Sérgio Sister, Esticados
Sérgio Sister, Esticados, 1967, tinta acrílica sobre tela 97 x 130 cm

Oportuna a mostra que Sérgio Sister realiza na Galeria Nara Roesler, em São Paulo (até 5 de outubro), apresentando pinturas que realizou no final da década de 1960 e desenhos produzidos na prisão, entre 1970 e 1971. Oportuna por dois motivos, pelo menos: em primeiro lugar porque, nesses dias em que tentam negar os desmandos cometidos pela última ditadura civil-militar brasileira (sendo que alguns buscam negar que ela tenha de fato ocorrido), é didático colocar o público frente a testemunhos de vítimas daquele período que jamais será apagado da história do país; um segundo motivo para a relevância da mostra é que ela apresenta os dois primeiros momentos da trajetória de um artista então muito jovem (Sister nasceu em 1945) e que, com o passar dos anos, viria a ser reconhecido como uma das principais referências da pintura no Brasil.

Visitando Imagens de uma juventude Pop: pinturas políticas e desenhos da cadeia, o que de início chama a atenção são as diferenças de abordagens plásticas usadas por Sister nas pinturas e nos desenhos.

No primeiro grupo é espantosa a vivacidade que emana daquelas pinturas que, atentas ao burburinho da metrópole, aos flagelos da sociedade de massa e aos perigos da ditadura, (que aos poucos mostrava sua cara), demonstram a crença no fazer pictórico, acreditam no que denunciam e em como denunciam. Nelas é notável como Sister – a exemplo de alguns colegas de geração – conseguia filtrar e torná-los seus, os códigos das vertentes então mais em voga (a Pop, a Nova Figuração etc.), tudo crivado por um tipo de arquitetura do campo plástico que – passível de ser associada à estrutura das paginas de histórias em quadrinho –, nada me tira da cabeça que poderia ser debitada igualmente à experiência concreta, ainda forte em São Paulo à época (talvez o mesmo débito de Claudio Tozzi, em suas primeiras produções).

Essa concepção forte, no entanto, como que se liquefaz nos desenhos produzidos por Sister no período em que passou no antigo Presídio Tiradentes, em São Paulo, de triste memória. Se nas pinturas imediatamente anteriores havia como que uma afirmação do discurso, um voluntarismo juvenil repleto de vivacidade e ironia, nos desenhos agudos realizados na prisão, a arquitetura das cenas tende a se esvair, escoando pelos cantos (neste sentido, um desenho em especial, que mostra a bandeira do Brasil em processo de diluição, me parece emblemático). O plano do papel recebe inúmeras situações, como que registradas à socapa. São várias cenas produzidas à maneira de colagens, em que o artista atesta o cinismo, a barbárie, a tortura – cenas trágicas e – pasmem! – repletas de um quase humor ferino e triste.

Apesar de graves e importantes como testemunhos instransponíveis da atuação do estado sobre o cidadão comum, esses desenhos são mais do que isso, e não se encaixam como emblemas solenes daquela situação em que o artista foi uma vítima entre tantas. São documentos de um crime, é certo, mas também sua própria superação. Atuam como a melhor resposta ao arbítrio porque o ridiculariza ao mesmo tempo em que questionam a si mesmos. Esses desenhos se recusam a significar meros documentos sobre a barbárie sofrida, para atuarem como reelaborações críticas das maldades que apontam, não se deixando abater por elas. São armas de resistência.

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Como mencionado, passadas cinco décadas, a obra de Sérgio Sister é apontada como uma das principais referências da pintura brasileira atual e, aparentemente, não possui nenhuma referência daquelas produções de início de carreira: nem o denuncismo de suas primeiras pinturas, nem o teor crítico de seus desenhos. Será?

Nos últimos anos, a produção de Sister tem se caracterizado como uma afirmação de certos elementos constitutivos da pintura, reverenciados na modernidade, como estratégias para a delimitação de seu próprio campo: a reiteração da bidimensionalidade, a ênfase no ato de pintar e o uso planejado do monocromático a enfatizar todas essas peculiaridades. Nenhuma representação – a pintura não representa o real, ela se apresenta como um novo dado –; nenhuma cor mais estridente – os tons mais baixos tendem a reforçar a dimensão planar da pintura e a realçar os índices da ação do pintor sobre a superfície.

Porém, a distância entre os dois momentos da produção de Sister tende a encurtar-se quando se analisa a estruturação que o artista fazia de suas pinturas no início de carreira. Ali, talvez os ensinamentos das correntes construtivas brasileiras informassem a maneira como o artista arquitetava o campo pictórico, dividindo-o num tipo de gradeado que ressoava as estruturas daquelas vertentes, dividindo o campo do suporte em áreas comunicantes, porém autônomas. Agora, observando suas pinturas recentes, parece que Sister foca sua atenção e trabalha em cada uma dessas áreas em particular, destacando-as do corpo geral da grade, fazendo com que alcancem seu protagonismo.

Difícil sustentar esse liame proposto para os dois momentos do artista? Pode ser, uma vez que se trata aqui de uma questão aparentemente de puro interesse formal, como que para justificar a suposta falta de engajamento atual de Sister frente à situação política e social.

Engano. As pinturas austeras e rigorosas que hoje Sister produz guardam, das pinturas e sobretudo dos desenhos do seu período inicial, o mesmo papel de armas de resistência. Ao afirmar as especificidades da linguagem pictórica – tão caras à modernidade – a produção mais recente do artista parece se colocar numa distância crítica em relação à cooptação que sofre a prática da pintura nas últimas décadas, quase sempre fácil presa do processo de alienação a que vem sendo submetida – índice mais do que plausível do processo de alienação e embrutecimento que nossa sociedade sofre na atualidade.

 

 


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