Miguel Chikaoka Salvaterra, PA – 1994

Em Belém para ministrar um curso sobre curadoria, visitei o solene Museu do Estado do Pará (MEP) que, junto com o Museu de Arte da Universidade Federal (MUFPA), abrigam em 2019 a 10ª edição do Projeto Prêmio Diário Contemporâneo[1]. O Projeto, sob a coordenação de Mariano Klautau Filho, a cada ano transforma Belém num dos pontos principais do Brasil para quem deseja ver, refletir e discutir a arte contemporânea do país, tendo como eixo privilegiado a fotografia e a imagem fotográfica.

Nesta edição, os artistas que responderam ao edital da mostra foram selecionados pelo júri formado por Octavio Cardoso, Heldilene Reale e Isabel Gouvêa, que escolheu um grupo potente de obras de artistas das mais diversas regiões do país. Junto com algumas obras de artistas convidados, formaram a exposição em cartaz no MEP.

Não leve flores, de Rodrigo Pinheiro e Ton Zaranza, foi a peça que talvez mais tenha me impressionado. Composta por uma série de retratos fotográficos em formato 40 x 40 cm, registram pessoas as mais diversas. Ao lado de cada retrato – como se fosse a legenda –, um depoimento impresso da pessoa retratada, relatando quais foram seus sentimentos e ações durante 28 de outubro de 2018, para quem não lembra, dia em que foi confirmada a vitória do atual presidente da República. Não leve flores conseguiu atrelar à dimensão já hipercodificada do retrato uma delicadeza na pose, na iluminação e no fundo colorido das imagens que reforçam os depoimentos acoplados, relatos das apreensões que gravitavam durante aquele dia fatídico. O que igualmente me despertou o interesse foi o fato de que a obra, embora configurada como uma galeria de retratos/depoimentos de parte da comunidade LGBT+ do Rio de Janeiro, não se restringe àquela comunidade, pois expressa os temores de parte significativa da sociedade brasileira frente ao devir em que penetramos naquele dia.

Mas essa não foi a única obra que me chamou a atenção no MEP (cuja arquitetura, por si só, já vale uma vista). Ainda ali, um olhar mais detido na produção exposta me revelou o trabalho de outros artistas instigantes: Julia Milward, de São Paulo, e sua série, “Renomes”, foi uma delas. A artista atua sobre fotos apropriadas de colunas sociais dos anos 1950 e 1950, em que os nomes das mulheres retratadas foram substituídos pelas indicações das atividades profissionais e dos nomes dos respectivos maridos. Reforçando o apagamento dessas mulheres enquanto indivíduos, Milward transplanta as imagens para um suporte que emula o drapeado das vestes suntuosas da maioria das retratadas e, nesse processo, ao mesmo tempo em que reforça a associação de cada obra ao drapeado dos vestidos de soirée, faz com que esse arranjo suma com o rosto da retratada. Abaixo de cada fotografia, em metal cromado, a indicação do proprietário de cada uma das mulheres: “Sra. Embaixador Fulano de Tal”, “Sra. Conselheiro Beltrano” etc.

À margem desse viés ativista mais explícito (mas que não perde a delicadeza, jamais), a exposição apresenta outras manifestações de interesse: a série “Angelus”, da baiana Maria Baigur, por exemplo, ressignifica a documentação da paisagem urbana – quase toda, hoje em dia, subserviente a um gosto de derivação da escola alemã de fotografia – registrando em cada uma das imagens urbanas que exibe elementos que as humanizam, retirando-as do fosso comum da atual fotografia “de arte”, fria e distante. Além desse ensaio de Baigur, impossível permanecer imune às produções tão diversas e potentes, como aquelas de Mateus Sá, de Pernambuco, José Diniz, Rio e de Renan Teles, São Paulo, entre vários outras, produções que abalam as certezas enraizadas naquele edifício algumas vezes centenário.

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Se no segmento da exposição apresentada no MEP sobressaem, além da produção de alguns convidados, artistas que se inscreveram no edital deste ano, no Museu de Arte da Universidade Federal do Pará, devido às comemorações dos 10 anos do Prêmio, são apresentadas obras de artistas já presentes na Coleção Diário Contemporâneo e alguns convidados.

Essa exposição singulariza-se por apresentar praticamente apenas obras pertencentes à Coleção, franqueando ao público o contato com a produção de alguns dos artistas mais significativos da cena brasileira contemporânea e que, pelas mais diversas circunstâncias, residem ou residiram em Belém. A mostra como que produz uma antologia delicada de trabalhos de Miguel Chikaoka, por exemplo, um artista cuja importância não se reduz ao fato (grandioso em si mesmo, diga-se) de ter sido responsável pela formação de gerações de artistas de Belém. Chikaoka ali é apresentado como um artista cuja sensibilidade, na maneira como opera a câmera fotográfica, demonstra que a fotografia documental pode, sim, ir muito além do mero registro do real, quando operada por alguém que sabe nelas enxergar algo que transcende os fatos e as circunstâncias.

 

A mostra também é pródiga ao apresentar a produção de um dos artistas paraenses mais conhecidos para além das fronteiras do estado: Luiz Braga. Ali encontramos o artista com obras que decididamente o retiram do compromisso que lhe foi outorgado de representante da “visualidade amazônica”. Fora desse viés, Braga se revela o artista maior que já dava demonstração de ser, desde as fotos em preto e branco, produzidas nos anos 1970, exibidas no MUFPA. A participação de Braga na mostra ganha ainda maior destaque com a apresentação de algumas de suas fotografias em cor, produzidas em interiores residenciais e sem nenhum apelo regionalista mais evidente. Por último, a mostra também traz a público uma surpresa para aqueles que se interessam pela produção de Luiz Braga: um vídeo – peça raríssima (talvez única) dentro de sua obra – em que o registro de cunho antropológico é ampliado em seu significado pelas imagens produzidas pelo artista.

Artistas da significação de Claudia Leão, Dirceu Maués, Flavya Mutran, Geraldo Ramos, Janduari Simões, Jorane Castro e Walda Marques, completam o time de artistas que constituem, no MUPFA, talvez o cerne mais consistente da fotografia produzida há algumas décadas no Pará.

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Um dado já perceptível nos parágrafos acima, reveste o Programa Diário Contemporâneo de uma importância ímpar na cena brasileira: o fato de que, além de anualmente colocar Belém em contato com parte do que de mais estimulante ocorre no Brasil em termos de arte contemporânea, o Prêmio – a partir de acordos assinados com o Museu da Casa das Onze Janelas e com o Museu da Universidade Federal do Pará – levam para seus respectivos acervos, as obras premiadas pelo Projeto. Agindo dessa maneira, o Prêmio deixa de ser, então, apenas mais um dos eventos ligados à arte contemporânea em Belém, para se transformar em um fomentador importante dos acervos dos dois museus citados, ambos públicos (o primeiro estadual, o segundo, federal). Esse acordo entre a entidade promotora do evento – o Diário do Pará – e os dois museus, demonstra como é possível produzir projetos de excelência unindo a iniciativa privada e os museus públicos brasileiros, sempre carentes de verbas para ampliar seus respectivos acervos.

A cada edição do Prêmio, é preciso frisar, o corpo de jurados é mudado, garantindo, assim, a presença sempre diversificada de pontos de vistas de profissionais respeitados de todas as regiões do país. Neste tipo responsabilidade compartilhada, ganha o Diário do Pará, que associa sua marca a duas instituições públicas respeitáveis, ganham os dois museus e ganha o público paraense, que poderá continuar convivendo com as obras premiadas em cada edição.

Completados os dez primeiros anos do Prêmio, surgem possibilidades de que ele venha a ganhar ainda maior penetração e destaque, não apenas na cena paraense e brasileira, mas também internacional. São tempos novos que se aproximam nessa segunda década que se inicia. Que as três instituições envolvidas tenham a sabedoria de continuar mantendo e ampliando o escopo do Projeto, sem descuidar da necessidade de bem escolher, daqui para frente, quem pode e merece continuar oferecendo-lhe o devido suporte.

 

 

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[1] – Em todas suas edições, a mostra Prêmio Diário Contemporâneo realiza-se em duas instituições: o Museu Casa das Onze Janelas e o Museu de Arte da Universidade Federal do Pará. Excepcionalmente neste ano, uma das exposições do Prêmio realiza-se no Museu do Estado do Pará que, como a Casa das Onze Janelas, também pertence ao estado do Pará.

2 comentários

  1. Excelente texto!
    Muito obrigado! Sem a sua coluna eu jamais teria conhecimento do Projeto Prêmio Diário.

    Parabéns a Belém do Pará e aos museus do Estado do Pará (MEP) e Museu de Arte da Universidade Federal (MUFPA), pela 10ª edição do Projeto Prêmio Diário.
    Vida longa a arte no Brasil!

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