquer outro tipo de fotografia) para permanecerem intocados como exemplares únicos – ou quase únicos – em coleções particulares. Inclusive, suas imagens chegaram a circular tanto em publicações ligadas à moda – Vogue e outras revistas da elite – quanto em revistas da vanguarda surrealista; e é em tal trânsito que, de fato, parece residir todo o seu interesse pela dimensão experimental da produção que realizou, experimentalismo que, como mencionado, contraditoriamente, em muitos casos não excluía o cálculo e uma cultura visual bastante ligada à tradição da pintura, diga-se. Mas em Man Ray em Paris essa importância da contribuição do artista para a transformação dos próprios conceitos de arte e de artista jaz confinada apenas em um ou outro texto de parede (e em algumas salas finais da mostra).

O universo de onde foram retiradas as obras que configuram Man Ray em Paris é uma coleção particular francesa adquirida diretamente do artista, segundo me informou o responsável pela produção da exposição. Este fato, a meu ver, talvez ajude a explicar o excelente estado de conservação das obras exibidas e a qualidade extrema da grande maioria delas. Ali na mostra existe o olho de um amante da fotografia que a percebia sempre como integrante do universo das Belas Artes e, portanto, distante da realidade mais brutal dos meios de comunicação de massa por onde grande parte daquelas imagens trafegou.

Teria sido produtivo que o público atento à arte e à fotografia pudesse cotejar aqueles vintages tão preciosos com as páginas da Vogue ou da Révolution Surréaliste, por exemplo, mas não foi este o escopo da mostra. Man Ray em Paris preferiu manter-se dentro das concepções mais tradicionais de “obra de arte”, de “artista como gênio” e, por consequência, de uma prática curatorial também já devidamente consagrada. Fato que, absolutamente, não retira a importância da exposição e, muito menos, o seu lugar entre as principais mostras apresentadas em São Paulo este ano.

Em seu centenário, Lygia Clark terá exposições ao redor do mundo

Rede de elástico. FOTO: Cortesia Associação Cultural O Mundo de Lygia Clark

A artista Lygia Clark completaria 100 anos em 2020. Nascida no dia 5 de outubro, em Belo Horizonte, a artista faleceu aos 67 anos de idade, em 1988. Ao longo do próximo ano, diversas homenagens à artista serão realizadas ao redor do mundo, incluindo mostras no Guggenheim Bilbao, em março; na Arco Lisboa, em maio, e no Peggy Guggenheim Collection – Veneza, em julho.

Antecipando as comemorações e dando o pontapé inicial, o espaço OM.art no Rio de Janeiro é o primeiro a sediar uma mostra em homenagem à artista. A instituição gerida pelo artista Oskar Metsavaht abre a individual Respire Comigo, que, além de apresentar obras, se debruça sobre a vida da artista. A abertura acontece em 17 de setembro, a partir das 18h, dentro da programação da semana da ArtRio 2019.

A mostra é idealizada por Ale Clark e Carolyna Aguiar, com apoio curatorial de Felipe Scovino. Durante o período expositivo, até 27 de outubro, a OM.art sediará também uma série de atividades relativas às homenagens.

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Lygia Clark: Respire Comigo
De 17 de setembro até 27 de outubro.
Na OM.art – R. Jardim Botânico, 997 – Jardim Botânico, Rio de Janeiro
Mais informações: (21) 2239-9019

Nas veredas do sertão

"Retiro de Caça ou um Outro Capelobo", 2019, de Gê Viana. Fotos: Karina Bacci

Como anunciado pela curadora Júlia Rebouças em entrevista para a edição 47 da ARTE!Brasileiros, o sertão sobre o qual o 36º Panorama da Arte Brasileira se debruça não é o lugar geográfico, mas sim um “modo de pensar e agir”. Com a abertura da exposição ao público em 17 de agosto, é certo que nem tudo está ou nem tudo chega em São Paulo: “É uma coisa que esse Panorama fala. Nem tudo está concentrado aqui, nem toda a inteligência está nesse lugar, nem toda a riqueza. Existe muita inteligência e muita sofisticação que a gente não vê”, ela declara em conversa durante a montagem da exposição.

Júlia optou por pedir que a expografia, feita em parceria com o Estúdio Risco, fosse mais aberta, exercitando a ideia do que seria um espaço público ou um espaço compartilhado entre todos os artistas: “Ou mesmo uma paisagem, mas não uma sala fechada ou um lugar privado”, ela explica. A curadora diz que a intenção é que o público possa ver vários trabalhos ao mesmo tempo e refletir sobre como eles se relacionam entre si. “Queria que as coisas tivessem que conviver, seja de forma harmônica ou mais conflituosa.”

Os trabalhos presentes na mostra convidam o público a ir para longe, sendo que dois o fazem literalmente. A artista Raquel Versieux, nascida em Belo Horizonte e radicada atualmente no Ceará, propõe que o público vá para o Cariri cearense. Ela apresenta o projeto Manejo Movente, realizado em colaboração com Elis Rigoni. A intenção é reunir o público em encontros junto a artistas, agricultores, estudantes e lideranças locais para a realização de práticas da terra, práticas sociais e práticas da imagem. Os encontros acontecem em quatro momentos: sendo três na região do Cariri e um último em São Paulo, no MAM, todos em finais de semana.

“My Life in a Bush of Ghosts”, 2012, de Luciana Magno

A obra da dupla catarinense Gabi Bresola e Mariana Berta leva quem se dispor a ir à cidade de Joaçaba, no interior de Santa Catarina, para participar o baile do Surungo, também título do trabalho das artistas. Elas oferecem ao público uma passagem de 14h de viagem de ônibus para o local na margem do Rio do Peixe para que os interessados se entreguem à experiência do baile do Surungo. “O nosso centro é outro”, Mariana escreve, “é para esse circuito de arte que decidimos apontar, porque não poderia ser diferente”.

Veterano entre os 29 artistas e coletivos que participam do Panorama, Gervane de Paula, natural de Cuiabá, apresenta três obras na exposição: Deus Ápis, suas esposas e seu rebanho ou O Mundo Animal (2016-2019), conjunto de esculturas em madeira, chifres e artesanato; Arte, Não Invente (2016); e Arte Aqui Eu Mato (2016), ambas pinturas à óleo sobre chapa de ferro. Esta última, capa desta edição da revista ARTE!Brasileiros. O título da obra é um trocadilho com o nome do livro da crítica de arte mato-grossense Aline Figueiredo, Arte aqui é mato, lançado em 1990. “Cuiabá, apesar de ser uma cidade bastante afastada dos grandes centros, tem um movimento forte de arte, principalmente de pintores. E esse livro dela fala dessa abundância de artistas”, ele conta. Mas, ao mesmo tempo, o artista percebeu o que ele chama de “uma decadência”: “Uma arte que é produzida e não tem ressonância, não tem público, seus autores vivem cheios de privações e, por estar fechada, ela é muito resistente ao novo. Arte Aqui Eu Mato também pode ser a mão do presidente, apontando uma arma para a arte, para nós, não é?”, ele questiona.

Gervane utiliza materiais característicos da região onde nasceu e mora, como arame farpado e a madeira dos mourões de curral. “Essa madeira vem com uma carga do tempo, uma carga poética, porque são mourões que estão lá há mais de 10 anos sofrendo as transformações do tempo. Eu não derrubo árvore para fazer as minhas obras. Eu recolho esse material antigo”, explica.

A videoinstalação Desaquenda (2016-2019), da artista Vulcanica Pokaropa, apresenta 12 canais com depoimentos de pessoas travestis, transexuais e não-binárias que atuam nas artes. A obra discute o posicionamento dessas pessoas nos espaços institucionais e a sua atuação em espaços não marginalizados. Além da série de vídeos, a obra também é composta por pinturas e impressões sobre lona. Nos depoimentos, participam artistas como Lyz Parayzo, Rosa Luz (também participante do Panorama) e Jota Mombaça.

Com origem em Ceilândia, no Distrito Federal, o artista Antônio Obá leva ao Panorama quatro pinturas, uma maior, intitulada Mama (2019), na qual uma mulher negra segura dois felinos num gesto maternal, propondo uma reflexão sobre a identidade do país, e uma série de três outras pinturas menores que remetem ao corpo negro e às tradições, aproximando-se também de um contexto religioso. Já a artista Gê Viana, natural do Maranhão, expõe três fotografias impressas como lambes e fixadas em enormes lonas penduradas ao teto. Retiro de caça ou um outro capelobo (2019), como a obra é intitulada, vem, segundo a artista, “da necessidade de falar sobre as coisas que aconteceram com nossos povos retirados do seu lugar de origem”. Ela conta que quando perguntou a uma de suas avós se a família tinha uma origem indígena a resposta foi: “A minha mãe era braba. Foi pega no mato”. A partir daí, Gê passou a questionar a história de algumas famílias nas quais a constituição se deu por meio de violências, como o aprisionamento e o estupro.

Por mais que os variados suportes, temáticas ou formatos das obras que compõem o 36º Panorama possam fazer pensar que elas se afastam uma da outa, é preciso estar atento a uma característica forte entre os 29 artistas e coletivos participantes: são pessoas que, como diz Gervane, escolheram assumir a sua região.

36º Panorama da Arte Brasileira – Sertão
Até 15 de novembro
Museu de Arte Moderna (MAM) – Av. Pedro Alvares Cabral, s/nº – Parque Ibirapuera

 

 

Improvisação como método

"A Casa da Mãe", de Randolpho Lamonier. Foto: Karina Bacci
“A Casa da Mãe”, de Randolpho Lamonier. Foto: Karina Bacci
*Por Alexia Tala

 

Alexia Tala – Quando observo tua obra vejo que há uma profunda procura por suportes e formatos. Você usa artes gráficas, fotografia, audiovisual, textil etc. Essa versatilidade faz com que tua obra não se limite a uma estética particular. Como é o processo em que você opta por trabalhar uma ideia, num suporte ou outro?
Randolpho Lamonier — Desde o princípio de minha pesquisa em arte venho lidando com muita experimentação e o ato de improvisar se tornou uma de minhas principais metodologias de trabalho. Foi algo que eu assimilei de forma totalmente intuitiva como resposta a uma série de barreiras e faltas, porque quando comecei a produzir não dispunha de dinheiro para materiais, conhecimentos técnicos ou referências do mundo da arte. Então comecei observando o que estava ao meu redor e improvisando com as situações que minha realidade me oferecia. Isso marcou em mim a sensação de que posso trabalhar com qualquer material, mídia ou suporte, desde que haja necessidade e desejo.

Como e qual foi a influência que deu começo a teu fazer artístico?
Cresci na periferia de Contagem/MG, num contexto onde não tínhamos acesso a praticamente nenhum aparelho cultural. Fui criado assistindo TV enquanto minha mãe trabalhava fora. Acredito que a estética dos blockbusters da Sessão da Tarde, os programas sensacionalistas da tv brasileira dos anos 90 e os videoclipes da MTV foram os primeiros estímulos que poderiam se aproximar de uma influência dita “artística”. Ainda na infância, ajudava meus tios numa pequena empresa familiar de filmagens de casamentos, festas e outros eventos. Então a captura e reprodução de imagem através do VHS também foi algo que me chamou muito a atenção.
Mais tarde, enquanto já começava a explorar o campo das artes visuais, comecei a estudar teatro e logo estava trabalhando em algumas companhias. Minha curta passagem pelo Grupo Oficina Multimedia, em Belo Horizonte, foi uma de minhas principais influências naquele momento, por sua intrínseca relação com as artes visuais e sua arrojada pesquisa com videoinstalações, objetos cênicos, figurinos e cenografias. Depois comecei a fotografar meus amigos, quase todos do teatro, e as propostas narrativas e estéticas que criávamos para fotografar me levaram a me interessar pela foto-performance e a produção em vídeo.

Muito interessante teu processo. O que surge primeiro, o assunto ou o encontro com a matéria?
Não há uma regra, mas, de modo geral, primeiro surge uma questão, depois eu encontro a matéria, a forma e a linguagem através das quais irei explorá-la. Acabei chegando a uma ideia de “oposição” que quase sempre norteia minhas escolhas, como as crônicas sangrentas de minhas memórias de Contagem narradas em pequenos bordados feitos à mão; ou as bandeiras de Profecias, feitas com trapos de cama, mesa e banho, para tratar de assuntos públicos e questões sociais referentes ao Brasil. Em última instância, me autorizo a experimentar com qualquer tipo de material ou processo, como se errando muito eu aprendesse mais.

Falando de Profecias, quando vi pela primeira vez tua obra, me remeteu imediatamente à historia recente da América Latina e ao peso histórico e simbólico que tem o uso têxtil e os bordados nas obras de resistência. Que aspectos do têxtil te interessam na tua obra?
Meu contato com o têxtil começou em casa vendo minha avó costurar. Minha mãe já trabalhava na indústria costurando bancos de carros para a Fiat e, bem antes disso, meu avô paterno foi alfaiate. Mas foi depois de conhecer os bordados da Violeta Parra que eu comecei a me interessar pelo têxtil como possibilidade expressiva. A partir do trabalho dela conheci a tradição das Arpilleras chilenas e elas me impactaram fortemente. Me senti desde então muito influenciado, sobretudo pelo aspecto de denúncia social e política que esses trabalhos evidenciam. Aos poucos fui conhecendo o trabalho de outros artistas como o Bispo do Rosário, Louise Bourgeois, Tracey Emin, Leonilson, Sônia Gomes e Feliciano Centurión, cuja influência me levou a explorar um outro aspecto da produção têxtil, mais emocional e afetiva, quando a intimidade se torna política.

Na tua obra parece misturar-se o íntimo e privado, o que acontece nos espaços cotidianos pessoais e o que acontece na rua. Para você há uma indiferenciação entre o público e o privado que você busca que se manifeste nas imagens/obras?
Tento explorar no território dos assuntos íntimos tudo que possa haver de relevante para a esfera pública, e da mesma forma o contrário, me envolvo com os assuntos de ordem pública com um engajamento muitas vezes sentimental e catártico. De modo que estou sempre borrando as barreiras entre esses dois universos na tentativa de criar um terceiro espaço onde eu circule com o máximo de liberdade possível.

Teu trabalho fala sobre violência, opressão e algumas lutas sociais relativas ao subdesenvolvimento e a marginalidade. Como o teu trabalho está assimilando a atual situação brasileira?
Como um artista interessado em contar histórias e dialogar com as questões do meu tempo, seria impossível não me sentir totalmente atravessado pela crise geral que o Brasil está vivendo. Eu já fazia ideia de como o mundo interfere em meu trabalho e agora estou aprendendo de quais formas ele responde ao que produzo. É uma concepção de responsabilidade que tem ampliado minha consciência em relação à potência de tudo quanto pode a subjetividade. Estou buscando todo o desejo, irreverência e coragem que se pode extrair desses dias de puro horror.

Sempre foram elas

"Judith Slaying Holofernes", de Imri Sandström, 2010

Desde 2016, o Masp vem articulando sua programação em torno de “Histórias”, iluminando nesse processo relações complexas entre a arte e segmentos sociais historicamente preteridos. A cada ano, um tema – como Histórias da Sexualidade e Histórias Afro-Atlânticas – norteia as exposições e atividades organizadas pelo museu. Agora é a vez das mulheres. Repensar a relação entre elas e as artes visuais, jogando luz sobre a estrutura desigual do sistema de produção artística, é algo urgente, necessário e que pode ser feito a partir de uma múltipla abordagem, como mostra a estratégia ampla adotada pelo museu, que envolve ciclos de debate, exposições monográficas de importantes artistas do século XX e publicações impressas. Neste processo tem importância fundamental o trabalho de concepção e realização de pesquisa curatorial. Em função do volume de material e da complexidade do tema, a grande mostra do ano foi desdobrada em duas montagens extensas e diferentes, porém complementares. Histórias das Mulheres: artistas até 1900 e Histórias Feministas: artistas depois de 2000 são faces independentes, porém integradas, de uma estratégia de mapeamento da criação plástica de autoras em diferentes momentos históricos.

A primeira das exposições volta-se para o passado, desvenda o perverso processo de apagamento a que as pintoras mulheres foram submetidas ao longo de séculos, tendo sido relegadas a uma posição de inferioridade na cena artística internacional, apesar de terem uma produção capaz de rivalizar em termos de igualdade com seus pares masculinos. A segunda se debruça sobre o momento atual, mostra as estratégias e embates das autoras para produzir uma arte capaz de lidar com questões centrais no mundo contemporâneo.

Histórias das Mulheres, que ocupa o primeiro andar do museu, reúne quase 90 trabalhos, de 50 autoras, realizadas entre os séculos XVI e XIX. A curadoria tríplice ficou a cargo de Julia Bryan-Wilson, Lilia Schwarcz e Mariana Leme. O conjunto revela uma erudição e virtuose técnica que se chocam frontalmente com os dados concretos que atestam o papel marginal destinado à mulher na história da arte, como, por exemplo, o fato de que a maioria das telas provém de coleções particulares (apenas uma das doze pinturas da primeira sala, dedicada ao século XVI, pertence a um museu), o desaparecimento de parcela significativa da obra dessas autoras (De Cornelia van der Mijn, por exemplo, existe apenas uma obra identificada) e a pouca visibilidade dessa produção.

Esse conjunto impressionante foi garimpado em diversos acervos pelo mundo e exigiu uma série de deslocamentos, já que boa parte dos trabalhos estavam guardados nas reservas técnicas e não estão ainda disponibilizados nos sites e acervos online. A própria coleção do Masp é um exemplo interessante: do período contemplado pela exposição (anterior a 1900), o museu possui apenas três obras de autoras mulheres. A situação melhora ao adentrar o século XX, mas em termos gerais ainda há uma grande sub-representatividade, já que a participação feminina no acervo está em torno de 22%.

Se de forma geral o conjunto é de grande interesse, a mostra torna-se ainda mais sedutora quando o visitante se debruça sobre a trajetória e produção de cada uma dessas mulheres. Ali estão representadas histórias fascinantes, como a de Elisabeth Louise Vigée Le Brun, que alcançou uma popularidade excepcional no século XVIII, tornando-se a primeira pintora de Maria Antonieta, ou de Eva Gonzalès, a única aluna, tanto mulher quanto homem, aceita por Manet. Entremeadas nesse rico conjunto de obras, reveladoras tanto de talentos individuais como de histórias e costumes de um amplo período de tempo, a exposição contemplou também um tipo de arte normalmente associado ao feminino: o trabalho têxtil. O mais antigo exemplar de tecido na mostra é uma peça pré-colombiana e data do século I. Mas ao longo da mostra o público pode apreciar bordados de diferentes épocas e regiões, do império Otomano às colchas de retalho norte-americanas (quilts). A contraposição entre pinturas de um lado e tecidos e bordados – tradicionalmente símbolos do feminino – têm como objetivo desmascarar esse lugar da artesania como lugar da mulher e ao mesmo tempo contribuir para ampliar a ideia de arte. “Não se trata aqui de entender o feminismo como a busca de igualdade num sistema de opressão e sim de dissolver essas hierarquias. Trabalhar a diferença de gênero é muito mais do que falar sobre mulheres”, afirma Mariana Leme.

Há também na seleção contemporânea uma presença importante do fazer têxtil. A trama do tecido e do bordado passa a ser utilizada como forma de transpor as barreiras, muitas vezes insidiosas e mascaradas, impostas pelo patriarcado. Carolina Caycedo, por exemplo, borda nomes de mulheres que admira em roupas que coleta de pessoas próximas e as transforma em grandes estandartes. Também está presente na mostra o vestido de noiva criado pela Daspu com lençóis de motéis da zona de prostituição do Rio de Janeiro, sobre os quais foram impressos desenhos eróticos e que foi apresentado originalmente na 27ª Bienal de São Paulo.

Histórias Feministas: artistas depois de 2000, que ocupa o subsolo do museu, reúne trabalhos de 30 autoras, que iniciaram suas práticas artísticas já neste século e que de certa forma incorporam práticas ativistas. São obras que, de forma geral, “trabalham urgências por uma perspectiva feminista”, sintetiza Isabelle Rjeille. Produções que tangenciam temas candentes, como a questão da moradia nos centros urbanos, como faz Virginia de Medeiros, ou a questão da transfobia e da vulnerabilidade do corpo, abordada por Lyz Parayzo na obra Bixinha, objeto desmontável que remete também aos Bichos, de Lygia Clark. Em outras palavras, são artistas que ampliam o alcance crítico de suas poéticas para além da questão de gênero, mostrando como a teia de invisibilidade que atinge as mulheres normalmente vem associada a outras formas de exclusão, relacionadas a questões raciais, econômicas e geopolíticas. “O feminismo vai muito além da arte”, lembra Isabelle.

Histórias das Mulheres Histórias Feministas
MASP – Av. Paulista, 1578 – Bela Vista
Até 17 de novembro

 

A prática artística como prática historiadora

Vista da exposição. Foto: Julio Kohl.

“Os arquivos, por si só, não têm memória. É com eles que você constrói memória”, afirma a pesquisadora e curadora Ana Pato. E neste processo de leitura, interpretação e significação de documentos e registros – tradicionalmente associado à prática acadêmica de historiadores e outros pesquisadores – os artistas têm papel fundamental, defende Pato, curadora da exposição Meta-Arquivo: 1964-1985 – Espaço de Escuta e Leitura de Histórias da Ditadura.

A partir desta constatação, a mostra em cartaz no Sesc Belenzinho, criada em parceria com o Memorial da Resistência, reúne trabalhos inéditos de nove artistas, concebidos a partir de pesquisas em diferentes arquivos públicos e privados sobre a ditadura brasileira. “Porque colocar em movimento uma documentação passa sempre por um processo de mediação”, diz a curadora. Os mediadores, neste caso, são os artistas e coletivos Ana Vaz, Grupo Contrafilé, O Grupo Inteiro, Giselle Beiguelman, Ícaro Lira, Mabe Bethônico, Paulo Nazareth, Rafael Pagatini e Traplev.

As obras, em variados suportes e linguagens, colocam em movimento informações e materiais que escancaram as violências perpetradas pelo regime militar ao longo de 21 anos em diferentes âmbitos da vida nacional. A prática artística surge – com suas peculiaridades – como prática historiadora, a partir de um desejo de tornar públicas histórias pouco conhecidas e de, muitas vezes, questionar a historiografia oficial. Pois, como ressalta Giselle Beiguelman em trabalho exposto na mostra, a memória é sempre uma construção. “O que você esqueceu de esquecer? O que você esqueceu de lembrar? O que você lembrou de esquecer? O que você lembrou de lembrar?”, questionam as frases escritas em neons.

Obra de Giselle Beiguelman. Foto: Junior Pacheco

A própria artista, na instalação Gaveta de Ossos, “lembra de lembrar”, através de fotos e áudio, do trabalho de reconhecimento feito com as ossadas na Vala de Perus, onde foram enterrados clandestinamente diversas pessoas assassinadas pela ditadura. Paulo Nazareth, em Inquérito, discute a criminalização dos negros a partir da leitura de inquéritos policiais encontrados pelo artista e transformados em áudios – em trabalho feito em colaboração com Michelle Matiuzzi e Ricardo Aleixo.

Em Escola de Testemunhos, o Grupo Contrafilé reproduz em fones de ouvido – situados em uma “mesa-lousa” rodeada de cadeiras escolares – relatos de ex-presos políticos e seus familiares pertencentes ao arquivo do programa Coleta Regular de Testemunhos do Memorial da Resistência. O trabalho, assim como o de Nazareth, explicita um desejo da exposição de expandir o conhecimento sobre quem foram os personagens atuantes na luta contra a ditadura, como explica Pato: “Quisemos descolar um pouco desse imaginário de que a resistência à ditadura foi feita basicamente por homens, brancos, jovens, de classe média e estudantes da USP que entraram na guerrilha. O trabalho do Contrafilé traz uma visão mais ampla, que inclui o movimento operário, movimento de mulheres e mães da periferia, por exemplo”.

A expansão também da noção geográfica sobre a resistência à ditadura – para além do Sudeste ou de casos famosos como a Guerrilha do Araguaia – se dá no trabalho de Ícaro Lira sobre o Crítica Radical, movimento formado nos anos 1970 em Fortaleza. Atuante ainda hoje, o grupo teve uma trajetória multifacetada, com papel fundamental na luta feminista e passagens pela política institucional, pela guerrilha e, posteriormente, assumindo uma luta contra o voto e o capitalismo.

Trabalho de Rafael Pagatini. Foto: Patricia Rousseaux.

Em outra história pouco conhecida, Rafael Pagatini segue sua pesquisa sobre o papel das instituições culturais durante o regime militar, mostrando meandros das relações entre o governo e três instituições paulistanas: Sesc, MASP e Pinacoteca. Imagens de ditadores em aberturas de exposições impressas em tecidos, por exemplo, revelam como essas instituições ajudavam a dar certo ar de normalidade para o regime – “era como um escudo”, diz o artista –, já que mostras continuavam acontecendo e a arte seguia tendo seu espaço institucional, com aval do governo.

Desenvolvido por Traplev a partir de extensa pesquisa em arquivos – entre eles os que resultaram no livro Brasil: Nunca Mais, realizado clandestinamente por setores da sociedade civil durante os anos finais da ditadura (1979-1985) e que revelou uma série de crimes cometidos pelo regime – a instalação Arma da Crítica/ Orientação para a Prática apresenta dois grandes organogramas, um das organizações de esquerda e outro dos órgãos da repressão, situados em lados opostos da sala expositiva. O artista apresenta ainda um trabalho sobre o educador Anísio Teixeira, morto em 1971 após ser preso por agentes da ditadura.

Em duas grandes instalações feitas em tricô, Texto-Tecido-Teia, O Grupo Inteiro se utiliza de palavras encontrados nas apostilas de formação dos agentes do Serviço Nacional de Informações (SNI). Os manuais, que serviam para orientar a repressão às organizações de esquerda, incluíam dicionários de gírias e expressões que poderiam ser necessárias nas sessões de interrogação e tortura. Logo ao lado, um vídeo da artista Ana Vaz , intitulado Apiyemiyekî? [Por quê?], aborda o genocídio do povo Waimiri-Atroari durante a marcha para o centro-oeste na década de 1970, quando terras indígenas foram invadidas para a construção da BR-174 e para a instalação de uma mineradora. Ilustrações criadas pelos indígenas sobre o período revelam a história traumática vivida pela população, remetendo-nos aos dias atuais.

Trabalho de Mabe Bethônico. Foto: Julio Kohl

Por fim, Mabe Bethônico pesquisa a relação das empresas de mineração com a ditadura militar a partir de um projeto de doutorado que descobriu sobre o assunto. A artista convidou a autora da pesquisa, Ana Carolina Reginatto, para lhe dar aulas sobre o tema e registrou o processo em vídeos. A obra final, intitulada Elite Mineral [Gabinete de Aprendizado] é outra que, segundo a curadora, nos remete diretamente aos acontecimentos recentes do país. “Com o trabalho da Mabe, fica mais claro o que está acontecendo em Brumadinho. Quando você olha o trabalho da Ana Vaz, entende melhor o que está acontecendo na questão indígena. Então nós vamos fazendo ligações que parece que não fizemos no Brasil”, diz Pato.

Revisionismo e aprendizado

Se o grupo de trabalho criado por Ana Pato com os artistas para pesquisar a memória da ditadura surgiu em 2018, foi a partir do início deste ano, já após a posse de Jair Bolsonaro, que o processo de produção das obras se intensificou. A temática entrou ainda mais na pauta do dia num contexto em que o presidente da República defende o regime militar, elogia torturadores e incentiva a comemoração da data do golpe de 1964. “Estamos vivendo um momento de revisionismo da nossa História oficial. Porque a ditadura militar está na nossa História oficial, não parecia ser uma narrativa que a gente tinha exatamente que comprovar. Mas as coisas mudaram”, diz a curadora.

“A impressão que eu tenho é que a gente é meio desconectado de quem somos, da nossa construção de nação. Então, para entender o que estamos vivendo, nada melhor do que olhar para o passado, aprender com a História para ficarmos mais conscientes do presente”, diz ela, reforçando o papel pedagógico de Meta-Arquivo – especialmente em tempos de negação de fatos históricos e disseminação de informações falsas. Não à toa, explica Pato, a mostra tem o subtítulo Espaço de Escuta e Leitura de Histórias da Ditadura. “Acho que a exposição é um lugar de aprendizado. Me parece que se estamos precisando voltar à realidade, de alguma forma o artista pode ser esse caminho do simbólico para que voltemos a olhar para o real.”

Vista da exposição. Foto: Julio Kohl.

Ao tornar públicas histórias pouco reveladas, surge também a possibilidade de alguma reparação ou, ao menos, de lidar com as feridas do passado. “No Brasil, nós não fizemos um reconhecimento das nossas dívidas, da nossa história traumática. E os genocídios da população negra, indígena, isso permanece. É o próprio conceito de trauma, o passado que não quer passar, aquilo que está sempre voltando”, diz Pato. Nesse sentido, a curadora se refere a uma história que começa muito antes da ditadura militar, com raízes profundas que vêm desde a chegada dos colonizadores e do período da escravidão. Para ela, é só a partir desta complexidade histórica que se pode entender o atual “dualismo e cisão da sociedade brasileira”.

Em um vasto galpão do Sesc Belenzinho, a mostra se apresenta como um espaço de diálogo entre as obras, montadas entre estruturas metálicas aparentes e pequenas superfícies de madeira, permitindo a sobreposição das histórias apresentadas. Sobre o projeto expográfico de Anna Ferrari, a curadora explica: “Tem a ver também com a ideia de arquivo, para perverter a própria ideia das caixas. Eu queria poder ver qualquer trabalho de qualquer ângulo. Mas o ponto é esse: você nunca vai ter o ângulo perfeito, você vai sempre ter o outro lado”.

 

Meta-Arquivo: 1964-1985 – Espaço de Escuta e Leitura de Histórias da Ditadura
Sesc Belenzinho – R. Padre Adelino, 1000 – Belenzinho, São Paulo
Até 24 de novembro
Entrada gratuita

 

A Bienal de Arquitetura de São Paulo contra a megalomania

Estação de Metrô São Paulo - Morumbi, do escritóorio 23 SUL. Foto: Pedro Kok
“Paisagens Espontâneas”, do Studio Associates

Até algum tempo atrás, um arquiteto esperaria ter projetado a grande obra de sua carreira para poder enviá-la para uma bienal, afirma a curadora e pesquisadora Vanessa Grossman. Projetos em escalas menores – como intervenções pontuais em cidades ou residências – e debates aparentemente muito específicos – sobre a manutenção de edifícios ou o impacto dos hábitos alimentares no espaço construído, por exemplo – pareceriam pouco significativos para serem expostos em uma grande exposição internacional. Pois a 12a Bienal Internacional de Arquitetura de São Paulo, que acontece entre 10 de setembro e 8 de dezembro, rompe radicalmente com essa ideia.

Intitulada Todo Dia, a mostra se volta para o cotidiano e para as práticas (aparentemente) banais para discutir questões de relevância global, como a sustentabilidade, a preservação dos bens construídos e as desigualdades social, racial e de gênero. Dividida em duas exposições montadas em “edifícios-manifesto do cotidiano”, o CCSP (projetado por Eurico Prado Lopes e Luiz Telles) e o Sesc 24 de Maio (de Paulo Mendes da Rocha), a edição tem curadoria de Vanessa Grossman e Ciro Miguel, brasileiros, e da francesa Charlotte Malterre-Barthes, todos sediados atualmente na Suíça. É a primeira vez que a curadoria do evento é selecionada através de um concurso público, organizado pelo Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB-SP).

“Nós percebemos que havia uma espécie de volta ao cotidiano na arquitetura. Isso não é algo novo, mas na última década os arquitetos falam cada vez mais sobre o cotidiano como uma dimensão temporal e espacial que é pertinente para a disciplina”, explica Grossman. “Em geral, arquitetos têm uma certa megalomania de que, se pudessem, projetariam o mundo todo. Mas acho que há cada vez mais uma percepção de que herdamos um mundo já construído e que uma forma impactante de modificá-lo é trabalhando nessa dimensão do cotidiano.” Ao mapear as práticas contemporâneas, diz a curadora, nota-se então uma certa “ética e estética da simplicidade”, uma outra forma de operar o mundo.

“Nova República”, trabalho de Hélio Menezes e Wolff Architects montado entre o Sesc 24 de Maio e Galeria do Reggae. Foto: Divulgação

Nesta percepção, falar sobre o que é servido à mesa de jantar, a reforma de uma casa ou a manutenção diária de espaços públicos e privados pode ser tão relevante quanto falar sobre a construção de uma grande obra pública. E isso não exclui, segundo os curadores, discutir as questões de escala urbana ou global, mas trata-se de entender a conexão entre as diversas esferas. O tema do cotidiano surge, portanto, como uma espécie de denominador comum para discutir as muitas formas de intervenção, segundo Grossman.

Para tratar deste vasto universo, os curadores estruturaram duas mostras com características distintas. Enquanto no CCSP são apresentados 74 trabalhos selecionados entre os 710 enviados em uma chamada aberta – projetos em diferentes escalas e apresentados em variados suportes –, no Sesc são expostos dez “dispositivos” – espécies de instalações – comissionados, criados na maioria por equipes multidisciplinares. Se a primeira aposta em um formato expositivo mais tradicional, como explica o presidente do IAB-SP, Fernando Túlio, a segunda “dialoga com uma mostra de arte contemporânea, em termos de linguagem, com projetos site-specific que se espalham por lugares inusitados do edifício”.

Ambas as mostras dialogam com os três eixos temáticos definidos pela curadoria. O primeiro, “relatos do cotidiano”, refere-se principalmente à produção e aos usos do espaço ligados a questões sociais. Envolve tanto as sutilezas e belezas do dia a dia quanto as violências, desigualdades e segregação que afetam as sociedades, tratadas a partir de temáticas raciais e de gênero, entre outras.

Estação de Metrô São Paulo – Morumbi, do escritório 23 SUL. Foto: Pedro Kok

Para Túlio, “essa Bienal quer destacar e sensibilizar a opinião pública para a perspectiva de colocar os cidadãos em primeiro lugar no planejamento das cidades. Especialmente os cidadãos que estão em situação de maior vulnerabilidade”, afirma. “Em São Paulo, por exemplo, temos pessoas que vivem em situações análogas a de refugiados urbanos, sem uma moradia digna. Então é preciso adotar mecanismos que consigam qualificar a vida.”

O segundo eixo, “materiais do dia a dia”, aborda questões de sustentabilidade em um mundo que vive a era do Antropoceno – conceito usado por diversos cientistas para definir uma nova era geológica, a atual, considerando todo o impacto causado pelo homem no planeta. Neste eixo surgem temas ligados ao uso dos materiais construtivos, assim como um diálogo mais direto com o mundo rural e com as temáticas indígenas, em um esforço de não restringir o debate às questões urbanas que costumam pautar eventos de arquitetura.

Aparecem aí trabalhos que abordam o comer, por exemplo, e outras práticas do dia a dia. “Até algum tempo atrás pensava-se que apenas os grandes projetos impactavam a humanidade, mas que o cotidiano estava um pouco isento de participar dessa cadeia. E hoje a gente consegue perceber as coisas de uma forma mais atrelada, até pela globalização e pelas tecnologias disponíveis”, diz Grossman. “Então há muitos arquitetos, atualmente, pensando sobre como trabalhar sem causar mais impactos no planeta.”

“Apanhador de Nuvens”, no topo do Sesc 24 de maio, trabalho de BRUDER (Alexandre Theriot e Stéphanie Bru)

O terceiro eixo, “manutenções diárias”, lida com uma dimensão intrínseca à arquitetura, mas muitas vezes vista como menos importante do que a construção ou edificação. “A manutenção é um assunto da ordem do dia, especialmente quando vemos casos como o incêndio do Museu Nacional, no Rio, ou o desabamento do edifício Wilton Paes de Almeida, em São Paulo. Temos um problema crônico de manutenção no Brasil, mas podemos falar também da Notre-Dame, em Paris, que pegou fogo por falta de manutenção”, diz a curadora. Neste eixo, a mostra procura adentrar ainda a manutenção em outras escalas e dimensões, seja o cuidado diário com o corpo até a preservação da memória coletiva.

No intuito de democratizar a Bienal e alcançar um público mais amplo do que o nicho dos arquitetos, a edição procura tratar todos os eixos temáticos de modo multidisciplinar e multimídia. O evento coloca a arquitetura em diálogo com a História, a Antropologia e as artes visuais e expõe os trabalhos através de áudios, instalações e uma grande quantidade de vídeos – não apenas plantas arquitetônicas, textos e fotos de projetos. “O tema do cotidiano é um tema tangível”, diz Grossman, “e tentamos abordá-lo de forma didática”.

Para Túlio, o uso de novos formatos expositivos é também uma necessidade nos tempos atuais. “Antes, para conhecer um projeto de fora de sua cidade você teria que ter acesso a uma revista, que era cara e de mais difícil acesso. Hoje está tudo na internet. Então aquele modelo de feira, de apenas apresentar projetos, se esgotou. Por isso o desafio de flertar com novas linguagens e formatos, para poder sensibilizar o público. Acho que essa bienal avança nesse sentido, mas é um desafio permanente”.

“Jardim do Ócio”, série de fotografias de Pedro Motta

Outro aspecto importante no sentido da democratização foi a escolha dos dois edifícios que abrigam a mostra, localizados em áreas centrais da cidade e com grande circulação de pessoas de todas as idades e classes sociais. É a terceira edição da Bienal de Arquitetura fora do Pavilhão do Ibirapuera. O presidente do IAB-SP destaca, por fim, o que chama de papel primordial da vida em sociedade, “a dimensão civilizatória”, e o papel fundamental da arquitetura neste sentido. “Nesse contexto de crise da democracia, a arquitetura também tem o papel de reconstituir os valores e a dimensão republicana da coisa pública.”

E ele volta, uma vez mais, ao cotidiano: “Uma pessoa que vive na cracolândia, por exemplo, o problema dela não é só a falta de moradia; não é só a falta de apoio médico; não é só a falta de emprego; nem é só a falta de acesso a equipamentos da assistência social ou de cultura. São todos esses problemas integrados, além de questões mais íntimas, da família, por exemplo. Então a história do cotidiano vem muito no sentido de lançar luz sobre isso. Porque quando você consegue entender o cotidiano de uma pessoa, consegue entender esses aspectos múltiplos”, conclui Túlio.

Todo dia
Sesc 24 de Maio – Rua 24 de Maio, 109, Centro, São Paulo
Até 29 de setembro de 2019

Arquiteturas do cotidiano
Centro Cultural São Paulo (CCSP) – Rua Vergueiro, 1000 – Paraíso, São Paulo
Até 8 de dezembro de 2019

 

Ocupação Herzog vai além do drama político

Bebê André. FOTO: Arcervo instituto Vladimir herzog.

Vlado Herzog tinha 38 anos quando foi morto, sob tortura, nas instalações do Doi-Codi, no ano de 1975, em São Paulo. Na época era editor do programa Hora da Notícia, da TV Cultura, e havia ido voluntariamente prestar depoimento. A partir daí montou-se uma farsa, na tentativa de encobrir o assassinato transformando-o em suicídio, e teve início uma luta acirrada para que a verdade viesse a tona, transformando o jornalista numa espécie de símbolo contra a opressão e em defesa da democracia, cujo último capítulo foi a condenação do Estado brasileiro pela Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA, em 2018. É a ele que o Itaú Cultural dedica a 46ª edição do projeto Ocupação, que vem ao longo de anos revisitando a obra e biografia de grandes figuras da cultura brasileira. Acertadamente, a exposição vai além do drama político do biografado. O ponto de partida não é o final dramático, mas um entremeado de referências a sua vida pública e privada, um percurso que de certa forma explica porque foi tratado de forma brutal como inimigo do Regime. Resgata a história de uma figura multifacetada, profundamente interessada pelos rumos do país num momento particularmente violento de sua história e que via na arte, sobretudo no cinema – campo de seu maior interesse – um caminho de ação e reflexão.

Logo no início, os visitantes se deparam com uma seleção cuidadosa das fotografias que ele tirava de forma obsessiva e rigorosa. Nos acervos da família, foram encontradas mais de 70 caixas de slides, cuidadosamente identificados, contendo imagens que vão de registros pessoais da viagem a experimentações de grande riqueza formal, composições marcadas por um olhar agudo e o uso de ângulos e enquadramentos inusitados, como aquele que mostra seu filho André, ainda bebê, em meio a um roseiral de intenso tom vermelho. A mulher que o segura, provavelmente sua mulher Clarisse, praticamente sai da cena para tornar a imagem mais intensa e perturbadora.

Esse primeiro núcleo, denominado de Vlado Multimídia, traz também uma série de documentos, depoimentos de amigos e companheiros de jornada, bem como textos de autoria de Herzog sobre o cinema, testemunhando tanto uma ação real neste campo como um interesse jornalístico em defesa de um uso social da linguagem. Infelizmente, só conseguiu dirigir um curta metragem, intitulado Marimbás, mas já se preparava para a realização de um documentário sobre Canudos. Tanto as fotos feitas durante sua pesquisa de campo na Bahia como Marimbás, fazem parte da mostra. O catálogo também é dedicado exclusivamente a relação dele com o cinema.

Sua vida pessoal, o trabalho jornalístico e sua permanência como um símbolo de luta contra a opressão (representado em trabalhos como a ação de Cildo Meireles, que carimba notas de dinheiro com a pergunta: “Quem matou Herzog?”) constituem os outros núcleos da mostra. Ao longo de dois anos de pesquisa, que envolveu uma equipe de oito pesquisadores, além da equipe do Itaú Cultural e do Instituto Vladimir Herzog – parceiros na produção da mostra –, milhares de dados e documentos foram coletados. Espalhados pelo espaço expositivo o visitante se depara com uma série de ricos elementos como fac-símiles de seus artigos para vários veículos, cartazes e livros póstumos em homenagem a ele, documentos importantes relativos ao Caso Herzog como a decisão do juiz Márcio José de Moraes que, em 1978, reverteu a versão oficial de suicídio, em meio a objetos de cunho simbólico como sua máquina de escrever e sua câmera fotográfica. São especialmente tocantes itens como o registro de entrada da família Herzog, em 1946, no Brasil e uma carta que seu pai lhe escreveu narrando a vida da família durante a Segunda Guerra Mundial, quando se refugiaram na Itália fugindo da Iugoslávia e do antissemitismo. Ou ainda a fotografia da redação do Estado de S. Paulo, completamente vazia, no dia de seu enterro.  Um testemunho visual da enorme solidariedade e comoção causadas pelo seu assassinato pelo regime militar.

“Foi um verdadeiro garimpo. Isso que vemos aqui é apenas a superfície”, conta Luis Ludmer, do Instituto Herzog e co-curador da mostra juntamente com Claudiney Ferreira, gerente do Núcleo de Audiovisual e Literatura do Itaú Cultural. A ideia é que todo esse material sirva, no futuro,  de base para a construção de um site, tornando permanente o acesso a todo esse volume de material, que tende a tornar-se ainda mais amplo com divulgações como esta mostra cuja função não é apenas a rememorar o passado e resgatar a figura do intelectual engajado, fazendo com que ele nunca seja esquecido, mas também construir um modelo de resistência importante em momentos de recuo dos direitos humanos como o que vivenciamos hoje. “Não queríamos nada fúnebre”, afirmam os curadores. Daí a opção por uma museografia aberta, com os vários núcleos em diálogo, marcada por uma certa leveza e rusticidade.

Ocupação Vladimir Herzog
Itaú Cultural – Av. Paulista, 149 – Bela Vista, São Paulo
Até 20 de outubro

 

Fotografia da memória

Foto de João Pina
Roupa íntima encontrada dentro de sepultura estudada na EAAF (Equipe de Antropologia Forense) em Buenos Aires. Foto: João Pina / Condor

Seja em Portugal, sua terra de origem, ou nos vários países da América Latina onde trabalhou, o fotógrafo João Pina, 38, dedicou boa parte de seus 20 anos de carreira a fazer “com que histórias não caiam no esquecimento”. Da família herdou o interesse pela política – os avós, militantes comunistas, foram presos políticos durante o regime salazarista. Compreendeu, também, a importância da memória e de conhecer o passado tanto para entender o presente quanto para reparar traumas e injustiças históricas.

Não à toa, Por Teu Livre Pensamento, seu primeiro trabalho autoral, foi uma espécie de acerto de contas com a própria história, a partir de registros de sobreviventes da perseguição política em Portugal. Condor, projeto que demorou nove anos para ser concluído e resultou em um livro e uma série de exposições ao redor do mundo, investigou a Operação Condor, articulação entre seis ditaduras militares sul-americanas (Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai) organizada para reprimir a oposição de esquerda.

Vieram ainda outros projetos em Portugal, em Cuba, na Colômbia (sobre as FARC), no Rio de Janeiro (46750, que leva no nome o número de homicídios ocorridos na cidade entre 2007 e 2016), entre outros. Atualmente, o fotógrafo desenvolve um trabalho sobre Tarrafal, campo de concentração criado pelo governo português em Cabo Verde nos anos 1930, e começa a se debruçar sobre a herança escravocrata em Portugal. Infelizmente, segundo Pina, olhar para o passado é um trabalho ainda pouco feito tanto no Brasil quanto em seu país – apesar de que lá as discussões sobre o colonialismo e a ditadura começam a se tornar mais presentes.

No caso brasileiro, mais preocupante para o fotógrafo, o resultado é, entre outros, a eleição de um presidente, Jair Bolsonaro, que elogia “um torturador que deveria ter sido preso por crimes de lesa-humanidade”. Além disso, no caso do Rio de Janeiro, “não tenho dúvidas de que o fato de a Polícia Militar matar em média mil pessoas por ano tem a ver com essa cultura que vem da ditadura”, afirma.

Em cada projeto, a partir de longa pesquisa e investigação, Pina constrói narrativas sobre histórias escancaradas ou escondidas, presentes ou passadas. A violência que aparece explícita nas cenas atuais de ações policiais no Rio surge, de outro modo, silenciosa em uma sala vazia que foi utilizada para sessões de tortura na Argentina ou, ainda, nos rostos de sobreviventes de tortura nos países sul-americanos.

Com atuação cada vez maior fora do fotojornalismo, onde iniciou a carreira, Pina passou a expor, ao longo dos anos, em museus e galerias, além de ter publicado três livros. “Está completamente fora do meu controle e não me interessa como o mercado ou a academia classificam meu trabalho – se é fotografia documental, artística, jornalística. O que me interessa é contar histórias. Posso me classificar apenas como um autor que tem uma voz e coisas a dizer.” Leia abaixo a íntegra da entrevista.

ARTE!Brasileiros — Muitos de seus projetos lidam com acontecimentos de um tempo que você não viveu. Como utilizar a fotografia, que capta o momento presente, para tratar destes fatos do passado. Quer dizer, quais artifícios você utilizou e utiliza?
João Pina – Alguns artifícios dos quais eu sou consciente e outros não. O trabalho passa pela investigação, por ouvir fontes primárias para chegar a pistas, lugares, pessoas e objetos, digamos assim. Eu acho que tem a ver com isso, com estudar, pesquisar, entrevistar e, depois, perceber como é que se pode contar histórias do ponto de vista visual. Então eu vou seguindo as pistas desta visualização do passado no presente. E a partir disso vou criando.

Parece sempre existir o desejo de tornar públicas essas histórias apagadas, muitas vezes esquecidas. Faz sentido pensar assim?
Sim, acho que isso é a minha missão, conseguir ampliar essas vozes e fazer com que essas histórias não caiam no esquecimento. Essa é minha grande preocupação, especialmente nesse momento que estamos vivendo, no qual parece que estamos reescrevendo e reinterpretando a história de acordo com quem está no governo. Isso para mim é muito assustador.

Em 2016, quando ainda estava em curso o processo de impeachment de Dilma Rousseff, você disse que o fato de o Brasil não ter discutido seu passado – e de as Forças Armadas e alguns políticos continuarem fazendo apologia ao golpe – era muito preocupante, porque semeava o terreno para que abusos pudessem voltar a acontecer. Um desses políticos, Jair Bolsonaro, foi eleito presidente. Como enxerga esse momento?
Esse processo de não olhar para a memória no Brasil é muito semelhante ao que acontece em Portugal, então isso não me é estranho. Mas eu olho com mais preocupação para o caso brasileiro porque sinto que as instituições em Portugal são um pouco mais sólidas ou, pelo menos, existe menos instrumentalização política das instituições neste momento. E este esquecimento no Brasil, associado a outros problemas de populismo – que propõe receitas fáceis para problemas profundos –, deu nisso que estamos vendo, com a eleição do Bolsonaro, com uma polarização enorme e um aumento exponencial de violências que se pensavam resolvidas.

As violências herdadas da ditadura?
Porque as coisas não se resolvem por osmose, por si próprias, elas têm que ser faladas, mexidas, sanadas e só depois é que se pode encerrar um processo. No Brasil, tal como em Portugal, onde esse processo de resolução não existiu, muitas pessoas achavam que isso estaria resolvido. Mas o fato é que o Brasil continua a ter quartéis com os nomes dos ditadores e que tivemos um deputado, agora presidente, dedicando seu voto no impeachment a um torturador que deveria ter sido preso por crimes de lesa-humanidade. E uma boa parte da população acha que isso é normal. Portanto, enquanto essas condições objetivamente existirem é normal que esse tipo de resultado aconteça. As consequências são as que estamos vendo.

Com a anistia veio essa ideia de que era preciso esquecer para seguir em frente. É preciso, na verdade, lembrar para seguir em frente?
É difícil dar uma receita. Tenho lido livros inclusive sobre o direito de esquecer, não só do direito de relembrar. Mas definitivamente acho que ignorar o problema não é uma receita. A história deve ser lembrada para se entender como é que as coisas chegaram onde chegaram. E no Brasil esse exercício é muito pouco feito. Esse exercício nunca foi feito dentro das Forças Armadas, que continuam defendendo que houve uma revolução libertadora que salvou o Brasil do comunismo, esse bicho-papão que come criancinhas. De outro lado, boa parte da esquerda também não evoluiu seu discurso. Não podemos esquecer que o Partido dos Trabalhadores (PT) esteve 12 anos no poder e fez muito pouco para discutir estes assuntos. Houve uma Comissão Nacional da Verdade, mas o que se seguiu a isso, na prática, foi absolutamente nada. E com o atual panorama político, então, será menos que nada, será o retrocesso, o reescrever da história.

Esse discurso de um governo que vem salvar o país do comunismo, de 1964, é muito semelhante ao que elegeu Bolsonaro…
Exatamente como em 1964, quando dizia-se que tudo era comunismo. Ou seja, quem diz que tudo é comunismo não sabe sequer o que é comunismo. Comunismo, fascismo, são palavras que entraram no léxico distorcidas. Inclusive a esquerda comete este erro quando acusa qualquer um de fascista. Às vezes chama de fascistas pessoas que são neoliberais, o que é completamente diferente. Mas enfim, é uma discussão longa, que tem a ver com a falta de educação política e cívica. Temos que pensar como se pode ultrapassar isso. O Brasil sofre muito com a falta de educação formal, digamos assim, e a história se torna mais manipulável. E se muitos brasileiros, mesmo na escola, não aprendem de fato o que aconteceu em 1964, em 1968, na Guerrilha do Araguaia etc., isso é preocupante.

E nos outros países da América do Sul que você pesquisou, o quadro é muito diferente?
As situações são distintas. A Argentina é um país onde essas questões são muito presentes, porque logo após a ditadura a sociedade civil mobilizou-se muito – e as vítimas também eram muitas. Então isso passou a estar na ordem do dia e houve condições políticas para a discussão caminhar. De algum modo, é um caso exemplar. Acho que seria impensável na Argentina uma figura adotar um discurso como o de Bolsonaro sobre a ditadura e ter tamanha popularidade e destaque.

Por fim, passando para o projeto 46750, sobre a violência no Rio de Janeiro, parece haver um diálogo forte – talvez não tão explícito – com o que se vê em Condor, já que a violência policial no Brasil é ainda resquício direto da violência repressiva da ditadura. Faz sentido?
Faz todo o sentido. Eu comecei Condor em 2005 e o 46750 em 2007, em uma fase em que eu estava muito focado em entender esses processos de violência, não só do passado quanto do presente. E muito rapidamente para mim essa violência do presente começou a mostrar suas nuances que vinham lá de trás. E, no caso do Rio, não tenho dúvida nenhuma de que o fato de a Polícia Militar matar em média mil pessoas por ano tem a ver com essa cultura que vem da ditadura. Na verdade, o que se vê ali é também resultado da impunidade implementada pelos portugueses quando chegaram ao Brasil, da escravidão, e depois da ditadura militar. O fato de a polícia brasileira ser uma polícia militar, a que mais morre e que mais mata no mundo, isso não vem de ontem, mas de 500 anos.

Existe uma discussão muito presente hoje no universo artístico de quanto as artes visuais podem ser também um artifício potente para tratar da história. Como você vê essa questão?
Acho que mesmo na academia hoje há uma preocupação crescente em tratar as coisas também fora do texto, usando a linguagem visual para isso. E eu percebi isso com Condor. Ao utilizar imagens para tratar deste assunto, rapidamente comecei a ser contatado por professores e acadêmicos, e a ser chamado para fazer conferências acerca do assunto. Acho que começou a se perceber melhor, 200 anos depois do surgimento da fotografia, o poder do visual e os contributos que ele pode dar inclusive para a academia, seja em uma aproximação apenas documental ou mais artística, poética, mais livre.      

Você acredita que a arte, e mais especificamente a fotografia, pode ter alguma virtude reparadora? Quer dizer, tanto para as vítimas de violências quanto mesmo para a sociedade, trabalhos como esses que você faz podem ter também um papel de cura, digamos assim?
Não sei, talvez seja muito pretensioso ou utópico pensar desta maneira. Não acho que uma imagem em si vá sanar, curar ou dar justiça a quem quer que seja. Mas acho que ela pode sim contribuir, tal como o texto, a pintura e a música, para que exista alguma espécie de justiça, reparação e mais bem-estar para as vítimas. E, também, mais mal-estar para os culpados, que ao se verem retratados possam talvez repensar o que foram suas atitudes, perceber as consequências do que fizeram.